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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 25-Set-2023

https://doi.org/10.5902/1984644438609 

Artigo Demanda Contínua

A odisseia da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Brasil (1945-1964)

Brazilian Education Guidelines and Framework Law’s odyssey (1945-1964)

Alexandre Macedo Pereira1   , Professor doutor
http://orcid.org/0000-0001-7093-582X

Margarete Von Mühlen Poll2   , Professora doutoranda
http://orcid.org/0000-0002-8699-5138

1Professor doutor na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. alexandremacedopereira@gmail.com

2Professora doutoranda na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. margapoll@gmail.com


RESUMO

Atualmente, a educação brasileira vem sendo atacada pelo governo federal em muitas frentes: tentativa de desqualificação do trabalho docente e dos profissionais da educação (técnicos de todas as áreas), cortes nos recursos da educação, tentativa de censura à liberdade de cátedra etc. Esta pesquisa tem como objetivos a) apresentar a trajetória da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no período de 1945 a 1964; b) expor os bastidores da disputa política no Congresso Nacional no que tange a aprovação da LeiDiretrizes e Bases da Educação Nacional, no período de 1945 a 1964; c) fomentar a reflexão sobre as relações entre política, ideologia econômica e políticas públicas para a educação.Metodologicamente, esta pesquisa é bibliográfica e documental, qualitativa e exploratória; teoricamente, fundamenta-se nas obras de Boris Fausto (2013), Thomas E. Skidmore (2010) e Evaldo Vieira (2015). No campo da História da Educação, trabalhamos com Dermeval Saviani (1998). Além disso, como suporte teórico suplementar,visitamos as obras de István Mészáros (2015), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018), entre outras. A pesquisa demonstra que grupos políticos e sociais distintos disputaram, por razões distintas, o controle sobre a educação brasileira. Em meio a divergências e convergências entre esses grupos, o projeto de Lei que fixa as Diretrizes de Bases Nacional tramitou no Congresso Nacional durante dezesseis anos. Concluímos que é necessário refletir sobre os caminhos que percorremos, as estratégias que adotamos, as alianças que estabelecemos para enfrentar os problemas da educação.

Palavras-chave: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; Educação; Política Educacional

ABSTRACT

Nowadays Brazilian education has been attacked by the Federal Government on several fronts, such as: an attempt to disqualify teacher’s work and also education professionals, education budget cuts, a censorship attempt to academic and teaching freedom and so on. This work aims to a) show the Brazilian Education Guidelines and Framework Law’s trajectory between 1945 to 1964; b) expose the behind the scenes of the political dispute in the National Congress regarding the approval of Brazilian Education Guidelines and Framework in the period of 1945 to 1964; c) promote reflection about the political, ideological, economic relations and public education policies. As regards to methodology aspects, this research is bibliographic and documental, qualitative and exploratory. As theoretical support, we have used the works of Boris Fausto (2013), Thomas E. Skidmore (2010) e Evaldo Vieira (2015). In the field of History of Education, we have used the contributions of Dermeval Saviani (1998). Furthermore, as supplementary theoretical support, we have considered the works of István Mészáros (2015), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018), among others. The research has shown that social and political groups quarreled over the control of Brazilian education for different reasons. Among divergences and convergences between those groups, the bill which determines the guidelines for Brazilian Education moved through the National Congress for sixteen years. We have concluded that it is necessary to reflect upon the paths we go through, the strategies we use, the partnerships we establish in order to face educational problems.

Keywords: Brazilian Education Guidelines and Framework Law; Education; Educational policy

Introdução

A aspiração da maioria dos povos que viveu ou vivesob o jugo do autoritarismo político é a liberdade, ou seja, a derrubada das forças opressoras que os aprisionaram ou aprisionam. Não foi diferente no Brasil. Após oito anos (1937-1945) de domínio de um governo autoritário (Estado Novo), o grande desejo da maioria da sociedade brasileira era a institucionalização de um regime político que valorizasse a liberdade em sua expressão máxima: a democracia.

É verdade também que o desejo por liberdade pode limitar nossa percepção quanto à essência da luta. Ou seja, de tanto desejar a liberdade pode-se não avaliar adequadamente os danos que certos acordos e alianças com certos grupos podem produzir à causa. Para ilustrar essa reflexão, recorremos à fábula “O javali, o cavalo e o caçador”, de Esopo (século VI ou VIII a. C.).

Surgiu uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou, mas disse: “Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo.” O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: “Agora, desce e retire essas coisas de minha boca e das minhas costas.” “Não tão rápido, amigo”, disse o caçador. “Eu o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim.” (ESOPO apud LEVITSKY e ZIBLATT, 2018, p. 23)

A própria história se incumbe de revelar que nem sempre os fins justificam os meios, assim como não justificafazerem-se alianças contraditórias em nome de uma causa considerada nobre pela sociedade. Alianças contraditórias produzem resultados políticos (políticas públicas) superficiais, que podem ser mudados, anulados e, até mesmo, extintos ou, embora possam também continuar existindo no plano formal, no âmbito da prática podem não ter efeito.Comumente vemos isso com algumas leis que, apesar de estarem escritas e aprovadas, pouco se aplicam à vida das pessoas, pelo menos para uma parcela significativa da população.

Como diz Buonarroti:

Sob o nome de política, o caos reinou por muitos séculos (...) a igualdade não passava de uma ficção legal, bela e estéril. (...) Desde tempos imemoriais eles hipocritamente repetem ‘todos os homens são iguais’ e desde tempos imemoriais a desigualdade mais degradante e monstruosa pesa insolentemente sobre a raça humana. (...) Nós precisamos não apenas da igualdade de direitos inscritos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, queremos ela em nosso meio, sob os telhados de nossas casas (BUONARROTI apud MÉSZÁROS, 2015, p. 91)

Reivindicamos apenas direitos formais, como fazem os legalistas? Contentamo-nos com vitórias parciais que pouco alteram a realidade dos excluídos, oprimidos, dominados e manipulados? É pelo reformismo ou pela emancipação humana que nos mobilizamos frente a forças opressoras? A depender das respostas, justificam-se as escolhas de nossas estratégias e alianças.

Atualmente, nos primeiros meses de 2019, a educação brasileira, em todos os seus níveis - educação básica, educação técnica e educação superior - vem sendo alvo de ataques do atual governo. A educação brasileira e os educadores sofrem ataques em todas as frentes: tentativa de desqualificação do trabalho docente e dos profissionais da educação (técnicos de todas as áreas), cortes nos recursos da educação, tentativa de censura à liberdade de cátedra dos professores etc.

Nesse contexto de ideais e de lutas por direitos, o cuidado com nossas escolhas em relação as nossas alianças e em relação ao que de fato é essencial nas nossas reivindicações éimprescindível. Elaboramos este artigo comos objetivos de: a) apresentar a trajetória da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no período de 1945 a 1964; b) expor os bastidores da disputa política no Congresso Nacional no que tange a aprovação da LeiDiretrizes e Bases da Educação Nacional, no período de 1945 a 1964; c) fomentar a reflexão sobre as relações entre política, ideologia econômica e políticas públicas para a educação.

Em razão da natureza do fenômeno abordado neste trabalho, optamos por uma abordagem intermetodológica, relacionando a pesquisa documental com a pesquisa bibliográfica. Assim, caracterizamos o referido estudo como uma pesquisa documental e bibliográfica, de caráter exploratório, eminentemente qualitativa.

No que tange a pesquisa documental, é necessário destacar que “(...) o documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para todo pesquisador nas ciências sociais. Ele é, evidentemente, insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante (...)” (CELLARD, 2008, p. 295).

Quanto à pesquisa bibliográfica, pode-se afirmar que a mesma tem como finalidade:

(...) a resolução de um problema (hipótese) por meio de referenciais teóricos publicados, analisando e discutindo as várias contribuições científicas. Esse tipo de pesquisa trará subsídios para o conhecimento sobre o que foi pesquisado, como e sob que enfoque e/ou perspectivas foi tratado o assunto apresentado na literatura científica. (BOCCATO, 2006, p. 266)

Para a elaboração deste artigo, pesquisamos relatórios, Diário Oficial do Congresso Nacional, Pareceres e Projeto de Lei; além disso, fizemos uma incursão pela literatura sobre a História do Brasil. Fundamentalmente, no que diz respeito à História do Brasil, pesquisamos as obras de Boris Fausto (História do Brasil, 2013), Thomas E. Skidmore (Brasil: de Getúlio a Castello, 2010) e Evaldo Vieira (A República Brasileira 1951-2010, 2015). No campo da História da Educação, trabalhamos com a obra de Dermeval Saviani (A Nova Lei da Educação: trajetória, limites e perspectivas,1998). Além disso,baseamo-nos, como suporte teórico suplementar, nas obras de István Mészáros (A Montanha que Devemos Conquistar, 2015), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Como as Democracias Morrem, 2018), entre outras.

A saga da educação brasileira no período democrático de 1945-1964

No período entre 1945 e 1961, o Brasil experienciou o que muitos historiadores denominaram de período democrático. A institucionalização desse período se deu, entre muitas razões, pelo fim do Estado Novo e, consequentemente, pela deposição de Getúlio Vargas do cargo de Presidente da República. No entanto, vale ressaltar que a deposição de Getúlio Vargas foi: “(...) resultado de um jogo político complexo” (FAUSTO, 2013, p. 331), que só se efetivou, como afirmou Góes Monteiro (apud SKIDMORE, 2010, p. 87), em discurso, em 27 de outubro de 1950, no Congresso Nacional “(...) não pelo poder da oposição civil, mas por decisão do comando do Exército”.

No período democrático, a presidência da república foi ocupada por dez presidentes, como mostra o quadro abaixo.

Quadro 1: Período Democrático (1945-1964) 

Governo Período Mandato
José Linhares 1945-1946 Interino
Eurico Gaspar Dutra 1946-1951 Eleito
Getúlio Vargas 1951-1954 Eleito
Café Filho (vice-Presidente) 1954-1955 Eleito
Carlos Luz 08 a 11 de novembro de 1955 Interino
Nereu Ramos 1955-1956 Interino
Juscelino Kubitschek 1956-1961 Eleito
Jânio Quadros 1961 Eleito
João Goulart 1961-1964 Eleito

Fonte: Próprios autores (2019).

Nestas quase duas décadas (1945-1964), o Brasil esteve imerso em crises políticas, econômicas e sociais. Esse cenário de crise agravou-se dado a intensificação das disputas políticas e ideológicas e da instabilidade institucional do país. Essas crises serviram como pretexto a muitos governos para justificar as atitudes repressivas impetradas sobre trabalhadores, sindicatos, partidos etc.

Sob a insígnia da democracia, o governo Dutra, ao assumir a Presidência da República (1946), atendendo aos anseios das forças políticas contrárias ao autoritarismo do Estado Novo, instalou a Assembleia Nacional Constituinte. No entanto, contrariando os preceitos de uma democracia, seu governo inviabilizou o direito de greve dos trabalhadores (Decreto-lei 9.070/1946), colocou o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ilegalidade, perseguiu a Confederação dos Trabalhadores do Brasil e interveio em 143 sindicatos (SKIDMORE, 2010 e FAUSTO, 2013).

O governo Dutra - conservador, autoritário e contraditório - determinou ao ministro da Educação e Cultura a elaboração de um projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para ser apresentado ao Congresso Nacional. Assim, em 28 de outubro de 1948, o então Ministro da Educação, Clemente Mariani, apresentou o projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ao Presidente da República. No documento “Exposição de Motivos”, o ministro defendeu a democracia e afirmou que o referido Projeto estava alinhado aos preceitos democráticos que regiam o país desde o fim do Estado Novo. Segundo Mariani (1948, p. 21), “o projeto de lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (...) integra-se no movimento de redemocratização do país (...).” O ministro afirmou ainda no referido documento que o Projeto rompia com as tradições conservadoras, que defendiam arduamente a gestão centralizada e burocrática da educação. Segundo Mariani (1948, p. 07), as ideias centralizadoras estavam ainda arraigadas a princípios políticos próprios do estado autoritário, instituído pela ditadura Vargas.

Por ser um projeto de cunho democrático e alinhado aos princípios da nova Constituição Federal, a descentralização da gestão do ensino não era apenas um desejo, mas uma imposição legal e moral da nova ordem política instituída, pois a:

Descentralização do ensino é princípio fundamental adotado pela Constituição, como decorrência, por um lado, de conhecimentos elementares do processo de ensinar, e, por outro, da variedade e extensão do país, que já haviam (sic) imposto, em sua organização, a forma federativa. Temos de descentralizar o ensino porque o seu próprio processo exige autonomia na execução e temos ainda de descentralizá-lo porque o país é demasiado extenso e variado para um modelo único(MARIANI, 1948, p. 07).

Na concepção do próprio Clemente Mariani (1948), não cumprir o princípio da descentralização era incorrer no risco de cindir o país em dois, um país oficial, e outro país real, ambos com sentimentos, opiniões e interesses distintos. A centralização se constituía, na concepção de Mariani, de um elemento desagregador que ignorava a extensão do Brasil e sua diversidade cultural e suprimiria a autonomia dos entes federados, firmado pelo pacto federativo.

Segundo Antônio Ferreira de Almeida Junior (1948, p. 55), os:

(...) centralizadores prefeririam minudenciar, senão esgotar na lei os preceitos de conteúdo administrativo e didático, ficando circunscrita a iniciativa dos poderes locais à simples criação e distribuição de escolas, copiadas estas de padrões pré-fixados pela União. Inversamente, os autonomistas extremados pleiteavam uma lei de muito poucos artigos, todos sintéticos e amplos, deixando às unidades federadas (e até mesmo aos particulares, como se aventou) uma liberdade quase total.

Fugindo gradualmente aos dois extremos, a Comissão acabou por se colocar em atitude intermediária, resultado, a um tempo, dos textos da Constituição, da experiência pedagógica dos elaboradores do anteprojeto e da sua prudência administrativa.

O Ministro da Educação e Cultura, Clemente Mariani, manifesta-se contrário aos posicionamentos radicais de conservadores e liberais e adota a política de equilíbrio e conciliação. No entanto, os esforços do Ministro e dos colaboradores (Comissões e Subcomissões) não foram suficientes para superar a disputa política na seara da educação.

Em um períodoaproximado de uma década e meia, as forças políticas divergentes se enfrentaram e tentaram fazer prevalecer as suas concepções acerca do modelo de organizaçãoe funcionamento do sistema nacional de educação. Assim, o projeto das Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, encaminhado à Câmara dos Deputados em 1948, esbarrou na correlação de forças representada pelas diferentes forças partidárias (SAVIANI, 1998).

A disputa dentro Congresso Nacional envolvia dois grupos distintos: o grupo ligado ao deputado e ex-ministro da Educação e Cultura Gustavo Capanema (defensor da centralização) eo grupo vinculado ao deputado e posteriormente governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda (defensor da descentralização total). Fazendo pressão de fora para dentro do Congresso Nacional, haviao grupo alinhadoàs ideias dos Pioneiros da Educação, cujo expoente foi Anísio Teixeira (defensor da escola pública, gratuita e laica).

A disputa centrava-se em torno das concepçõesquanto à função social da educação, quanto ao modelo de organização do sistema educacional e quanto ao papel dos entes federados nesse processo de gestão e financiamento do sistema educacional.

Para o grupo liderado por Gustavo Capanema, a educação deveria estar subordinada ao comando do governo central (União). Segundo Antônio Ferreira de Almeida Junior (1948, p. 188), Gustavo Capanema, “(...) confia à ‘organização do sistema’ tão só a disciplina da administração”. Nesse modelo, Estados e Municípios poderiam criar seus sistemas de ensino, porém os mesmos estariam diretamente subordinados às normas e à supervisão do Ministério da Educação. Nesse modelo hierarquizado e centralizador, os Estados e os Municípios atuariam como administradores do poder central, pois, para Gustavo Capanema (DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA apud PARECER PRELIMINAR 1946, p. 2.682), “a educação é problema eminentemente nacional, em todos os seus aspectos. A União não pode, pois, ser excluída do poder de sobre ela legislar neste ou naquele ponto. A competência legislativa federal deve ser geral”.

Ainda, segundo Gustavo Capanema (1948, p. 151):

O ensino não pode ser excluído da competência legislativa da União. À União compete legislar sobre as suas bases e diretrizes, isto é, sobre seus meios e fins, sobre os termos gerais de sua organização e sobre as condições e finalidades de seu funcionamento.

Por fim, conclui Gustavo Capanema (1949, p. 169):

A educação constitui, pois, um dos terrenos visados e marcados pela orientação centralizadora da nossa evolução política e constitucional. O projeto contraria essa orientação, para penetrar no caminho abandonado da dispersão estadual. Não creio sinceramente na durabilidade de um empreendimento que assim se pusesse de encontro a uma natural e invencível tendência da história.

Em razão disso, Capanema:

(...) fulminou o caráter descentralizador do projeto considerando-o contrário ao espírito e à letra de Constituição. Para ele a palavra ‘diretriz’ tem um significado que inclui leis, regulamentos, programas e planos de ação administrativa, orientações traçadas pelos chefes e subchefes de serviços para a execução dos mesmos. Essa interpretação do termo ‘diretrizes’ reforçada pelo acréscimo da palavra ‘bases’ no texto constitucional ensejou uma concepção centralizadora da organização da educação nacional. (SAVIANI, 1998, p. 13)

Podemos, assim, concluir que o deputado Gustavo Capanema estava convicto de que a centralização era uma exigência legal e histórica que o espírito da lei e a própria letra da lei confirmavam.

Após ampla discussão na Comissão e nas Subcomissões e a emissão de vários Pareceres, a maioria dos parlamentares deferiu o Parecer preliminar do deputado Gustavo Capanema, motivando o arquivamento do projeto pela Comissão Mista de Leis Complementares no Senado Federal. O arquivamento do projeto de lei foi uma expressiva vitória pessoal de Gustavo Capanema e uma vitória significativa dos conservadores radicais que representavam a “velha” política getulista do Estado Novo.

A vitória de Gustavo Capanema, com o arquivamento do projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tornou-se mais relevante para a elite conservadora radical após a eleição de 3 de outubro de 1950, que consagrou Getúlio Vargas presidente do Brasil.

Em 31 de janeiro de 1951, Getúlio Vargas volta à Presidência da República, pelo voto de 48,7% dosbrasileiros. Porém, ao assumir o cargo nesse novo período, Getúlio se depara com um Brasil diferente. Segundo Skidmore (2013, p. 117):

A sociedade brasileira apresentava uma estrutura de classe claramente mais complexa do que a existente durante o Estado Novo, especialmente em seus estágios iniciais. Os processos gêmeos de industrialização e urbanização tinham aumentado e fortalecido três setores: os industriais, a classe operária urbana e a classe média urbana.

As diferenças não se circunscreviam apenas aos aspectos urbanísticos e econômicos. Nos anos de 1950, o sistema político estava mais complexo, mais aberto e flexível. Além disso, os líderes políticos do interior não exerciam tanta influência sobre o eleitorado como outrora. Esse processo de perda de influência eleitoral foi determinado, em grande medida, pela migração significativa da população para os grandes centros urbanos do país.

No plano da articulação política, Vargas não podia mais contar com o apoio da cúpula militare dos políticos de centro e teve que enfrentar a oposição dos políticos de direita (SKIDMORE, 2013).

Diante de um cenário político tão complexo, o governo Vargas não foi capaz de impedir que as discussões acerca do projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional fossem retomadas no Congresso Nacional e não foi capaz, também, de aprovar a proposta defendida por Gustavo Capanema desde o mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra. A tentativa de soterrar a proposta por meio do arquivamento do projeto foi uma vitória transitória para os aliados de Vargas.

Em 17 de julho de 1951, a pedido da Comissão de Educação, o projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi desarquivado e tramitou pela Comissão de Educação e Cultura por longos seis anos. A demora na tramitação do projeto foi motivo de reclamação junto à Comissão de Educação e Cultura por parte dos deputados Coelho de Souza e Carlos Valadares.

Em 1954, o governo do presidente Getúlio Vargas estava mergulhado em uma profunda crise política que tornara sua manutenção na presidência insustentável. O desfecho dessa crise foi o suicídio, em 24 de agosto de 1954, de Getúlio Vargas. A morte trágica e inesperada de Getúlio amplificou a crise. Parte significativa da população saiu às ruas nos grandes centros urbanos, destruiu veículos ligados ao jornal antigetulista, O Globo, e tentou atacar a representação diplomática dos Estados Unidos no Rio de Janeiro (FAUSTO, 2013), inimigos declarados do governo de Getúlio Vargas.

Após o suicídio de Getúlio Vargas, o vice-presidente, Café Filho, tomou posse no cargo. No entanto, em 03 de novembro de 1954, o presidente Café Filho é acometido de um ataque cardíaco. O estado de saúde do presidente inspirava cuidados, o que lhe impedia de manter-se, até a liberação médica, na presidência. A presidência foi assumida, em 08 de novembro de 1954, pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, como previa a Constituição Federal. A posse do presidente da Câmara dos Deputados só agravou a situação política, pois algumas posições de Carlos Luz não agradavam a alguns membros do alto comando do exército, em particular ao general Lott. Assim, em 10 de novembro de 1954, o general Lott comandou a deposição de Carlos Luz (esse evento foi denominado de “golpe preventivo”), em seu lugar foi nomeado o então presidente do Senado, Nereu Ramos (SKIDMORE, 2010).

Resolvida essa situação, em 03 de outubro de 1955, em meio à complexidade do período eleitoral, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente. Assim, em 1956, começa o governo de Juscelino Kubitschek. Seu governo sustentava-se no Programa de Metas, que tinha 31 objetivos e contemplava seis grandes áreas: energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e a construção de Brasília.

É relevante destacar que no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1955-1961), mesmo com toda a “pujança” do Plano de Metas, a educação ocupou um espaço secundárionoprograma para o desenvolvimento econômico do Brasil. Esse descompasso no governo de Juscelino Kubitschek entre o desenvolvimento econômico e a falta de uma política pública de educação para o país ratificava o descompromisso dos governos, até aquele momento, com a formação da ampla maioria da população brasileira.

No entanto, é importante destacar que o compromisso do governo de Juscelino Kubitschek com grupos econômicos poderosos, “donos” dos meios de produção, se mantinha forte, uma vez que seu Plano de Metas contemplava a formação de pessoal técnico para atender às indústrias que estavam se instalando ou que pretendiam se instalar no país, com destaque para a indústria automobilística.

Segundo a pesquisadora GARCHET (s/d),

(...) é intrigante que um governo com esses compromissos - democracia e desenvolvimento - tenha desenhado um grandioso Plano de Metas em que a educação ocupava um lugar tão subalterno. O setor de educação foi contemplado com apenas 3,4% dos investimentos inicialmente previstos e abrangia uma única meta. Formação de pessoal técnico era a meta 30, que prescrevia a orientação da educação para o desenvolvimento e não falava em educação básica (p.01).

O governo de Juscelino Kubitschek foi marcado pelo antagonismo entre amplo desenvolvimento econômico e pouco investimento em educação. Assim, o Brasil continuaria com uma dívida histórica com a ampla parcela da sociedade no que diz respeito ao acesso à escola pública.Em relação a essa situação, um Delegado Permanente do Brasil na UNESCO afirmou que “o governo tem feito muito menos do que a Constituição lhe impõe como obrigação” (VIEIRA, 2015 p. 146).

É nesse contexto de euforia quanto ao desenvolvimento econômico e de desilusão no que diz respeito ao desenvolvimento da educação pública no Brasil que a Câmara dos Deputados tenta aprovar a lei que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Pressionado pelos educadores e instituições que os representavam quanto à demora na tramitação do referido projeto, em 30 de julho de 1956, o Congresso Nacional colocou em votação o requerimento de urgência, solicitado pelo deputado Prado Kelly (UDN), para o projeto nº 419-1955, de autoria do deputado Carlos Lacerda, que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 1956).

A reação ao requerimento de urgência foi imediata. O deputado Gustavo Capanema afirmou em plenário que “(...) o projeto não tem intenção pedagógica, mas política (...)” (DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, 1956, p. 6512). Na concepção do referido deputado, o objetivo real do projeto era celebrar a deposição de Getúlio Vargas da presidência. Diante disso, o requerimento de urgência foi negado: votaram contra o requerimento 113 deputados, e a favor 77 deputados.

Embora a derrota na votação do requerimento de urgência tenha prolongado o tempo de tramitação do projeto, a manobra não representou a paralisação dos trabalhos da Comissão e das Subcomissões. Assim, em 14 de novembro de 1956, a Subcomissão de Educação, formada pelos deputados Lauro Cruz (UDN), Coelho de Souza (PL) e Nestor Jost (PSD), aprovou por unanimidade o parecer da subcomissão ao projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Vale ressaltar que o projeto é oriundo da mensagem 605/48 do então Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, portanto o referido projeto já tramitava no Congresso por oito anos.

No ano de 1957, o plenário da Câmara deu início às discussões do substitutivo de n°2.222, que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nessa nova etapa do processo, os embates foram travados com a ala liberal radical, cujo principal expoente foi o deputado Carlos Lacerda. O deputado Carlos Lacerda era um opositor àspropostas do deputado Gustavo Capanema e às ideias defendidas por Fernando de Azevedo, Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria, Anísio Spinola Teixeira, M. Bergstrom Lourenço Filho, Roquette Pinto, J. G. Frota Pessôa, Julio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Jr., J.P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira, Hermes de Lima, Attillio Vivacqua, Francisco Venancio Filho, Paulo Maranhão, Cecilia Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Alvaro Alberto, Garcia de Rexende, Nobrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes, publicizadas no documento “O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932. Lacerda defendia a plena descentralização da educação e o fortalecimento da educação privada. Para Lacerda, a educação das crianças e jovens deveria ficar sob responsabilidade das famílias sem a intervenção do Estado, porém subsidiada por ele.

Na concepção de Carlos Lacerda, a União, ao impor seu monopólio estatal sobre a educação, usurpava da família o direito deeducar seus filhos, o que, para ele, era uma demonstração veemente do caráter autoritário da União manifesta no projeto de lei discutido no Congresso Nacional. Assim, no ano de 1959, o deputado Carlos Lacerda apresentou um substitutivo ao projeto de lei 2.222/1957, que contrariava o preceito da descentralização e a defesa da escola pública.

A reação ao substitutivo do deputado Carlos Lacerda foi imediata. Segundo Anísio Teixeira (1959, s/p), “(...) o substitutivo do Sr. Carlos Lacerda mistura propositadamente a questão da liberdade da educação com o fato de ser a educação privada ou pública”.Segundo Anísio Teixeira (1959), o substitutivo do deputado Carlos Lacerda tentava “conceder categoria pública ao ensino privado”.

Ainda, segundo Anísio Teixeira (1959, s/n):

A máscara com que se apresenta o projeto é a da liberdade da educação. Mas é só máscara. Essa liberdade, com efeito, consistiria em entregar a educação aos interesses privados dos proprietários de colégios dotados repentinamente de revelação pedagógica. O ‘negócio’ do Senhor Carlos Lacerda nem se refere aos pais. Retira-se 25 bilhões de cruzeiros em nome da ‘família’ brasileira para entregá-los aos ‘mandatários’ fantasmas dessa mesma família, o que não passa, na verdade, de uma grosseira tentativa de transformar o Brasil numa ‘república privada’.

Assim se expressou Darcy Ribeiro (apud jornal a Última Hora, 1959b), ao tomar ciência do substitutivo de Carlos Lacerda:

Acho incrível que se aceite, em nossos dias, um projeto tão hostil à escola pública, e que não pretende reformá-la, assegurando-lhe condições para que cumpra o seu papel, mas tão somente substituí-la por escolas particulares, ou, mais precisamente, por escolas-empresa.Toda a fundamentação do substitutivo (sic) Lacerda se refere à família brasileira e à liberdade de ensino, dando a impressão de que se assenta em ideais democráticos de educação. Mas só a escola pública, efetivamente, garante à família, quero dizer, a toda família, branca ou negra, rica ou pobre, iguais condições de ingresso. Este é mesmo um fato histórico, já que a escola pública surgiu precisamente quando a educação deixou de ser um privilégio de poucos para ser uma necessidade de todos, imposta pela necessidade crescente da vida social e pelas exigências opostas - cada vez maiores - de participação de todo o povo na vida nacional’.

As repercussões negativas sobre o substitutivo de Lacerda e a falta de força política no Congresso fizeram com que a Comissão de Educação e Cultura rejeitasse a maioria das indicações propostas pelo deputado Carlos Lacerda no novo substitutivo. Embora a maioria das proposições do novo substitutivo fosse rejeitada pela Comissão de Educação e Cultura, a interferência do deputado Carlos Lacerda acarretou em atraso na tramitação do substitutivo 2.222/57.

Na outra ponta dessa disputa, encontravam-se os educadores que defendiam a educação pública, laica, gratuita e obrigatória (Pioneiros da Educação Nova):

A laicidade, que coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a todo o dogmatismo sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a integridade da personalidade em formação, à pressão perturbadora da escola quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas. A gratuidade extensiva a todas as instituições oficiais de educação é um princípio igualitário que torna a educação, em qualquer de seus graus, acessível não a uma minoria, por um privilégio econômico, mas a todos os cidadãos que tenham vontade e estejam em condições de recebê-la. Aliás o Estado não pode tornar o ensino obrigatório, sem torná-lo gratuito. A obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel, nem em relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente até uma idade conciliável com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos, é mais necessária ainda ‘na sociedade moderna em que o industrialismo e o desejo de exploração humana sacrificam e violentam a criança e o jovem’, cuja educação é frequentemente impedida ou mutilada pela ignorância dos pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas (O MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932, p. 193-194).

Para os Pioneiros da Educação, como são até hoje identificados, ao Estado cabia organizar, subsidiar e fortalecer a educação pública, dar-lhe diretrizes e garantir os princípios da liberdade, fraternidade e igualdade. Dessa forma, os pioneiros da educação se contrapunham ao Estado autoritário/centralizador defendido pelo deputado Gustavo Capanema e também às ideias dos liberais radicais, grupo representado por Carlos Lacerda, que priorizava a educação privada em detrimento da escola pública e gratuita.

Segundo o jornal Última Hora (1959a), o verdadeiro interesse de Carlos Lacerda era garantir que os recursos públicos fossem destinados à iniciativa privada, atendendo, assim, aos interesses de empresários do setor e da classe dominante, desconsiderando as necessidades de significativa parcela da sociedade brasileira.

Segundo Saviani (1998), os defensores da iniciativa privada, a partir de 1956, decidiram fazer valer seus interesses no texto da LDB de 1961(SAVIANI, 1998). Com isso, as disputas que, até determinado momento, estavam circunscritas ao plano político-partidário, mais próximo da sociedade política,passaram a envolver a sociedade civil (SAVIANI, 1998).

O ano de 1960 foi importante no calendário político brasileiro, pois a sociedade brasileira, respeitando suas características legais e institucionais, elegeu o novo presidente da república. Na eleição de 1960, o cenário político era complexo tanto para os situacionistas como para os oposicionistas. Os situacionistas tinham dificuldade em indicar um candidato civil que pudesse dar continuidade ao estilo de Juscelino Kubitschek. Tiveram de optar, assim, pela candidatura do General Lott, idealizador e executor do “golpe preventivo”. A ala oposicionista também enfrentava problemas para poder indicar um candidato. A opção do lado oposicionista foi o nome de Juracy Magalhães, um nome que não era consenso entre os oposicionistas. Diante dessa falta de consenso, a solução encontrada pela oposição, sob a liderança de Carlos Lacerda, foi apoiar a candidatura de Jânio Quadros (SKIDMORE, 2010). Em 1960, Jânio Quadros venceu a eleição, com 48% dos votos. O general Lott teve 28% dos votos, e Ademar de Barros teve 23% dos votos (FAUSTO, 2013).

O curto governo de Jânio Quadros (menos de sete meses) foi desastroso. Segundo Fausto (2013, p. 373), “Jânio começou a governar de forma desconcertante. Ocupou-se de assuntos desproporcionais à importância do cargo que ocupava, como a proibição de lança-perfume, do biquini e das brigas de galos”. No âmbito da política interna, desagradava os políticos progressistas e os conservadores. O descontentamento político enfraqueceu o governo de Jânio Quadros, deixando-o sem base política de apoio no Congresso Nacional.

Sem base política, sem apoio popular e com o Brasil mergulhado em crise econômica (a inflação superava a casa dos 30%), em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renuncia sem dar explicações claras sobre sua decisão.

A renúncia de Jânio Quadros implicava a ascensão de João Goulart à presidência da República, conforme estabelecia a legislação (Artigo 79 da Constituição Federal de 1946). Embora a determinação da Constituição Federal de 1946 fosse clara, somente após dez dias de intensa crise política, com riscos eminentes de guerra civil, e uma alteração de última hora na Constituição, João Goulart assumiu a presidência. Os anos de 1961 a 1964 foram anos difíceis para o governo de João Goulart e para ampla maioria da sociedade brasileira.

Em meio a toda essa instabilidade política, econômica e social, em 20 de dezembro de 1961, o então presidente João Goulart promulgou a Lei nº 4.024 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a primeira lei de educação que dá as diretrizes, normas e outras providências para a organização da educação nacional.

No campodo direito e da política pública em educação, a promulgação da LDB em 1961 é considerada um avanço, embora se reconheça que esse avanço formal e legal não produziumudanças substanciais no sistema educacional brasileiro. Conforme Saviani (1998), esta Lei representou uma solução de compromisso entre os grupos em disputa, determinado pela política da “conciliação” em um contexto de profunda instabilidade política que resultou na derrubada de João Goulart, por meio de um golpe civil-militar, em 31 de março de 1964, impetrado pelas forças Armadas e por parte da sociedade civil, sob a justificativa do combate à corrução e ao comunismo e da restauração da democracia (FAUSTO, 2013). No entanto, “(...) o novo regime começou a mudar as instituições do país através de decretos, chamados de Atos Institucionais (AI)” (FAUSTO, 2013, 397), consolidando assim, um estado de exceção no Brasil.

Considerações finais

O denominado período democrático (1945-1964) foi uma etapa conflituosa na história do Brasil. Essa fase da história brasileira foi marcada por uma série de eventos políticos, econômicos e sociais cuja consequência mais relevante foi o golpe civil-militar de 1964.

Foram dezesseis anos de uma intensa disputa pelo poder, de crises econômicas e sociais, cujas consequências foram o empobrecimento da classe trabalhadora, repressão, recessão econômica, censura, exclusão social, restrição do acesso à educação pública etc.

É nesse cenário de conflitos e crises que a educação brasileira se torna objeto de disputa entre as forças políticas brasileiras. Na disputa estavam os conservadores, defendendo o centralismo, o controle total sobre o sistema educacional brasileiro; os liberais, fazendo lobby por um modelo educacional sem a intervenção do Estado, tentando instituir a descentralização total; e os progressistas, defendendo uma educação pública, gratuita e laica. Para os progressistas, a descentralização era necessária, contudo ela deveria ser estabelecida de forma equilibrada.

A intenção dos conservadoresera manter o domínio sobre o sistema educacionalde forma a garantir o controle político, ideológico, administrativo e pedagógico sobre a produção e reprodução de conhecimento, bem como, manter o controle sobre os níveis de qualidade que a educação deveria ter, a depender do público a que ela atenderia. Os liberais objetivavam controlar o sistema educacional para que este atendesse apenas ao segmento da sociedade que tivesse condições econômicas para bancar a educação aos seus. Essa proposta impediria que a classe trabalhadora e outros grupos sociais tivessem acesso à educação pública, gratuita, laica e de qualidade. Em contraposição aos conservadores radicais e aos liberais radicais, estavam os progressistas, que defendiam a democratização do acesso à escola pública, o fortalecimento da escola pública, a autonomia pedagógica e administrativa da escola pública e o fim da relação entre educação e religião etc.

É importante ressaltar que os Pioneiros da Educação não se posicionavam contra a educação privada, mas contra o controle e a destinação dos recursos públicos à iniciativa privada. Para eles, cabia ao Estado, por meio da democratização da educação pública e gratuita, garantir que os valores democráticos das novas instituições se consolidassem.

No entanto, para os pioneiros da Educação, os “esforços” políticos para construir um modelo educacional adequado às necessidades de toda a sociedade brasileira em sua complexidade não poderiam ser bem-sucedidos, uma vez que uma parte expressiva das forças políticas estava interessada em defender os interesses de uma elite econômica que desprezava os trabalhadores, os pobres etc.

Mesmo com todos os conflitos e com a lentidão do processo de tramitação da lei que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961, o Congresso Nacional aprova a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A aprovação foi, indubitavelmente, uma conquista e um avanço no plano legal. No entanto, adverte-nos o filósofo Álvaro Pinto, essa é “uma lei com a qual ou sem a qual tudo continua tal e qual” (PINTO apud SAVIANI, 1998, p. 20).

A “conquista” de leis sem a efetividade no campo da práticanão deveria ser entendida como um avanço, e sim como um retrocesso, pois essa é apenas uma “conquista” formal (idealista). Esse tipo de transformação (idealista) não propõe mexer nos fundamentos do capitalismo, portanto não objetiva o fim da expropriação e alienação dos seres humanos.

Ela cria a sensação de que as mudanças estão em curso, dando a falsa impressão de que a classe trabalhadora e outros grupos sociais avançam em suas conquistas. Isso nos impede de perceber que o Estado moderno é o agente da burguesia (MARX, 1998). Essa sensação de mudança tira do horizonte ideológico e políticodos seres humanos a perspectiva da emancipação humana.Nos moldes da sociabilidade capitalista, é impossível promover a emancipação humana, pois,na lógica capitalista, só se emancipa quem possui dinheiro e cultura (MARX, 2005).

Mesmo Anísio Teixeira, um vanguardista quanto à defesa da educação pública, ao denunciar o caráter de classe na educação brasileira(1959), não coloca em evidência o elemento que determina a manutenção do status quo da organização classista e seus reflexos na educação; afirma apenas que a organização classista seria superada com a institucionalização efetiva da educação pública. Essa é uma clara demonstração de fetichismo da educação, ou seja, conceber a escola pública como uma força capaz de abalar os fundamentos de uma sociedade classista, subestimando a força do capital.

Vale destacar que nenhum dos projetos político-ideológicos previa uma ruptura radical (transformação que vai à raiz) com o modelo de sociabilidade ainda vigente. A mais “progressista” das propostas tinha fortes vínculos com o pragmatismo norte americano, ancorada nas ideias de John Dewey, fundamentado no liberalismo econômico, defensor da propriedade privada e da livre concorrência.

Por fim, pesamos que, em momento como o que estamos vivendo em 2019, em que a educação pública brasileira sofre ataques explícitos do governo federal e de parte da sociedade, faz-se necessário refletir sobre o que, de fato, desejamos para nós e para a educação brasileira e que tipo de transformação da sociedade pretendemos. Não estamos aqui desconsiderandoas mudanças na legislação, estamos defendendo que a emancipação humana deve constar da pauta de nossas reivindicações, pois mudanças transitórias, capazes de serem revogadas ao sabor de governos, não podem mais nos contentar.

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Recebido: 18 de Junho de 2019; Aceito: 27 de Julho de 2020; Publicado: 31 de Janeiro de 2021

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