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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 28-Sep-2023

https://doi.org/10.5902/1984644439376 

Artigo Demanda Contínua

Educação Popular e Infância: princípios, concepções e práticas educativas

Popular Education and childhood: principles, conceiving and educational practices

Vilma Ribeiro de Almeida¹  , Mestra em Educação e Professora
http://orcid.org/0000-0002-1643-7595

Romilson Martins Siqueira²  , Pós Doutor em Educação pela UFG, Doutor e Mestre em Educação pela UFG, Professor
http://orcid.org/0000-0002-6878-9373

¹Mestra em Educação e Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Campus Itaituba, Para, Brasil. vilmaribalmeida@gmail.com

²Pós Doutor em Educação pela UFG. Doutor e Mestre em Educação pela UFG. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC/Goiás. romilsonmartinsiqueira@hotmail.com


RESUMO

O presente texto discute a relação entre Educação Popular e Infância a partir de sua compreensão como práxis social, vivenciada por grupos populares e determinada pela realidade numa perspectiva histórica. Tratou-se de apreendê-las como construtos sociais e históricos que se dão nos planos objetivos e subjetivos. Neste sentido, buscou problematizar temas como direitos, cidadania e participação a partir da experiência do Movimento de Adolescentes e Crianças (MAC). Entre o proclamado e o efetivado, este estudo percorreu fontes legais (Estatutos, Declarações), documentos oficiais do Movimento, bem como escutou os sujeitos (crianças e adultos) envolvidos na experiência. Objetivou, portanto, analisar as concepções, princípios e práticas da educação popular, vivenciadas por crianças e adultos a partir do projeto sócio-político-educativo do MAC e investigar como tais valores contribuem para o reconhecimento da criança como sujeito de direitos no contexto da Educação Popular. A análise explicita que o exercício de construção de uma educação crítica, sobretudo de uma educação popular, deve ser permanentemente revisitado. A despeito de o MAC pautar-se nos princípios de uma Educação Popular, tanto esta experiência quanto outras que assim se denominam, precisam reconsiderar o estatuto da infância como condição para o reconhecimento da criança como sujeito com voz e participação. Isto implica revisitar o lugar do adulto na relação com a criança a partir de uma perspectiva dialógica, colaborativa e política numa ruptura com práticas de uma participação decorativa em direção a uma participação protagônica.

Palavras-chave: Educação Popular; Infância e Criança; Movimento de Crianças e Adolescentes (MAC)

ABSTRACT

The present text discusses the relation between Popular Education and childhood, as social praxis, experienced by popular, determined by reality in a historical perspective. It was tried to seize them as social and historical constructs which take place in objective and subjective fields. This sense, it sought to problematize issues such as rights, citizenship and participation from the experience of Teenagers and Children Movement (MAC). Between what is proclaimed and what is made effective, this study covered legal sources (Statutes, Declarations), official documents of the movement, as well as listened to the subjects (children and adults) involved in the experience. The aims was to analyze the conceptions, principles and practices of popular education lived by children and adults from the socio-political-educational project of MAC, and to investigate how these values ​​contribute to the recognition of the child as a subject of rights in the context of Popular Education This work summarizes its analysis by the making explicit that the exercise of construction of a critical education, especially of a popular education, must be permanently revisited. Although MAC is based on the principles of Popular Education, both this experience and others that are similarly called so must reconsider the status of childhood as a condition for the recognition of the child as a subject who has a voice and participation. This implies revisiting the place of the adult in their relationship with the child, from a dialogical, collaborative and political perspective. This presupposes a rupture with practices of a decorative participation towards a protagonist participation.

Keywords: Popular Education; Childhood and Child; Teenagers and Children Movement (MAC)

Introdução

Uma das maneiras de compreender a relação que se estabelece entre conceitos é situá-los na História, demarcando seus campos de debate e tensão, haja vista que para Lukács, (1981, p. 13) “a história é antes de mais nada, a história dessas formas de sua transformação, enquanto formas de reunião dos homens em sociedade, formas que, a partir das relações econômicas objetivas, dominam todas as relações entre si, (...) relações com eles próprios, com a natureza, etc.”

É nesse campo histórico que se encontra a relação entre Educação Popular e Infância. A fertilidade desta relação está na compreensão daquilo que as aproxima: a educação enquanto prática humana e social. Tanto a educação popular (como condição para compreender a cultura, a formação ética e a formação política) quanto a infância (para a garantia da formação humana/integral da criança) se constituem a partir de uma dimensão educativa, compreendida

no conjunto dos processos, influências, estruturas e ações que intervêm no desenvolvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa com o meio natural e social, num determinado contexto de relações entre grupos e classes sociais, visando à formação do ser humano.A educação é, assim, uma prática humana, uma prática social, que modifica os seres humanos nos seus estados físicos, mentais, espirituais, culturais, que dá uma configuração à nossa existência humana individual e grupal (LIBÂNEO, 2001, p. 7).

Por outro lado, a tensão que se coloca é justamente apanhar a experiência acumulada pela Educação Popular, historicamente vista pela ótica da educação de adultos, e tratar de seus fundamentos (dialogicidade, cidadania crítica, consciência, autonomia, etc.) no campo da educação da infância. A tensão é muito mais do que geracional, num embate adulto versus criança. Trata do sentido e do modus operandi em que se pode pensar uma educação popular voltada para as infâncias e crianças contemporâneas.

Para tanto, é preciso compreender a condição universal da infância na qual as crianças se fazem crianças na História, mediante o fortalecimento de seus processos de igualdade e alteridade. Assim, seria necessário reconhecer a infância como tempo ou condição da vida da criança capaz de propiciar um

conjunto de experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos, sociais, muito mais do que uma representação dos adultos sobre esta fase da vida. É preciso conhecer as representações de infância e considerar as crianças concretas, localizá-las nas relações sociais, etc. reconhecê-las como produtoras de história. (ROCHA, 2004, p. 72).

Portanto, as concepções de educação, educação popular e infância aqui defendidas partem de um pressuposto fundamental: as crianças são sujeitos da história e produtoras de cultura. Isto implica considerar sua ação e presença no mundo. Em Marx (2006), a ação transformadora da natureza é responsável pela autocriação do ser social, num ato de construção da omnilateralidade humana. Como condição ontológica, a ação humana transformadora, considerada como trabalho, produz cultura e constitui os sujeitos históricos. Assim, “a infância (…) é também a condição da história e da experiência. Sem infância, o ser humano seria natureza inerte” (KOHAN, 2008, p. 48). Nesse caso, falar da presença do homem na História e de seus processos de objetivação na natureza é falar também da infância neles construída.

Fluxos e refluxos da história: o lugar da Educação Popular

A origem e a história da Educação Popular no Brasil estão marcadas por diversos contextos. De acordo com Pereira e Pereira (2010), até a Segunda Guerra Mundial, a Educação Popular era concebida como uma extensão da educação formal. Todavia, no final da década de 1940, as questões relacionadas à educação de base começaram a aparecer.

Já a década de 1950 foi marcada por debates acerca de outro aspecto da Educação Popular: a educação de jovens e adultos (EJA). As pautas dessas discussões estavam centradas em questionamentos referentes à transmissão de conteúdo, vistos como pré-estabelecidos ou mera reprodução. Uma nova compreensão sobre o sentido da educação/escolarização ganhava terreno com os debates sobre a educação popular. O que estava em pauta era a possibilidade de construção de uma formação crítica e consciente. Para Pereira e Pereira (2010), essas discussões possibilitaram uma demarcação acerca da luta pela Educação Popular, bem como a construção de um novo olhar acerca do analfabeto, que até então era visto como incapaz.

Para Pereira e Pereira (2010), os estudos de Paulo Freire reafirmam a ideia de que a educação não pode ser vista apenas como ferramenta para a transmissão de conhecimentos e reprodução das relações de poder instituídas no capitalismo, numa espécie de educação bancária, mas como uma ação capaz de libertação e emancipação das pessoas. Nessa educação para a liberdade, a partir da participação no círculo de cultura , os homens e as mulheres se redescobririam como produtores de cultura, e compreenderiam a relação ser humano com a natureza e a possibilidade de transformarem o mundo por seu potencial criador. Perceberiam que a Educação não é algo distante da vida, mas uma possibilidade de recriá-la e assim vivê-la melhor. Para Freire e Nogueira (1993), a Educação Popular seria um espaço em que o homem ultrapassaria sua situação de homem-objeto a homem sujeito-histórico transformador.

Já na década de 1960, ocorre o golpe militar e, com ele, a instauração da ditadura civil-militar em 1964, demarcada pelo Ato Institucional nº 5 de 1968, conhecido como AI-5, em cuja essência estava a regulação da sociedade civil, seu silenciamento e seu controle. Nesse cenário, a educação popular se viu também golpeada. Instaurou-se o fechamento do regime a qualquer possibilidade de participação popular, conforme abordam Pereira e Pereira (2010). Essa repressão acontecia subsidiada por instrumentos legalizados e institucionalizados. Entre tais instrumentos estavam o DOI-CODI (Destacamento de Operações Internas e Comando Operacional de Defesa Interna), a OBAN (Operação Bandeirantes) e o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Muitas vidas foram ceifadas e outras silenciadas neste período. As organizações populares foram reprimidas e estiveram sob a mira dessas organizações cerceadoras da liberdade.

No final da década 1970, inicia-se o declínio da ditadura civil-militar e a ascensão dos movimentos sociais no Brasil. Aos poucos, o povo retorna às ruas, embora a repressão, ainda, não houvesse sido totalmente abolida. Os movimentos são fortalecidos e se intensificam, com greves e manifestações políticas espalhadas pelo Brasil.

A década de 1980 do século XX traz em sua história marcas de um período fértil para as organizações populares, marcada pelas eleições diretas para governadores de Estados e em 1982, constituindo um processo de democratização que culminou, em 1984, na luta pelas “Diretas”, juntamente com a mobilização pela Assembleia Constituinte, que resultou, em 1988,na promulgação da Constituição Cidadã. Em 1989, acontece a eleição para o primeiro presidente eleito no Brasil, após o longo período da ditadura militar, fruto da mobilização pelas “Diretas já”. Na década de 1990, com a implementação das políticas neoliberais, pôde-se constatar, mais uma vez, o desmantelamento das mobilizações sociais: “com os movimentos sociais enfraquecidos, a Educação Popular vive consequências no interior de sua prática cotidiana” (PEREIRA; PEREIRA, 2010, p. 81).

A história não é linear, e sim dinâmica. Por isso, é necessário fortalecer a Educação Popular como força contra hegemônica, campo de luta e resistência em favor de uma educação mais humanizadora e crítica. Brandão e Assumpção (2009) defendem a Educação Popular como:

uma concepção fundamentada em um referencial teórico-metodológico que parte da vivência e da prática concreta dos sujeitos para desvelar a conjuntura, os aspectos culturais, na perspectiva de recriar o conhecimento e a ação transformadora; exige uma coerência entre a concepção teórico-metodológica e o posicionamento político-pedagógico: a intencionalidade de construir a autonomia e emancipação dos sujeitos; os sujeitos populares são reconhecidos como protagonistas do seu aprendizado e de sua emancipação - a aprendizagem é compreendida como processo e não como produto ou resultado; o diálogo e o conflito são constitutivos do processo de aprendizagem, que deve se pautar e construir valores éticos, democráticos e emancipatórios (BRANDÃO; ASSUMPÇÃO, 2009, p. 87).

É nessa lógica que se compreende a Educação Popular, cujo papel é importante para a formação e a conscientização da sociedade civil, inclusive na formação, emancipação e politização do sujeito histórico crítico, ao nível individual e coletivo. A Educação Popular é um espaço gerador de culturas e a “história da Educação Popular é reveladora desta diversidade de metáforas e representações sobre o povo que se sucedem e se reforçam em nossa cultura política e até pedagógica” (ARROYO, 2009, p. 402). É um espaço político-pedagógico inesgotavelmente provocador e, consequentemente, dinamizador na construção de novas visões, novos sentimentos, novos comportamentos e, também, novos paradigmas que levam a uma transformação individual e social de relevantes significados, interferindo, sobretudo, na edificação de um modelo de sociedade, em que a cidadania ativa se evidencia.

Segundo Carrillo (2013), a Educação Popular pode ser compreendida a partir de sua concepção pedagógica e como prática social. Ela está altamente sensível “aos contextos políticos, sociais e culturais onde atua (...) incorpora como prática permanente a realização de leituras críticas dos contextos locais, nacionais e continentais (...) tem estado presente ao longo de seu devir histórico” (CARRILLO, 2013, p. 19-20).

Como processo pedagógico e social, a educação popular é humanizadora. Neste sentido, Arroyo (2012) salienta que, a partir do início dos anos de 1960, houve uma proximidade das experiências de educação mais próxima da popular e que este movimento possibilitou a percepção de novos sujeitos. Assim, tem-se uma nova forma de compreender a educação “como um processo de humanização de sujeitos coletivos diversos” (ARROYO, 2012, p. 27).

Desse modo, compreende-se que Educação Popular se faz a partir do envolvimento dos sujeitos no processo educacional. Isto posto, o exercício do diálogo constrói as visões de mundo que se manifestam e são questionadas e desmistificadas, podendo, assim, abrir espaço para um novo conhecimento que possibilite uma nova postura frente ao mundo. Não se trata de um diálogo assimilado apenas com a troca de palavras e conceitos, mas de uma relação que se funda na capacidade de ouvir, de questionar, de provocar uma nova prática, não “imposta” ou “repassada”, mas construída por essa relação dialógica. Nessa concepção, o diálogo se funda em saber ouvir e falar, por conseguinte, em participação.

O Movimento de Crianças e Adolescentes (MAC): educação popular, direito e participação na infância

A história do MAC encontra ressonâncias na história da infância brasileira. Entre passado-presente e universalidade-singularidade encontram-se os movimentos de fluxo e refluxo da história em relação a estes temas. Em relação à infância, há que se destacar que qualquer temática que envolva essa discussão não pode apreendê-la fora dos espaços de vida social e suas relações de poder. Para isso, faz-se necessário entender que as concepções de infância e de criança não podem ser deslocadas das questões universais que dizem respeito àquilo que expressa o homem e a sua humanidade em processos sociais. Trata de reconhecer a criança em sua condição de sujeito social, uma vez que não existe ser humano isolado de seus contextos sociais, culturais e humanos. Nesse sentido, Touraine (2006) discute essa ideia de sujeito e evoca uma luta social como a de consciência de classe, que induz ao sentido econômico e político que os indivíduos ocupam dentro de uma determinada sociedade, incluídos aí todas as suas reivindicações e interesses.

Da mesma forma, reconhecer a criança e sua infância implica situá-las em sua realidade lógica e histórica, sob condições concretas de vida. Portanto, é necessário apreendê-las na história e como sujeito histórico: “a infância é historicamente construída a partir de um processo de longa duração que lhe atribuiu um estatuto e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade” (SARMENTO, 2005, p. 365).

Para Kramer (2006, p. 13), “a infância é entendida como período da história de cada um, que se estende na nossa sociedade, do nascimento até aproximadamente dez anos de idade.” Em Kramer (1999), pode-se encontrar a defesa de um ponto de vista que reconhece o que é específico da infância: o poder de imaginação, fantasia e criação. Contudo, essa autora entende crianças como “cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nelas produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas subvertendo essa ordem” (KRAMER, 1999, p. 272).

Para Siqueira (2011, p. 186),

a infância é, de fato, uma construção social que se dá num tempo marcado por singularidades e universalidades no plano natural-social e lógico histórico e a criança é, de fato, um sujeito cujas experiências de vida se dão na articulação entre suas especificidades naturais/biológicas de desenvolvimento e suas condições concretas de existência, social, cultural e historicamente determinada. (Grifos nossos).

Conceber a criança e a infância como construção social implica, portanto, compreender tanto uma quanto a outra em suas condições particulares, singulares e plurais. Isso suscita a constatação de que não existem infância e criança no singular, mas infâncias e crianças no plural, considerando que elas se apresentam em campos histórico-sociais-culturais.

Partindo do pressuposto que a educação não é neutra, entende-se que o diálogo não é instrumento pedagógico, mas princípio de uma Educação Popular. Por se tratar de um processo de humanização dos sujeitos, o diálogo permite apreender o conflito, as contradições e os processos que engendram as relações humanas e sociais. Portanto, ele contribui com transformação individual e social. É neste sentido que a intersecção conceitual entre Educação Popular e Movimento de Adolescentes e Crianças possibilita apreendê-la como práxis social, não institucionalizada, mas que ocorre dentro e com os grupos populares. Nesse sentido, ela é determinada pela realidade vivenciada e de sua perspectiva histórica. Rompe-se aqui com o entendimento da ação educativa como lócus e centrada nos adultos e valoriza-se o mundo da criança e seus espaços de lutas. Por isso, a Educação Popular é adotada em diferentes contextos, em especial pelos movimentos sociais, sejam eles do campo ou da cidade.

A partir dessas considerações, retornemos o nosso olhar ao MAC - movimento de educação popular ligado à igreja católica, voltado para a formação de crianças e adolescentes. Tem como foco os processos da educação para a cidadania, a evangelização e organização de crianças e de adolescentes e que, em um processo formativo, articula a importância da consciência crítica destes sujeitos no contexto econômico, político e social. O MAC parte da realidade de vida das crianças e trabalha com a perspectiva da participação e atuação em seus distintos lugares: família, escola e bairro.

No Brasil, essa experiência iniciou-se na década de 1960, no bojo da ditadura civil militar, tornando-se um lugar privilegiado para o trabalho da Educação Popular. A primeira experiência aconteceu em 1968, no Estado de Pernambuco, na cidade de Recife, em um alagado denominado Ilha de Maruim . O Movimento se desenvolveu a partir de um contexto sociopolítico que favoreceu o entrelaçamento com os movimentos sociais, religiosos e populares assegurados pelo contexto da Educação Popular.

Assim, para o Movimento de Adolescentes e Crianças (MAC), a Educação Popular está imbricada em sua essência de vida. Desde o princípio do movimento, como descreve Albuquerque (2009, p. 39): “a Educação Popular é um processo, é um ato contínuo, e não um momento isolado que almeja apenas uma demanda imediata”. É nesta mesma linha de raciocínio que uma das acompanhantes do MAC - (Ester) -entende a Educação Popular “é uma prática educativa participativa, comprometida com a realização dos direitos humanos. Utiliza os saberes dos educandos e da comunidade, incentivando o diálogo, visando a formação de sujeitos (...) valorizando sua história de vida”. Da mesma forma, para outra acompanhante, a Educação Popular é vista como

um tipo de educação que tem como base a dialogicidade, a troca de saberes comunitários e o princípio de que ninguém sabe mais ou menos que ninguém, mas, a ideia que as pessoas sabem outras coisas. Outro aspecto da Educação Popular é que ela não é ‘imposta’, mas participativa. Além disso, tem por objetivo a transformação da realidade local, ou seja, objetiva transformar realidades de opressão em conquista e garantia de direitos, a partir de reflexões críticas sobre os problemas sociais que afetam a vida de uma determinada comunidade. (Maura)

Nesta perspectiva de Educação Popular, o MAC elaborou em sua proposta educativa os eixos centrais: direito e participação. Estes referem-se, sobretudo, à afirmação das crianças como cidadãs de direitos. Nesse sentido, as discussões que se seguem partem dos estudos dos documentos oficiais do Movimento, das falas dos sujeitos envolvidos e das observações empíricas da ação-pedagógica vivenciada neste espaço educativo.

Crianças e direitos

O MAC entende que as crianças são sujeitos portadores de direitos e deveres, capazes de criar, agir, ter consciência do meio em que vivem e criarem condições para transformá-lo, conforme a originalidade própria da idade (MOVIMENTO DE ADOLESCENTES E CRIANÇAS, 2015, p. 9).

Assim, para o MAC, a compreensão de infância perpassa pelo viés do reconhecimento de que cada criança enquanto pessoa inserida em seus tempos e espaços de vida:

quer expressar seus anseios e pontos de vista e ser ouvida e levada em conta... Poder participar da vida em sociedade e fazer sua parte, sendo reconhecida como parceira, tanto quanto os demais parceiros jovens e adultos. Enfim ter voz e vez... Ela não é ‘projeto de gente’, nem deve ser tratada apenas em função do futuro, como ‘esperança do amanhã’. Ela é aqui e agora, uma pessoa humana inteira, com direitos e deveres próprios de sua faixa etária, que quer viver plenamente o hoje da sua existência, como alguém que aprende, certamente, mas também sabe de alguma coisa e tem um conhecimento a comunicar, uma palavra a dizer, uma opinião a dar (MOVIMENTO DE ADOLESCENTES E CRIANÇAS, 2007, p. 31).

Essa discussão inicia-se no Brasil, motivada pelo Movimento de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), juntamente com a Teologia da Libertação e a Pastoral do Menor da Igreja Católica. Estes foram alguns dos movimentos pioneiros na luta pela concepção da criança como sujeito de direitos. Neste aspecto, os movimentos deram início às reivindicações que buscavam maior participação (política) das crianças e reconhecimento delas como cidadãs que tivessem direitos. Siqueira (2011) enfoca que a criança contemporânea é apanhada pelo recorte da lei que não só a define como pessoa, mas também como categoria social. Assim, ela passa de menor excluído e segregado para criança com direitos e dignidade.

Para Siqueira (2011), é neste contexto de tensão entre o projeto econômico e o projeto de sociedade que a criança passa a ser competência do Estado. Todavia, a infância, “sempre vista como a ‘semente do futuro’, era alvo de sérias preocupações. Os criminalistas, diante dos elevados índices de delinquência, buscavam por vezes na infância a origem do problema.” (SANTOS, 2013, p. 215).

Entretanto, apesar de todas essas constatações, Siqueira (2011) aborda que o século XX foi o século da criança, pois as questões que se ocupavam do tema ganharam visibilidade, inclusive no Brasil. Nesse aspecto, a legislação brasileira dá importantes passos com referência à criança, seguindo a tendência internacional. Foi neste século que a questão dos direitos universais da pessoa humana, especialmente quanto à peculiaridade da criança e da infância, ganha força enquanto política de proteção, marcada pela elaboração da Declaração dos Direitos da Criança, em 1924 e pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (UNCRC), em 1989.

A Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) , da qual o Brasil é signatário, caracteriza-se como um importante documento para a efetivação dos direitos das crianças. De acordo com Fernandes (2009), com base na CDC, podem-se considerar três categorias de direitos que norteiam a discussão acerca dessa temática. Trata-se da articulação dos três “p” que assim se constituem:

Direitos de provisão - implicam a consideração de programas que garantam os direitos sociais da criança, nomeadamente o acesso de todas à saúde, à educação, à segurança social, aos cuidados físicos, à vida familiar, ao recreio e à cultura. Direitos de proteção - implicam a considerar de uma atenção diferenciada às crianças e de um conjunto de direitos acrescidos, de que, por motivos diversos, nomeadamente situações de discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito, se encontrem privadas ou limitadas no exercício dos seus direitos. Direitos de participação - implicam a consideração de uma imagem de infância ativa, distinta da imagem objeto das políticas assistencialistas, à qual estão assegurados direitos civis e políticos, nomeadamente o direito da criança a ser consultada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o direito a tomar decisões em benefício, direitos que deverão traduzir-se em ações públicas a ela direcionadas que considerem o seu ponto de vista. (FERNANDES, 2009, p. 41-42).

Sarmento e Pinto (1997) corroboram com essa ideia e afirmam que, dentre os três “p”, o que menos apresenta progresso mediante a construção política, na organização e na gestão das instituições que trabalham com crianças, é o da participação. Esta é ainda uma fragilidade na garantia e efetivação dos direitos. Entre os três “p”, recai a ênfase na Proteção. Esse argumento pode ser explicado a partir da defesa do senso comum de que as crianças precisam de proteção, porque não podem agir com maturidade. Reside nesta ideia a concepção de uma criança frágil, incapaz e incompetente.

Todavia, percebe-se que a discussão em torno do direito da criança vem crescendo ao longo dos tempos. No Brasil, essa questão se evidencia a partir das legislações, principalmente na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990. Nestes documentos, não há uma menção explícita sobre a criança como sujeito de direitos, porém há o reconhecimento de que ela é portadora de direitos, conforme descrito nos artigos 203, 208 e 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Observa-se, aqui, uma crítica importante, particularmente no que se refere à ideia de portabilidade dos direitos. Nesta lógica, o direito deixa de ser algo subjetivo e se constitui como condição para que a criança seja portadora ou não desse direito. Isso aparece de forma mais evidente na Constituição Federal de 1988, que reconhece o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária como direitos da criança. Estes aspectos evidenciam que a questão da proteção é algo forte na construção da legislação.

De acordo com Siqueira (2011), a legislação brasileira enfatiza a importância do ECA (BRASIL, 1990) como um mecanismo de preservação dos direitos das crianças. Ressalta que o momento social e histórico da criação do ECA significou um marco na história da salvaguarda à criança, bem como uma vitória dos movimentos em defesa da criança e do adolescente que viviam na marginalização imposta pela Lei do Menor . Por outro lado, chama a atenção que a sua efetivação vem sendo prejudicada por dois aspectos: o da instrumentalização, quando a utilizam indiscriminadamente e sem compreensão das questões políticas em relação ao tema, bem como sua banalização, uma vez que muitos entendem que essa Lei está pronta e acabada sem refletir que sua efetivação só será possível ao manter sempre em alerta a tensão entre o proclamado e o efetivado. Se, no passado, a Lei do Menor segregava e colocava a criança na marginalidade, no presente, a banalização do ECA também poderá cair em uma falsa inclusão de crianças, o que levará a direitos proclamados, mas não efetivados, inutilizando o sentido da lei.

Evidencia-se, desse modo, a tensão entre o proclamado e o efetivado no campo dos direitos das crianças. Isto também aparece nas vozes das próprias crianças: suas visões reverberam essa ideia de que a questão dos direitos ainda precisa ser debatida. Ao serem interpeladas acerca dos direitos, elas responderam:

- Tamires: São coisas básicas ou que temos necessidade de ter. Como o respeito ou a dignidade. Para nós do MAC direito está relacionado com justiça com igualdade, estar preocupado sempre, por exemplo: tem gente que tem comida e tem gente que não tem. - Janine: Outra coisa na questão direito é que todos têm direitos de ser. Por exemplo: a criança tem direito de ser criança, o adolescente tem também seus direitos. - Tamires: o Estatuto da Criança e Adolescente, é direito, mas também não é. Porque ele existe, mas não é seguido. Como a Constituição, é um sonho, mas na prática fica a desejar.

De acordo com Siqueira (2011), a concepção de criança como sujeito de direito está relacionada à forma de entender e compreender a criança. Porém, chama a atenção para o cuidado de não tomar a criança somente pelo aspecto jurídico-legal, pois a transformará em pessoa abstrata e instrumentalizada.

Reconhecer as crianças como sujeitos de direitos é afirmá-las como participantes de um mundo no qual sua palavra, sua ação, sua cultura e sua história têm sentido e significados quando elas são respeitadas e ouvidas. De modo igual, pressupõe que afirmar criança como sujeitos de direitos requer obrigações públicas que permitam que elas vivam a infância com dignidade em todos os tempos e espaços.

Ao analisar as falas das crianças nas rodas de conversa acerca dos direitos, percebe-se que elas demonstram preocupações com os deveres. Estas são marcas de um tempo em que os afazeres estão em evidência:

- Davi: As crianças têm direito de estudar, de cuidar da saúde.... - Karine: Nós crianças temos direitos, mas também temos deveres. Se a gente não cumprir os nossos deveres, não adianta exigir nossos direitos. - Irene: Temos direito de brincar...

A garantia do direito sempre esteve atrelada à questão do dever, ou seja, sujeito de direitos é similarmente um sujeito de deveres. Estas falas demonstram as preocupações das crianças acerca dos direitos fundamentais, mas, simultaneamente, evidenciam a questão do brincar como um aspecto importante. Assim, o reconhecimento da criança como sujeito com direitos não pode prescindir daquilo que ela traz em relação ao componente lúdico.

Nesta perspectiva, Brougère (2001, p. 52) afirma que a cultura lúdica é também simbólica. Assim, “a brincadeira é, igualmente, imaginação, relatos, histórias”. Dando sequência à sua reflexão, Brougère (2001) afirma que a cultura lúdica dispõe de certa autonomia, de ritmo próprio, mas não é isenta, recebe estruturas da sociedade, conferindo-lhes aspectos específicos. O autor ainda esclarece que ela é igualmente estratificada e não acontece da mesma forma para todas as crianças, já que elas utilizam de maneiras diferentes de brincar. Enfim, a cultura lúdica não está descontextualizada. Ela pertence à cultura geral, à qual a criança pertence.

Criança e participação

Na perspectiva de cidadania política, a questão da participação é uma temática presente na história e não pode ser deslocada do debate político, particularmente daqueles que se organizam e lutam pelo direito de participar. No campo do debate sobre as crianças e suas temporalidades da vida, o tema não se configura diferente. De acordo com Cussiánovich e Márquez (2002, p.12), “o discurso sobre a participação infantil não só exige a desconstrução das representações sociais sobre a infância, mas a construção daquelas que as recuperam como ator social e político”.

Pensar a atuação enquanto espaço do diálogo implica considerar que é pela palavra que as pessoas dão visibilidade ao seu pensamento e até mesmo sentido à sua própria existência. No processo educacional, seja ele formal ou não-formal, tem sido pertinente pensar a infância, as infâncias, a partir das concepções de sujeito social. Essa é uma “perspectiva que situa a criança como ator social e a infância como construção histórica e cultural” (COUTINHO,2009, p.18) No entanto, Rosemberg (2008, p. 316) chama a atenção para o desafio de se “implementar na prática, e com sucesso, uma doutrina de proteção integral de direitos universais à infância e adolescência, uma ética que reconhece crianças e adolescentes como atores sociais.”

Todavia, nem sempre estas práticas sociais resultam em ações de ação-participação-transformação da criança. Neste sentido, Soares e Tomás (2009) argumentam que

mesmo quando as crianças são consideradas, pelos adultos, como participantes, como tendo direito a ser consultadas sobre as decisões que são tomadas em relação a elas, a menoridade e o paternalismo subsistem, continuando, esta dimensão a estar profundamente dependente de mudanças significativas nas relações de poder entre crianças e adultos. (SOARES; TOMÁS, 2009, p. 5).

Somente a partir da concepção e do reconhecimento da criança como sujeito de direitos é que se concretiza a participação como efetivação desse direito. No entanto, o conceito de participação, até os anos 1990, foi concebido como um conceito hegemônico, no qual o participar estava centrado na pessoa do adulto e a intervenção de participação se fazia de cima para baixo, ou seja, dos adultos para as crianças.

Ao abordar a participação infantil, Fernandes (2009) afirma que é na modernidade que essa categoria de estudo foi produzida e que se tornou uma categoria imprescindível nos discursos científicos e políticos sobre a infância. Neste sentido, a participação se torna ponto central nas reflexões acerca das crianças.

A gênese na participação da criança surge motivada pela convenção dos Direitos da Criança (CDC), encorajando as organizações governamentais e não-governamentais (ONG) a considerarem a participação das crianças. De acordo com Tomás (2007), as crianças sempre participaram, em casa, na escola, no trabalho, ou nas guerras, mas essa participação não era entendida como igual e sim, apenas como uma obrigação da criança. Gaitán e Liebel (2012) corroboram com essa ideia, afirmando que são formas de participação muito diferentes que vão desde a participação em sentido funcional de cumprimento de tarefas até uma participação efetiva na sociedade. Essa é uma cicatriz que está enraizada até os dias atuais. Para Charlot (2013, p. 132): “socialmente, a criança é, antes de tudo dependente do adulto, cuja autoridade é constantemente submetida.” Assim, a roda de conversa realizada com as crianças, retratou o lugar dos direitos sob a perspectiva da criança e o lugar social destinado à participação:

- Emmanuelle: Criança ajuda em casa, mas trabalhar não pode. - Karine: Ajudar não é trabalho, é uma forma de você fazer uma contribuição para com as pessoas que te fazem bem. Trabalhar você tem que fazer esforço e você não faz porque você quer e nem para contribuir. Você faz porque você é obrigada ou porque realmente precisa...

As falas das crianças acima reforçam o entendimento da participação nos trabalhos domésticos como prática de obrigação e como essa concepção vai sendo transmitida por gerações. Tomás (2007) defende que o ato de participar deve influenciar diretamente no processo de decisão entre adultos e crianças e que integrem as divergências e as convergências dos objetivos pretendidos.

Da mesma maneira, Soares, Sarmento e Tomás (2005a) afirmam que a participação das crianças é, de certa forma, a possibilidade de retirá-las da invisibilidade e da situação à qual estiveram submetidas por muitos anos sem considerá-las ou dar a elas voz no processo de investigação. Ao considerar as infâncias como categoria social, do tipo geracional, a sociologia entende que as crianças são atores sociais plenos, competentes para formular e interpretar seus mundos de vida. Por este ângulo, a metodologia participativa com crianças é um recurso importante para a construção desse saber. No entanto, a dificuldade da escuta e da interpretação das falas das crianças reside na complexa diversidade inerente às configurações das infâncias contemporâneas em seus contextos sociais, políticos e econômicos.

Silva (2015) ratifica esta ideia, afirmando que a tarefa de atribuir direitos à criança, de modo especial o direito de participação, tem passado por uma longa trajetória, às vezes atribuída à lenta conscientização da sociedade com referência a esse assunto ou devido a dificuldades de entendimento acerca dos direitos das crianças em contextos culturais e históricos.

A Convenção dos Direitos das Crianças (CDC) assegura que toda criança, em conformidade com sua faixa etária, é capaz de dar opinião, sendo-lhe assegurado o direito de fazê-lo de forma livre e ao mesmo tempo lhes garantindo o direito de ser ouvida com seriedade sobre os assuntos que lhes dizem respeito. Neste sentido, Soares, Sarmento e Tomás (2005a), referem-se à participação das crianças como sujeitos ativos, capazes de participarem das decisões que lhes digam respeito:

(...) tal como no caso dos adultos a participação democrática não é um fim em si mesma. É essencialmente o meio através do qual se consegue atingir a justiça e se denunciam os abusos de poder (...), ou seja, é um direito processual que permite à criança enfrentar os abusos e negligências dos seus direitos fundamentais e agir no sentido de promover e proteger tais direitos. (SOARES; SARMENTO; TOMÁS, 2005a, p. 55).

No entendimento de Silva (2015), o termo participação refere-se a processos de compartilhamento de decisões que incidem na própria vida como na vida da comunidade. Entende-se, portanto, que a participação é o direito fundamental à cidadania.

Neste contexto, faz-se necessário compreender a participação das crianças à luz das preocupações éticas. As falas a seguir das crianças abordam questões de abuso, exploração, proteção e a preocupação com referência à defesa de seus direitos:

- Emmanuelle: Voces já ouviram a história do caso Aracelli, que a mãe dela entregou pra ela drogas, mas ela não sabia que era droga. Aí o cara abordou ela e espancou vários vezes, depois estrupou jogou ácido no corpo dela... - Karine: É, isso é um caso muito triste. Então é muito bom a gente lembrar é como a musica diz: esquecer é permitir né? Então a gente tem denunciar. - Nadir: É se esquecer é permitir, e se lembrar é combater. - Karine: É, a gente tem que combater isso, porque hoje é muito comum. - Davi: Acontece bastante - Nadir: Verdade, a família, sua mãe, tem que ir lá denunciar - Davi: Não vão fazer nada se estiver vendo que tem pessoas denunciando - Pietro: Então Disque 100 - Karine: Disque 100, exatamente. - Acompanhante: Muito bem. Então vamos cantar pra enviar mais amor para a humanidade. - Acompanhante: uma palavra tão linda jamais esquecida me fez recordar. Contendo sete letrinhas e todas juntinhas se lê cativar. Cativar é amar é também carregar um pouquinho da dor que alguém tem que levar. Cativou, disse alguém laços fortes criou, responsável tu és pelo que cativou. No deserto tão só, entre homens de bem, vou tentar cativar,viver perto de alguém. Vou tentar tentar cativar viver perto de alguém.

No evento acima, observa-se que as crianças opinam aleatoriamente sobre determinados assuntos. Ainda que o tema tenha relevância e tenha sido recorrente em diferentes encontros, suas opiniões não são tratadas ou aprofundadas pelo adulto que deveria fazer a mediação formativa. Quando as crianças falam de violência, a discussão é interrompida pelo adulto acompanhante com a proposta de cantar para enviar mais amor para a humanidade. Com essa atitude, faz-se um corte na possibilidade da criança expressar as causas da violência ou até mesmo compartilhar sentimentos a respeito deste tema. Observa-se, na postura da acompanhante, a impossibilidade de uma ação concreta que desenvolva a consciência crítica das crianças. Pelo contrário, reforça, em sua atitude, uma posição simplista em que as causas ou problemas sociais são resolvidos com cânticos de amor.

Isso se contrapõe àquilo que Soares (2005b) se refere à participação de crianças. Alerta que, ao promover a participação de crianças, provavelmente a sociedade estaria dando passos na luta contra a desigualdade social e econômica e, com a certeza, na construção de um mundo mais justo e democrático para todos. Da mesma forma, Espinar (2003) ratifica esta posição afirmando que a participação de crianças, enquanto procedimento político ideológico, necessita de um desprendimento dos adultos e das verdades constituídas. Ao mesmo tempo, é preciso construir espaços para que as crianças manifestem suas opiniões e juntos, adultos e crianças, compartilhem de decisões, pois os dois são construtores dos resultados da participação.

Cussiánovich e Márquez (2002, p. 52) afirmam que o direito de opinar rompe com o silêncio social secularmente imposto às crianças e aos adolescentes. Recuperar a opinião e a voz das crianças é recuperar a visibilidade, identidade e dignidade. O direito de opinar induz ao direito de ser ouvido e escutado e que essa escuta não se reduza apenas à função biológica de ouvir. A escuta é um ato próprio do ser humano, pois reconhece o outro como igual e diferente de mim. Para Coutinho (2013), é necessário romper, de imediato, com a concepção da participação de crianças e adolescentes de forma decorativa , tendo em vista que a participação desses sujeitos é uma participação constitutiva das práticas sociais.

Dessa forma, ao assumir o desafio de efetivar o direito à participação, compreende-se que esse é um direito que se refere tanto aos adultos quanto às crianças. A diferença entre ambos se estabelece por meio dos espaços onde essa participação se dará. No caso da Educação Popular, esta questão implica que as crianças reconheçam, nesse espaço, seus pontos de vista em relação às coisas da vida, seus espaços de participação e o lugar que os outros sujeitos ocupam em relação a estes temas e contextos. É importante deixar claro que não se devem adaptar as formas adultas de participação para as crianças. No entanto, o desafio é criar estratégias de participação que promovam e respeitem o tempo de vida e a cultura das crianças.

Considerações finais

Em síntese, é importante retomar aqui o sentido da Educação Popular na Infância e, em especial no MAC, como uma educação sustentada na prática e na realidade a partir da perspectiva histórica. Aprincípio, é preciso destacar queessa é uma questão muito pouco explorada no campo acadêmico, pois a relação da Educação Popular está historicamente ligada às questões adultas. Porém, este cenário vem mudando e começam a surgir trabalhos relacionados à Educação Popular e à infância. Reconhece-se que a infância é um tempo social da vida em que se dão inúmeras indagações e descobertas sobre o mundo. É neste contexto que se faz necessário legitimar determinadas experiências como, por exemplo, as experiências do MAC, no qual vem crescendo a concepção da Educação Popular relacionada com o seu universo social.

Em relação aos resultados encontrados neste trabalho, destaca-se que a voz da criança é uma voz polifônica e que a presença dos adultos nos grupos se dá de forma hierarquicamente superior. No entanto, percebe-se a importância política e pedagógica da Educação Popular com crianças, que se faz mediada pela ação dialógica, a qual estimula a curiosidade, possibilita a construção de conhecimento, explicita sonhos, exige criticidade e requer compromisso. Ressalta-se ainda, a importância da ação educativa desenvolvida pelo MAC. Mesmo que de forma incipiente, apresenta-se como um espaço emancipatório de formação cidadã, numa perspectiva de autonomia da criança.

Por fim, reafirma-se a Educação Popular como uma pedagogia e uma posição política: uma pedagogia que a compreenda, ancorada na concepção de mundo com uma metodologia que facilite a participação e o envolvimento das pessoas de forma integral; uma posição política, uma vez que a Educação Popular tem uma proposta clara de transformação e se concretiza na atuação e na organização popular.

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Recebido: 28 de Agosto de 2019; Aceito: 11 de Setembro de 2020; Publicado: 10 de Março de 2021

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