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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 25-Sep-2023

https://doi.org/10.5902/1984644440439 

Artigo Demanda Contínua

Princípios da Didática Freireana: subsídios para uma prática didático-pedagógica na educação superior1

Principles of Freirean Didactics: subsidies for a didactic-pedagogical practice in higher education

Patricia Lima Dubeux Abensur¹  , Técnica em assuntos educacionais, professora doutora colaboradora do programa de pós-graduação em Ensino em Ciências da Saúde
http://orcid.org/0000-0003-0454-6863

Ana Maria Saul²  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-0114-444X

¹Técnica em assuntos educacionais e professora doutora colaboradora do programa de pós-graduação em Ensino em Ciências da Saúde na Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, Brasil. pdubeux@gmail.com

²Professora doutora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, Brasil. anasaul@uol.com.br


RESUMO

O presente estudo apresenta uma releitura do pensamento de Paulo Freire, referente ao processo ensino-aprendizagem, com o objetivo de contribuir para os estudos da Didática. Integra uma pesquisa, cujo objetivo foi investigar as possibilidades e os limites de se construir e vivenciar uma prática didático-pedagógica subsidiada pelos princípios freireanos. O referencial teórico apoia-se em uma trama conceitual freireana que assume a categoria ensino-aprendizagem como central e define como essencial, para esse estudo, a relação com os conceitos de participação, diálogo, investigação temática, conhecimento e “Ser Mais”. Adotou-se a abordagem qualitativa. A proposta de pesquisa concretizou-se na disciplina “Formação Didático-pedagógica em Saúde”, desenvolvida em dez aulas, com trinta e um estudantes de pós-graduação de cursos strito sensu da área da saúde do campus São Paulo da Universidade Federal de São Paulo. Na produção dos dados foram utilizados questionário aberto e fechado, áudio de aula, atividades escritas desenvolvidas no decorrer da disciplina e diário de campo. A leitura e análise dos dados mostrou a importância da necessidade de se criarem condições concretas para que ocorra a discussão e a reflexão sobre aspectos do contexto profissional dos educandos; e, o reconhecimento da dimensão coletiva na construção do conhecimento individual.

Palavras-chave: Didática Freireana; Educação Superior; Saúde

ABSTRACT

This study presents a rereading of Paulo Freire's thought, concerning the teaching-learning process, with the objective of contributing to the didactics studies. It integrates a research, whose objective was to investigate the possibilities and the limits of building and experiencing a didactic-pedagogical practice subsidized by the Freirean principles. The theoretical framework is based on a Freire conceptual framework that takes the category teaching-learning as central and defines as essential, for this study, the relationship with the concepts of participation, dialogue, thematic research, knowledge and "Being More". The qualitative approach was adopted. The research proposal was materialized in the course “Didactic-Pedagogical Training in Health”, developed in ten classes, with thirty-one postgraduate students of strito sensu health courses at the São Paulo campus of the Federal University of São Paulo. In the production of data were used open and closed questionnaire, class audio, written activities developed during the course and field diary. The reading and analysis of the data showed the importance of the need to create concrete conditions for the discussion and reflection on aspects of the students' professional context; and, the recognition of the collective dimension in the construction of individual knowledge.

Keywords: Freirean Didactics; Higher Education; Health

Introdução

O presente estudo se desenvolveu no âmbito da educação superior e integra um projeto de abrangência nacional, que busca contribuir para a releitura e reinvenção do pensamento de Paulo Freire nas políticas e práticas educativas.

Traz-se nesse texto a discussão das possibilidades e limites de uma didática freireana como subsídio para uma prática didático-pedagógica desenvolvida com profissionais da saúde, assumindo-se como um dos objetivos a contribuição para o campo da Didática.

Adota-se o princípio de que a Didática não se resume a técnica apenas. Defende-se uma Didática que seja constituída pelas dimensões técnica, humana e política (CANDAU, 2014), cujo objeto é o ensino e a aprendizagem situados (PIMENTA, 2011). Esta abordagem requer uma discussão e reflexão permanentes dos desafios e obstáculos enfrentados pelos docentes em sala de aula na busca de alternativas para superá-los e com isso avançar no fazer docente.

A Pedagogia Freireana2 traz elementos basilares para a proposição de avanços no desenvolvimento de um processo de ensino e aprendizagem e vai ao encontro da concepção da Didática, enquanto campo de estudo da problemática do ensino e da aprendizagem, conforme definida por Pimenta (2011), em uma perspectiva que exige no seu desenvolvimento decisões que vão além da técnica. Compreende-se, com Freire (2015a), que tais decisões refletem a politicidade do processo de ensino, uma vez que estão apoiadas em interesses, valores, ideais, visão de mundo e concepções que fundamentam não só a prática de ensino, mas também definem o projeto de educação e de sociedade que se quer ajudar a construir.

No entanto, a Pedagogia Freireana não restringe o entendimento do processo ensino-aprendizagem apenas à dimensão política (FREIRE, 2015b). Acrescenta como constituinte desse processo as dimensões técnica e humana. Esse é outro ponto de aproximação entre o pensamento de Freire e o campo da Didática, que caracteriza o processo de ensino e aprendizagem como sendo um processo multidimensional (CANDAU,2014).

Em várias obras de Freire ((1970) 2003, 2015b, 2014, 2006), podemos encontrar a sistematização e materialização de uma didática a partir dos princípios de educação por ele concebidos. Esta didática já foi assumida por diversos educadores e pesquisadores como opção teórica, metodológica e epistemológica. A partir de uma releitura crítica sem, porém, descaracterizar os seus princípios fundamentais, esses educadores e pesquisadores sistematizaram a didática freireana, considerando suas realidades e suas histórias.

Dentre eles destacamos Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), que conceberam e desenvolveram no contexto do ensino fundamental e em oficinas de formação de professores de ciências, uma dinâmica didático-pedagógica inspirada no conceito da investigação temática freireana, a qual é conhecida como os "Três Momentos Pedagógicos" - Problematização Inicial, Organização do Conhecimento e Aplicação do Conhecimento. Os autores promoveram uma transposição da concepção de educação de Paulo Freire para a educação formal, enfatizando os princípios diálogo e problematização.

Outro estudo na linha da Didática Freirena foi desenvolvido por Ana Saul e Alexandre Saul(2017). Nele encontramos um quadro de referência composto por princípios freireanos capaz de inspirar práticas de ensino-aprendizagem, em uma perspectiva crítico-libertadora. Conceitos freireanos como diálogo, autonomia, reflexão crítica sobre a prática, respeito ao saber de experiência-feito e Dodiscência são destacados, neste quadro.

Giovedi, Silva e Amaral(2018) sistematizaram a Didática que emerge da obra "Pedagogia do Oprimido" a partir das discussões, debates, estudos e investigações de um grupo de pesquisa. Os autores trazem o conceito de Didática Crítico-Libertadora, a qual é, segundo eles, composta por duas dimensões: os seus pressupostos (políticos, axiológicos, gnosiológicos e epistemológicos) e os seus elementos constituintes (conteúdos, métodos, avaliação e relações educador-educandos).

Por fim, ressalta-se o relato de experiência em sala de aula desenvolvido por Gerez et al (2018), o qual consistiu em descrever as etapas para materialização de uma didática no Ensino Superior, com base na metodologia da investigação temática freireana. Esta experiência foi desenvolvida na disciplina de Didática com graduandos do curso de Licenciatura em História de uma universidade pública.

A leitura dos autores citados acima e das obras de Freire, tomando como referencial principal a obra Pedagogia do Oprimido ((1970)2003), mostrou-nos a aproximação dos princípios da Pedagogia Freireana com a área da didática. Essa condição nos instigou, a saber: Quais as possíveis contribuições e limites da Pedagogia Freireana para uma prática didático-pedagógica, vivenciada no contexto da educação superior com pós-graduandos da área da saúde?. A escolha do contexto deste estudo3 se justifica devido a nossa área de atuação profissional.

Com o objetivo de melhor apresentar o trabalho desenvolvido, estruturou-se o texto em quatro partes. Na primeira, trabalha-se com os conceitos da Pedagogia Freireana, integrados em uma trama conceitual, compreendidos para este estudo como necessários para a vivência de uma didática na perspectiva do educador Paulo Freire, que orientaram a prática desenvolvida, a produção, a análise e a apresentação dos dados. A segunda parte aborda a opção teórico-metodológica para a produção de dados desta pesquisa. Em seguida, apresenta-se os dados organizados em dois eixos temáticos, os quais estruturaram a nossa reflexão e análise. Ao final são tecidas considerações acerca das possibilidades e limites do presente estudo.

Referenciais freireanos para construção e análise de um processo de ensino-aprendizagem

Ensinar e aprender são entendidos como polos dialéticos de um mesmo processo, que acontecem concomitantemente e por isso não podem ser tratados em momentos distintos.

Nesse processo, educador e educandos são seres inconclusos. A inconclusão do ser humano e a sua consciência de um ser inacabado são fundamentos do ensinar e aprender, na perspectiva freireana, em um processo entendido como permanente (FREIRE, 2015a).

Ambos os sujeitos - educador e educando - se encontram em níveis distintos, devido à própria trajetória de vida, mas, ao mesmo tempo, são responsáveis pela construção do conhecimento um do outro. Caracteriza-se como uma abordagem pedagógica, na qual o educador não é o detentor único do conhecimento e o educando, o depósito vazio a ser preenchido pelos ensinamentos de seu mestre (FREIRE, (1970) 2003).

Assumir essa abordagem pedagógica requer do educador coragem para romper com práticas conservadoras e hegemônicas que retratam uma sociedade na qual prevalece o poder econômico acima de tudo e de todos, e também prevalecem o machismo, o racismo, a discriminação e o preconceito de toda a espécie. Requer coerência para agir de acordo com o seu discurso, crítico a todas as estruturas que perpetuam a desigualdade em nosso país.

O processo de ensino-aprendizagem não se caracteriza, no pensamento freireano, como uma categoria isolada, mas relacional. Neste estudo, assumiu-se como fundamentais, na relação que define a categoria ensino-aprendizagem sob a perspectiva freireana, os conceitos de participação, diálogo, investigação temática, conhecimento e "Ser Mais". Essa relação foi expressa em uma trama conceitual freireana4 (Figura 1), cuja centralidade está na categoria ensino-aprendizagem.

Fonte: as autoras

Figura 1 Trama Conceitual Freireana : Ensino-aprendizagem 

O diálogo freireano como fundamento do processo ensino-aprendizagem

Ao assumir o diálogo como fundamento do processo ensino-aprendizagem, o educador admite que os participantes desse processo são sujeitos de conhecimento e possuem saberes que contribuem para o crescimento coletivo. A proposta exige humildade do educador para olhar para si e perceber que não é detentor de todo conhecimento, que os educandos têm algo a lhe ensinar e a contribuir com o processo ensino-aprendizagem. Só o exercício da humildade e da tolerância possibilita o diálogo entre os diferentes- diferentes pela experiência de vida, por suas crenças, valores e princípios.

Para Freire ((1970)2003), o diálogo é um fenômeno humano e uma exigência existencial que acontece entre sujeitos mediados pelos objetos de conhecimento; logo, não há passividade em nenhuma das partes. Todos os envolvidos são sujeitos atuantes e de conhecimento. “Diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE,(1970)2003, p.79).

A importância do diálogo como fundamento do processo ensino-aprendizagem é percebida ao se constatar que ele perpassa todas as fases desse processo, desde o seu planejamento até a sua avaliação final. É junto com os educandos que o educador planeja, desenvolve e avalia o programa educativo. Já no início desse processo, os educandos são convidados a participar de maneira ativa e por meio do diálogo. O diálogo é, pois, um convite à participação.

Ensino-aprendizagem implica participação

Freire (2005, p.75) escreve que participar é discutir, é ter voz, é “(...)um estar presente na história, mas não uma presença concedida por outros em alguns momentos ”.

A participação é compreendida como um conceito e uma prática para optar e decidir, em vez de fazer, necessariamente, o que está prescrito. A participação é um chamamento para a construção de um novo horizonte.

A prática da participação exige exercício. É um processo que se constitui com paciência e perseverança, pois decisões coletivas que têm origem em grupos democráticos não podem “atropelar” o indivíduo. Por isso, é essencial o cuidado de se pensar e criar espaços, estratégias e condições concretas para que os participantes se percebam como sujeitos históricos e possam atuar de maneira ativa no processo de decisão.

Em um processo de ensino-aprendizagem freireano, os sujeitos são convidados a participar ativamente na definição do programa da disciplina, no desenvolvimento das aulas, na avaliação do curso e autoavaliação. Procura-se, nesse processo, experienciar a participação como “partilha de poder” (Paro,2005), que permite a todos contribuírem com iguais oportunidades, reconhecendo, como definido por Freire, cada indivíduo como sujeito histórico (FREIRE, 2011).

A participação é constituinte da natureza humana. Negar esta dimensão do humano no processo ensino-aprendizagem pode provocar desânimo e descrença nos educandos. Para que ocorra, de fato, a participação na sala de aula faz-se necessário que o educador partilhe com os educandos o poder de decisão. Essa é uma atitude de um educador democrático progressista. A participação é uma atitude, postura que se aprende com o exercício. Ninguém nasce pronto para participar. É preciso que haja espaços para que se exercite a participação e a sala de aula é um desses espaços.

O processo ensino-aprendizagem requer investigação temática

A construção do programa de uma disciplina ou curso requer, na perspectiva freireana, uma investigação temática que é um processo de pesquisa crítico no qual se busca desvelar a realidade e ampliar a consciência que dela têm os educandos. O ponto de partida neste processo de ensino-aprendizagem é o outro e a percepção que ele tem do mundo, conhecida a partir da investigação temática, realizada coletivamente, em que educador e educandos, ambos sujeitos do processo, irão, em conjunto, definir o que será estudado, superando a concepção em que o professor tem posição de detentor único do saber, assim como retirando a legitimidade da prévia lista de conteúdos descontextualizados e livrescos, característica de uma “educação bancária” (FREIRE, (1970)2003).

Para este estudo, a leitura de algumas obras do educador Paulo Freire (2015b, 2014, 2006), em especial o capítulo 3 da Pedagogia do Oprimido ((1970)2003, pp. 77-120), permitiu identificar quatro fases necessárias para compor a investigação temática freireana. São elas: leitura da realidade, codificação, descodificação e programa de curso ou disciplina.

Na leitura da realidade, inicia-se a produção de dados que possibilita entender o modo como os educandos compreendem o seu contexto concreto. A produção de dados pode ser realizada de formas diversas: entrevistas, conversas, textos escritos pelos educandos com perguntas orientadoras, questionários, observação, entre outras.

Na produção dos dados ocorre o processo de codificação, que é o momento no qual os educadores buscam representações para ilustrar as situações identificadas pelos educandos que dizem de problemas vivenciados no cotidiano. A codificação permite transformar a cotidianidade em objeto de conhecimento, descrever esta realidade e seus constituintes para que, na fase seguinte, denominada descodificação, ocorra a análise das situações representadas e seja possível realizar o que Freire ((1970) 2003) define como “diálogos descodificadores com os educandos”.

A partir da problematização e análise das situações codificadas, escolhe-se, coletivamente, o tema gerador que orientará a construção da proposta do programa a ser estudado.

Ensino-aprendizagem gera conhecimento

Compreende-se, de acordo com Freire, que o ato de conhecer pode se dar em duas dimensões: individual e coletiva. Na dimensão individual, a qual envolve um processo subjetivo e questões individuais, se estabelece relação com autores e textos que nos auxiliam no esclarecimento do objeto de estudo e no entendimento construído a partir de experiências individuais. É o momento em que, junto ao autor do texto, busca-se compreender o escrito e isso é feito a partir de nossas experiências e com a ajuda de instrumentos como dicionários e textos comparativos (FREIRE, 2003a).

A leitura, o estudo e a compreensão compõem um momento que poderá vir previamente ao coletivo, em preparação para a discussão, ou, posteriormente, para aprofundamento, em atendimento à curiosidade epistemológica aguçada pelo debate. Nesse momento, cada participante consulta material auxiliar e tece as relações interpretativas entre partes do texto (FREIRE, 2003a).

A dimensão coletiva proporciona a experiência do diálogo que permite construir a compreensão do objeto, a partir de diferentes pontos de vista, bem como a imersão nestes diferentes entendimentos, o que enriquece a produção da inteligência sobre o objeto e gera o conhecimento social. Entende-se, pois, que o desenvolvimento crítico individual é necessário para a transformação social, mas não suficiente (FREIRE, (1970) 2003). O conhecimento, em um processo de ensino-aprendizagem freireano, é uma construção que acontece por meio do diálogo, em uma relação horizontal, entre educador e educandos.

Ensino-aprendizagem objetiva o “Ser Mais”

O processo de ensino-aprendizagem freireano tem como horizonte político o “Ser Mais”. É um processo que assume como fundamento a humanização daquele que ensina-aprende e daqueles que, ao aprender, também ensinam.

A prática que se constitui a partir das características da educação bancária desconhece os educandos como sujeitos construtores da sua história e, por isso mesmo, os vê como incapazes de mudar a si e transformar a sua realidade. Segundo Freire ((1970)2003, p.74), a prática bancária enfatiza “(...) a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens a sua situação como problema”.

A prática problematizadora, libertadora, crítico-emancipatória vê os seres humanos como sujeitos de conhecimento, históricos, ativos no processo de ensinar-aprender, que juntos podem compreender e conhecer a realidade da qual fazem parte e buscar alternativas para torná-la mais justa, fraterna e solidária. É uma prática na qual o processo de ensino-aprendizagem parte do que os educandos sabem e não do que eles não sabem.

Negar a vocação dos seres humanos de “Ser Mais”, não os reconhecendo como sujeitos de conhecimento, históricos e em permanente movimento de busca, é um ato de violência. A concepção de que os sujeitos são recipientes vazios e que o educador é o detentor de todo o conhecimento e, caridosamente, o transfere para os seus educandos é um ato de violência que distorce a nossa vocação de “Ser Mais” e promove a desumanização.

A opção teórico-metodológica para a produção de dados

Nesta investigação trabalhou-se com os pressupostos da pesquisa qualitativa na vertente da investigação temática (Freire, (1970) 2003). A vivência da investigação temática ocorreu durante a disciplina “Formação Didático-Pedagógica em Saúde”, desenvolvida em 10 aulas e contou com duas docentes e 31 discentes, pós-graduandos.

A produção dos dados ocorreu em dois momentos: o primeiro deles, durante o desenvolvimento da disciplina, da elaboração de atividades escritas, individuais e coletivas em sala de aula. Foram utilizados, também, questionários fechados e abertos no início, durante e, imediatamente, ao término da disciplina para registro de percepções e informações dos educandos. Também foi analisado um áudio que registrou uma avaliação da trajetória do grupo na disciplina e o diário de campo da pesquisadora. O segundo momento da coleta de dados ocorreu seis meses após o término da disciplina, por meio da aplicação de um questionário. A seguir, apresenta-se breve apontamento de como os dados foram produzidos no contexto prático da disciplina.

Nas duas primeiras semanas de aula foi realizada a investigação temática para que o grupo participante selecionasse, coletivamente, um tema gerador5, que desse origem à construção do programa da disciplina. Esse movimento da pesquisa no qual se busca desvelar a realidade e ampliar a consciência que dela têm os sujeitos participantes, teve continuidade no desenvolvimento de todo o programa.

A “leitura da realidade”, na percepção dos educandos, sobre a situação do ensino superior em saúde, foi colhida por meio de um questionário aberto, aplicado no primeiro dia de aula. Após a análise das respostas dadas às questões, as docentes selecionaram dez extratos que melhor representavam a expressão do grupo.

No segundo dia de aula, os educandos analisaram e escolheram, coletivamente, o extrato que representava o maior desafio a ser superado na educação superior em saúde.

Com o tema gerador definido, passou-se à construção da proposta do programa da disciplina. Foram identificados os núcleos fundamentais que se constituíram em conteúdos de aprendizagem. Esse programa foi apresentado e discutido com os pós-graduandos antes de ser assumido e desenvolvido nas aulas que se seguiram.

Nos encontros seguintes, foram trabalhados os conteúdos com o auxílio de textos indicados para leitura prévia e estratégias de ensino-aprendizagem que procuravam trazer vivências diversificadas na sala de aula. Procurou-se fazer com que os princípios freireanos fossem não apenas um suporte teórico para a pesquisa, mas que se materializassem em práticas e pudessem ser aprendidos pelo grupo por meio das vivências em sala de aula.

Uma atividade importante que ocorreu, na segunda parte de cada aula, consistiu na elaboração de um “plano de ação”. Nela, os pós-graduandos, em pequenos grupos, construíram um plano de aula com o objetivo de superar o problema presente no tema gerador. Esse momento era subsidiado pelos conteúdos trabalhados na primeira parte da aula. A sequência de ações didático-pedagógicas assumida na disciplina foi: investigação temática, discussão e reflexão sobre os conteúdos selecionados e elaboração do plano de ação.

A voz dos participantes do processo ensino-aprendizagem: um momento para a reflexão e análise das possibilidades e limites da prática vivenciada

Os dados6 produzidos no presente estudo foram estruturados em quatro eixos organizadores7. Neste texto apresentaremos dois deles: “O diálogo e a participação: condições concretas para a partilha, a discussão e a reflexão do contexto profissional dos educandos” e “O reconhecimento da dimensão coletiva na construção do conhecimento individual".

O diálogo e a participação: condições concretas para a partilha, a discussão e a reflexão do contexto profissional dos educandos

A adoção dos princípios da pedagogia freireana possibilita o rompimento de práticas tradicionais de educação, nas quais o professor, considerado como detentor do poder e do conhecimento, decide o que os educandos precisam e devem aprender, em um processo de transferência de conhecimento. Compartilha-se com Freire (2003a) a proposição de uma concepção de prática didático-pedagógica, na qual, desde o início,

Vivêssemos a relação contraditória entre prática e teoria (...). Recusava, por isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados os primeiros momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre a matéria fundamental da formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas pessoas, as consideradas mais capazes para falar aos outros. (FREIRE, 2003a, p.32)

Ao propor uma prática didático-pedagógica subsidiada nos referenciais freireanos, reconhece-se os educandos como sujeitos de conhecimento que devem participar de todo o processo educativo, inclusive da elaboração do programa a ser desenvolvido.

Para que se pudesse alcançar esse objetivo, procurou-se criar no decorrer de toda a disciplina, momentos e condições para que os pós-graduandos pudessem falar sobre a sua realidade e o seu entendimento dos problemas que nela existem para juntos construírem conhecimento que propiciasse a busca de soluções para superá-los. Essa dinâmica pode ser percebida nas vozes dos educandos a seguir:

Em todas as aulas tivemos a oportunidade de discutir temas variados e problematizar situações. O grupo era formado por diversos profissionais da área de saúde, o que ajudou a enriquecer os debates, uma vez que tivemos contato com diferentes realidades e opiniões. (PÓS-GRADUANDA 18) Em sua maior parte, o curso foi moldado através de discussões em grupo. Este ponto foi proveitoso para a troca de experiências, opiniões, conhecimentos, bem como para refletirmos sobre diferentes pontos de vista e chegarmos a decisões coletivas sem a imposição de um raciocínio/pensamento e sim, algo em prol do pensamento coletivo do grupo. (PÓS-GRADUANDA 16) Interessante a abordagem realizada onde nós participamos da programação e desenvolvimento das aulas. (PÓS-GRADUANDA 15)

Segundo Freire (2015a) somos seres inconclusos e, portanto, não sabemos tudo, aprendemos permanentemente. Aprendemos e, também, ensinamos uns aos outros. Educadores e educandos possuem saberes diferentes, o que permite a troca e o diálogo entre educandos e educador e entre os educandos. Uma vez que,

ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. O saber começa com a consciência do saber pouco (enquanto alguém atua). É sabendo que sabe pouco que uma pessoa se prepara para saber mais. Se tivéssemos um saber absoluto, já não poderíamos continuar sabendo, pois que este seria um saber que não estaria sendo. Quem tudo soubesse já não poderia saber, pois não indagaria(FREIRE,2002, p. 47).

Na definição da temática que orientou a disciplina e no desenvolvimento dos conteúdos, a adesão dos pós-graduandos, por meio do diálogo e da participação ativa, foi fundamental para a concretização da prática didático-pedagógica proposta, cujo desafio era o desvelamento da realidade e a ampliação da consciência que dela tinham os participantes. Em alguns momentos, temas polêmicos geraram conflitos, provavelmente por, via discussão e reflexão, atingirem-se valores muito arraigados do grupo, fruto de visões de mundo diversas.

Um dos momentos de conflito pode ser ilustrado pelas palavras de alguns participantes sobre a abordagem, princípios e valores subjacentes no texto indicado para apoiar a discussão sobre o tema da diversidade na universidade. Esse tema foi identificado como um problema que dificultava a atuação do professor, uma vez que essa diversidade, fruto da inclusão de um novo público na universidade, está trazendo, para os estudos universitários, alunos oriundos de um ensino médio, avaliado pelos participantes como deficiente, gerando dificuldades no acompanhamento (qualitativamente homogêneo) da matéria dissertada pelo professor. É possível perceber como esse foi um momento de tensão e conflito. Vejamos algumas das falas que aconteceram no grande grupo:

Quando comecei a ler o texto “A Universidade e a pluridiversidade epistemológica” realmente tive dificuldades em me concentrar na leitura. A princípio, além de achar um texto muito prolixo, com palavras desconhecidas ao meu vocabulário, também o achei de caráter esquerdista e, a princípio discordava em participar de uma atividade acadêmica partidária, sendo que o enfoque era para ser didática. Entretanto, segui com a leitura até o final, ao menos para poder expressar minha opinião na aula. Não me arrependi pois, como a turma é bem heterogênea, conseguimos com respeito uns aos outros discutir as diferentes opiniões sobre o texto. (...) independente do tema, se houver interesse por parte do aluno em participar da atividade proposta e uma boa dinâmica por parte do professor para conduzir a aula, o tempo em sala será proveitoso. (PÓS-GRADUANDA 17)

Ao ler o texto fiquei imaginando como seria essa autor. A imagem que veio a minha mente foi a de um senhor barbudo vestido com uma camiseta com a estampa do Che Guevara. (PÓS-GRADUANDO 1).

Optou-se, nesse caso, por trabalhar nos pequenos grupos e depois socializar o resultado da discussão com o grupo classe. Essa dinâmica contribuiu para o amadurecimento das ideias e esvanecimento de evidências de possíveis atitudes radicais e inflexíveis sobre os temas em discussão. E percebeu-se, na fala acima da pós-graduanda 17, que se conseguiu vivenciar um momento de troca de ideias respeitoso. Pois, como esclarece Freire, “(...) é possível que haja uma divergência, conflitiva até, mas de um tipo de conflito que é o conflito superável, o conflito entre diferentes e não entre antagônicos.” (GADOTTI, FREIRE & GUIMARÃES, 2000, p.17). E é importante que assim se dê, uma vez que entre antagônicos é impossível o diálogo.

Apesar do pouco tempo reservado para a disciplina (30 horas presenciais e 30 horas para estudo e atividades extraclasse), foi possível pensar e criar condições concretas para o diálogo e a participação, fortalecendo o trabalho coletivo, por meio das discussões em pequenos grupos e também no grupo classe, como manifestado por alguns participantes:

Embora "rápida", a leitura e a discussão em sala do texto, propiciou um fluxo de ideias e questionamentos capaz de gerar hipóteses e opiniões, que rapidamente foram testadas e moduladas com a exposição de pontos de vista diferentes dos demais integrantes do grupo. (PÓS-GRADUANDO 24) A todo momento as discussões estiveram presentes na disciplina.( PÓS-GRADUANDO 1). Em diversas aulas a discussão teve até que ser interrompida, senão iríamos estourar o tempo. (PÓS-GRADUANDO 6) Sempre houve um momento reservado para discussões na programação e sempre foi possível fazê-lo. (PÓS-GRADUANDA 8) A disciplina teve MUITOS momentos para discussões e isso enriqueceu as aulas. (Pós-graduando 12)

Os momentos utilizados para o trabalho coletivo foram planejados e possuíam um horizonte a ser alcançado. Uma vez que, o diálogo freireano caracteriza uma prática educativa que se define por ser intencional, demarcar objetivos a serem alcançados e conteúdos a serem discutidos criticamente. Segundo Freire (2006),

(...)toda a prática educativa implica sempre a existência de sujeitos, aquele ou aquela que ensina e aprende e aquele ou aquela que, em situação de aprendiz, ensina também, a existência do objeto a ser ensinado e aprendido - a ser re-conhecido e conhecido - o conteúdo. (FREIRE, 2006, p.109).

Os depoimentos de alguns pós-graduandos mostram a importância da participação para qualificar a leitura coletiva dos textos, para o enriquecimento das discussões em sala de aula e, assim também, a sua contribuição para a ampliação da percepção dos fatos que dariam origem à problemática destacada pelo grupo como obstáculo ao desenvolvimento profissional. Freire (2003a, p. 43) escreve que “(...) a leitura em grupo faz emergir diferentes pontos de vista que, expondo-se uns aos outros enriquecem a produção da inteligência do texto”. Vejamos o que disseram os participantes da disciplina:

Foram muito importantes as discussões em grupo, pois conseguimos ver opiniões diferentes em um mesmo assunto, e chegar em um consenso, ou em uma união de opiniões. (PÓS-GRADUANDA 14) As discussões foram enriquecedoras porque colocavam para o grupo diferentes visões sobre uma mesma problemática/tema, a partir da experiência de vida e docência de cada um. (PÓS-GRADUANDA 16) Ouvir, trocar experiências, promover um ensino horizontal enriquece a sala de aula e faz com que todos envolvidos (alunos e mestres) adquiram mais conhecimento. (PÓS-GRADUANDA 19)

Por meio da participação, foi possível o diálogo entre os diferentes e o exercício da tolerância entre os que, em decorrência das suas histórias e experiências de vida, trazem crenças, valores e princípios diversos. Compreende-se, com Freire (2003a, p.59), que, “(...) a tolerância é a virtude que nos ensina a conviver com o diferente. A aprender com o diferente, a respeitar o diferente”. Vejamos as falas a seguir:

Através das discussões e reflexões percebi a diversidade e foram válidas para mudança de opiniões e até comportamento. Além de ter me despertado mais a vontade de atuar como docente e poder, talvez, fazer alguma diferença. (PÓS-GRADUANDA 29) A disciplina deixou os alunos a vontade para expor suas ideias e vivências. (PÓS-GRADUANDA 3)

Reafirma-se a importância e viabilidade de um processo de ensino-aprendizagem fundamentado no diálogo e na participação como possibilidade de mudança no fazer pedagógico, no qual há participação ativa dos sujeitos para partilhar os desafios presentes em suas realidades e suas diversas visões de mundo, bem como o compromisso coletivo com a construção do conhecimento e desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Busca-se uma educação crítico-emancipatória, na qual “(...) educador e educandos, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento” (FREIRE, (1970)2003, p.56). Vejamos o que dizem alguns participantes:

Quase todas as atividades foram desenvolvidas em grupo e havia necessidade de um longo debate para se fazer a atividade. Principalmente a atividade relacionada ao plano. (PÓS-GRADUANDA 22). Achei muito interessante vocês iniciarem as aulas perguntando se tínhamos alguma experiência ou se vivenciamos algum fato que pudesse contribuir com a aprendizagem de todos. As rodas de discussão em grupo maior e a divisão em grupos pequenos, e muitas vezes, distintos, também foram enriquecedoras e favoreceram a troca de conhecimentos entre todos (alunos e docentes). (PÓS-GRADUANDA 28).

Percebe-se nos discursos dos participantes que princípios da Pedagogia Freireana como diálogo, participação e investigação temática foram conteúdos apreendidos a partir da prática experienciada. Esta é, pois, uma avaliação que parece indicar a coerência entre o discurso assumido e a prática vivenciada.

O reconhecimento da dimensão coletiva na construção do conhecimento individual

Freire ((1970)2003) questiona a concepção bancária de conhecer - que se caracteriza por arquivar informações, ao defender que “(...)só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, (1970) 2003, p.58).

Compreende-se, pois, que conhecer é um evento social, integrado também por momentos individuais, por isso optou-se, preferencialmente, por desenvolver, na sala de aula, discussões e reflexões em grupos para conhecer e aprofundar o conteúdo que estava em estudo. Vejamos como foi esse processo, na voz dos participantes:

As discussões em grupo permitem a troca de conhecimentos e dúvidas. Os temas ao serem discutidos em grupo permitiram uma assimilação maior do conteúdo. (PÓS-GRADUANDO 1) Ler e concatenar ideias é apenas o início do processo de aprendizagem. Ao ouvir, adiciona-se mais elementos não pensados inicialmente e, ao falar, estruturam-se as ideias e argumentos de forma mais clara. Ao final, o amálgama criado é maior e mais completo do que o pensado sozinho. (PÓS-GRADUANDO 9) Um dos aspectos mais positivos da disciplina foi a questão de disponibilizar a possibilidade de exposição de ideias e conceitos individuais e coletivos a todo o momento, ampliando e reformulando conceitos e preconceitos a partir da interface do convívio social e da divisão de experiências. (PÓS-GRADUANDO 30)

Além do conteúdo previsto no programa, teve-se a oportunidade de vivenciar o respeito às diferentes crenças e valores, trazidos pelos pós-graduandos, de formações, experiências profissionais e origens diversas. Alguns relatos indicam a tolerância e a escuta atenta como conteúdo e prática exercitada pelo grupo:

Conhecer diferentes posições, conhecer e recuperar, que com respeito, é possível conviver com as diversidades, tão difícil em nossa sociedade hoje. Fala-se tanto da inclusão, mas se vive a exclusão por pensar diferente. (PÓS-GRADUANDA 9) O trabalho em grupo é sempre muito rico seja pela aprendizagem com os colegas, seja pela necessidade que temos de desenvolver nossa capacidade de escuta e respeito pelas diferenças. (PÓS-GRADUANDA 22) Trabalhando com grupos grandes e variados fez clara a percepção de diversidade de vivências, pensamento ideológico e prática cotidiana. Isto reforçou a importância dos conteúdos trabalhados. (PÓS-GRADUANDO 24)

O saber ouvir e respeitar as crenças e valores do outro, possibilita reconhecer-se que todos somos sujeitos de conhecimento e torna possível a participação e construção coletiva do conhecimento no processo ensino-aprendizagem. Freire (2006, p. 111) escreve que é um direito dos educandos, independente de sua origem, classe social ou crença, “saber melhor o que já sabem, ao lado de outro direito, o de participar, de algum modo, da produção do saber ainda não existente”.

Cada um de nós é sujeito de conhecimento, mas, para que o outro contribua para a produção e a construção do conhecimento na sala de aula, foi preciso vivenciar e demonstrar, concretamente, a fé nos homens e a humildade, dimensões constituintes do diálogo freireano. Freire ((1970) 2003, p. 80) escreve que “não há(...) diálogo, se não há a humildade. A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante”. Ao explicitarem os conhecimentos construídos e o processo de construção desse conhecimento, alguns participantes destacaram:

A importância de aprender com a experiência dos outros. (PÓS-GRADUANDO 5) Acredito que durante as discussões em grupo todos tiveram a oportunidade de aprender uns com os outros de acordo com a vivência que cada um. (PÓS-GRADUANDA 23) A lembrança que, fora do círculo de relacionamentos próximos, há muita diversidade; respeito as vivências dos demais. (PÓS-GRADUANDO 24) Aprendi que é importante sempre se colocar no lugar do outro, pois, dessa forma, podemos solucionar problemas. (PÓS-GRADUANDA 27)

Conhecer não é memorizar, nem transferir informações. Conhecer, na perspectiva freireana, exige o exercício de se compreender e desvelar o objeto de conhecimento. Em seus depoimentos, os pós-graduandos enfatizaram a vivência de outra possibilidade de se produzir e construir conhecimentos. Vejamos:

Cada informação diferente recebida (texto, experiência dos colegas) agrega uma modificação no olhar do ensino. Cada dia sinto que estou transformando a visão centralizada que tinha sobre o assunto e ampliando o horizonte das possibilidades de ensinar e aprender . Essa experiência vem se tornando cada vez mais enriquecedora. (PÓS-GRADUANDA 3) A pluralidade de pontos de vista levantados na discussão em sala foi como uma versão paralela e em miniatura do ponto levantado no texto. (...). Esse amálgama de conhecimento partindo do coletivo com certeza mudou a perspectiva de todos, algo muito diferente da verticalização professor - conhecimento - aluno em uma via de mão única. (PÓS-GRADUANDO 10) Sempre que nós deparamos com uma atividade diferente da nossa habitual surgem questionamentos. De fato nunca havia me dedicado a estudar planejamento pedagógico e achei muito interessante a possibilidade de explorar o ensino com diferentes técnicas e abordagens. (PÓS-GRADUANDO 15) As discussões em grupo favoreceram a exposição de conceitos teóricos nem sempre tão simples e possibilitou a execução da tarefa de discussão dos principais tópicos teóricos dos problemas levantados sem causar grande estresse aos alunos mais ou menos familiarizados com tarefas em grupo. (PÓS-GRADUANDO 31)

Reconhece-se que a educação defendida por Paulo Freire é “uma educação libertadora, problematizadora, (que) já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir ‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, (...) mas um ato cognoscente” (FREIRE, 2003, p. 68).

No processo de conhecer, se faz necessário o distanciamento do contexto concreto para com o auxílio da literatura e dos demais participantes do processo, analisar criticamente os fatos, com o objetivo de superar o saber de experiência-feito e gerar um novo conhecimento.

Freire (2015b) escreve que:

A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de “tomar distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar (FREIRE, 2015b, p.83).

As falas dos participantes mostram o valor por eles atribuído ao processo coletivo de construção de conhecimento na disciplina.

As discussões foram fundamentais, uma vez que problematizamos diversas situações e a diversidade da classe contribuiu para uma maior troca de conhecimento. (PÓS-GRADUANDA 19) A experiência da discussão fez com que eu me aproximasse mais do assunto e inclusive o "precisar" se posicionar faz com que haja um maior interesse em entender o assunto. (PÓS-GRADUANDA 11) Além do texto a discussão em grupo fez com que eu enxergasse diferentes pontos de vista e ampliasse minha visão sobre a problemática, fazendo que algumas vezes eu mudasse meus argumentos e até concordasse com outras visões. (PÓS-GRADUANDA 27)

Na avaliação dos participantes em relação à construção do conhecimento, experienciada no decorrer da disciplina, percebe-se fortemente a importância dada aos momentos coletivos, corroborando a concepção de que “(...) ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, (1970) 2003, p.69). Vejamos, a seguir, o que dizem, a propósito, os participantes:

As discussões em grupo permitem a troca de conhecimentos e dúvidas. Os temas ao serem discutidos em grupo permitiram uma assimilação maior do conteúdo. (Pós-graduando 1) As discussões coletivas, nos pequenos grupos e no grupo maior foram bastante enriquecedoras e contribuíram para melhor aproveitamento na prática do material que li. (Pós-graduanda 2) As discussões em grupo permitiram que diferentes indivíduos pudessem contribuir com experiências passadas individuais, as quais enriqueceram muito a discussão. (Pós-graduando 6) Discutir e debater temas em grupos, na minha opinião, favorecem a aprendizagem. Os alunos não pertenciam somente a uma área de atuação, e a troca de experiências e bagagens diferentes enriquecia os debates. Quando lia algum texto e, após a discussão em grupo, conseguia enxergar por outras facetas os temas abordados. (Pós-graduanda 28) Acredito que muitos pensamentos meus mudaram ouvindo a opinião e a experiência de outras pessoas. (Pós-graduanda 29)

A educação dialógica não deve ser confundida com um diálogo informal, descomprometido ou improvisado. Na educação dialógica definem-se objetivos a serem alcançados e conteúdos a serem estudados criticamente. Freire afirma que

Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo, (...) O problema fundamental, de natureza política e tocado por tintas ideológicas, é saber quem escolhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o ensino, contra quem, a favor de que, contra que. (FREIRE, 2006, p.110).

A presença dessa intencionalidade pode ser verificada no depoimento dos participantes.

Os momentos de discussões e decisões coletivas foram suficientes e necessários para melhor aproveitamento da matéria.( PÓS-GRADUANDA 2) As questões de inclusão social, papel da universidade e posicionamento ao ensinar foram desconstruídas e resignificadas ao longo da disciplina, algo muito positivo e que mudou meu posicionamento e ideias sobre esses assuntos. (PÓS-GRADUANDO 10)

Nas discussões em grupo (...) consegui entender opiniões diferentes sobre determinado assunto. (PÓS-GRADUANDA 14)

A todo momento o grupo participou de discussões de forma tranquila, mas que acrescentaram na forma de pensar e em como defender nossos pontos de vista. (PÓS-GRADUANDA 27)

A educação dialógica nos mostra que é possível outra maneira de ensinar e aprender, a qual requer uma investigação temática que exige participação e gera um conhecimento individual e coletivo, tendo por horizonte o “Ser Mais”.

A potencialidade dos referenciais freireanos para uma didática crítico-humanizadora

Com esse estudo, procurou-se conhecer quais as possíveis contribuições e limites da Pedagogia Freireana para uma prática didático-pedagógica, vivenciada no contexto da educação superior, tendo como participantes, pós-graduandos da área da saúde de uma Universidade Pública.

Para o planejamento e a vivência da prática didático-pedagógica, construímos uma trama conceitual, que representou a matriz de referência da investigação, incluindo categorias e conceitos da pedagogia freireana, experienciados como conteúdo e prática formativa pelos participantes.

O processo de ensino-aprendizagem freireano requer a leitura da realidade e isso, consequentemente, implica na necessidade de participação dos sujeitos. Esse é um desafio que pode transformar-se em um limite, para a prática didático-pedagógica e para a pesquisa, caso a proposta não seja assumida pelo grupo. Por isso, são fundamentais a preparação e a sensibilização das pessoas para essa mudança de paradigma que rompe com práticas conservadoras e autoritárias, as quais, em muitos casos, foram as únicas formas anteriores de vivências educacionais.

Rejeita-se a Didática como prescrição de técnicas e métodos, a qual assume perspectiva tecnicista e caráter aplicacionista. Compreende-se que a Didática inclui os desafios, as dificuldades e os obstáculos que são enfrentados cotidianamente no contexto profissional dos docentes e dificultam o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem materializando uma “didática fundamental”(CANDAU, 2014). É um campo de estudo e investigação, cujo objeto é a problemática de ensino, enquanto prática de educação, é o estudo do ensino em situação (PIMENTA, 2011), apresentando-se, portanto, com caráter essencialmente prático.

No decorrer da prática desenvolvida, percebeu-se a potencialidade dos referenciais freireanos para o desenvolvimento de uma didática que:

  • Caracteriza-se por uma ação intencional e sistemática, com objetivos definidos e conteúdos a serem apreendidos criticamente;

  • Distingue-se por ser uma ação com uma dimensão humana, na qual os sujeitos de conhecimento envolvidos e suas realidades são estudadas nas suas determinações histórico-sociais;

  • Defende o processo de ensino-aprendizagem como um ato político, permeado por valores e princípios que guiam a escolha do que ensinar, como ensinar, a favor de quem e contra quem ensinar, recusando o discurso hegemônico da neutralidade;

  • Cria condições para que os docentes possam confrontar suas crenças e valores, por meio da reflexão e análise de suas práticas, com o objetivo de se promover mudanças de origem epistemológica e político-ideológica na dimensão didático-pedagógica.

Romper com práticas tradicionais exige a adesão não só de quem as propõe, mas daqueles que, junto com o educador participam ativamente desse momento: os educandos. Exige reconhecer o outro como sujeito de conhecimento capaz de contribuir para o crescimento de si e dos outros. Exige, ainda, perceber que muitas são as possibilidades de, junto com o outro, ensinar e aprender, partilhando poder, escutando e ampliando olhares. Esse não é o caminho mais fácil ou curto, mas é certo que é o mais ético e democrático.

Referências

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1Esta pesquisa foi financiada pela Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

2Nesse estudo assume-se o uso deliberado do adjetivo freireano e suas flexões, por entender que a manutenção da grafia integral do sobrenome do autor destaca com mais vigor a proveniência, a origem das produções, ou seja, o pensamento de Freire.

3O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e obteve parecer favorável. Todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE - autorizando a utilização dos dados produzidos por eles juntamente com a pesquisadora no desenvolvimento da pesquisa.

4As tramas conceituais freireanas consistem em uma explicitaçãoesquemática das articulações possíveis entre um conceito central(escolhido pelo pesquisador ou grupo) como ponto de partida para a reflexão, relacionando outros conceitos a esse central. A escolha dos conceitos é motivada pelo objeto de estudo do autor (SAUL A. M.; SAUL A., 2013).

5São objetos de estudo selecionados no processo de investigação temática junto à comunidade. São limites que a comunidade possui de intervir concretamente em situações de desumanização por ela vivenciada (SILVA, 2004, p.162).

6Na apresentação dos dados, estão reproduzidos os depoimentos dos alunos tal como recebidos. Assim, é possível encontrar marcas de oralidade e coloquialidade, mantidas em nome da preservação da fidedignidade dos dados.

7Os quatro eixos são: “A importância da realidade dos educandos como ponto de partida do trabalho didático-pedagógico”; “O diálogo e a participação: condições concretas para a partilha, a discussão e a reflexão do contexto profissional dos educandos”; “O reconhecimento da dimensão coletiva na construção do conhecimento individual”; e “O olhar sobre a prática: mudar é difícil, mas é possível”.

Recebido: 09 de Outubro de 2019; Aceito: 21 de Julho de 2020; Publicado: 31 de Janeiro de 2021

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