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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 17-Oct-2023

https://doi.org/10.5902/1984644442847 

Artigo Demanda Contínua

O ensino de História e a Educação Especial na formação inicial de professores

History teaching and Special Education in initial teacher training

Douglas Christian Ferrari1  , Professor Doutor
http://orcid.org/0000-0003-2761-0477

Miriã Lúcia Luiz2  , Professora Doutora
http://orcid.org/0000-0001-6825-1541

1Professor Doutor na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil. dochris.ferrari@gmail.com

2Professora Doutora na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil. mirialuiz@gmail.com


RESUMO

O artigo tematiza o ensino de História e a Educação Especial, considerando desafios de grupos historicamente excluídos dos processos de escolarização e que, mesmo após inserção nas escolas, sofrem a negação das condições elementares de acesso, permanência e do direito às aprendizagens em História. Parte dos pressupostos da Teoria Histórico-cultural, notadamente do pensamento de Vygotski (1989; 1994; 1997), para problematizar a produção social da deficiência e noções fundamentais para pensar os processos de desenvolvimento e de aprendizagem. Ademais, compõe o escopo do texto uma abordagem a respeito do ensino de História e a elaboração dos conceitos considerados fundamentais para as aprendizagens históricas (BITTENCOURT, 2009; SCHIMDT, 1999). Há ainda muitas lacunas e fragilidades que distanciam o estudante com deficiência dos saberes escolares e acadêmicos, e tais aspectos passam pelas políticas públicas, formação docente, infraestrutura das instituições e dos espaços educativos, em geral. As alternativas aqui apontadas sinalizam ações promovidas em direção a um ensino de história menos excludente e mais sensível aos diferentes percursos de aprendizagens.

Palavras-chave: Educação Especial; Ensino de História; Teoria Histórico-cultural

ABSTRACT

The paper focuses on the teaching of History and Special Education, considering the challenges of historically excluded groups from schooling processes and who, even after their insertion in schools, suffer the denial of elementary conditions of access, permanence and the right to learn in History. The study starts from the assumptions of the Historical-Cultural Theory, notably from Vigotski's thought (1989; 1994; 1997) to problematize the social production of disability and fundamental notions to think about the development and learning processes. Also, it comprises the scope of the text, an approach regarding the Teaching of History and the elaboration of concepts considered fundamental for historical learning (BITTENCOURT, 2009; SCHIMDT, 1999). There are still many gaps and weaknesses that distance students with disabilities from school and academic knowledge, and these aspects include public policies, teacher training, infrastructure of institutions, and educational spaces in general. The alternatives mentioned here signal actions promoted towards a less exclusive history teaching and more sensitive to different learning paths.

Keywords: Special education; History teaching; Historical-cultural theory

Introdução

No filme “Los colores de las flores”, produzido pela Organização de Cegos da Espanha (ONCE), o personagem principal é uma criança cega que, junto com a turma, recebe a tarefa de escrever uma redação sobre as cores das flores. Após o espanto, mas com o desejo do desafio a ser cumprido, busca informações, pesquisa na internet, fraqueja ao conversar com a supervisora escolar, ouve, ao dormir, a história de pássaros contada por sua mãe e recebe ajuda dos colegas. Em outro momento, vive uma experiência no jardim, onde faz a relação entre o que foi pedido pela professora, as cores das flores, e a história contada por sua mãe e os pássaros. No dia marcado para apresentação, ele apresenta a redação em Braille junto com os outros colegas sem deficiência, que leem em tinta.

Ao misturar o real e a ficção, a narrativa fílmica apresenta a possibilidade do ensino de História em uma sala de aula no qual está presente um aluno com deficiência. Com base nesse breve relato, apontamos as experiências dos autores durante as disciplinas na área de ensino História, especialmente em Estágio Supervisionado em História, para o curso de História, e História: Conteúdo e Metodologia, para o curso de Pedagogia, na Universidade Federal do Espírito Santo.

As questões relacionadas ao acesso e à permanência da pessoa com deficiência e o ensino de História ganham um novo viés após a entrada, no ambiente escolar e acadêmico, dos grupos subalternos, historicamente esquecidos - notadamente mulheres, homossexuais, índios, negros e pessoas com deficiência, sendo esse último grupo focalizado neste texto. Destacamos que o acesso garantido de pessoas com deficiências aos ambientes escolares tem levantado questões sobre a aprendizagem. A questão presente é: elas estão aprendendo? A partir dessa questão, autores vêm se debruçando em pesquisas e na escrita de artigos sobre o tema (MELO; MAFEZONI, 2019) e, a partir da teoria histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, esses autores trabalharam os vetores das políticas públicas e das práticas pedagógicas, ressaltando que é necessário iniciar uma nova fase na educação especial brasileira, que se traduza no direito de aprender em sala de aula, o que exige um novo fazer pedagógico com esses alunos, que têm potencialidades e podem se beneficiar do processo de escolarização.

A legislação brasileira educacional é bastante incisiva quanto ao direito dos estudantes em terem acesso à escola, haja vista que, após a ditadura militar e a redemocratização do ensino, a nova Constituição Federal de 1988 prevê no artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Diante deste contexto, é importante ressaltar que por um longo tempo, destacadamente desde a constituição de 1988, lutamos pela garantia de matrícula e de acesso à educação a esse público, até o ano de 2015, momento da criação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que impede a negação de matrícula a esse público.

No sentido da garantia da permanência, a diversidade do ser humano presente na escola se mostra porque ele é um ser carente e incompleto (não tem em si mesmo aquilo que garante a sua humanidade), e, por isso mesmo, gregário (DELLA FONTE, 2012); constitui-se na relação com os outros e com a natureza. Mas a diversidade humana também ocorre porque, ao mesmo tempo, o ser é único e universal (DELLA FONTE, 2012). Na verdade, há uma relação de conflito e complementaridade na relação com o outro, uma vez que existe a contradição não-antagônica, ou seja, “(...) aquela na qual a existência do conflito faz desenvolver todos os envolvidos” (DELLA FONTE, 2012, p. 14). As relações não-antagônicas do ser humano constituem-se impulso de desenvolvimento e aprendizagens, pois precisamos, conforme salienta Della Fonte (2012), entrar na luta para que o diverso não se transforme em antagônico.

Nesse ponto, pensamos sobre o ensino de História, vinculado com a memória, por esta se constituir em uma fonte de conhecimento que auxilia a história; por consequência, esse saber contribui para que o ser humano construa e reconstrua a memória, tanto no sentido individual, como coletivo (MONTEIRO, 2016). O ensino de história, portanto, é um lugar de memória, tal qual exposto por Monteiro (2016, p. 3), “(...) na perspectiva que possibilitarelacionar o vivido (memórias espontâneas) com o ensinado/aprendido, reversaberes e compreensões que os tornam próprios e particulares, plenos de umsaber do mundo na construção de conhecimentos de uso cotidiano, dememórias”. Com a entrada de pessoas com deficiência nas escolas, novas memórias começam a aparecer, isso porque ao chegarem à escola, os estudantes são portadores de “(...) saberes, referências construídas nos grupos familiares que cultivam suas memórias” (MONTEIRO, 2016, p. 12) e, não seria diferente no caso da pessoa com deficiência.

Concordamos com Monteiro (2016) ao defender o ensino de História como um lugar onde potencialmente as memórias se entrecruzam, dialogam, entram em conflito. Também como um “lugar de fronteira”, que possibilita o diálogo entre memórias e “história conhecimento escolar”, com o aprofundamento, ampliação, crítica e reelaboração para sua apropriação no cotidiano. É nesse sentido que entendemos como profícua a incorporação das memórias da pessoa com deficiência no contexto educativo e nas aulas de História, pois se trata de exclusões históricas, tendo em vista duas questões inegáveis: a) a exclusão e interdição do acesso da pessoa com deficiência ao sistema escolar e; b) ao longo da trajetória do ensino de História no Brasil se privilegiou as memórias relativas a poderes e tradições instituídas ou a instituir, tornando a disciplina História um importante instrumento de legitimação e perpetuação dessas memórias, que se distanciam dos contextos de vida de cada sujeito (LAVILLE apud MONTEIRO, 2016).

Por isso, é preciso pensar em uma aula que garanta a permanência desse aluno, ou seja, o direito ao currículo e, portanto, à aprendizagem. Desse modo, nesse texto, apresentamos algumas possibilidades construídas ao longo de nossa trajetória como professores atuantes nas disciplinas da área de História na universidade onde atuamos. Para nos ajudar a pensar esse processo, nos baseamos na teoria histórico-cultural de Vigotski, para entender que a criança com deficiência pode alcançar o mesmo desenvolvimento que a sem deficiência, porém de distinto modo, com outros meios, por outro caminho, indireto, alternativo (VYGOTSKI, 1997).

Teoria Histórico-Cultural de Vigotiski

Por meio do estudo da corrente da psicologia soviética denominada histórico-cultural, embasada nos princípios do materialismo histórico dialético, Vigotskicontribui para o campo da educação especial, uma vez que discute as características do psiquismo humano, indicando subsídios para novos olhares acerca do processo de desenvolvimento e aprendizagem da pessoa com deficiência1.

Nos termos do autor, associada a uma deficiência primária está a deficiência secundária, englobando as consequências psicossociais da limitação orgânica. A deficiência primária é de origem biológica e se relaciona a lesões cerebrais, orgânicas, malformações orgânicas, alterações cromossômicas, ou seja, as características que normalmente são consideradas como causas da deficiência e que interferem no processo de desenvolvimento do sujeito. Os aspectos secundários são construídos nas relações sociais e resultam das dificuldades derivadas pela deficiência primária, mesmo não estando diretamente ligados. Assim, todo o trabalho deve ser no sentido de evitar que o “defeito” de ordem primária se constitua em um “defeito”2 de ordem secundária. O que normalmente temos presenciado é que a deficiência primária na maioria das vezes converte-se na deficiência secundária.

Em uma passagem no Tomo V - Fundamentos da Defectologia(1997), Vygotski, ao se referir às pessoas com deficiência e ao trabalho da escola e do professor, diz que tanto um quanto o outroconsiste em: “(...) não em adaptar-se ao defeito, mas em vencê-lo”3(VYGOTSKI, 1997, p. 28). Para tanto, segundo Victor (2010), a defectologiadeve investigar os processos envolvidos no desenvolvimento e no comportamento humano, “(...) pois o que interessa não é a deficiência em si, mas as suas consequências observadas no indivíduo” (VICTOR, 2010, p. 61).

Através dos estudos da psicologia histórico-cultural tem-se que a deficiência não se caracteriza somente pelo caráter biológico, mas principalmente pelo caráter social. Os processos psicológicos têm sua natureza situada no âmbito das relações culturais, socialmente mediadas. Portanto, considera o ser humano como essencialmente social e histórico, o qual, nas relações com os outros, em uma atividade intermediada pela linguagem, como também por outros instrumentos, constitui-se como sujeito concreto e real.

A Teoria Histórico-Cultural tem suas bases assentadas na ideia de compensação social. Segundo seu principal defensor, Lev Vygotski (1997, p. 75), “(...) não se pode falar sobre nenhuma substituição dos órgãos dos sentidos”. Isso quer dizer que a compensação pela perda da visão, por exemplo, não se dá

(...) no sentido de que outros (sentidos) assumam diretamente as funções fisiológicas da visão, senão no sentido da reorganização complexa de toda atividade psíquica, provocada pela alteração da função mais importante, e dirigida por meio da associação, da memória e da atenção à criação e formação de um novo tipo de equilíbrio do organismo para mudança do órgão afetado. (VIGOTSKI, 1997, p. 76)

Dessa forma, a deficiência cria novas forças, “(...) altera as direções normais das funções” (VYGOTSKI, 1997, p. 73) e, por isso, não pode ser vista somente como um defeito, mas também como uma fonte de capacidades, novas possibilidades. Como assevera o autor: “(...) uma força (por estranho e paradoxal que seja!)” (VYGOTSKI, idem). Assim, a forma como a família, a escola e os amigos se relacionam com a pessoa com deficiência, o contexto sócio-econômico-cultural e as condições de socialização são fundamentais para o sucesso desse processo de superação. Nessa perspectiva, a pessoa com deficiência busca encontrar respostas para os problemas impostos por causa da deficiência, a fim de transformar a sua realidade, superando-os.

Para o teórico russo, conforme apreende Caiado (2003, p. 39), “(...) a aprendizagem humana se dá com base na convivência social, na apropriação das atividades historicamente engendradas pelos homens, pela internalização dos significados sociais”. Daí que a apropriação de conceitos se efetiva pela linguagem, pela mediação dos signos e pela comunicação com o outro, com vistas ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, entre as quais se situa a memória mediada, atenção voluntária, concentração, imaginação, a percepção, entre outras. Assim, o conhecimento não é apenas produto dos órgãos sensoriais, mas resulta de um processo de apropriação pela via das relações sociais (NUERNBERG, 2008).

Nesse ponto, destaca-se o conceito de zona de desenvolvimento iminente (VYGOTSKI, 1997). Há uma diferença e uma mudança entre o desenvolvimento real e o desenvolvimento potencial. Essa é a Zona de Desenvolvimento Imanente. É nessa zona de desenvolvimento que o “(...) professor tem a tarefa de intervir, proporcionando experiências qualitativamente significativas e que possibilitem à criança, através da sua própria atividade, a superação de níveis menos elevados de desenvolvimento” (SCALCON, 2002, p. 117). E é nessa zona de desenvolvimento que devemos trabalhar com o aluno, por meio dos seus canais de recepção e não a partir dos nossos, a fim de proporcionar uma aprendizagem significativa.

Por isso, entendemos que a educação de pessoas com deficiência deve ser a mesma que aquela destinada às pessoas sem deficiência e não segregada em escolas especiais. A única diferença seria o oferecimento de técnicas, instrumentos e métodos didático-pedagógicos distintos para a educação de todos os alunos. A teoria Histórico-Cultural, quando se preocupa com a supercompensação social, a mediação, a zona de desenvolvimento imanente e, em especial, as funções psicológicas superiores, tem seu foco, como preconizado por Saviani (2011), na apropriação/socialização do conhecimento historicamente sistematizado.

Nessa esteira, a partir de Vygotski (1997), a tecnologia assistiva pode ser um importante caminho de mediação para alcançar a supercompensação social, a depender da quantidade e qualidade dos estímulos externos e das interações sociais. Dessa forma, a tecnologia assistiva amplia, como instrumento mediador, as possibilidades para o aprendizado e a troca na relação aluno-professor-aluno, lembrando que, para Vygotski (1997), é a possibilidade de relacionar-se que impulsiona o desenvolvimento do homem.

Por meio da mediação do outro, o ser humano atribui sentido ao seu redor. Dessa forma, vai desenvolvendo internamente as funções psicológicas superiores, atribuindo significado intrapsíquico, a partir dos significados construídos nas relações sociais interpsíquicas (VYGOTSKI, 1989; 1994), fundamentais para tal mediação, segundo Vygotski (1994), entre os signos e os instrumentos. Vaz et al. (2012, p. 89), relatam que:

O uso de recursos didáticos é fundamental na apropriação de conceitos, sendo que, ao se tratar de alunos com deficiência visual, estes recursos precisam estar adaptados às suas necessidades perceptuais. Desta forma, o professor, com o uso de recursos específicos, precisa elaborarestratégias pedagógicas para favorecer o desenvolvimento da criança com deficiência visual e que, assim como crianças de visão normal, ela possa obter sucesso escolar, sendo este um dos desafios da inclusão.

A educação tem a função, por meio da mediação, de fazer a pessoa com deficiência alcançar a supercompensação social por meio do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, que envolve a integração dos aspectos biológicos e sociais no indivíduo, entre eles, a memória, atenção e lembrança voluntária, imaginação, estabelecer relações, elaboração conceitual, uso da linguagem, raciocínio dedutivo e pensamento abstrato.

Ensino de História e a elaboração de conceitos

Historiadores e professores de História, no exercício de seu ofício, frequentemente se deparam com a elaboração e explicação de conceitos indispensáveis para a compreensão do campo epistemológico da História. Para o professor, o desafio nos parece ainda maior, pois envolve a necessidade de domínio da natureza específica do conhecimento histórico, além da criação de situações favoráveis para introduzir e encaminhar os processos de aprendizagem para estudantes de diferentes idades, condições socioculturais (BITTENCOURT, 2009) e, particularmente, no caso deste artigo, para as pessoas com deficiência.

Consideramos pertinente, portanto, lançar alguns questionamentos a respeito das apropriações desta perspectiva teórica para as práticas do ensino de História: Como os pressupostos da Teoria Histórico-crítica podem contribuir para os processos de aprendizagem da História? A elaboração dos conceitos pela via do pensamento vigotiskiano pode ser facilitada? Como o pensamento de Vigotiski a respeito da elaboração de conceitos pode auxiliar professores e professoras de História a possibilitar a elaboração de conceitos históricos pelos estudantes com deficiência?

Bittencourt (2009), na obra Ensino de História:fundamentos e métodos, trata de pressupostos teóricos sobre a elaboração de conceitos sociais e, ao diferenciar as perspectivas de Piaget4 e Vigotski, aponta alguns caminhos possíveis para problematizarmos as questões anteriormente explicitadas. Para Vigotski, há uma interação muito próxima entre os conceitos espontâneo e científico, pois o primeiro, em sua ótica, não desaparece com a apreensão do segundo; ocorrem, pelo contrário, modificações de esquemas intelectuais anteriormente adquiridos (BITTENCOURT, 2009). No tocante ao conhecimento histórico, as experiências vividas pelos estudantes, jovens e crianças, e as apreensões da História apresentadas pela mídia, como cinema, televisão, e em seu cotidiano, não podem ser negligenciadas, pois se faz necessário o “(...) reencontro da ciência com o senso comum, para que seja possível compreender melhor o mundo e seus problemas étnicos, sexuais, religiosos, as diferentes formas de relações desiguais, dentre outros” (BITTENCOURT, 2009, p. 191).

Na elaboração dos conceitos, Vigotski considera fundamentais as dimensões historicamente criadas e culturalmente elaboradas no processo de desenvolvimento das funções humanas superiores, com destaque para a capacidade de expressar e compartilhar com os outros membros do grupo social a que pertencem todas as suas experiências e emoções (BITTENCOURT, 2009).

Ao buscar que os estudantes se apropriem de um vocabulário próprio da História, por exemplo, há de se considerar que eles já possuem um arcabouço vocabular construído a partir de sua própria história de interações sociais. Esses domínios por parte dos estudantes devem ser pontos de partida para a apropriação dos termos e expressões usualmente adotadas pela área (SCHMIDT, 1999). Isso nos permite pensar os percursos de aprendizagens pelos quais os estudantes passarão, considerando que “(...) a tomada de consciência vem pelas portas dos conceitos científicos” (VIGOTSKI, 2001, p. 214 apud SANTOS, 2013). Portanto, a Teoria Histórico-crítica, articulada à pedagogia histórico-crítica, entende que sem o aprendizado do pensamento em conceitos se torna impossível ampliar as máximas possibilidades de conscientização, seja ela política, estética ou ética (SANTOS, 2013). Ganha centralidade em nossa abordagem, portanto, a elaboração de conceitos para o ensino de História.

Ao problematizar a elaboração de conceitos históricos, Schimdt (1999) os toma como ferramenta para análise da realidade social. Para a autora, “(...) aprender conceitos não significa acumular definições ou conhecimentos formais” (p. 149), mas trata-se de construir um repertório que propicie ao aluno interpretar e explicar a realidade social. Nesse caminho, ganha relevância o papel da linguagem.

Para Vigotski, é por meio da linguagem, sistema simbólico por excelência, que se torna possível a mediação entre sujeitos e objeto do conhecimento. Nessa compreensão, é o atributo humano que favorece os processos básicos da constituição dos conceitos de abstração e generalização. Para o autor, “(...) pela comunicação social o ser humano pode progressivamente chegar ao desenvolvimento dos conceitos, que para ele significa o entendimento das palavras” (BITTENCOURT, 2009, p. 187, grifo da autora).

Nessa direção, Sarmento (2006), ao dialogar com Oliveira (1992; 1993), alerta para a dimensão do significado da palavra - sem ele a palavra se torna vazia, pois tais significados são construções históricas e, como tais, são dinâmicos e podem sofrer transformações no decorrer de um determinado tempo e contexto. Isso nos leva a problematizar a elaboração e apreensão dos conceitos, pois, como adverte Schmidt (1999, p. 149), “(...) aprender conceitos não significa acumular definições ou conhecimentos formais, mas construir uma grade que auxilie o aluno na sua interpretação e explicação da realidade social”. No ensino de História, portanto, essa elaboração de grades conceituais pelos alunos pode contribuir para a leitura do mundo em que vivem.

Elaborar conceitos a partir das interações entre os conhecimentos prévios dos estudantes e os provenientes da História como campo disciplinar é o desafio a que nos propomos cotidianamente. Pensar essa construção em sua dimensão histórica é, portanto, intrínseco ao nosso exercício como professores e professoras de História. As perguntas que nos motivam e inquietam, portanto, situam-se nas possibilidades de facilitar a elaboração de conceitos históricos pelos estudantes com deficiência. Somamo-nos a Schmidt (1999) e interrogamos: quais conceitos devem ser privilegiados no ensino de História? E acrescentamos: Quais caminhos metodológicos são promissores para ensinar História aos estudantes com deficiência? É o que buscamos apontar neste texto.

Educação Especial e o ensino de História

As alternativas para o ensino de História, no sentido de facilitar a elaboração de conceitos pelos estudantes com deficiência a partir de experiências vivenciadas no contexto dos cursos de Graduação de História e Pedagogia, tiveram como fio condutor os processos de ensino e de aprendizagem da História. Essa seção segue organizada em dois tópicos: Projetos de ensino no Estágio Supervisionado em História e Experiências na Pedagogia com a disciplina História: Conteúdo e Metodologia.

Projetos de ensino no Estágio Supervisionado em História

No Estágio Supervisionado em História, trabalhamos com o projeto de ensino com intervenção na realidade escolar, na disciplina de História ou em diálogo com outras disciplinas. O projeto estava dividido em cinco partes, e podia ser realizado em grupo ou individualmente:

  • 1º Momento: Apresentação da disciplina, identificação das escolas-campo de estágio, seleção dos temas para os projetos de ensino, e discussão do que é ser professor e a relação professor/aluno.

  • 2º Momento: Visitação às escolas-campo e elaboração dos projetos de ensino.

  • 3º Momento: Desenvolvimento dos projetos de ensino nas escolas-campo.

  • 4º Momento: Apresentação dos projetos de ensino (seminários 1).

  • 5º Momento: Apresentação do desenvolvimento dos projetos de ensino (seminários 2). (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2018, p. 2)

O trabalho final se constituía em registros de observação, na ação desenvolvida e na descrição-análise da execução, contendo, nomínimo:

  • Descrição do contexto da escola;

  • Contexto da escola e da turma;

  • Porque escolheu o tema;

  • Apresentação do tema;

  • Como ele foi desenvolvido ou poderia ser desenvolvido;

  • Qual foi ou poderia ser a repercussão;

  • Considerações finais. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2018, p. 4-5)

Com essa metodologia, podemos observar o aumento da participação dos alunos no campo de estágio, o envolvimento deles na negociação do que seria trabalhado naquele semestre durante o estágio, o envolvimento também da escola-campo, além de ter a oportunidade de voltar à aula teórica5 do estágio para apresentar aos colegas e, caso necessário, redefinir estratégias. Ao final, todos puderam apresentar o trabalho realizado, com grande ânimo dos professores, quando se viram protagonistas de sua própria ação pedagógica (ARROYO, 2012).

Não obstante, algumas resistências com escolas ou professores que não estavam acostumados com essa metodologia foram observadas. Mesmo assim, os alunos estagiários se viram na condição de ter que negociar com o corpo docente e a equipe pedagógica para a aplicação do projeto, situação comum que vivenciariam como futuros professores.

Desses projetos, selecionamos dois que chamaram a atenção pela qualidade da proposta, pelo envolvimento da escola e por atender ao objetivo desse texto: traçar uma relação entre o ensino de História e a Educação Especial.

No primeiro projeto, o aluno propôs à escola, que oferecia a modalidade da Educação de Jovens e Adultos no turno noturno, trabalhar a História para alunos surdos. O projeto se intitulou “As histórias em quadrinhos como apoio didático-pedagógico ao ensino de História para os alunos surdos”. Segundo a justificativa do projeto,

(...) quando falamos do ensino de História para alunos com deficiência auditiva, precisamos (re)contextualizar para que esse aluno possa construir o seu conhecimento através de experiências multissensoriais, nas quais os outros sentidos sejam utilizados. (J. L. A., 2018, p. 1)6

Utilizando-se da história em quadrinhos como experiência visual, o aluno trabalhou a construção de conceitos, recontextualizando aqueles conteúdos trabalhados pelos professores, porém não atingia os alunos surdos que frequentavam a turma. Nas palavras do aluno, a utilização da história em quadrinhos mostrou-se como instrumento didático,

Por ser visualmente descritiva, universal e servir como esquema de leitura (oferecendo) ao aluno e ao intérprete de Libras elementos propícios ao processo de ensino e aprendizagem escolar da disciplina de História e assim, superar as dificuldades existentes de comunicação, entendimento da disciplina e no desenvolvimento sociocultural. (J. L. A., 2018, p. 11)

Para tanto, foram selecionados conteúdos com os quais o professor estava trabalhando naquela turma e que estivessem presentes em exemplares das histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, como Independência do Brasil, Proclamação da República e descobrimento da América. Ao final do semestre e ao término do estágio na escola, o aluno considerou que “(...) o mesmo material didático também seria utilizado pelos demais alunos ouvintes que, por vezes, apresentam as mesmas dificuldades de aprendizagem que os alunos surdos” (J. L. A., 2018, p. 11); o aluno compreendeu a realidade dos alunos com deficiência e teve despertada a vontade de produzir um material didático pedagógico para esses alunos que frequentam a educação de alunos jovens e adultos. Essa proposta aponta para uma prática diferenciada no ensino de História, com a utilização de documentos e diferentes linguagens, o que garante a esse ensino um potencial para a aquisição, construção e utilização dos conceitos históricos pelos alunos (SCHMIDT, 1999).

No segundo projeto, duas alunas aproveitaram que o professor estava construindo um livro com os alunos do 8º e 9º anos sobre a história do bairro onde a escola se localizava e perceberam que o livro não possuía descrição das imagens para alunos com deficiência visual.

O livro constituía-se em uma pesquisa histórica realizada pelo professor sobre a história de Jacaraípe,7 desde a colonização do Brasil, com foco nas memórias dos moradores do bairro e com figuras locais sobre a região, por meio da história oral. Os alunos, participantes da construção do livro, estavam encarregados de confeccionar ilustrações para esse conteúdo.

(O projeto de ensino) pretendeu desenvolver uma tradução visual em forma de legendas a serem feitas entre os alunos especiais juntamente com os alunos já participantes do projeto para os desenhos já confeccionados, em parceria com a equipe técnica da escola, para que o conteúdo do livro se torne acessível. (N. B. F.; W. X. P. F, 2018, p. 3)

O projeto de ensino intitulado “Jacaraípe, um lugar de todos” reuniu um grupo de 12 alunos da escola para descrever 177 desenhos que retratavam os períodos históricos da região, os marcos de sua paisagem e desenhos da própria escola. O projeto foi dividido em três momentos: 1) palestra com os 12 alunos artistas sobre as diretrizes da tradução visual e suas notações gráficas; 2) palestra do professor da turma aos alunos com deficiência sobre o tema do livro e; 3) oficina com os dois grupos de alunos e com técnicos de educação especial para a confecção das legendas.

Ao final do projeto, que teve continuidade após o final do semestre e o término do estágio, as estudantes elaboradoras consideraram que a descrição da imagem pode auxiliar pessoas com outros tipos de deficiências além da visual, como disléxicos e pessoas com deficiência intelectual, além de promover a participação e integração entre os pares. Além da dimensão procedimental da proposta - fundamental por permitir o acesso de todos os estudantes às imagens do material produzido -, destacamos as possibilidades do trabalho com as memórias dos estudantes e moradores do bairro. Essa abordagem, construída em perspectiva crítica, permite assumir as memórias espontâneas dos estudantes como objeto de estudo e de possibilidades de recriação. Com isso, propostas como essa, que buscam dialogar história e memória, assumem-se como lugar de reflexão crítica, de revisão de usos do passado, no qual a história é o conhecimento deflagrador de abordagens, análises, reflexões e novas compreensões (MONTEIRO, 2016).

Experiências na Pedagogia com a disciplina História: conteúdo e metodologia

A disciplina História: Conteúdo e Metodologia a que nos referimos neste tópico compõe o currículo do Curso de Licenciatura em Pedagogia, com carga horária de 75h.8 Em sua ementa, prevê que se contemplem:

Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de História na infância. Diferentes concepções de História e sua importância para o ensino. O surgimento da História como disciplina escolar. Propostas curriculares de História. O livro didático de História. Recursos auxiliares do ensino de História: planejamento e execução de atividades. A História Local e a História oral. Estudos críticos dos conteúdos de História. Memória, patrimônio, noções de tempo e duração. Relação com outras áreas do conhecimento. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO, 2019, p.1)

Como podemos observar, a ementa abre amplas possibilidades para um trabalho com múltiplas linguagens, fontes e abordagens. Em edições anteriores desta disciplina (2016/1; 2018/1; 2018/2), as atividades propostas pautavam-se em reflexões teóricas, aulas de campo e elaboração de projetos, planos de ensino e materiais didáticos para o ensino de História. Porém, na oferta 2019/2 a turma, composta por 25 estudantes9, contou com uma aluna cega, o que nos desafiou sobremaneira e nos possibilitou uma reflexão constante de nosso exercício docente a respeito dos modos de possibilitar o acesso ao conhecimento histórico a todos os estudantes.

Como parte do programa, além do suporte oferecido pelo Núcleo de Acessibilidade (NAUFES)10 para acesso aos textos e materiais de leitura da disciplina, apresentamos atividades que contemplassem diferentes linguagens e recursos. Duas dessas alternativas pedagógicas serão detalhadas a seguir: a) Representações acerca da temporalidade histórica; e b) O jogo da colheita Awalé e o ensino de História.

Organizamos o programa da disciplina em 4 unidades: I - Introdução aos estudos históricos: A prática historiográfica e o trabalho com as fontes; II - O uso de documentos/fontes no ensino de História: Lugares de memória: Arquivos, Bibliotecas, Museus e outros; Memória e Patrimônio; III - Conceitos temporaise IV - O livro didático como objeto de estudo. Ao trabalharmos a 3ª unidade, elencamos os tópicos Diferentes temporalidades na História permanências e mudanças, tempo histórico e Conceitos temporais: Duração, sucessão e simultaneidade; Diferentes temporalidades na História permanências e mudanças, tempo histórico, Conceitos temporais: Duração, sucessão e simultaneidade para discussão, com base no texto A temporalidade histórica como categoria central do pensamento histórico: desafios para o ensino e a aprendizagem, de Lana Mara Castro Siman (2005). Ainda que tenha se situado na unidade 3 do programa, o tempo, matéria-prima da História (LE GOFF, 2003), permeou as discussões das aulas desde a primeira unidade, como por exemplo, por meio da leitura e reflexões da obra: Apologia da História, de Marc Bloch (2001) e do texto A memória evanescente, de Karnal e Tatsch (2013).

Para a realização de uma atividade que permitisse que cada estudante representasse o tempo histórico, pautamo-nos na pesquisa de Malverdes (2017) intitulada Fotografia e ensino: uso e aplicação da fotografia no processo de aprendizagem no ensino de história e educação patrimonial, que objetivou “(...) estabelecer um diálogo entre a contribuição de novas fontes no processo de ensino aprendizagem e a contribuição da fotografia como ferramenta metodológica no ensino de história” (MALVERDES, 2017, p. 4). Com isso, a autora buscou compreender o uso da fotografia no processo de ensino aprendizagem, atribuindo ao estudante o papel de produtor e investigador do seu próprio conhecimento histórico.

Como adaptação dessa proposta, ampliamos os modos de representação para além da fotografia. Ao considerarmos que uma das estudantes é cega, a atividade consistiu em um convite a pensar, refletir, resgatar e/ou registrar uma representação do tempo histórico. Uma parte da aula destinou-se para que as estudantes, caso desejassem, percorressem os espaços externos, como corredores, outros prédios, passarela e cantina e representassem, da forma como considerassem mais conveniente, o tempo histórico. Ao retornar à sala, cada estudante, de forma espontânea, compartilharia com a turma como e por que optou por cada representação. A grande maioria dos estudantes optou pelo registro por meio de fotografia.

A estudante cega, ao ser convidada a participar da atividade, optou pela gravação de sua narrativa em áudio, descrevendo como percebe o tempo histórico.11

Com relação às imagens e sons, o que me remete muito a minha história mesmo é o cantar dos pássaros e na Ufes a gente ouve muito, né? Os pássaros cantando, o barulho das árvores, o balançar das árvores, das folhas, me remetem muito aos meus tempos históricos, quando eu piso em mato, quando eu ouço o barulho de animaizinhos, assim, igual a gente ouve as araras, né? Voando pelos céus da Ufes eu fico muito... eu me remeto muito à minha história de criança, porque eu morei no interior do estado, né? Então, no interior do estado baiano é, à noite a gente escuta o cantar dos pássaros, assim, de dia também, mas é mais à noite... vai chegando a tarde assim aí vai parecerendo mais vivo do que na capital. Parece que à noite os pássaros se calam na grande cidade, né? Mas assim, eu gosto muito de imaginar, através dos sons, através do cheiro do mato, a minha cidade, lá na Bahia, Itajuípe, pequena cidade de Itajuípe. (G.M. S, 2019)

Ao pensarmos as possibilidades de elaboração de conceitos históricos, no caso específico dessa atividade, da noção de tempo histórico, o relato de G. M. S., indicia alguns pontos que merecem nosso destaque: o primeiro se refere ao fato de a dimensão do tempo cronológico - que geralmente é tomado como sinônimo de tempo histórico, como foi percebido na representação de muitas outras estudantes da turma - não ter sido mencionado em seu relato. Isso pode estar relacionado às experiências de vida da estudante e aos desafios enfrentados cotidianamente para significar o mundo que a cerca, por meio dos demais sentidos. Podemos entender, assim, que a sua concepção de tempo histórico situa-se naquilo que ela consegue sentir, experienciar e explicar.

Outro ponto a se destacar refere-se à indissociabilidade entre tempo e espaço, que constituem os materiais básicos dos historiadores (BITTENCOURT, 2009). Notamos que a estudante relaciona o tempo histórico ao vivido, biológico - infância, por exemplo - com o espaço onde viveu e vive. Por meio dos elementos da natureza que ela consegue sentir - ouvir os sons dos pássaros, o balanço das árvores, pisar o mato -, ocorre a rememoração de outros tempos vividos, que, para ela, assumem o sentido do tempo histórico.

O último destaque a respeito desse relato refere-se, de modo específico, à natureza da atividade proposta que, sob nosso prisma, permitiu a interação entre o conceito espontâneo e o científico da estudante, conforme propõe a teoria vigotskiana. Isso porque ao construir seu argumento a respeito do conceito de tempo histórico, G. M. S. pautou-se em suas experiências cotidianas, de modo que situou seu entendimento do tempo em situações e sensações próprias. Desse modo, “(...) no processo de apreensão do conhecimento científico (...), não há necessariamente o desaparecimento do conceito espontâneo, mas modificações de esquemas intelectuais anteriormente adquiridos” (BITTENCOURT, 2009, p. 187).

Outra proposta que compôs o programa desta disciplina consistiu no trabalho com recursos didáticos para o ensino de História. A seleção que fizemos foi de um jogo de matriz africana denominado Awalé. Todas as estudantes deveriam levar o material previamente informado para a confecção em sala de aula; conheceríamos um pouco sobre essa prática; e, por fim, ao jogarmos, pensaríamos nas possibilidades de usos desse jogo com crianças, nas escolas.

A escolha desse jogo se deveu aos seguintes fatores: a) possibilita que a estudante cega não apenas jogue, mas confeccione o tabuleiro, já que exige poucos materiais, e sua manipulação é significativamente acessível; b) viabiliza o conhecimento de elementos da cultura africana, negligenciados nos currículos escolares; e c) valoriza princípios como a colaboração, a solidariedade e o respeito ao colega, oponente durante o jogo.

As atividades se seguiram com a introdução ao jogo, com base no texto de Pereira (2011), O jogo africano mancala e o ensino de matemática em face da lei 10639/2003, que “(...) buscou investigar a possibilidade de utilizar o jogo de tabuleiro africano Awalé da família do Mancala como recurso metodológico de ensino e aprendizagem matemática, associado ao ensino de história, cultura africana e afro-brasileira” (2011, p. 8). A partir daí as estudantes se organizaram em duplas e iniciaram a confecção dos tabuleiros (imagens 1 e 2) e jogaram a partir das regras distribuídas (imagens 3 e 4). Um destaque para a estudante cega (Imagem 5), que demonstrou uma apreensão significativa dos conceitos históricos introduzidos por meio da proposta. De modo individualizado, G. M. S. discutiu conceitos, como circularidade e colaboração, presentes nos princípios do jogo, assim como em situações cotidianas. Assim, entendemos que tais conceitos são tomados como “possibilidades cognitivas” que os indivíduos têm na memória e que estão disponíveis para os arranjos que mobilizem, de forma conveniente, suas capacidades informativas e combinatórias (MONIOT, 1993, p. 86 apud SCHMIDT, 1999).

Fonte: Arquivo dos autores (2020)

Imagem 1 estudantes confeccionando o tabuleiro 

Fonte: Arquivo dos autores (2020)

Imagem 2 estudantes confeccionando o tabuleiro 

Fonte: Arquivo dos autores (2020)

Imagem 3 estudantes jogando awalé 

Fonte: Arquivo dos autores (2020)

Imagem 4 estudantes jogando awalé 

Fonte: Arquivo dos autores (2020)

Imagem 5 G.M.S jogando awalé 

A elaboração dos conceitos históricos a partir dos usos deste jogo nos pareceu promissora e, pela demonstração que tivemos em apenas uma aula trabalhando com essa proposta, evidenciou a importância da materialidade para a percepção dos princípios e valores presentes em toda a composição do jogo. Ao perceber, por exemplo, que o adversário não pode ficar totalmente sem sementes, pois é no terreno dele que se colhe, é possível introduzir e consolidar o conceito de solidariedade, pois é preciso que o jogador com mais sementes doe uma para seu adversário, para que o jogo continue. Outros princípios que exploramos nesta proposta referem-se à cultura africana e afro-brasileira: circularidade, ancestralidade, tradição, cosmovisão africana, filosofia de matriz africana e oralidade (PEREIRA, 2011). Enfatizamos este último elemento ao considerarmos a centralidade que esta ocupa na vida cotidiana da estudante cega.

Na perspectiva da elaboração dos conceitos por meio de um trabalho com materiais e recursos que permitam uma melhor compreensão e assimilação pela estudante G. M. S., atividades diversas foram propostas, como aulas de campo em sítios históricos, no planetário, em visita às escolas de ensino fundamental com sala ambiente composta por recursos multissensoriais, e em aula interdisciplinar entre História e Educação Física sobre o projeto “Brinquedos e brincadeiras afroindígenas”. Em cada caso, vivenciamos aprendizagens, questionamentos e muitos desafios, como a ausência de espaços e recursos adaptados e a abstração de muitos conteúdos e abordagens, minimizados, porém, pela disposição da estudante, pelo apoio da turma, e pela busca incessante por meios e recursos que facilitassem os percursos de aprendizagem da turma, de modo geral, e de G. M. S., em particular.

Considerações finais

Após mais de três décadas da promulgação da Lei Federal de 1988, considerada a constituição cidadã, muitas conquistas foram garantidas para a educação, de modo geral, e para as pessoas com deficiência, de modo específico. Cabe destacar a criação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em 2015, que impede a interdição de matrícula a esse público. Entre meandros dos textos legais, no contexto das escolas, há práticas que caminham para uma educação que garanta o direito às aprendizagens a todos os estudantes, com ou sem deficiência. Entretanto, muitos desafios e lacunas permeiam os cenários educativos, tanto no que se refere à estrutura física dos espaços, como ao currículo.

Vigotski, ao discutir as características do psiquismo humano, indica subsídios para novos olhares acerca do processo de desenvolvimento e aprendizagem da pessoa com deficiência, contribuindo, assim, para a área de Educação Especial. Permite, ainda, pensar os percursos de aprendizagens pelos quais os estudantes passarão, considerando que os conceitos científicos subsidiam a tomada de consciência.

Com isso posto, retomamos as questões centrais dessa reflexão: como favorecer a elaboração dos conceitos históricos pelos estudantes com deficiência? A partir das experiências nos cursos de Pedagogia e História da Universidade Federal do Espírito Santo, buscamos apontar alternativas nessa direção.

No caso específico dos projetos de ensino de estágio com intervenções nas escolas, são potencializadoras as abordagens com a incorporação de diferentes linguagens, como é o caso das histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. A proposta aponta para uma prática diferenciada no ensino de História, potencializando a aquisição, construção e utilização dos conceitos históricos pelos alunos (SCHMIDT, 1999). Outrossim, a abordagem da História e Memória de Jacaraípe pareceu-nos promissora ao envolver elementos locais, bem como a escuta dos moradores do bairro, por meio da história oral. De modo central, ao desenvolver uma tradução visual do livro produzido sobre a história do bairro, essa proposta, além dos estudantes com deficiência visual, pode auxiliar a pessoas com outros tipos de deficiências, como disléxicos e com deficiência intelectual.

No curso de Pedagogia, as propostas voltadas para as aprendizagens dos estudantes com deficiência e, de modo específico, da pessoa cega, construíram-se em dois movimentos: a) um convite a pensar, refletir, resgatar e/ou registrar uma representação do tempo histórico e; b) a confecção do jogo de matriz africana Awalé, cujo processo consistiu na sua produção em sala de aula; abordagem a respeito dos dos aspectos historicos desse elemento cultural; e, por fim, da prática do jogo, quando pensamos nas possibilidades de seus usos com crianças, nas escolas. A presença da estudante cega na turma nos desafiou e, ao mesmo tempo, nos levou a pensar especificamente nos percursos de aprendizagens dos estudantes, de modo geral e, dessa aluna, em particular. Desse modo, nos atentamos cuidadosamente para todo o processo, desde a seleção das atividades, dos materiais e recursos necessários, até as possibilidades de elaboração dos conceitos históricos.

Nas atividades propostas, observamos situações em que G. M. S. elaborou conceitos históricos, articulando seus conhecimentos prévios aos saberes da História como campo disciplinar. Isso se evidenciou, por exemplo, ao construir seu argumento a respeito do conceito de tempo histórico, pois a estudante pautou-se em suas experiências cotidianas, de modo que situou seu entendimento do tempo em situações e sensações próprias. Com o awalé, além do conhecimento de elementos da cultura africana, negligenciados nos currículos escolares, interessou-nos particularmente os modos como G. M. S. discutiu conceitos, como circularidade e colaboração, presentes nos princípios do jogo, assim como em situações cotidianas. Nessa perspectiva, tais conceitos são tomados como “possibilidades cognitivas”, presentes na memória de cada um e que, na relação com suas capacidades informativas e combinatórias, favorecem a elaboração das aprendizagens (MONIOT, 1993 apud SCHMIDT, 1999).

A exemplo de muitos professores que atuam tanto na educação básica como na superior, sentimo-nos desafiados a tornar o currículo acessível para todos e todas. Sabemos que há ainda muitas lacunas e fragilidades que distanciam o estudante com deficiência dos saberes escolares e acadêmicos, e que tais aspectos passam pelas políticas públicas, formação docente, infraestrutura das instituições e dos espaços educativos, em geral. As alternativas aqui apontadas sinalizam ações promovidas em direção a um ensino de História menos excludente e mais sensível aos diferentes percursos de aprendizagens.

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1Os estudos de Vigotski acerca da educação especial se encontram na coletânea Fundamentos da Defectologia, que constitui a fundamentação teórica do desenvolvimento da pedagogia especial científica com base marxista.

2Como à época o autor se referia à deficiência (1920-1930).

3As traduções em português são de nossa responsabilidade.

4As formulações epistemológicas de Jean Piaget (1896-1980) consideram, notadamente, suas preocupações biológicas, adaptações orgânicas do homem e dos processos cognitivos que possibilitam sua adaptação ao meio por intermédio da inteligência. O ponto central de sua obra é a construção do conhecimento do sujeito, partindo da gênese do pensamento racional (BITTENCOURT, 2009, p. 185).

5Mesmo considerando a indissociabilidade teórico-prática da disciplina de Estágio, por uma organização didática que prevê a distribuição da carga horária, referimo-nos às atividades de prática e à aula teórica.

6Identificamos os estudantes pelas letras iniciais de seus nomes.

7Jacaraípe é um bairro do município de Serra, no estado brasileiro de Espírito Santo, situado na costa, aproximadamente 20 km ao norte de Vitória, capital do Espírito Santo. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jacara%C3%ADpe. Acesso em 1 mar. 2018.

8O curso de Pedagogia está em processo de mudança curricular, de modo que, no Projeto Político de Curso de 2006, esta disciplina é ofertada no 7º período. Já no currículo de 2018 passa a ser ofertada no 4º período. A turma em questão cursou-a no 4º período (2019/2).

9Todas as estudantes da turma são do sexo feminino.

10O Núcleo de Acessibilidade da UFES (NAUFES) foi criado por meio da Resolução nº 31/2011 do Conselho Universitário como proposta do então Secretário de Inclusão Social, Prof. Antonio Carlos Moraes, com a finalidade de coordenar e executar as ações relacionadas à promoção de acessibilidade e mobilidade, bem como acompanhar e fiscalizar a implementação de políticas de inclusão das pessoas com deficiência na educação superior, tendo em vista seu ingresso, acesso e permanência, com qualidade, no âmbito universitário. Disponível em: http://acessibilidade.ufes.br/quem-somos. Acesso em 1 mar. 2020.

11Ressaltamos que a estudante esteve ausente nessa aula, porém, aceitou participar da atividade, enviando-nos sua compreensão de tempo histórico em áudio, via WhatsApp.

Recebido: 12 de Março de 2020; Aceito: 23 de Outubro de 2020; : de ; Publicado: 31 de Julho de 2021

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