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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria Jan./Dec 2021  Epub Nov 09, 2023

https://doi.org/10.5902/1984644448055 

Artigo Demanda Contínua

Jung, Hillman e a educação: por outras lógicas na formação docente1

Jung, Hillman and education: for other logics in teacher training

Luciana Esmeralda Ostetto1  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-1948-5090

Cristiana Garcez dos Santos Seixas2  , Mestre em Educação
http://orcid.org/0000-0001-7758-8728

1Professora doutora na Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. lucianaostetto@id.uff.br

2Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, psicóloga autônoma. cristianaseixass@gmail.com


RESUMO

Como profissão relacional, a docência convoca à ampliação do olhar e da escuta para suspeitar dimensões além das fronteiras demarcadas pela unilateralidade da função pensamento. Que formação poderia contribuir para abrir passagens nessas fronteiras? Este artigo tematiza a formação docente, baseando-se em dados de duas pesquisas que, desenvolvidas com autorias e tempos distintos, privilegiaram o encontro com professoras em exercício e/ou em formação inicial, mediado pelas linguagens artístico-expressivas, propondo e discutindo perspectivas de formação estética. Um fio que atravessa as duas pesquisas é o conceito junguiano de arquétipo da criança e, com ele, o núcleo da discussão proposta para o artigo é tecido, visando apresentar as contribuições de Carl Gustav Jung e James Hillman para a educação e, sobremaneira, para a formação docente. Acolher a teoria dos arquétipos, visibilizar a criança simbólica que habita o indivíduo e destacar a função sentimento, conteúdos presentes na teoria dos referidos autores, possibilitou refletir e perspectivar sobre a necessária (res)significação da jornada de formação e reafirmar: é preciso abrir espaço a outras lógicas, de modo a aproximar consciente e inconsciente, cultivar e agregar outras forças que influenciam a ação humana, integrar pensamento e sensibilidade, poesia e saber científico.

Palavras-chave: Formação estética docente; Arquétipo da criança; Função sentimento

ABSTRACT

As a relational profession, teaching calls for broadening the gaze and listening to suspect dimensions beyond the boundaries demarcated by the one-sidedness of the thinking function. What training could contribute to opening passages across these borders? This paper focuses on teacher training based on data from two studies that, developed with different authors and times, favored the encounter with teachers in exercise and/or in initial training, mediated by artistic-expressive languages, proposing and discussing perspectives of aesthetics education. A thread that runs through both researches is the Jungian concept of the archetype of the child and, with it, the core of the discussion proposed for the article is woven, aiming to present Carl Gustav Jung and James Hillman’s contributions to education and, above all, to teacher training. Welcoming the theory of archetypes, making visible the symbolic child that inhabits the individual, highlighting the feeling function, contents present in the theory of the referred authors, made it possible to reflect on and envisage the necessary (re)signification of the training journey and reaffirm: it is necessary to open space to other logics, in order to bring conscious and unconscious closer together, cultivate and aggregate other forces that influence human action, integrate thinking and sensitivity, poetry and scientific knowledge.

Keywords: Aesthetic teacher training; Child archetype; Feeling function

Pelos quintais do inconsciente

O escritor moçambicano Mia Couto, quando questionado sobre como consegue conciliar as atividades de escritor e biólogo, fica curioso em relação ao que leva as pessoas a pensar que existe um problema de compatibilidade entre dois fazeres. Ao que ele pondera:

A verdade é que para mim não existe conflito. Pelo contrário, hoje não sei como poderia ser escritor caso eu não fosse biólogo. E vice-versa. Nenhuma das atividades me basta. O que me alimenta é o diálogo, a interseção entre os dois saberes. O que me dá prazer é percorrer como um equilibrista essa linha de fronteira entre pensamento e sensibilidade, inteligência e intuição, entre poesia e saber científico. (COUTO, 2011, p. 56).

O biólogo espreita territórios africanos e colhe lendas, mitos e crenças dos povos ancestrais, acessando dimensões mitológicas, espirituais, que inspiram narrativas do escritor. Na entrevista que o autor concedeu ao Programa Roda Viva2, ao ser perguntado se realmente acreditava no que escrevia, ele respondeu que substituiria o verbo acreditar por “estou disponível, estou aberto” e revelou: “Faço uma espécie de mestiçagem disso tudo. Sou um ateu não praticante. Visito esses mundos, mas não moro em nenhum deles. Estou aberto e disponível para outras lógicas” (COUTO, 2012, n.p.). O autor indica, pois, uma atitude de alargamento investigativo em campos desconhecidos, territórios do inconsciente suspeito. Uma postura de pesquisador, que mergulha no desconhecido, aberto a ouvir, ver, reconhecer e acolher o que ainda não foi mapeado, o que ainda não tem nome, o que se pode mostrar além das prefigurações do pensamento, admitindo a interveniência de “outras lógicas”.

Permitir que sejamos atravessados por lógicas outras é alimentar o diálogo entre consciente e inconsciente que, na analítica junguiana, é o campo fértil para os processos de tornar-se quem se é, caminho para a busca da individuação (JUNG, 1975). A atitude do escritor e a proposta do analista, aqui evocadas, servem-nos de inspiração e apoio para a consideração que funda este artigo: na formação docente, é preciso abrir espaço para outras lógicas, ir além das amarras da racionalidade; é preciso cultivar e agregar outras forças que influenciam a ação humana, relacionando “pensamento e sensibilidade, inteligência e intuição, (...) poesia e saber científico” (COUTO, 2011, p. 56).

Ao colocarmos em questão a necessidade de outras lógicas, remetemos a reflexão às pesquisas realizadas por Jung (1991) sobre os diferentes modos de relacionamento do indivíduo com as pessoas, as coisas, nas quais identificou as atitudes que a mente consciente pode adotar em relação ao mundo, ao que chamou de teoria dos tipos psicológicos. Ele diferenciou tipos gerais de atitudes: introvertida e extrovertida, às quais associou quatro diferentes funções adotadas pela consciência, por meio das quais se reconhece o mundo e nele nos orientamos: pensamento, sentimento, sensação e intuição.

Ao tipo introvertido corresponderiam aquelas pessoas cuja consciência é orientada por fatores subjetivos, que são dirigidas para o mundo interior da psique, influenciadas predominantemente por sua paisagem interna. Ao tipo extrovertido corresponderiam as pessoas que pensam, sentem e agem predominantemente orientadas pela paisagem externa, pela relação com o objeto (JUNG, 1991).

As funções, como modos de operar e agir da personalidade consciente, são “maneiras de organizar e sofrer a vida” (HILLMAN, 2002, p. 110). As quatro funções identificadas na teoria junguiana estão constituídas em pares de opostos: duas funções racionais, pensamento de um lado e sentimento de outro; e duas funções irracionais, sensação de um lado e no seu oposto a intuição. “O pensamento é aquela função psicológica que, de acordo com suas próprias leis, faz a conexão (conceitual) de conteúdos de representação a ele fornecidos” (JUNG, 1991, p. 434). E, ainda: “O pensamento exprime o que uma coisa é. Dá nome a essa coisa e junta-lhe um conceito, pois pensar é perceber e julgar” (JUNG, 1985, p. 8, grifo do autor).

O sentimento é também “uma espécie de julgamento, mas que se distingue do julgamento intelectual, por não visar ao estabelecimento de relações conceituais, mas a uma aceitação ou rejeição subjetivas” (JUNG, 1991, p. 440, grifo do autor). Na função sentimento, está em jogo

um processo que se realiza entre o eu e um dado conteúdo, um processo que atribui ao conteúdo um valor definido no sentido de aceitação ou rejeição (‘prazer’ ou ‘desprazer’), mas também um processo que, abstraindo do conteúdo momentâneo da consciência ou de sensações momentâneas, pode aparecer como que isolado, como ‘disposição de ânimo’ (humor) (JUNG, 1991, p. 440).

Quanto à função sensação, diz o autor que é

a função psicológica que proporciona a percepção de um estímulo físico. Por isso é idêntica à percepção. (...) percepção pelos órgãos dos sentidos e pelo “sentido do corpo” (sensação sinestésica, vasomotora etc.). (...) é algo simplesmente dado que não está submetido às leis da razão, ao contrário do pensamento e do sentimento. (JUNG, 1991, p. 438-439).

Caracterizada como uma percepção acessada via inconsciente, a função intuição (da raiz intueri: olhar para dentro) aciona formas de conhecimento do mundo por meio de pressentimentos, palpites ou inspirações, assim explicada:

Tudo pode ser objeto dessa percepção, coisas internas ou externas e suas relações. O específico da intuição é que ela não é sensação dos sentidos, nem sentimento e nem conclusão intelectual, ainda que possa aparecer também sob estas formas. (JUNG, 1991, p. 430).

Como formas básicas da vida psíquica, pensar, sentir, sensualizar e intuir são funções da consciência presentes em todos os indivíduos; no entanto, a partir de disposições internas inatas, eles desenvolvem uma dessas funções como principal conformando, assim, um “tipo”. Quanto mais uma função ganha primazia, a tendência é que se distancie das demais, provocando uma inferiorização da função oposta. Tomemos, por exemplo, a função sentimento nas sociedades contemporâneas: nota-se facilmente sua inferiorização, tanto mais é solicitada a especialização do pensamento; quanto mais vigora o pensamento como forma de reconhecer, explicar o mundo e orientar-se nele, mais o sentimento, do outro lado da polaridade, é relegado, remetido a níveis rebaixados da psique, próximos do inconsciente.

A teoria dos tipos psicológicos evidencia uma premissa básica do pensamento junguiano: a diferença é o que nos constitui. Contudo, em uma cultura altamente desenvolvida na racionalidade do pensamento, a diferença é considerada um problema, uma fragilidade, e, portanto, deve ser negada. Assim, os mecanismos sociais conduzem à uniformização das forças individuais, provocando um enquadramento que acaba por promover a dissociação das funções psicológicas do homem e, principalmente, o afastamento de conteúdos anímicos. A negação de outras lógicas de apropriação do mundo é evidente, sendo a intuição e o sentimento renegados como dimensões constitutivas da consciência.

No contato com professores, por meio de formação inicial ou continuada, a percepção de tal afastamento dá-se por meio de expressões gestuais ou discursivas, como, por exemplo, a rigidez dos corpos, quando solicitados movimentos brincantes, dançantes, rente ao chão; ou queixas, veiculadas em frases como “Mas eu não sei desenhar!”, “Eu não tenho jeito para trabalhos manuais...”, diante de propostas de expressão gráfica ou artesanais, como bordado; ou, ainda, nos questionamentos comuns, diante do convite à criação com materialidades diversas: “Como você quer que eu faça?”, “Posso fazer desse jeito?”.

Essas queixas, questionamentos e jeitos de corpos docentes seriam indícios daquela dissociação de que falamos e da primazia do pensamento, que tudo busca controlar, definir, categorizar. O relaxamento dos corpos, a confiança na jornada de experimentação, a entrega ao prazer da descoberta, afrouxando as rédeas do pensamento linear, inscrito no já conhecido, não aparecem. Ao contrário, pouca disponibilidade ao mistério e ao desafio da criação, receio, por vezes indisposição, de novas experiências parecem sustentar as atitudes visibilizadas, impedindo que a pluralidade de que somos feitos e as vozes que em nós fazem morada sejam ouvidas e ampliadas em percursos autorais e criadores. Afinal, como dissera James Hillman (2010b, p. 79): “Ao invés de um campo de forças, somos cada um de nós um campo de relacionamentos de pessoas interiores, uma comunidade interior, um corpo político”. Na literatura, são fartas as narrativas da pluralidade que nos habitam.

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências. (COUTO, 2013, p. 75).

(estamos todos nós cheios de vozes que o mais das vezes mal cabem em nossa voz (...) tudo isso em ti se deposita e cala. Até que de repente um susto ou uma ventania (que o poema dispara) chama esses fosseis à fala. (GULLAR, 2015, p. 499-500)

O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. (HESSE, 1955, p. 65).

Na jornada de formação, reconhecer e acolher as vozes que nos habitam inaugura um movimento vital para a ampliação da consciência de si e do mundo, para a expansão da potência criadora, para o refinamento da dimensão estética, pela qual tecemos sentidos e alimentamos sensibilidades. A dimensão estética, como elemento constitutivo de nossa humanidade, é nutrida, trabalhada, refinada pari passu com o desenvolvimento das funções intuição e sentimento.Jung (1991), ao tratar dos aspectos da psicologia da obra de arte e de seu criador, atribui um valor essencial à intuição como guia, como aquela que “conduz-nos a áreas desconhecidas e ocultas, a coisas que, por sua natureza, são secretas” (JUNG, 1991, p. 83). Por sua vez, por meio da função sentimento, avaliamos o mundo, não pela via do intelecto, mas pela subjetividade, por intermédio de relações estabelecidas entre uma situação, pessoa, objeto ou momento que nos afetaram e, assim, desenvolvemos a “razão do coração” (HILLMAN, 2002, p. 132)

O psicólogo americano, na esteira dos estudos junguianos, direcionou sua atenção à repressão da função sentimento, reconhecendo que: “A perda é a principal característica do sentimento hoje; estamos perdidos, sem saber como sentir, onde sentir, por que sentir e até mesmo se sentimos” (HILLMAN, 2002, p. 116). É esse fio, pinçado por ele, que tomamos nas mãos para seguir tecendo nossas reflexões.

Da falta, o convite a arar campos na pesquisa

A educação do sentimento, no sentido de gostos, valores e relacionamentos, não constitui o cerne da escolarização. A música, a arte, os esportes, os clubes sociais, a religião, a política, o teatro e a leitura por prazer são eletivas e extracurriculares. James Hillman (2002, p.188).

O curso (de Pedagogia) é formatado, parece um disquete! Somos acadêmicos, a gente não vive! Tudo de arte é só um pouquinho... Precisamos de coisas que mexam com a gente! Estudante participante da pesquisa (OSTETTO, 2006, p. 116).

Na correria, na rotina que engendramos no dia a dia... Perdemos a capacidade de apreciar, de sentir, de enxergar com os olhos da alma as miudezas, as peculiaridades. Professora participante da pesquisa (SEIXAS, 2018, p. 135).

“Para que escola deve ir o coração?”, pergunta-se Hillman (2002, p. 188). Para que escola de formação podem/devem ir os professores?, perguntamos nós, interessadas na pesquisa e na prática com formação de professores, nomeadamente daqueles que atuam na educação das infâncias. Como resposta, entendemos que seria promissor caminhar para uma escola que seja espaço-tempo de escuta, na qual luzes e sombras sejam acolhidas e trabalhadas, no cultivo de (re)encontros com porções esquecidas do ser, fertilizando criações e autorias; uma escola que assuma os princípios estéticos, pelas veredas das artes em geral (música, dança, teatro, literatura, artes plásticas e outras expressões), que são também vias de acesso ao mergulho interior, à escuta e ao florescimento de outras funções da consciência, como o sentimento e a intuição (JUNG, 1991; HILLMAN, 2002).

Quando falamos de princípios estéticos, visibilizamos processos relacionados aos sentidos e à sensibilidade humana, que envolvem formas de conhecimento poético, além do inteligível. A partir de sua raiz grega, aisthesis, Hillman (1993, 2010a) identifica o vocábulo estética com os atos de conduzir o mundo para dentro, de inspirar ede absorver o mundo, por vias contrárias às reflexões simplesmente mentais, fixadas na rigidez do pensamento que nomeia e classifica.

No entanto, se este campo não for arado e semeado na formação docente, como poderá o professor oferecer espaços para olhares e fazeres poéticos de seus alunos? A fecundidade de um olhar para dentro, investigador da alma, é pressuposto, compreendendo alma como “uma perspectiva em vez de uma substância, uma perspectiva sobre as coisas em vez de uma coisa em si. Essa perspectiva é reflexiva. (...). É como se a consciência se apoiasse num substrato imaginativo e autossustentado - um lugar interno” (HILLMAN, 2010b, p. 27).

O exercício de voltar-se para si seria análogo a uma exploração de outras dimensões, um exercício do sentir e de pensar para melhor discernir, fazer escolhas, distanciar para aproximar. Pressupõe um tempo diferenciado, que permita a parada, a atenção, a circulação e a captura de significados e de ligações com outras experiências. Abrir esse espaço-tempo para o diálogo interno pode atuar no despertar ou refinar dos sentidos: fomentar o cultivo da alma, aproximar consciente e inconsciente, cultura e subjetividade. Afinal, mundo interno e mundo externo, como apontou Nise da Silveira (1982, p. 110), “interpenetram-se em graus diferentes. Isso ocorre a cada instante na vida cotidiana e torna-se particularmente manifesto nas obras de arte, plásticas e literárias”. Desse modo, olhar para a natureza, para as obras e as manifestações artísticas, para dentro de nós mesmos, é essencial para o processo de tornarmo-nos humanos. Aos professores, que atuam em uma profissão relacional, é condição da maior relevância aprender a ampliar o olhar e a escuta, acessar a imensidão íntima, exercitar descobertas além das fronteiras impostas por práticas culturais sustentadas na unilateralidade da função pensamento.

Na trilha dos referenciais compartilhados, identificamos que os percursos de experiências do/no corpo, pelas quais são ativadas percepção, imaginação e interpretação, levam ao alargamento da sensibilidade, à formação estética. No movimento dialético de conduzir o mundo para dentro, de afetar e ser afetado, no contato com a arte, a cultura, a natureza, as relações sociais, vão sendo tecidas experiências estéticas, enquanto somos tocados pela beleza (HILLMAN, 1993).

No contexto da formação docente, entre conceitos e dados (re)colhidos do vivido entre/com professores, tomamos como essencial pensar/fazer propostas que contemplem dimensões do sensível.Essa premissa está na base de duas pesquisas que, desenvolvidas em tempos distintos, privilegiaram o encontro com professoras, mediados pelas linguagens artístico-expressivas, propondo e discutindo perspectivas de formação estética.

Uma das pesquisas (OSTETTO, 2006) buscou discutir a contribuição das danças circulares para a formação estética docente. Essa específica forma de dança, proveniente da tradição e da cultura de diferentes povos, que aciona simbologias várias ao serem praticadas, das quais o círculo e as mãos dadas são as mais proeminentes, poderia provocar e alimentar outras formas e dimensões do conhecer, pelas vias do sensível, da intuição, do sentimento? A questão posta sustentou a pesquisa desenvolvida por meio de encontros para dançar em roda, nos quais se fez uso de músicas e de coreografias próprias do movimento denominado “Danças circulares sagradas” (WOSIEN, 2000; BARTON, 2012). Participaram da pesquisa estudantes do curso de Pedagogia e professores de Educação Infantil de uma rede pública municipal.

Os encontros, realizados semanalmente ao longo de um semestre, iniciavam com todos sentados ao redor de um centro especialmente preparado (com panos coloridos, flores, objetos simbólicos etc.). Esse momento configurava-se como uma roda para conversas, trocas, debates, informações: antes de começar a dançar, o grupo reunia-se em círculo para compartilhar a memória do encontro passado. Depois, havia um tempo para a harmonização, chamando o foco para a experiência que seria proposta. Os passos das danças eram então apresentados. Uma dança, outra dança, outra e mais outra eram experimentadas. Até o final da sessão, era dançar e dançar de mãos dadas, ao ritmo das melodias de diferentes povos. A não ser para uma ou outra explicação e/ou informação sobre a coreografia e a procedência da dança, a proposta não previa conversas. Apenas no encontro da semana seguinte, mais uma vez reunidos ao redor do círculo, antes de recomeçar a dançar, reportávamo-nos ao vivido, em exercícios de memória, conforme já indicado.

A produção dos dados constou de notas de campo, que privilegiou o conteúdo revelado no coletivo, nas rodas de conversas que antecediam a sessão de dança propriamente dita. Alguns encontros também foram filmados, sobretudo para capturar os testemunhos das educadoras, na roda de conversa, os quais permitiram rever e ampliar as notas de campo. Por fim, as participantes produziram um memorial, no qual descreveram e analisaram a experiência, considerando seus aprendizados e a possível contribuição das danças circulares para sua formação.

Os dados recolhidos foram organizados e sistematizados, compondo um quadro analítico espiralado, resultado de uma espécie de circumambulatio - aproximar-se circundando, para utilizar a conhecida expressão junguiana (JUNG, 2001) -, movimento em torno do que não se mostra totalmente, mas que é fundado na escuta atenta aos sinais e aos indícios das linguagens configuradas no material produzido no processo de investigação. Com esse quadro construído, dando visibilidade às principais questões que emergiram da experiência/pesquisa, a discussão dos dados tomou a psicologia de Carl Gustav Jung e a Arte como suportes para a análise.

Dessa jornada, quatro questões foram focalizadas: as qualidades simbólicas do círculo como componente da dança e da educação; o silêncio como elemento imprescindível para a escuta e o aprendizado de conteúdos sutis, na dança e na prática pedagógica; a necessidade de trazer à discussão a realidade da alma, como lugar da poesia; eo arquétipo do mestre-aprendiz, visibilizando o arquétipo da criança que nos habita e que não pode ser negligenciada (OSTETTO, 2006).

A outra pesquisa (SEIXAS, 2018) teve por objetivo analisar as contribuições do oferecimento de espaços poéticos, simbólicos e expressivos na formação de professores da Educação Infantil, com o intuito de discutir potencialidades de narrativas de si engendradas no processo criativo. Para especificar o caminho, buscou-se: analisar implicações e desdobramentos das vivências expressivas nos professores, quanto à postura de escuta, de atenção, de expansão das leituras de si, do outro e do mundo; observar a potencialidade dos recursos expressivos na direção de evocar memórias pessoais e ampliar a narrativa de si; e sondar caminhos de como semear delicadeza e beleza na educação (SEIXAS, 2018).

A perspectiva da pesquisa-formação foi adotada e foi desenvolvida por meio da proposição do “Estúdio do sensível” (SEIXAS, 2018), que consistiu na criação/disposição de um espaço-tempo para experiências com as linguagens e materialidades expressivas, para ativar o corpo dançante, literário, artístico-visual, meditativo, criativo. Com duas horas de duração cada, os dez encontros que lhe deram forma foram sustentados pelos recursos expressivos que dialogam com a arte e outros dispositivos culturais, tais como: Biblioterapia, Arteterapia, Dança circular e Escrita criativa. O projeto contou com a participação de professoras de instituições de Educação Infantil públicas localizadas no estado do Rio de Janeiro.

Metodológica e estruturalmente, os encontros foram organizados e desenvolvidos por meio de uma sequência básica de ações: acolhimento, nutrição literária, produção expressiva, ressonâncias da palavra escrita em um “caderno de bordo”, partilha, fechamento. O acolhimento iniciava com danças circulares (WOSIEN, 2000; BARTON, 2012; OSTETTO, 2014). Em seguida, abraçando os preceitos da Biblioterapia (OUAKNIN, 1996; SEIXAS, 2014), havia a disponibilização de livros infanto-juvenis e de poesia (tempo chamado de nutrição literária). Com a utilização de materiais diversificados, dentro da perspectiva da Arteterapia (PHILIPPINI, 2009, 2013), criava-se, então, um momento de produção expressiva. A depender do contexto, a ordem das proposições poderia ser invertida: primeiro convidar a uma atividade expressiva e, durante ou após, oferecer a nutrição literária. Sendo uma ou outra a ordem de propostas, havia sempre a exposição, no centro da roda então formada, das produções criadas à mão; abria-se, assim, o tempo para as ressonâncias da palavra escrita em um “caderno de bordo”, no exercício da escrita criativa (PHILIPPINI, 2009). Após os registros escritos, convidava-se à partilha oral e fazia-se o fechamento do ciclo com uma dança circular.

Os dados para a análise foram compostos por notas de campo, registros fotográficos dos encontros e das produções das participantes, excertos dos seus “cadernos de bordo”. Dentre as questões reveladas no continuum da experiência e nos dados produzidos, destaca-se: o desafio, por parte das professoras participantes, em acolher o silêncio e o erro; elementos que, na perspectiva teórica que compartilhamos, seriam veículos essenciais na jornada da educação/individuação.

Ao dar especial atenção aos símbolos que emergiam nos processos suscitados pelas propostas oferecidas ao longo dos encontros, revelados nas produções plásticas das participantes, foram identificados dois símbolos recorrentes: árvores e pássaros, que foram analisados na perspectiva da “amplificação” (JUNG, 1975), a qual permite buscar e examinar o significado de uma imagem por meio de associações a símbolos universais, encontrados na mitologia, nas ciências, na história e nos diversos campos da cultura, com o objetivo de expandir significados metafóricos. O arquétipo da criança, que traz relações com o lúdico, a espontaneidade, a brincadeira, força vital da criatividade, revelou-se, também, como um “catalisador” no processo de individuação em curso.

Na exposição precedente, revela-se um fio que atravessa as duas pesquisas: o arquétipo da criança. É com ele que continuaremos a tecer a discussão proposta para o presente artigo, qual seja: apresentar questões conceituais advindas da psicologia de Carl Gustav Jung e James Hillman, de forma a ressaltar suas contribuições para a educação, nomeadamente para a formação de professores. De tal maneira, no tópico a seguir, após fundamentarmos o conceito de arquétipo da criança, retomaremos as duas pesquisas sumariamente apresentadas, dando ênfase, nos dados produzidos, à presença da criança simbólica, seus desdobramentos e contribuições para a (res)significação da jornada de formação.

A força arquetípica da criança: renascimento, esperança, energia vital

Arquétipo, um dos conceitos-chave da psicologia junguiana, “designa formas específicas e grupos de imagens que se encontram, sob formas coincidentes, não só em todas as épocas e em todas as latitudes, mas também nos sonhos individuais, nas fantasias, nas visões e nas ideias delirantes” (JUNG, 1984, p. 231). Os arquétipos transcendem as experiências pessoais. Trata-se de uma das manifestações da energia psíquica que se torna visível por meio de uma imagem ou evidencia-se nos comportamentos externos, principalmente os que expressam as experiências básicas e universais da humanidade (nascimento e morte, casamento e separação, maternidade, paternidade, criatividade).Nessa perspectiva:

Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. (JUNG, 2003, p. 58, grifo do autor).

Dentre os arquétipos discutidos está o da criança, simbolizando aquilo que pode ser, a esperança do novo, que constela o caráter originário do homem, suas raízes, de base instintiva. A existência do motivo mitológico da criança é reconhecida em várias culturas, e um dos seus aspectos é apresentar-se com um caráter de futuro: “A criança é o futuro em potencial. (...). Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas” (JUNG, 2003, p. 165).

Jung (2003)aponta que nos diferentes mitos da “criança-deus”, como Hércules, Krishna e Jesus Cristo, por exemplo, há características comuns: suas infâncias são marcadas pela exposição ao abandono e ao perigo da perseguição; seu desenvolvimento, desde o nascimento místico e milagroso, é acompanhado de adversidades, aparecem como seres frágeis e impotentes, mas, ao mesmo tempo, carregam consigo a potência de ações maravilhosas. Se, em sua origem, nada vale, estando por isso desamparada e exposta aos perigos, a criança traz consigo a possibilidade de irromper como acontecimento inovador e potente, porque, dirá Jung (2003), está próxima das raízes instintivas que contém o impulso da criação. Por isso, a imagem arquetípica da criança foi tomada como “símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completitude” (JUNG, 2003, p. 165).

A criança é um princípio de vida profunda, de fogo que pode ser novamente acessado, por meio da integração entre imaginação e memória. Esse retorno à poesia do estágio primevo acessado pela criança é descrito por Couto (2011, p. 12): “Na nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino”.A criança, como arquétipo, figura simbólica, acompanha-nos e continuamente chama-nos a experimentar outros caminhos, a (re)vermos delicadezas e minucias que já não notamos, em um cotidiano rotineiro e ruidoso. Não é fácil ouvir o chamado da criança, pois a adultez parece comprometer a acuidade auditivo-visual, que permite capturar as insignificâncias, como diria o poeta, essencialidades que nos reconduzem, quando acessadas, à nossa potência geradora. Metidos no burburinho do dia a dia massificado, não temos ouvidos para ouvi-la. Admitindo a força arquetípica da criança, por certo será preciso aprender a ver e a ouvir seus sinais, que podem ser guias para novos trajetos, abrindo canais de crescimento anímico e ampliação de sensibilidades.

Na roda da dança: circular a memória, visibilizar a infância

A dança circular toca lá no fundo, num lugar onde a academia não toca. Por isso é importante ela estar aqui. Estudante de Pedagogia participante de pesquisa (OSTETTO, 2006, p. 122).

Na pesquisa que envolveu danças circulares, alguns encontros privilegiaram repertórios que evocavam ou conduziam ao passado tempo da infância. O centro da roda, nesses encontros, estava composto por“coisas de criança”, alguns objetos que lembravam tempos de criança - brinquedos, materialidades diversas, coleções. Ao redor do centro, dançamos cantigas brasileiras. Um dos encontros foi assim registrado pela pesquisadora:

Antes das danças, propus um relaxamento, deitados no chão, com a cantiga Boi da cara preta. Fez-se silêncio na sala. Olhos cerrados. Calma. Houve entrega. A cantiga de ninar tomou todo o espaço, a conduzir cada uma ao encontro da sua criança, viva na memória, as quais vieram para a roda quando, ao abrirem os olhos, no final da cantiga, o grupo compartilhou suas lembranças. Surgiram muitas e diferentes crianças: alegres, tristes, brincantes; solitárias, medrosas, tímidas, faladeiras; pintoras, estudiosas, inteligentes (...). (Diário de campo). (OSTETTO, 2006, p. 139).

Passado o momento explicitamente introspectivo, embalado pela cantiga de ninar, trazendo à consciência o reencontro com suas crianças, acompanhadas dessas imagens trazidas do passado, dançamos muitas coreografias, ampliando circularmente a experiência. A emoção que tomou lugar na roda mostrou-se por meio de reações e atitudes observadas, durante e ao final das danças propostas, revelando uma profusão de sentimentos: respiração ofegante, silêncio profundo, olhos brilhando, lágrimas, alegria, tristeza, irritação, serenidade, expansão, recolhimento. No corpo, fazia-se visível a memória acessada, revolvendo camadas de histórias que o habitavam, ativando conteúdos conscientes e inconscientes. No tempo-instante da dança, os passos, os compassos, a melodia e as simbologias evocadas afrouxavam, por assim dizer, em termos da teoria junguiana, o pensamento (ou o lado consciente), e os efeitos do encontro com a criança interior (marcas da criança que foram e da criança mítica), mostravam-se como pontos de delicadeza prenhes de conteúdos marcados pelo acesso à função sentimento. Eis algumas notas sobre um outro encontro:

A roda iniciou com todo o grupo agitado, falante, disperso. Uma longa conversa foi tecida. Quando o grupo parecia ter desabafado tudo (inclusive suspirando: Ai! Tenho o TCC pra escrever!) propus a dança “Coração de Criança”. Com o canto e os gestos, o grupo harmonizou, entrou na roda e pareceu acolher o pedido e a invocação daquela criança: coração simples, aberto, sincero, fraterno. O grupo acalmou, começou a entrar em outra sintonia. Começou a focar no coração? Acho que sim. (...) Um grupo de alunas comentou espontaneamente após a dança: - É preciso se apaixonar pela dança, pela vida. -É! É a paixão que move. - É o coração que mexe!(Diário de campo). (OSTETTO, 2006, p. 117, grifos da autora).

O processo de dançar divisou uma linha tênue entre passado e presente, infância e adultez, dimensões pessoais e profissionais. Foram tantas e diversas as crianças reencontradas na memória, entre reminiscências de tempos idos, vividos com alegrias e tristezas. No entanto, uma criança continuou perdida... esquecida, quiçá. Esse lapso é justificado pela estudante: “Eu não consigo pensar na criança que fui; não tenho lembranças. (Diário de campo)” (OSTETTO, 2006, p. 139).

Pelas danças, conectando-se e se dando conta do que acontecia em seus corpos sensíveis, histórias foram acessadas na memória, um caminho de retorno foi acionado: elas olharam para si, falaram de relações familiares, de pais, de mães, de filhos, de tempos de amor e de acolhida, mas também de tempo de trabalho, de disciplina e de repressão; e falaram de perdas, de sofrimento, de abandono.

As condições infantis vividas pelas participantes, percebidas quando compartilharam memórias, reiteram a inexistência de uma infância universal, rodeada de pureza, de alegrias, de cuidados. De outra forma, além das marcas sociais e históricas que determinam diferentes infâncias, os aspectos simbólicos da criança, em seu conteúdo arquetípico, foram também lembrados: essa criança que nos habita, quando não abandonada, traz energia, convida a novos caminhos: renovação à vida; essa criança, sofrida ou acolhida, mas simbolicamente carregando a potência da transformação, reitera: viver é aventurar-se.

Os labirintos do sensível no encontro com o numinoso da infância

Meus olhos foram ao encontro dos dela: aquela pequena menina ‘selvagem’ dos cabelos de planta. No virar das páginas fui conhecendo um pouco sobre ela e compreendendo o seu jeito nada selvagem e muito natural de ser: sem limitações, sem pressões, sem ninguém para lhe dizer: “Não faça isto! Você não sabe! Pare!”. Buscando retratá-la, deixei a mão livre para fazer os contornos. Professora participante da pesquisa (SEIXAS, 2018, p. 123).

Na pesquisa que contemplou o “Estúdio do Sensível”, campo de experimentações de linguagens variadas, a criança interior emergiu em imagens, produções manuais e narrativas ao longo do processo. Em um dos encontros, foram disponibilizados fascículos da coleção “Gênios da Pintura”, que incluía breve biografia e seleção de obras de artistas renomados. Após folhear as imagens, cada uma foi incentivada a escolher a que tivesse gerado grande impacto (mesmo sem saber o porquê).

A partir da escolha, o convite era produzir um desenho livre. Uma das professoras foi capturada por “La Grevouillère”, de Claude Monet (1840-1926) e, a partir dele, desenhou um grande sol sobre o mar, com gaivotas e um barco em movimento. Na partilha, contou que foi transportada para a infância, para o infinito, para a amplitude, para o alargamento e sentiu muita saudade. Assim aconteceu com a docente que escolheu “O Derby de Epson”, de Théodore Géricault (1791-1824): a imagem a fez cavalgar no vento, feliz por correr nos campos, com cabelos soltos, o que foi representado em seu desenho. Quem cavalga é uma menina, que sorri, disse ela. Essas duas professoras resgataram sentimentos de alargamento dos horizontes, leveza e liberdade, que as remeteram à infância. Outra professora, antes de falar sobre sua escolha e desenho, mencionou a empatia que a atividade provocou em si mesma, na sua relação com as crianças. Sentiu-se no lugar delas, com dificuldade em conseguir expressar o que desejava. Não sabia o quê, nem como desenhar. Sua intenção estava aprisionada, ainda sem recursos e foi expressa em forma inacabada, em processo de desenvolvimento. Reconheceu, assim, a importância do espaço de exploração, da permissão para errar. Em sua produção, desenhou um palhaço, símbolo da incompletude, da errância, da leveza e da espontaneidade.

No encontro em que foi ofertado vasto acervo de literatura infantojuvenil para leitura em silêncio e posterior escolha de um título, quatro professoras foram capturadas por literaturas que dialogaram diretamente com imagens e potências da criança arquetípica: uma das professoras abraçou o livro Selvagem (HUGHES, 2015); outra escolheu Ana, Guto e o Gato Dançarino (KING, 2004); uma terceira optou por O coração e garrafa (JEFFERS, 2012); e outra, A força da palmeira (LÓPEZ, 2014).

No livro Selvagem, uma menina criada na selva por animais é encontrada e capturada por humanos. Eles tentam moldá-la aos novos padrões de educação, que geram sofrimento, pois são incompatíveis com sua natureza. Em Ana, Guto e o Gato dançarino, dois menestréis chegam a uma cidade e percebem que Ana tem mais talentos do que mostra no seu ofício de fazer botas marrons. Decidem ficar para ajudá-la, por meio da dança, a soltar suas potencialidades. Ela acaba por transformar-se em artista respeitada na cidade. Força da palmeira conta sobre uma jovem árvore que, oprimida por uma pedra, começa a crescer para baixo e a expandir suas raízes, o que contribui para um farto crescimento posterior. Em O coração e a garrafa, uma menina, diante da ausência, decide colocar o coração na garrafa para não sofrer. Com o tempo, percebe que, sem o seu coração, tudo ficou diferente e inviável. Decide, então, tirá-lo da garrafa, o que descobre que não é fácil. Quem sabe o caminho e a auxilia na solução é uma criança.

Nos encontros com a literatura, foi percebido um fio tênue que ligava as histórias escolhidas: a contenção da expressão da própria natureza. Dentre as personagens, Ana não produzia suas artes, uma mulher estava com o coração engarrafado, a palmeira crescia para baixo e a selvagem sofria com o processo de domesticação. A escassez de espaços para a autenticidade e o fluxo criativo foi evidenciada. A professora que escolheu o livro O coração e a garrafa reconheceu que a contenção, para proteger o coração, faz com que não se tenha acesso à criança interna, que é autêntica, alimentada por campos ampliados de percepção. O curioso foi observar que, ao longo dos encontros, essa mesma professora foi elaborando a importância em respeitar a liberdade de criação das crianças, sem guiá-las, sem controlá-las, sem corrigi-las. Contou que, a partir das experimentações e das reflexões dos encontros, passou a colocar-se mais no lugar delas e respeitar seus processos. Inclusive, a reconhecer as crianças como narradoras de mundos, como acesso ao que o embotamento não permite mais sentir nem enxergar, como registrado em seu caderno de ressonâncias:

O tempo passa e a gente nem vê. Quando vê, lá foi ele. Parar, pensar no nada, onde tudo está. E quando você percebe, já era para ter percebido, que não havia percebido. E o que tem valor realmente? Talvez aquilo que para o mundo não valha nada. O valor está no seu olhar. A criança sim consegue ver o que eu não vejo: a liberdade livre de juízos, a liberdade pura, o simples ser. (Professora participante da pesquisa). (SEIXAS, 2018, p. 135).

Reunindo essas narrativas, é possível perceber o quanto a diversidade de materialidades ofertadas e o tempo de partilha reflexiva diante dos atravessamentos contribuíram para o resgate de memórias de infância, em respeito à diversidade formativa de cada professora, com suas experiências, oportunidades e singularidades construídas ao longo da história de vida. A criança arquetípica precisa ser renovada periodicamente por meio de rituais. O formato do “Estúdio do Sensível” pareceu favorecer o acesso ao numinoso da infância, diante das sombras do cotidiano na escola e na formação docente. Há uma palavra brincante, criada por Guimarães Rosa, que bem traduz o fenômeno: “Pirlimpsiquice” (ROSA, 2001, p. 86), título de um conto de sua inspiradora obra, alargadora de horizontes por intermédio da linguagem. A criança interior é a seiva que percorre a árvore da vida, acessando e conectando profundidades e plenitudes, um caminho para a transformação.

Aprender a ensinar de mãos dadas às crianças arquetípicas e reais

No adulto está oculta uma criança, uma criança eterna, (...) que precisará de cuidado permanente, de atenção e de educação. Carl Gustav Jung (1998, p. 175).

Na Educação Infantil, a escuta da criança é um princípio, a escuta compreendida como metáfora para a percepção e o acolhimento dos seus modos próprios de ser e atuar no mundo (RINALDI, 2012). Em decorrência, será essencial para o professor ampliar a disponibilidade de escuta, refinar a sensibilidade que percebe e acolhe diferenças, singularidades, múltiplas linguagens das crianças. Contudo, se não reconhecemos e escutamos o outro que nos habita, como acolher o outro que habita fora de nós? Segundo Jung (1984, p. 89): “Na medida em que o indivíduo não reconhece o valor do outro, nega o direito de existir também ao ‘outro’ que está em si, e vice-versa. A capacidade de diálogo interior é um dos critérios básicos da objetividade”. O ofício de professor dá-se em relações e, portanto, o processo de formação docente precisa criar espaços-tempos que favoreçam a escuta, o contato com conteúdos inconscientes, como oportunidades de tecer autoconhecimento, de reconhecer e de exercitar alteridade. Como advertira Jung (1998, p.174): “Se alguém quer educar, que primeiro seja educado”.

Ainda que Jung tenha escrito e publicado pouca coisa sobre educação, algumas conferências que proferiu oferecem pistas preciosas para repensarmos as relações educação, criança, professor. No ano de 1924, em conferência pronunciada em Londres, ele destacou a sagacidade das crianças para facilmente perceber faltas e incapacidades particulares dos educadores. Decorre que cuidar do seu estado psíquico é primordial para o professor discernir o que deveria cobrar de si e o que poderia atribuir às crianças. Em suas palavras:

É fato notório que as crianças têm um instinto seguro para perceber as incapacidades pessoais do educador. Elas descobrem se algo é verdadeiro ou fingido, muito mais do que estamos dispostos a admitir. O pedagogo precisa, por isso, dar atenção especial ao seu próprio estado psíquico, a fim de estar apto a perceber onde está o erro, quando houver qualquer fracasso com as crianças que lhe são confiadas. Ele mesmo pode muitas vezes ser a causa inconsciente do mal. (JUNG, 1998, p. 125).

Na mesma conferência, reforçando a importância do conhecimento de si na atividade educacional, o referido autor relembrou o fato de que, em sua área, na psicoterapia, foi preciso reconhecer o papel ativo da personalidade do médico na cura do paciente. Ele disse que foi necessário “reconhecer que em última instância não é a ciência nem a técnica que tem efeito curativo, mas somente a personalidade; o mesmo acontece na educação: ela pressupõe a educação de si mesmo” (JUNG, 1998, p. 145, grifo do autor). E continua:

aquilo que atua não é o que o educador ensina mediante palavras, mas aquilo que ele verdadeiramente é. Todo o educador, no sentido mais amplo do termo, deveria propor-se sempre de novo a pergunta essencial: se ele procura realizar em si mesmo e em sua vida, do modo melhor possível e de acordo com sua consciência, tudo aquilo que ensina. (JUNG, 1998, p. 145, grifo do autor).

Em 1932, em Viena, o analista pondera que a necessidade de educação do educador é contínua, e que uma falha do sistema educacional está no fato de olhar apenas a criança, movendo-se em torno de seus problemas, quando deveria considerar também “as carências de educação no educador adulto” (JUNG, 1998, p. 174). Ele propõe um eixo arguto para a reflexão: “Tudo aquilo que quisermos mudar nas crianças, devemos primeiro examinar se não é algo que é melhor mudar em nós mesmos” (JUNG, 1998, p. 176).

As ponderações junguianas levam-nos a compreender que uma proposta de formação não pode desconsiderar as relações entre educação e processos inconscientes, exigindo que sejam contemplados não apenas conhecimentos do mundo objetivo, nomeadamente da ciência, pautados na racionalidade do pensamento dirigido. A educação é processo contínuo, o conhecimento e a consciência de si podem expandir-se sempre mais, e justo nessa direção é fundamental valorizar, na jornada de formação docente, processos de autoconhecimento, nos quais a atenção esteja voltada ao estado psíquico do professor, vale dizer, em termos junguianos, à sua alma.

A necessidade de considerar, nos processos de formação, a história dos professores e a ideia de que a formação é “autoformação”, pressupondo “autoconhecimento”, vem sendo apontada por diversos campos de conhecimento. As pesquisas que desenvolvemos colocam o “encontro com a criança interior” em diálogo com as “histórias de vida e formação”, pelas vias das narrativas autobiográficas (JOSSO, 2004, entre outros). No caso de nossas pesquisas, destacamos que privilegiamos múltiplas linguagens, além da verbal-escrita e os conteúdos que emergiram revelaram a imensa carga afetiva que envolve o motivo da criança e sinalizaram conteúdos afetivos, complexos, que talvez não chegassem à visibilidade pelo principal instrumento da consciência, a palavra. Até ser pronunciada a palavra, houve o corpo em movimento, o contato com materialidades expressivas, o fazer à mão, que possibilitaram a irrupção de imagens arquetípicas - tipos de imagens que só veem à luz no limiar do relaxamento da consciência, com o abaissement du niveau mental, em termos junguianos. Um estado em que se observa “um afrouxamento desinibido de restrições psíquicas; intensidade reduzida da consciência, caracterizada pela ausência de concentração e atenção” (SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988, p. 17), que conteúdos inesperados, essencialmente imagéticos, poderão emergir. Vivificando o símbolo trazido pela criança: a renovação, a criação, a transformação, o professor poderiam expandir consciência e sentidos. E o que é tornar-se professor, se não (re)fazer caminhos variados, fazer travessias, transformar-se?

Biblioterapia, Arteterapia, Danças circulares, Escrita criativa, dispositivos utilizados nas pesquisas aqui referidas, ao contribuírem para a ativação de reminiscências de uma criança habitada, abriram canais para cada professora, em seus limites e suas possibilidades, olhar para si, para seu processo criativo, para seu fluxo imaginativo. Franquearam a passagem para conexões estéticas: inspirando e absorvendo o mundo pelas vias dos sentidos, conduzindo o mundo para dentro, ações que estão na raiz da palavra grega estética, aisthesis, como apontara Hillman (2010a).

As práticas oportunizadas pelo contato com linguagens e materialidades expressivas, que passam pela artesania, solicitando entrega, de corpo inteiro, mostraram-se campo fértil para o exercício da dimensão estética docente, possibilitando experiências que, tal qual a preparação de um solo árido, deslocaram a fixidez da função pensamento para o reanimar da função sentimento. Re-animar, iluminar, trazer à alma, no sentido apontado por Hillman (1984, p. 183), “um sentido primitivo e substancial de alma como poder de vida”.

Mais do que definir, classificar, conceituar o vivido, as vias estéticas acessadas permitiram visibilizar e acolher outras lógicas e convidaram à imaginação, via régia para a prática pedagógica na Educação Infantil que se pretenda dialógica, inclusiva, criativa. O cultivo de outras lógicas, a alimentação do imaginário e das disposições expressivas adultas, viabiliza diálogos mais acolhedores e significativos com as lógicas infantis, que são tecidas de múltiplas linguagens, sem fronteiras. Uma nova qualidade relacional, baseada no respeito às dimensões imaginativa, brincante e descobridora, que, por certo, engendram universos adultos e infantis, pode ser ancorada na inseparabilidade da razão e da sensibilidade, da cognição e do afeto, no ritmo sonhado pelo poeta:

Na roda do mundo, Mãos dadas aos homens, lá vai o menino rodando e cantando cantigas que façam o mundo mais manso, cantigas que façam a vida mais doce cantigas que façam os homens mais crianças. (MELLO, 1983, p. 81).

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1 As duas pesquisas que dão base ao presente artigo receberam financiamento do CNPq.

2Programa Roda Viva, TV Cultura, apresentado em 5 de novembro de 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6v3buePuzbU. Acesso em: 27 jan. 2020.

Recebido: 07 de Janeiro de 2019; Aceito: 09 de Janeiro de 2019; Publicado: 05 de Maio de 2021

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