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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 05-Oct-2023

https://doi.org/10.5902/1984644438548 

Artigo Demanda Contínua

Discernimento médico e práxis dialógica:O tratamento como cura de si mesmo

Medical discernment and dialogical praxis:Treatment as healing oneself

Cláudio Almir Dalbosco1 
http://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Francisco dos Santos Filho2 
http://orcid.org/0000-0001-7868-2003

Renata Maraschin3 
http://orcid.org/0000-0003-0595-1641

Luciana Oltramari Cezar4 
http://orcid.org/0000-0001-5170-0830

1Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul. vcdalbosco@hotmail.com

2Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul. santos@upf.br

3Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul. rechinpf@gmail.com

4Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul. lucianacezar@icloud.com


RESUMO

O ensaio investiga a ideia hermenêutica de saúde e a noção formativa de tratamento dela resultante. Diagnostica, no primeiro passo, com base em alguns textos do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, a tecnologização crescente das profissões contemporâneas e, especificamente no caso da medicina, o risco de desaparecimento do autotratamento que tal tecnologização provoca. Além da Medicina, também toma brevemente a psicanálise e a pedagogia para exemplificar o risco da profissionalização excessivamente especializada. No segundo passo, busca ancorar duplamente a ideia hermenêutica de saúde: por um lado, na herança da medicina hipocrática que sustenta o ponto de vista de Gadamer e, por outro, na práxis dialógica, considerando-a como núcleo da própria hermenêutica filosófica. Interpreta, ainda no segundo passo, três aspectos constituintes do diálogo gadamereano, vertendo-os para a prática profissional médica. Por fim, debruça-se em mostrar, no terceiro e último passo, que o tratamento médico compreendido hermeneuticamente conduz ao autotratamento, o qual é condição indispensável, embora não suficiente, da cura do paciente. Em síntese, quando o paciente é mobilizado pela práxis dialógica do discernimento médico, possui mais condições de compreender a importância dele mesmo assumir o tratamento como autotratamento.

Palavras-chave: Filosofia; Medicina; Formação

ABSTRACT

This essay investigates the hermeneutic idea of health and the resulting formative notion of treatment. In its first part, the essay diagnoses, based on some texts of the German philosopher Hans-Georg Gadamer, the increasing technologization of contemporary professions and, specifically in the case of medicine, the risk of the disappearance of self-treatment that this technologization causes. In addition to medicine, it also briefly takes psychoanalysis and pedagogy to exemplify the risk of over-specialized professionalization. In the second part, the essay seeks to doubly ground the hermeneutical idea of health: on the one hand, in the heritage of Hippocratic medicine that supports Gadamer's point of view and, on the other hand, in dialogical praxis, considering it the core of philosophical hermeneutics itself. In its second part, the essay interprets three aspects of the Gadamerian dialogue, translating them into medical professional practice. Finally, in the third and last part, the essay shows that hermeneutically understood medical treatment leads to self-treatment, which is an indispensable, but not sufficient, condition of the patient's cure. In summary, when patients are mobilized by the dialogical praxis of medical discernment, they are more able to understand the importance of their taking treatment as self-treatment.

Keywords: Philosophy; Medicine; Formation

Introdução

Dificilmente encontramos hoje alguém que duvide da força que a medicina exerce na vida das pessoas e, especialmente, do poder de cura do médico. Tal poder aumentou consideravelmente com o desenvolvimento técnico-científico moderno, tornando possível formas experimentais cada vez mais sofisticadas e precisas de averiguação e controle das doenças. É fato consensual, por isso, que o desenvolvimento tecnológico da medicina gera enormes benefícios à humanidade, destacando-se, entre eles, o aumento na expectativa de vida das pessoas e o alívio de muitas dores e sofrimentos. Contudo, a tecnologização crescente da prática médica tem efeitos negativos que precisam ser levados em conta, sobretudo, para o exercício profissional competente e para a formação de futuros novos médicos. Entre estes efeitos negativos destacam-se o esquecimento da concepção clássica de saúde como busca permanente do equilíbrio entre organismo humano e meio socionatural; o poder quase sobrenatural atribuído aos medicamentos, secundarizando o papel ativo do paciente (doente) na recuperação de sua própria saúde.

No presente ensaio pretendemos confrontar os dois aspectos negativos acima referidos com uma perspectiva mais ampla de saúde e o modo formativo do tratamento que dela decorre. Tomamos como referência teórica a perspectiva hermenêutica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e seus esforços de atualização da ideia hipocrática de saúde. Este cruzamento entre hermenêutica e medicina hipocrática possibilita-lhe recuperar o sentido propriamente formativo do tratamento médico. Portanto, o recurso a Gadamer torna-se importante para reconstruir alguns traços do ideal formativo inerente à noção ampliada de tratamento de origem hipocrática. Cabe ressaltar, de outra parte, que este sentido formativo inerente ao tratamento médico na perspectiva hermenêutica abre espaço para pensar amplamente a relação entre educador e educando e, especificamente, a pedagógica entre professor e aluno, embora não o faremos em detalhes neste ensaio.

Dividimos o ensaio em três passos: no primeiro, oferecemos um breve diagnóstico de época; no segundo, esboçamos a noção filosófica hermenêutica de saúde, ancorando-a na práxis dialógica e; por último, no terceiro passo, concentramo-nos no sentido ético-formativo do tratamento.

Especialização do conhecimento e incapacidade para o diálogo

Hans-Georg Gadamer foi, entre os filósofos alemães, um dos que mais se preocupou com as condições do diálogo humano no contexto social contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento técnico-científico. Sua formação filosófica inicial fora influenciada por Martin Heidegger (1889-1976), com o qual fez seus estudos em filosofia. Mas, sua enorme envergadura intelectual possibilitou-lhe seguir caminho próprio, transformando a fenomenologia hermenêutica heideggeriana no projeto da hermenêutica filosófica, cuja obra Verdade e Método é a referência principal. Com tal obra, Gadamer desloca a hermenêutica do âmbito metodológico das ciências do espírito (Geisteswissenchaften), no qual Wilhelm Dilthey (1833-1911) havia-lhe colocado, transformando-a em práxis dialógica baseada no fenômeno humano da compreensão linguística1.

Não podemos nos ater aqui, em detalhes, na hermenêutica filosófica de Gadamer. Considerando isso, vamos partir de uma definição introdutória que nos será útil à sequência da argumentação. Considerando-a como arte da compreensão, Gadamer afirma que a hermenêutica “lida com o incompreensível e com a compreensão da imprevisibilidade orçamentária da vida mental-espiritual” (GADAMER, 2006, p. 166). Esta breve definição contém duas pressuposições centrais ao conhecimento humano em geral e às suas respectivas práticas profissionais, a saber, que existem coisas que são incompreensíveis e que a vida espiritual possui algo de imprevisível. Buscar esclarecer o incompreensível, considerando a impossibilidade de determinação absoluta da condição humana espiritual é uma das tarefas principais da hermenêutica, a qual pode servir de apoio ao conhecimento humano, inclusive, ao próprio saber médico. Essas duas pressuposições hermenêuticas, do incompreensível e do indeterminado, são indispensáveis à postura epistemológica falibilista que conduz o profissional, entre eles o médico e o professor, a suspeitar permanentemente dos resultados de seus procedimentos e de suas investigações2.

Gadamer oferece o diagnóstico do desenvolvimento técnico-científico moderno e a crescente incapacidade de diálogo que ele provoca em vários textos de sua extensa obra. Vamos tomar como referência o ensaio publicado em 1972, intitulado Da incapacidade para o diálogo (Die Unfähigkeit zum Gespräch), no qual se evidencia a tensão que cruza a sociedade contemporânea do começo ao fim, a saber, entre o avanço nas tecnologias de informação e a incapacidade para o diálogo: quanto mais tais tecnologias tornam possível a conversação à distância, mais o ser humano torna-se incapaz de dialogar. O que Gadamer quer dizer precisamente com isso e em que medida este problema também afeta a prática profissional, especialmente, a prática médica? O paradoxo tensionado por Gadamer repousa, mais precisamente, por um lado, no desenvolvimento fantástico da tecnologia da comunicação - e ele utiliza aí como exemplo a conversa ao telefone, mas já prenunciando, ainda em 1972, o aparecimento de técnicas mais sofisticadas de informação e, por outro, o desaparecimento progressivo de formas de diálogo vivo entre os seres humanos.

O empobrecimento do diálogo provocado pela conversa telefônica é descrita nos seguintes termos:

O que ao telefone quase não é possível, é aquele ouvir atento (Hinhorchen) à disposição aberta (offene Bereitschaft) do outro, de entregar-se a um diálogo e o que nunca é participado a alguém no telefone, é aquela experiência, através da qual as pessoas se dispõem a se aproximar uma das outras, caindo-se, passo a passo, mais profundamente no diálogo, encontrando-se ao final tão preso nele que faz nascer um primeiro pertencimento mútuo (Gemeinsamkeit) entre os parceiros do diálogo, o qual nunca mais termina (GADAMER, 1999a, p. 208).

A passagem acima contém três noções nucleares do diálogo vivo (ouvir atento, disposição aberta e pertencimento mútuo) que vamos retomar no próximo tópico do ensaio. Cabe referir agora o aspecto limitante inerente à conversa telefônica. Percebe-se que ela mata a vivacidade do diálogo na medida em que bloqueia a escuta oriunda da disposição de abertura provocada pelo outro. Com o falar ao telefone perde-se simplesmente o contexto gestual e afetivo que a presença do outro significa e que dá vivacidade ao diálogo. Mais importante ainda é que o telefone, enquanto uma técnica moderna de comunicação, ao encurtar distância e agilizar a informação, paradoxalmente distancia as pessoas entre si, rompendo o laço afetivo que as une e que as torna permanentemente sedentas de companhia umas das outras. Se o telefone facilita a conversa não presencial, à distância impossibilita, de outro modo, a entrega solidária que ocorre no diálogo face a face. As pessoas podem obviamente sentir melhor o calor humano quando estão frente a frente, quando se olham, gesticulam e se tocam, do que quando apenas se ouvem à distância.

Deste modo, a conversa telefônica foi tomada por Gadamer como exemplo paradigmático de rompimento do diálogo vivo entre as pessoas. O alto grau de impessoalidade, de mecanicidade e propriamente de surdez provocado pelo telefone impede o encontro solidário do ir e vir dialógico face a face. Contudo, o problema da incapacidade para o diálogo provocado pelo telefone, enquanto moderna tecnologia de comunicação, aparece sob outras vestes, nos mais diferentes exercícios profissionais contemporâneos. No mesmo ensaio de 1972, Gadamer analisa a distorção de diferentes formas de diálogo, das quais nos interessa analisar, considerando os propósitos de nosso ensaio, o diálogo terapêutico que ocorre na relação entre médico e paciente, e professor e aluno. Portanto, estão agora sob nosso olhar: a medicina e a pedagogia, o médico e o professor. Que distorções do diálogo vivo ocorrem no exercício destas duas profissões, de ser médico e ser professor? O que haveria de comum entre ambas no âmbito desta problemática?

Voltemo-nos, primeiro, ao diálogo terapêutico característico da relação entre médico e paciente. Precisamos considerar, inicialmente, que o saber médico sempre constituiu interesse vital para a filosofia, pois esta deve muito em sua origem à própria medicina. Muitos estudiosos do assunto mostram o quanto os Tratados hipocráticos (Corpus hippocraticum) influenciaram decisivamente no nascimento da filosofia grega. Werner Jaeger, por exemplo, estava plenamente convencido que a medicina hipocrática constituía uma das principais fontes da ética socrática. Assim, afirma ele, em seu clássico estudo sobre a Paidéia grega: “Nós não exageramos ao afirmar que a ciência ética de Sócrates, a qual tem lugar de destaque nos Diálogos de Platão, não seria possível sem o modelo da medicina (hipocrática), à qual o próprio Sócrates se refere” (JAEGER, 1973, p. 527). Gadamer, por sua vez, como veremos abaixo, também tem clareza de sua dívida à medicina hipocrática grega e o quanto ela lhe influenciou na formulação de suas noções hermenêuticas importantes como a concepção de ser humano, saúde, tratamento e, especialmente, práxis dialógica.

No ensaio de 1972, Gadamer toma o diálogo terapêutico psicanalítico como ponto de partida para chegar, em seguida, brevemente, ao diálogo médico. Põe-se, aqui, um vasto campo de problemas na relação entre psicanálise e medicina para o qual apenas podemos sinalizar de passagem. De qualquer modo, o referido autor aponta para o paradoxo que constitui o diálogo terapêutico psicanalítico, uma vez que ele (o diálogo psicanalítico) precisa tomar como ponto de partida da cura a incapacidade de diálogo que caracteriza a condição inicial do paciente. Assim, afirma Gadamer: “O que constitui o transtorno patológico, que finalmente leva o paciente à total impotência, é a interrupção de sua comunicação natural com o mundo, sendo substituída por representações delirantes” (GADAMER, 1999, p. 213). Mostra-se, com isso, a situação que tem profundas implicações não só para o trabalho terapêutico psicanalítico, como também para outras relações profissionais e para as próprias relações humanas mais amplas: a ruptura da comunicação natural com o mundo provoca transtornos patológicos que conduzem a representações delirantes. Nesta condição doentiamente afetada o paciente precisa de um tipo de cura que é dado pela relação dialógica, à qual ele próprio se sente inicialmente incapaz. O específico do diálogo terapêutico psicanalítico, que também pode servir ao saber médico e, especificamente, ao saber pedagógico, consiste no fato de que a cura deste tipo de patologia só pode ser alcançada pelo próprio diálogo. O desafio psicanalítico, que neste caso também é sempre um desafio formativo, consiste na passagem desta incapacidade de fala para o exercício livre e criativo do diálogo. O ponto decisivo disso tudo é que tal passagem só pode ocorrer na práxis dialógica viva.

Na sequência, Gadamer enfatiza algo ainda mais importante: “Por uma parte, o analista (terapeuta) não é só um parceiro do diálogo, mas é, também, aquele que sabe e que, contra a resistência do paciente, procura abrir os campos que são tabus do inconsciente” (GADAMER, 1999, p. 213). Observa-se, com isso, o quanto a postura pedagógica adequada e o domínio do saber técnico especializado precisam estar imbricados entre si para que o transtorno patológico seja tratado por meio do diálogo e se alcance possivelmente a cura do paciente. O fato é que sem conhecimento teórico (técnico) sobre o inconsciente e seus tabus, o terapeuta não consegue contribuir para que o paciente amplie sua visão de mundo e possa enfrentar, de maneira consequentemente mais esclarecida, seu próprio transtorno patológico. Sem postura pedagógica adequada, o conhecimento técnico do terapeuta pode se mostrar simplesmente inútil e enfadonho. De outra parte, vincula-se diretamente a este tema o problema da crescente tecnologização das profissões e o quanto, no âmbito específico da medicina, é insuficiente ao médico, sobretudo em determinados casos, apenas aplicar seu conhecimento técnico especializado. Pois, para que possa ser bem-sucedido no exercício de sua profissão, ele precisa atuar na perspectiva da clarificação e orientação de mundo de seu paciente, tendo que contar para isso com a indispensável participação e envolvimento do paciente. Ora, como o próprio médico sabe, a clarificação em comum, enquanto núcleo do tratamento, vai muito além do exame e do receituário medicamentoso, exigindo ampla formação cultural, a qual é indispensável para pôr em prática a disposição humana da práxis dialógica.

No que se refere ao diálogo pedagógico entre professor e aluno, Gadamer, ao criticá-lo, tem em mente os limites da cátedra acadêmica e o risco ao autoritarismo que lhe é inerente. O professor carrega consigo uma dificuldade peculiar para manter o diálogo vivo e proporcionar ensino formativo ao aluno: “Quem tem que ensinar, acredita que pode e deve falar, e quanto mais consistente e coerente é seu discurso, tanto mais ele pensa comunicar sua doutrina” (GADAMER, 1999, p. 211). Nas poucas palavras deste autor encontra-se esboçado o núcleo da educação tradicional baseada na transmissão monológica do conteúdo, revelando também, em certo sentido, a soberba inflamada que toma conta da postura do professor: concebendo-se como proprietário do saber, ele torna o aluno subserviente aos seus interesses. O engano do professor repousa, aqui, na crença equivocada de que o domínio técnico do conhecimento e sua transmissão monológica seriam suficientes para a aprendizagem do aluno. Ao agir assim, o professor não possui consciência sobre o fato decisivamente pedagógico de que a experiência de mundo e o convívio participativo do aluno são partes indispensáveis de sua própria capacidade de aprendizagem. Para que possa ser bom educador, o professor precisa fazer um duplo movimento formativo: dominar insistentemente sua soberba inflamada, adotando postura pedagógica mais humilde e; de outra parte, tomar a experiência do aluno como ponto de partida. Ora, a questão decisiva é que este duplo movimento não é algo que brota naturalmente do conhecimento técnico especializado, mas depende sim da práxis dialógica que precisa ser construída paciente e permanentemente nas relações humanas e, especificamente, profissionais, no caso, entre médico e paciente ou entre professor e aluno3.

Gostaríamos de concluir este tópico destacando ainda outro aspecto importante que também está associado com a incapacidade para o diálogo e a tecnologização das profissões que resultam do modo como ocorre o desenvolvimento técnico científico. Tal aspecto é evocado por Gadamer em outro texto, resultante de conferência proferida na Alemanha a profissionais da área da saúde, especialmente para médicos. Assim afirma ele: “Ao meu ver trata-se do trágico destino de nossa civilização moderna o fato de o desenvolvimento e a especialização do ser-capaz-de-fazer científico e técnico terem paralisado nossa força para o autotratamento” (GADAMER, 2006, p. 107). Ou seja, está subjacente a esta passagem à ideia de que o uso excessivo do conhecimento técnico especializado coloca o paciente (e também o aluno) na condição meramente passiva, paralisando com isso sua própria força de autotratamento (de autoformação). Como não há cura e nem formação sem a participação ativa do paciente e do aluno, o tratamento e a aprendizagem ficam a meio caminho. Para expressar isso metaforicamente, seria o mesmo que ao visitar um lugar histórico ou ao apreciar uma obra de arte, tanto viajante como apreciador se vissem privados de fruir a beleza que aí encontram.

Concepção filosófica de saúde e diálogo vivo

O diagnóstico que construímos acima, baseando-nos em traços da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, permite-nos chegar a duas conclusões provisórias: a) o predomínio do conhecimento técnico especializado tornado possível pelo desenvolvimento da ciência moderna conduz à tecnologização crescente das profissões contemporâneas; b) tanto medicina como pedagogia são afetadas por tal tecnologização, resultando disso o hiato crescente entre domínio do conhecimento especializado e processo formativo dos novos e futuros profissionais. Faz-se necessário, neste contexto, recuperar uma concepção filosófica de saúde que possa servir de base à compreensão formativa das práticas médica e pedagógica, ou seja, que possibilite pensar eticamente, com base na práxis dialógica viva, a relação entre médico e paciente e entre professor e aluno. Neste sentido, esse segundo passo do ensaio possui dupla finalidade, expor primeiramente a concepção filosófica de saúde e, na sequência, os traços hermenêuticos basilares da práxis dialógica.

Em que consiste propriamente uma concepção filosófica de saúde e em que medida ela possibilita o tratamento em sentido formativo? José Ricardo C. M. Ayres, médico brasileiro investigador da saúde coletiva, problematiza hermeneuticamente uma noção de saúde que nos é oportuno tomar como ponto de partida, antes de nos dirigirmos diretamente a Gadamer. Assim afirma o referido autor:

Saúde não se refere a regularidades dadas que nos permitem definir um modo de fazer algo, mas diz respeito à própria busca de que algo fazer. (...) O contínuo e inexorável contato com o novo desacomoda-nos e reacomoda-nos ininterruptamente no modo como compreendemos a nós mesmos, nosso mundo e nossas relações. É a esse processo que está relacionada a abertura relativamente grande do sentido da expressão saúde, que encontramos coletivamente, em diferentes épocas e grupos sociais, e entre os diferentes indivíduos em um dado tempo e local (AYRES, 2007, p. 50).

Ayres toma para si, neste ensaio, a tarefa de pensar o ato assistencial no âmbito da saúde coletiva na perspectiva hermenêutica gadamereana. Por isso, gostaríamos de destacar dois aspectos da passagem acima que vamos retomar na sequência, seguindo a própria argumentação gadamereana: a noção de saúde não se limita exclusivamente ao diagnóstico e tratamento da doença baseados em instrumentos tecnológicos de alta precisão e; tal noção de saúde depende também da concepção historicista de ser humano constituída a partir de sua interação flexível e instável consigo mesmo e com o meio socionatural. Ou seja, o tratamento médico da doença não é só tecnológico, exigindo também um tipo especial de cuidado referente a aspectos éticos e antropológicos da condição humana e do meio socionatural. Por isso, é indispensável que a formação profissional técnica venha acompanhada de ampla formação cultural, habilitando o médico a diagnosticar melhor as causas da doença e buscar formas cada vez mais adequadas para seu tratamento.

Considerando isso, voltemo-nos a Hans-Georg Gadamer. Além de oferecer o diagnóstico de época sobre a tecnologização crescente das profissões contemporâneas, incluindo, especialmente, a medicina, Gadamer também desenvolve uma ideia filosófica de saúde que conduz à compreensão cultural da própria medicina e do tratamento médico a ela correspondente. Tal ideia encontra-se desenvolvida na coletânea de ensaios O caráter oculto da saúde, especialmente, no ensaio Tratamento e diálogo, com o qual nos ocuparemos aqui de maneira mais detida. Gadamer esclarece, inicialmente, que estes dois conceitos, tratamento e diálogo, implicando-se profundamente entre si, constituem o núcleo da arte médica. Tal imbricação tem sua origem na própria medicina hipocrática, permitindo perceber, então, o quanto a medicina em sua origem já continha uma problemática estritamente filosófica, ou seja, que a busca pelo tratamento adequado da doença de uma pessoa exigia ampla compreensão da saúde, a qual, por sua vez, dependia da concepção de ser humano inserido na ordem das coisas (ideia de physis). Como Gadamer justifica isso no referido ensaio?

O recurso a Hipócrates de Cós (460-380 a. C.) e sua compreensão abrangente de saúde ocorre de maneira indireta, quando Gadamer cita extensamente uma passagem do Diálogo Fedro de Platão, no qual o personagem Sócrates interroga Fedro, perguntando-lhe se é possível conhecer corretamente a natureza da alma sem compreender o todo da natureza. Fedro responde a pergunta socrática do seguinte modo: “Devendo-se acreditar no asclepiano Hipócrates, sem tal procedimento também não se pode entender nem a natureza do corpo” (PLATÃO, 270c). A pergunta socrática já pressupõe a referência indireta à medicina hipocrática, na medida em que condiciona o conhecimento da alma à compreensão da natureza como um todo. Fedro, contudo, é explícito em sua resposta, pois cita nominalmente Hipócrates, acrescentando, inclusive, um argumento adicional ao exigido pela pergunta de Sócrates: considerar a natureza como um todo é indispensável para compreender não só a alma, mas também o próprio corpo vivo. Ou seja, a filosofia, como conhecimento da alma, e a medicina, enquanto conhecimento do corpo vivo, só conseguem alcançar seus objetivos quando se referirem adequadamente à ordem das coisas (physis). Por mais complexa e obscura que possa ser a própria noção de physis, sua referência carrega aqui o significado específico de um olhar abrangente, dirigido ao todo, sendo tal olhar por isso o mais apropriado para que medicina e filosofia alcancem seus objetivos da melhor forma possível4.

Torna-se decisivo notar, para melhor entender o ponto em análise, que o recurso platônico à medicina hipocrática ocorre mediante a compreensão, no Fedro, da retórica como arte a ser aplicada à fala humana em geral e não somente ao discurso nos tribunais ou nas assembleias populares (Platão, 261e). Além disso, tal ampliação deriva da convicção socrática sobre o papel formativo da retórica não só referente à fala, como também à escrita: para falar e escrever bem é preciso dominar a arte retórica. Filosoficamente justificada, a retórica torna-se uma guia importante da alma humana, especialmente aos jovens e adolescentes, em seu tortuoso caminho na busca pelos grandes ideais humanos, ou seja, pela beleza, verdade e justiça. Ora, é precisamente neste contexto, então, que a retórica é comparada à medicina hipocrática e o filósofo, em seu trabalho formativo, ao olhar clínico abrangente do médico (Hipócrates), que se deixa orientar decididamente pela busca de compreensão do todo da natureza. Em síntese, se a retórica significa, no Fedro, uma técnica aperfeiçoada de praticar corretamente a filosofia e se, enquanto técnica formativa de alto nível, é comparada à medicina, percebe-se com isso o quanto Platão tinha em alta conta o próprio papel formativo da medicina e, com isso, o quanto, segundo ele, o trabalho profissional médico servia metaforicamente para elucidar o sentido e alcance do próprio papel formativo que filósofo deveria desempenhar junto a Polis.

Deste modo, a referência platônica à importância que a noção hipocrática de physis desempenha para a compreensão de ser humano, de sua alma e de seu corpo, é clara. Na sequência de sua argumentação, Gadamer comenta o referido diálogo, buscando vincular o sentido de physis diretamente à noção de saúde: “De fato, os escritos da medicina antiga estão repletos de descrições das condições do meio ambiente em que vive o doente. Cada vez mais também nós temos aprendido que a saúde exige uma harmonia com o meio social e com o ambiente natural. Somente a partir disso é permitido a alguém se integrar no ritmo da vida” (GADAMER, 2006, p. 137). Retomaremos esta imbricação entre saúde e physis na parte final do ensaio, ao refletirmos sobre a dimensão formativa do tratamento.

Deste modo, o núcleo filosófico da noção de saúde repousa no grande equilíbrio entre o organismo humano e o ambiente socionatural. Em contrapartida, a doença seria o desiquilíbrio, mostrado pela perturbação do organismo. No ensaio Filosofia e medicina prática, que também integra a coletânea O caráter oculto da saúde, acima referida, Gadamer estabelece este contraste entre doença e saúde nos seguintes termos: “É desta maneira que sentimos, de fato, a saúde - e assim também os gregos a viam -, como harmonia, como adequação moderada, enquanto que no caso da doença se sente a interação, a harmonia entre bem-estar e entregar-se ao mundo como algo perturbado” (GADAMER, 2006, p. 105; grifos nossos). Se a doença caracteriza o encontrar-se perturbado no mundo, como um estado afetado patologicamente, a saúde significa o modo adequado de viver, caracterizado pela busca constate do mais apropriado. É precisamente a busca pelo apropriado que caracteriza, como veremos na parte final do ensaio, a dimensão formativa do tratamento médico.

Antes disso, porém, precisamos analisar com mais cuidado a noção de práxis dialógica, uma vez que ela funda a compreensão humana como base normativa das práticas profissionais. Já tivemos uma primeira ideia da práxis dialógica, quando, anteriormente, ao reconstruirmos o diagnóstico gadamereano da incapacidade para o diálogo, nos deparamos com o diálogo vivo. Por isso, precisamos retomar agora aquelas três expressões que o constituem, a saber, o ouvir atento (das Hinhorchen), a disposição aberta do outro (die offene Bereitschaft des anderen) e o pertencimento mútuo (die Gemeinsamkeit). Cada uma destas expressões desempenha papel importante para pôr a práxis dialógica no centro da hermenêutica gadamereana, tornando-a postura intelectual indispensável para pensar a ação humana e social de maneira abrangente. Isto é, o significado de tais expressões permite que o ser humano coloque-se, por meio do diálogo, na exigência de ter que ir ao encontro do outro, vendo-o em sua fragilidade humana e, por isso, como ser carente de cuidado e atenção. Trata-se, então, do ponto de vista da medicina, do sujeito humano que, por encontrar-se doente, carece recobrar novamente sua saúde, isto é, o equilíbrio de sua própria condição. Como fazê-lo, é uma tarefa do médico, que também depende muito da participação e envolvimento do próprio doente. Pois, como mostraremos logo adiante, somente quando o tratamento transformar-se em autotratamento é que ele pode ser bem-sucedido, alcançando aquele nível ideal de adequação recíproca entre médico e paciente.

O ouvir atento refere-se à concentração detida sobre o que o outro tem a dizer. Como concentração detida, o ouvir atento (Hinhorchen), que no alemão também tem como sinônimo o Hinhören, é o contrário da dispersão, ou seja, da indisposição do sujeito para se fixar detidamente em algo. A dispersão é um comportamento oposto do ouvir atento porque distancia o ouvinte de seu interlocutor, impedindo que ocorra a entrega entre os parceiros do diálogo. Ouve-se apenas superficialmente o que o outro diz e, por isso, por mais importante que seja o que ele está dizendo, não conta muito para a continuidade da fala. Contudo, é somente quando o sujeito dispõe-se a ouvir atentamente o que o outro tem a dizer é que ele pode compreendê-lo e, por isso, o ouvir atento é uma das condições da própria compreensão humana. O fato é que o ouvir atento remete sempre ao encontro entre duas ou mais pessoas, caracterizando, a própria condição do diálogo hermenêutico. Neste contexto, seguindo de perto as pegadas de Gadamer, afirma Hans-Georg Flickinger: “Porque o verdadeiro diálogo tem sua origem no encontro entre pessoas dispostas a ouvirem-se mutuamente - expondo-se, nas próprias opiniões, à avaliação do outro - e a abrirem-se, neste mesmo movimento, ao que nunca emergiria, até então, no horizonte de sua própria compreensão” (FLICKINGER, 2010, p. 79). Por isso, o diálogo vivo, devido às suas próprias características, possibilita o nascimento contínuo de novas descobertas, permitindo-se que problemas conhecidos sejam tratados de forma diferente.

A disposição aberta do outro (die offene Bereitschaft des anderen) é um conceito central da tradição hermenêutica, concebida em Ser e Tempo por Heidegger (1969) como existencial analítico importante do Dasein (ser-aí). Sendo assim, é a presença do outro o motivo ético originário que impele o ser humano a buscar sua autenticidade, possibilitando-o elevar-se acima da onticidade decadente que o constitui. O fato é que sem a companhia provocadora do outro, o Dasein permaneceria afundado no falatório do mundo cotidiano, tendo de levar aí vida inautêntica. Seguindo esta pista ontológica aberta por Heidegger, de que o Dasein só pode ser na presença do outro (Dasein ist immer Mitsein), Gadamer traduz a disposição aberta do outro para o contexto especificamente linguístico da condição humana, acentuando a tese de que a linguagem só existe no diálogo, o qual é constituído paradigmaticamente pelo modo humano de perguntar sobre o sentido de si mesmo e das coisas.

É precisamente no contexto do ensaio de 1972 que o comentário sobre os diálogos platônicos, tendo a figura de Sócrates como pano de fundo, mostra o quanto a presença do outro é constitutiva do que o próprio ser humano é ou pode ser. Assim se expressa Gadamer:

Ele (Platão) tinha visto nisso (nos diálogos escritos) um princípio de verdade que a palavra só encontra sua confirmação através da recepção no outro e da concordância do outro, e que a consequência do pensar, caso não fosse ao mesmo tempo um caminhar junto com os pensamentos do primeiro pelo outro, ficaria sem força convincente. Neste contexto, é verdade que cada ponto de vista humano possui algo contingente em si mesmo. (GADAMER, 1999, p. 210).

Como se pode observar, o sentido da manifestação linguística depende da recepção do parceiro de diálogo, a qual pode vir inclusive como objeção ou contestação. Também é dito que a força e utilidade do pensar dependem da companhia e do reconhecimento do outro. Por fim, de acordo com a passagem citada, torna-se decisivo à práxis dialógica o aspecto finito e falível da linguagem humana, pois é sua historicidade (Geschichtlichkeit) que está na base do sentimento humano de pertencimento recíproco: quem reconhece que não possui a última palavra sabe inteligentemente que precisa dos outros para melhor formar suas ideias e, principalmente, para corrigir o rumo de suas próprias ações. Em síntese, considerando o aspecto finito e falível da condição humana, ou seja, sua historicidade, a práxis dialógica torna-se um dispositivo indispensável de autocorreção da própria ação humana.

Por fim, voltemo-nos ao pertencimento mútuo (die Gemeinsamkeit) como terceira expressão constitutiva do diálogo vivo. Ela refere-se àquela empatia necessária ao sentimento humano de pertença de um ao outro, a algo em comum, que aproxima os seres humanos entre si, tornando possível a problematização ética do espaço do viver juntos. Contudo, do ponto de vista do diálogo, não significa obviamente a mera concordância com a fala do outro e nem o consentimento imediato e às vezes cego do que ele diz. Ao contrário, a práxis dialógica hermenêutica exige a postura crítica como condição à formação da individualidade. Pensamos que é precisamente isso que Gadamer tem em mente quando afirma: “Assim o diálogo com o outro, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou também seus mal-entendidos, significa um modo de ampliação de nossa singularidade e um experimentar do possível pertencimento mútuo (mögliche Gemeinsamkeit) à qual a razão nos encoraja” (GADAMER, 1999, p. 210). Por isso, quando Gadamer afirma que é a razão que nos encoraja, ele está pensando o pertencimento mútuo como sentimento afetivo que deve passar pelo crivo da razão e ser resultado do convencimento racional.

Com o exposto acima podemos ter uma noção abreviada do diálogo vivo. No ensaio Tratamento e diálogo, Gadamer aprofunda tal noção, direcionando-a para o contexto especificamente médico. Para melhor compreendê-la é importante referir antes sua crítica às noções médicas modernas de tratamento e diagnóstico. Sua reflexão inicia, neste ensaio, como vimos, tomando tratamento e diálogo como duas noções nucleares da arte médica. Na sequência, considera a arte médica em uma dupla perspectiva, como techne no sentido grego e como ciência no sentido moderno. Precisamente ao deter-se neste último sentido é que ele desenvolve sua crítica às noções de tratamento e diagnóstico. Qual é, então, segundo ele, o limite que estas duas noções enfrentam sob o comando da ciência moderna? Há um ponto em comum do limite que tanto tratamento como diagnóstico enfrentam, a saber, que sob o procedimento experimental da ciência moderna ambos deixam cada vez mais de se orientar pelo diálogo vivo. Ao seguir rigorosamente os procedimentos experimentais e centrar-se exclusivamente na análise do exame e nos resultados que seus números indicam, o médico termina por compreender somente alguns aspectos da doença, deixando de fora outros fatores que podem desempenhar papel importante na recuperação do equilíbrio da saúde perdida pelo paciente. Com base nisso, conclui Gadamer: “A saúde depende de muitos fatores e, no final, encontra-se não somente a saúde, mas a reintrodução do paciente na sua antiga posição na vida cotidiana” (GADAMER, 2006, p. 134). A prática médica é, precisamente neste sentido, antes de tudo, uma prática cultural que exige ampla formação do médico, além de seu indispensável domínio do conhecimento técnico especializado e de sua aplicação. Por isso, como veremos abaixo, a prática médica orientada culturalmente baseia-se na dimensão formativa do tratamento.

No que se refere ao diagnóstico médico, sua procedência da ciência moderna é nítida: o paciente é tomado sob diferentes maneiras como objeto de experimentação e depois de muitas medições, os dados são confrontados de acordo com valores padrões. Contudo, observa Gadamer: “O médico experiente sabe que se trata apenas de linhas diretrizes que servem a uma visão geral do diagnóstico. Sempre é necessário desconfiança e um exame refletido para que se tenha um quadro geral do estado do paciente” (GADAMER, 2006, p. 134). Ou seja, algo de essencial à própria cura do paciente pode escapar do diagnóstico científico, por mais preciso e correto que seja. Por isso, o diagnóstico científico precisa ser completado duplamente pela capacidade do médico de sempre suspeitar dos dados e pelo seu discernimento (Einsicht) em continuar perguntando cada vez mais sobre os resultados do tratamento e a situação de seu paciente. Ora, precisamente por esta razão é que a práxis dialógica, ancorada na ampla formação cultural, transforma o médico em um verdadeiro e permanente investigador de sua própria prática, habilitando-o para atender de maneira cada vez mais adequada seu paciente.

A crítica desferida por Gadamer às noções de tratamento e diagnóstico reduzidos ao uso experimental o conduz a pôr em questão a própria noção de medida. A ciência moderna provoca a naturalização de padrões de medida que foram estabelecidos convencionalmente e que, precisamente por isso, estão sempre sujeitos à crítica e revisão. Esta naturalização adentra a medicina, fazendo com que o médico geralmente use certos instrumentos, como é o caso do estetoscópio e do termômetro, com tanta certeza que não mais se pergunte sobre o que de fato eles conseguem auferir e, principalmente, o que deixam de fora ao diagnosticarem certos sintomas da doença. Deste modo, a temperatura do corpo e as batidas cardíacas são obviamente indicativos importantes do estado em que se encontra o paciente, mas não dizem tudo sobre sua ampla condição de saúde. Precisamente por perceber tais limitações provindas da medição experimental é que Gadamer, baseando-se na filosofia antiga, especialmente no diálogo Político de Platão, recupera um antigo conceito de medida como adequação, cujo verdadeiro sentido não se deixa verificar, pois representa algo que não se pode medir. O referido autor arremata seu argumento do seguinte modo: “Todo o sistema do processo de equilíbrio do organismo e do próprio meio social do ser humano possui algo de adequabilidade (Angemessenheit)” (GADAMER, 2006, p. 138). Ora, é precisamente a busca por esta adequabilidade que se esconde por detrás dos resultados imediatos revelados pelos procedimentos experimentais de medida que dão vivacidade formativa à prática médica.

Deste modo, a apreensão da adequabilidade que permanece oculta no tratamento e diagnóstico experimentais ocorre por meio de um tipo especial de diálogo que possui dupla significação: como pertencimento mútuo e como vigília adequada da situação. No que se refere ao pertencimento mútuo, ele é, como vimos antes, um aspecto constitutivo do diálogo vivo, provocado pela disposição aberta do outro; a presença provocativa do outro leva o parceiro do diálogo ao autoexame. Agora, no contexto deste outro ensaio (Tratamento e diálogo) de Gadamer, o processo se inverte e a novidade repousa no fato de que é o condutor do diálogo - e não mais o outro que ouve - que leva o ouvinte a olhar para si mesmo. Sócrates é o exemplo paradigmático disso, pois por meio de perguntas ele leva seu interlocutor a examinar a si mesmo. Como afirma Gadamer, trazendo o tema diretamente para o contexto médico: “O diálogo apenas faz com que o outro, sem que volte a se desorientar, vislumbre a possibilidade de despertar a sua própria atividade interna, a qual o médico chama de ‘colaboração’” (GADAMER, 2006, p. 142). Este é o tipo exemplar de diálogo clássico do mestre que conduz pedagogicamente (formativamente) o discípulo a tornar-se consciente do estado em que se encontra e tomar ele próprio a iniciativa para transformar-se a si mesmo.

Contudo, é no tipo de vigília adequada da situação que a noção de saúde e o próprio sentido de tratamento se deixam compreender de maneira mais ampla. Gadamer indica que a vigília adequada tem sua herança na phronesis aristotélica, consistindo aí mais precisamente na “capacidade de captar e de corresponder corretamente à situação do momento e, no momento, à pessoa que se encontra” (GADAMER, 2006, p. 143). Esta “capacidade de captar” não tem a ver somente como o domínio do conhecimento técnico e nem só repousa nos procedimentos experimentais auxiliados por instrumentos tecnológicos de alta precisão, embora ambos sejam muito importantes para o diagnóstico e o tratamento médicos. Ela refere-se, sim, a um tipo de discernimento prático, próprio ao profissional experimentado, que é resultado da elaboração intelectual da experiência profissional acumulada ao longo de muitos anos. É, portanto, um tipo de discernimento que advém da posição humilde de escuta pacienciosa que o médico faz de seu paciente, habilitando-o, com o auxílio do conhecimento técnico e do procedimento experimental, a encontrar o momento certo para fazer o que precisa ser feito. Ora, é neste sentido que o tempo da cura torna-se simultaneamente um tempo de formação, sendo precisamente por isso que para os gregos a techne está profundamente vinculada ao kairos, indicando com isso que a arte de curar tem a ver também com a escolha do momento oportuno para agir.

Também no âmbito das experiências brasileiras de saúde coletiva há esforços no sentido de pensar o tratamento médico a partir do vínculo entre hermenêutica gadamereana e phronesis aristotélica. Neste sentido, segundo José Ricardo de C. M. Ayres, há um momento vivo no ato assistencial que, não se deixando conduzir simplesmente pelo “poder fazer” de orientação técnico experimental, precisa de outro procedimento que tem sua fonte de inspiração na sabedoria prática aristotélica. Assim afirma ele: “É de outro tipo de saber que penso tratar-se quando percebemos a possibilidade de mudança, de alteridade, de plena presença do outro no ato assistencial. Refiro-me à phronesis, ou sabedoria prática, que não cria objetos, mas realiza sujeitos diante de objetos criados no e para seu mundo” AYRES, 2000, p. 119). É como vigília adequada que a phronesis permite a realização cultural e espiritual de sujeitos. Contudo, como veremos logo abaixo, é parte constitutiva indispensável desta realização do paciente sua capacidade de transformar o tratamento em autotratamento; mas, como ele não consegue fazê-lo sozinho, precisa do auxílio técnico e formativo indispensável do médico.

Dimensão formativa do tratamento

Detivemo-nos, nos dois passos anteriores, em investigar, no primeiro, a incapacidade humana para o diálogo que toma conta das profissões contemporâneas, influenciando especialmente a prática médica atual; já no segundo passo, em reconstruir a concepção filosófica hermenêutica de saúde ancorada na práxis dialógica. Concluímos, com Gadamer, que ao tornar-se excessivamente prisioneira dos procedimentos experimentais da ciência moderna, a medicina reduz a cura de doenças a padrões de medida que são próprios ao modelo físico-matemático, secundarizando com isso a concepção abrangente de saúde e o papel terapêutico importante da práxis dialógica viva. No terceiro e último passo deste ensaio, intencionamos expor, resumidamente, o sentido formativo de tratamento que se torna indispensável à práxis médica contemporânea. Vamos nos deixar conduzir aqui, novamente, como já o fizemos nos dois passos anteriores, pela perspectiva hermenêutica gadamereana.

Cabe não perder de vista que a noção formativa de tratamento depende, como vimos acima, diretamente daquela vigilância adequada que forma o núcleo do discernimento médico e sua respectiva intervenção. É graças a tal discernimento, adquirido no confronto com os aspectos estruturantes da práxis dialógica, que o tratamento médico pode ganhar dimensão formativa. Mas, onde repousa tal dimensão e que forma adquire na prática médica? Embora a dimensão formativa do tratamento já esteja subentendida na exposição acima, cabe reter e analisar agora dois aspectos específicos que a constituem. O primeiro refere-se à consciência médica da pertença da condição humana à ordem natural, cujo discernimento interfere diretamente no conteúdo da própria intervenção médica; o segundo, ao laço estreito entre tratamento e autotratamento. Esses dois aspectos estão muito vinculados entre si, uma vez que um não pode existir sem o outro.

O primeiro aspecto refere-se, então, à profunda relação que a medicina mantém, já em sua origem, com a natureza, compreendida não só em sua significação físico-biológica, mas, sobretudo, como já aludimos acima, em seu sentido psíquico-moral, ou seja, como espírito e cultura. A medicina, com um pé cravado na techne grega, torna-se, inclusive, uma de suas primeiras e mais importantes manifestações. É deste modo que a techne, em seu sentido profundo, como refere Gadamer, “está claramente inserida no curso da natureza de tal forma que ela pode desempenhar sua contribuição no todo deste curso e em todas as suas fases” (GADAMER, 2006, p. 43). Como o ser humano é parte integrante da natureza, sua saúde também depende do equilíbrio natural; a saúde, neste sentido, nada mais é do que um estado deste grande equilíbrio. Em que sentido, então, a medicina se relaciona com este equilíbrio natural e, especificamente, como a postura médica se deixa orientar por ele?

Pensamos que a resposta para esta pergunta também joga luzes à dimensão formativa do tratamento. Encontramos na bela metáfora da antiga serra de cotar árvores, empregada por Gadamer, uma referência interessante para tratar desta questão. A serra, que hoje em dia já não se usa mais, é constituída, como sabemos, de duas pontas prendidas por dois cabos, sendo que cada um deles é puxado por um serrador distinto. Para que a tarefa seja bem-sucedida, é preciso que os dois serradores encontrem o tempo certo para puxar e largar a serra, formando então o ritmo unitário de movimento. Se um puxar grosseiramente a serra, com força e de supetão, ou se o outro não soltá-la, travando o movimento, então o desempenho da serragem fica profundamente comprometida. No início, quando os dois serradores não estão acostumados entre si ou quando um deles é pouco experiente na arte de serrar, a coisa não flui como poderia e é preciso ir mais devagar, tateando até encontrar o ritmo adequado para que o ir e vir do movimento possa fluir, assegurando que os dentes da serra cravem suave e decididamente na madeira a ser cortada. O serrador experiente, sabendo conduzir bem os movimentos, consegue orientar adequadamente o serrador iniciante; porque já é um serrador experimentado, pode introduzir bem o aprendiz na arte da serragem.

Ora, o ato de duas pessoas serrarem a madeira, quando uma é mais experiente do que a outra e sabe conduzir adequadamente os movimentos da serra, expressa bem, metaforicamente, a experiência de equilíbrio que está no cerne da condução pedagógica do mestre. Segundo Gadamer: “A mão leve do mestre faz com que a sua atividade pareça fácil, e isso precisamente no aspecto no qual o aprendiz parece despender muito esforço. Tudo o que é feito com conhecimento possui algo da experiência do equilíbrio” (GADAMER, 2006, p. 47). Justamente onde o aprendiz encontra enormes dificuldades, parecendo não ter forças para superá-las, entra em cena a mão suave e segura do mestre que, pelo equilíbrio de sua própria experiência, ampara o aprendiz, possibilita-o seguir em frente. Contudo, no caso da arte médica, ocorre uma dificuldade adicional derivada da ausência de domínio completo de seu ser-capaz-de-fazer: a busca pelo balanço do equilíbrio torna-se inesgotável devido ao caráter oculto (misterioso) da saúde e à própria oscilação da natureza. Considerando isso, Gadamer conclui: “Daí a especial precaução do médico em observar um equilíbrio que perdura em meio a toda perturbação e em ter que se inserir no equilíbrio oscilante do natural, como o homem com sua serra” (GADAMER, p. 47, 2006; grifos nossos). Precisamente aí é que se destaca o discernimento médico, contribuindo decisivamente para que o paciente encontre seu equilíbrio diante da situação perturbada, ou seja, auxiliando-o para que reencontre novamente a saúde afetada pela doença5. E, como vimos, de acordo com a tradição médica antiga, tudo depende em parte da própria disposição do médico em ver a si mesmo e ao seu paciente como parte do todo oscilante da natureza, de onde provém em última instância o tão buscado balanço do equilíbrio.

Por fim, voltemo-nos, já em forma de conclusão, à noção de tratamento como autotratamento. Em uma passagem de O caráter oculto da saúde, Gadamer concebe o tratamento médico de maneira nitidamente hermenêutica: “Em ‘tratamento’ se escuta, literalmente, a mão, a mão sábia e exercitada que reconhece o tecido apalpando-o. Tratamento ultrapassa a progressividade das técnicas modernas. Nele há não somente a mão, mas também o ouvido sensível que escuta a palavra certa e o olho observador do médico que procura dissimular a si mesmo com um olhar cuidadoso” (GADAMER, 2006, p. 106). Temos aí, nesta passagem, a postura médica definida na perspectiva hermenêutica que vai muito além do procedimento experimental baseado em instrumentos de medição, cujo conhecimento visa influenciar de maneira quase aritmética a cura da doença. O ouvir sensível e o olhar cuidadoso são características formativas do tratamento médico que concebem o paciente não mais como um mero “caso estatístico” resultado de instrumentos de medição, mas sim como pessoa que, dependendo do estado em que se encontra e da gravidade de sua doença, possui condições de reestabelecer o equilíbrio perdido consigo mesma e com o ambiente sócio-natural. Contudo, a postura médica orientada hermeneuticamente torna-se ainda mais exigente com o paciente, porque sabe que as chances reais de cura aumentam significativamente quando o próprio paciente dispor-se a cuidar de si mesmo, buscando o caminho equilibrado da vida saudável. É precisamente na situação em que o paciente convence-se de que precisa cuidar de si mesmo que o tratamento transforma-se em autotratamento, o qual consiste em “escutar-se silenciosa e atentamente e o preencher-se com o todo da riqueza do mundo em um momento imperturbado e não afetado pelo sofrimento” (GADAMER, p.106, 2006). Isso se refere, então, a um tipo de tratamento que devemos aplicar a nós mesmos, tornando-nos muito mais próximo de nós mesmos.

Em síntese, a hermenêutica gadamereana recupera traços importantes da medicina antiga e da ideia de saúde dela derivada, permitindo pensar o tratamento como autotratamento. Com isso, ela mostra o quanto a prática médica, sustentada na práxis dialógica, já é desde o início uma prática formativa, que pode conduzir mais eficientemente à cura quando se concebe como formação. Desta dimensão formativa da medicina brota valiosa fonte de inspiração à filosofia, para que ela mesma se repense em sua tarefa educativa; mas, também, à própria relação educador e educando, que seja tomada na perspectiva da formação. Contudo, do mesmo modo que o tratamento médico, tal formação só pode ocorrer efetivamente como autoformação.

Referências

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1Sobre o modo como Gadamer inova a tradição hermenêutica, sobretudo, em relação à fenomenologia filosófica de Heidegger, ver Jean Grondin (2001).

2A suspeita permanente como postura de interpretação brota do estatuto ontológico da historicidade atribuído por Gadamer à condição humana. Sob este aspecto, a epistemologia de Gadamer justificou- se procurando escapar aos dois extremos, do objetivismo e do relativismo. Sobre este tema, ver o penetrante estudo de Richard Bernstein (1983).

3Por isso, a atividade médica ou docente precisa estar amparada na formação ética do sujeito, a qual é fonte de preocupação desde a antiguidade clássica. Michel Foucault mostra isso com desenvoltura em seu penetrante curso L’herméneutique du Sujet (A hermenêutica do sujeito), proferido no Collège de France, durante os anos de 1981-1982. Este curso de Foucault serve também para compreender o quanto filosofia e medicina estão profundamente unidas, na antiguidade, mediante problemática ética comum.

4A investigação sobre a relação entre physis e techne é um ponto nuclear para compreender a medicina antiga, especialmente a noção de saúde da medicina hipocrática. A coletânea de ensaios organizada por H. Flasha (1971) oferece uma boa introdução problematizadora desta relação sob diferentes perspectivas interpretativas; para uma exposição mais detalhada, concentrando-se especialmente na noção de physis, consultar também Laín Entralgo (1970).

5Gadamer refere-se aqui especificamente aos casos clínicos em que a recuperação do paciente é possível; mas, ele não ignora, contudo, todas aquelas situações em que o paciente, estando em fase terminal, não possui mais cura médica.

Recebido: 12 de Junho de 2019; Aceito: 01 de Dezembro de 2020; Publicado: 31 de Janeiro de 2021

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