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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 20-Oct-2023

https://doi.org/10.5902/1984644443020 

Artigo Demanda Contínua

Formação professores e processo educativo: a Companhia de Jesus nos clássicos da educação brasileira

Teacher education and educational process: the Society of Jesus in the brazilian education's classics

Patrícia Fontana1  , Mestra em Educação
http://orcid.org/0000-0002-3843-1290

Martin Kuhn2  , Professor Doutor
http://orcid.org/0000-0002-8107-0814

Tatiane de Freitas Ermel3  , Pesquisadora pós-doutoral
http://orcid.org/0000-0003-2002-5101

1Mestra em Educação pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil. patricia.fontanaimm@gmail.com

2Professor Doutor na Sociedade Educacional Três de Maio - SETREM - Três de Maio, Rio Grande do Sul, Brasil. martk@outlook.com.br

3Pesquisadora pós-doutoral da Universidad Complutense de Madrid. Madrid, Espanha. tatiane.ermel@gmail.com


RESUMO

O presente artigo analisa três obras clássicas da educação brasileira, A Cultura Brasileira: Introdução ao estudo da cultura no Brasil (1943), de autoria de Fernando de Azevedo; O método pedagógico dos jesuítas: o Ratio Studiorum (1952), de Leonel Franca e História da Educação Brasileira (1972), de José Antonio Tobias, fazendo um movimento em direção à tradição e refletindo acerca da formação de educadores e os processos educativos ao (re)visitar a tradição da Companhia de Jesus. Objetiva-se, desse modo, dialogar com a tradição para compreender o legado, mas fundamentalmente, o que podemos aprender dela sobre a formação de professores e o processo educativo. O estudo está organizado em dois movimentos: primeiro, a contextualização histórica do período jesuítico, em seguida, o aprofundamento do método pedagógico dos jesuítas e a formação de seus educadores, referida pelo Ratio Studiorum. Do ponto de vista teórico e metodológico, situa-se no âmbito da linguagem e da teoria de recepção e a recontextualização do conhecimento educativo.

Palavras-chave: Tradição; Pedagogia jesuítica; Formação de educadores

ABSTRACT

This paper analyzes three Brazilian education classics, A Cultura Brasileira: Introdução à Cultura no Brasil(“The Brazilian Culture: Introduction to the Study of Culture in Brazil”), from 1943, by Fernando de Azevedo; the Jesuit educational method, known as Ratio Studiorum (1952), by Leonel Franca; and História da Educação Brasileira (“History of Brazilian Education”), from 1972, by Jose Antonio Tobias, addressing tradition and reflecting on teacher education and on the educational processes in the context of (re)visiting the tradition of the Society of Jesus. Thus, the goal is to approach tradition to understand the legacy, and basically to identify what we can learn from it when discussing teacher education and educational processes. The study is organized in two movements: the first one regards the historical contextualization of the Jesuit period, in addition to the deepening of their pedagogical method and the education of their teachers, according to the Ratio Studiorum. The theoretical and methodological perspective is grounded on language and on the theory of reception and recontextualization of the educational knowledge.

Keywords: Tradition; Jesuit education; Teacher education

Introdução

A construção deste artigo provém da seguinte inquietação: o que podemos aprender sobre a formação de educadores e sobre os processos educativos ao (re)visitar a tradição da Companhia de Jesus? Destacamos que a tradição sempre tem algo a nos ensinar. O dialogar com a tradição nos permite conhecer e reconhecer o que fizeram os que vieram antes de nós e que temos algo a aprender.

Para abordar a tradição da Companhia de Jesus recorremos a três autores clássicos1 da história da educação brasileira: José Antonio Tobias, Fernando de Azevedo e o Pe. Leonel Franca. Ao interpretar a tradição jesuítica de educação a partir destes autores clássicos, reconhecemos que o olhar de cada autor marca e insere o leitor em uma determinada forma de ver/compreender a tradição. Pois, ao valermo-nos somente de leituras de comentadores, interpretadores ou de leitores críticos corremos o risco de limitar à compreensão cultural presente em cada uma das obras.

Antecipamos que cada um dos autores referidos, ao relatar a história da educação brasileira, dirige atenção especial ao período jesuítico, acentuando sua relevância para a constituição da educação formal no país. Apesar disso, os autores atentam para dimensões diferentes, o que possibilita uma compreensão alargada do período e de sua importância à história da educação e da formação de professores no Brasil. Fernando de Azevedo (1894-1974) aborda a origem da Companhia de Jesus, a chegada dos seis primeiros padres ao Brasil e descreve, minuciosamente, a vida dos padres jesuítas, especialmente, o trabalho do Pe. José de Anchieta (1534-1597) junto aos indígenas. José Antônio Tobias (1926) se detém em relatar de forma minuciosa a atuação dos jesuítas nos primórdios da educação brasileira. E, por fim, o Pe. Franca (1893-1948) descreve detalhadamente o movimento de construção do método pedagógico, o Ratio Studiorum.

O método proposto e utilizado pelos jesuítas marca significativamente a nossa história da educação, especialmente o processo de formação docente e as práticas pedagógicas. Ressaltamos três aspectos que serão detalhados atentamente: a origem da Companhia de Jesus, a atuação dos jesuítas no Brasil e o método de ensino e suas implicações à formação do educador jesuíta. As obras em destaque para o estudo são: A Cultura Brasileira: Introdução ao estudo da cultura no Brasil (1943), de autoria de Fernando de Azevedo; O método pedagógico dos jesuítas: o Ratio Studiorum (1952), deLeonel Franca e História da Educação Brasileira (1972), de José Antônio Tobias 2.

A escrita realiza dois movimentos: a contextualização histórica do período jesuítico com o aprofundamento do método pedagógico dos jesuítas e a formação de seus educadores, referida pelo Ratio Studiorum. Entendemos que retornar a aspectos do passado, nos permite olhar e (re) pensar o tempo, reunindo em um mesmo conceito o contemporâneo e o não contemporâneo, um dos fenômenos históricos mais reveladores, como nos ensina Koselleck (2014).

Do ponto de vista teórico e metodológico, a reflexão se situa no âmbito da linguagem. Significa compreender que a linguagem é a possibilidade que temos para dizer sobre o mundo e nos entender acerca dele. Neste sentido, todas as coisas só existem para nós no horizonte da linguagem e é pela linguagem que elas são expressas. Para Heidegger (2002), é pela linguagem que o ser se desvela e se vela. É pela linguagem que desvelamos o mundo. Dialoga também, com a teoria da recepção de ideias pedagógicas a partir da disseminação transcontinental e suas especificidades culturais (SCHRIEWER, 2012). Nesta perspectiva, os processos de recepção/adoção de conhecimentos são equivalentes à transformação, apropriação e recontextualização, considerando as especificidades do cenário sociocultural e seus significados, especialmente, o uso da linguagem. Esperamos, assim, que o ‘retorno’ à tradição nos permita traduzir e produzir novos olhares sobre a herança e sobre o nosso tempo.

Olhares sobre o período jesuítico

A presença jesuítica no Brasil se estende da Colônia ao nosso tempo, ocupando importante posição na educação básica e superior do país. O período entre 1549 e 1599 ficou conhecido como Pedagogia Brasílica e se caracterizava por uma educação de cunho catequético e pastoral. O período de 1599 a 1759 ficou conhecido como período da Ratio Studiorum e a educação se caracterizava pela pedagogia colegial. Esta apresentava uma estrutura curricular escolar claramente delineada, bem como um plano de formação docente organizado e denso em termos de conhecimentos. Nesses dois momentos da história dos jesuítas no Brasil, centraremos a análise dos clássicos da educação brasileira.

A origem da Ordem3 dos jesuítas é relatada por Tobias (1986, p. 40) a partir de sua fundação, em 15 de agosto de 1534, “(...) O espírito da Ordem, como de toda a Ordem e Congregação da Igreja Católica, era dedicar-se a pessoa, à sua própria salvação e a do próximo”. A criação da Companhia de Jesus se situa no contexto da Contra-Reforma, promovida pela Igreja católica, em reação à denominada de Reforma Protestante, iniciada com a publicação das 95 teses por Martinho Lutero, em 1517.

As congregações religiosas que surgem nesse contexto têm a mesma finalidade, restaurar a ordem da Igreja romana e buscar novos fiéis, embora a busquem por caminhos distintos. Tobias (1986, p. 40) destaca que “as ordens se distinguem, entre si, pelos meios que tomam para atingir esta dupla finalidade comum. A companhia de Jesus se consagrará à salvação das almas através do ensino, especialmente do ensino médio e, de modo todo particular, do ensino universitário”. Neste sentido, acresce que os padres jesuítas visavam à catequização, especialmente no Novo Mundo, e ao ensino. Pretendiam salvar a alma e, ao mesmo tempo, oferecer ao ser humano uma formação integral.

Acerca da chegada dos Jesuítas ao Brasil, ano de 1549, Azevedo (1963, p. 501) relata que quando os “seis jesuítas aportaram à Bahia com o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa”, a Companhia de Jesus tinha apenas 9 anos de existência4. A expressão do autor, nove anos de existência canônica, significa o momento em que a Ordem foi aprovada pela Igreja. Tobias (1986, p. 41) evidencia que “fazia apenas nove anos que a Ordem tinha sido confirmada e quinze que fora fundada”. Este espaço de tempo entre a fundação e a confirmação da Ordem está vinculado a todo o processo de regulamentação, sendo que a Congregação foi oficialmente reconhecida por bula papal, em 15405.

A compreensão de educação dos jesuítas era ampla e se orientava pelo princípio civilizador da Ordem, segundo o historiador jesuíta Luiz Gonzaga Cabral, “ir e ensinar para cristianizar” (TEIVE, 2007, p. 55). Tobias (1986, p. 41 - 42) destaca que “o conceito de educação dos jesuítas era fundamentalmente baseado na existência da liberdade humana, com o consequente direito à educação por parte do indígena e do negro”. Buscavam incluir, desse modo, a todos no processo educativo, pois acreditavam que educar “é atualizar as potencialidades da pessoa humana, de maneira a capacitá-la a receber a luz da fé e a salvar sua alma. Daí se infere que a finalidade da educação era conjuntamente natural e sobrenatural: atualizar as capacidades da pessoa e salvar sua alma”.

Assim, após a fundação/confirmação, a companhia de Jesus chega ao Brasil para dar início à obra catequética e educativa. Desse modo, os primórdios da educação brasileira são marcados pela educação cristã, situado no cenário da Contra-Reforma promovida pela Igreja Católica. Azevedo (1963, p. 501) pontua que o período jesuítico, “não só marca o início da história da educação no Brasil, mas inaugura a primeira fase, a mais longa dessa história, e, certamente, a mais importante pelo vulto da obra realizada e, sobretudo pelas consequências que dela resultam para nossa cultura e civilização”. Os jesuítas permaneceram 210 anos no Brasil6 até serem expulsos pelo Marquês de Pombal - Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, em 1759.

Como um marco da instrução do “povo brasileiro”, Azevedo (1963, p. 503) pondera ao se referir as primeiras escolas e seus métodos de ensino no Brasil é como “(...) evocar a epopeia dos jesuítas do século XVI, em que lançaram, entre perigos e provações, os fundamentos de todo um vasto sistema de educação que se foi ampliando progressivamente com a expansão territorial do domínio português”. Os soldados de Cristo, como eram nominados, marcados pela austeridade moral e disciplinar e identificados com os saberes cristãos visavam à catequização e à propagação da fé. Reconhecer como marcos significativos as contribuições da educação jesuítica à história da educação brasileira, presença até hoje visível, não os absolve dos impactos destrutivos infligidos à cultura dos colonizados e catequisados do Novo Mundo. Paiva (1981, p. 100) ressalta que “a catequese serviu de instrumento de imposição dos usos e costumes portugueses” e, se o indígena sofreu a ação e se cedeu não foi por impotência, mas impotência diante do poderio português.

A atividade pastoral e educativa no Brasil desafiou os jesuítas a (re) criar seus métodos pedagógicos e a se adaptar à realidade do Brasil Colônia. Tobias (1986, p. 44) destaca que se tratava de um “País virgem sem nenhum recurso cultural, com poucos meios materiais, dificuldades inúmeras e penosas (...)”. Um contexto marcado tanto pela “falta de professores, de prédios escolares, de móveis e de mínimo de conforto por causa do ambiente, dos pais e parentes, em geral sem cultura e desprovidos de compreensão para o papel do educador e para a importância da educação”. Um cenário penoso e de muitas necessidades marcou o início do processo de catequização e de instrução na colônia.

Em relato de Anchieta a Santo Inácio (apud TOBIAS, 1986, p. 44) assim se expressa: “Aqui estamos, escreve Anchieta a Santo Inácio, às vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de caniço e barro, coberta de palha, longa de catorze pés, larga de dez (...)”. Anchieta ainda destaca que este espaço é “a escola, a enfermaria, o dormitório, a cozinha, a despensa. Quando a fumaça da cozinha incomoda os professores e alunos, a educação prossegue ao ar livre; porque é preferível sofrer o incômodo do frio de fora do que o fumo de dentro” (TOBIAS, 1986, p. 41). Sob essa realidade que os jesuítas lançaram as sementes da catequização e da instrução. A aldeia e suas casas se tornaram escolas e lugares de encontro. Com o método e a convivência iniciaram o processo de catequese, de instrução, de aprendizagem da língua, da leitura e escrita, dando início à educação formal. Mesmo nessas condições “os jesuítas não descuidavam também da educação artística: música, pintura, escultura e nem a educação profissional, como rudimentos das indústrias têxteis, de marcenaria, de metalurgia, de engenharia de estrada, hidráulica e militar” (Op. Cit. p. 47).

Assim, previa-se a educação primária para os indígenas, o “real” e o “utópico”. O indígena real era o índio brasileiro que vivia no meio do mato, que sofria a opressão pelos brancos. O índio utópico era o da mente dos europeus, que nunca atravessaram o oceano para conhecer os indígenas brasileiros. Tobias (1986, p. 27) aponta que a “educação indígena era eminentemente empírica, consistindo, antes de mais nada, em transmitir através das gerações uma tradição codificada. A escola era o lar e o mato; muito mais importante às lições do exemplo que das palavras”. O diálogo, o processo de aproximação, a aprendizagem da língua, a convivência, a intuição, a flexibilidade inicial de normas, pouco a pouco produziu um ambiente de catequese e de instrução voltada à formação da fé e à vida.

Tobias (1986, p. 56) relata que “(...) de início, o jesuíta tinha que falar com o curumim, para poder, depois, ensinar-lhe a boa nova do evangelho”. Mas, a língua era diferente. Assim, ele foi “aprender a língua indígena, que acabou sendo matéria do currículo educacional dos jesuítas no Brasil, de tal maneira que muitas vezes o tupi-guarani foi o substituto do grego”. Essa aproximação com a cultura do nativo foi fundamental para o sucesso da Companhia, o que implicou adaptar e transformar o currículo a um contexto desconhecido à Igreja Católica até então.

José de Anchieta foi o primeiro padre jesuíta, ainda muito jovem, a se aventurar no estudo da língua indígena. É autor da primeira gramática indígena no Brasil, intitulada como Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil (1595). Ao recorrer à linguagem do nativo, promoveu alternativas para se aproximar dos indígenas, especialmente, apropriar-se da língua Tupi e sua gramaticalização possibilitou que o processo educativo fosse mais efetivo. De acordo com Burke (2013), em seus estudos sobre a história e a teoria da recepção, os processos de mudanças de idiomas são um ponto chave desse movimento, sendo que, por muitos séculos, os missionários ocuparam um espaço como tradutores entre sistemas culturais.

Azevedo (1963, p. 506-507) salienta que “para êsse trabalho de ensino, em que todos participavam, mas a que faltavam livros e material”, o próprio Anchieta “compunha canções, escrevia pequenas peças de teatro e organizava compêndios que, copiados e recopiados, se tornaram de uso corrente em quase todos os colégios”. Pela atuação dinâmica, ele “se tornou mestre para melhor os instruir, poeta, inventor de autos, mistérios religiosos e diálogos em verso, que os meninos representavam nos pátios dos catecúmenos, êsse educador eminente, que tinha o segrêdo da arte de ensinar (...)” (Op. Cit. p. 506). Ainda, para desenvolvê-la “utilizava tudo o que fôsse útil e suscetível de exercer sugestão sôbre o espírito do gentio, o teatro, a música, os cânticos e até as danças, multiplicando os recursos para atingir a inteligência das crianças e encontrar-lhes, o caminho do coração”. Nesse sentido, assumia uma perspectiva de formação integral.

Os membros da Companhia de Jesus utilizavam saberes provindos das artes e acreditavam no vínculo afetivo para “chegar ao coração dos indígenas” e tornar significativo o processo de catequese e de instrução. Para a participação da catequização e da instrução, algumas vezes, os meninos iam às casas dos jesuítas e, em outros momentos, os jesuítas andavam até as aldeias. Azevedo (1963, p. 507) destaca que os jesuítas “atraindo os meninos índios às suas casas ou indo-lhes ao encontro nas aldeias; associando, na mesma comunidade escolar, filhos de nativos e de reinóis, brancos, índios e mestiços e procurando na educação dos filhos, conquistar e reeducar os pais, os jesuítas não estavam servindo apenas as obras de catequese”, mas igualmente assegurando a manutenção dos valores da moralidade cristã. Ao incluir a todos na catequese e na instrução, destaca ainda o autor, que os jesuítas “lançavam as bases da educação popular e, espalhando nas novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos costumes, começavam a forjar, na unidade espiritual, a unidade política de uma nova pátria”.

Para os jesuítas, a catequese dos nativos e para os reinóis, a sua instrução preliminar foi um processo de preparar o terreno e abrir caminhos para pensar e concretizar a construção das escolas regulares. Tobias (1986, p. 57) evidencia que “depois de estar falando o português e de se ter iniciado no conhecimento e na prática do Evangelho, é que os curumins e brasileiros começavam a frequentar a ‘escola de ler e escrever’, que era realmente a primeira escola”. Esse passo foi significativo para o início do ensino regular no Brasil.

Constata-se, diante do contexto pluralidades, que diversos eram os saberes que constituíam a identidade dos primeiros educadores. Os padres jesuítas além de ensinar a ler, escrever, acompanhar o processo de desenvolvimento da alfabetização, ensinavam também a cultura da música. Tobias (1986, p. 57) destaca que as crianças “ao mesmo tempo, aprendiam canto orfeônico ou algum instrumento musical, meios muito pedagógicos para o bem-estar do estudante e para entusiasmá-lo pela cultura e pela fé religiosa”. As aulas eram adaptadas à realidade e havia tentativas para descobrir o tempo, o método que melhor possibilitasse a aprendizagem. Tobias (1986, p. 71) relata que “o método expositivo era dominante. As sabatinas, as tertúlias, as disputas semanais e anuais e as recapitulações eram métodos fundamentais”. Também, é possível constatar que os educadores jesuítas utilizavam métodos de ensino dinâmicos e variados e, acrescenta, que “os exemplos concretos, acessíveis à gente simples, eram bem utilizados. As festas, o teatro, a música e os recreios constituíam meios para atrair e tornar a cultura, os padres e a religião simpáticos” (Op. Cit. p. 71).

De acordo com Azevedo (1963), o Pe. Nóbrega, o superior dos Jesuítas, visava em sua orientação educacional alcançar e beneficiar a todos no processo educativo. Subdividia o ensino médio7 em duas esferas, uma para os estudantes que queriam permanecer na agricultura e, a outra, para os que pretendiam continuar seus estudos, de modo que todos teriam perspectiva de futuro. Os jesuítas estavam atentos ao desenvolvimento e na medida em que o processo de aprendizagem evoluía, o currículo também era aperfeiçoado. Azevedo (1963, p. 519) evidencia que “o primeiro século foi, pois, o de adaptação e construção, e o segundo, de desenvolvimento e extensão do sistema educacional que, adquirida a altura necessária foi alargando progressivamente, com unidades escolares novas, a sua esfera de ação”. Assim, o século (XVI) foi, para os jesuítas, um tempo de adaptação, de investir na formação do ser humano, de catequizar e propagar a fé, enquanto o século seguinte (XVII) foi o desabrochar educacional.

A implementação de uma proposta educacional, seja em estruturas de escolas e qualificação de saberes, formação de educadores foi um processo que demandou paciência, empenho e qualificação. De acordo com Teive (2007, p.60), os colégios coloniais formaram uma base administrativa dos jesuítas e concentraram diferentes ações, tais como: “alfabetização dos indígenas, ensino de artes e ofícios para indígenas e escravos, ensino de gramática latina para filhos de colonizadores e pretendentes do clero, cultivo de hortas, pomares e criação de animais, entre outras”. Destaca ainda que estes colégios se tornaram espaços de referência da “sociabilidade da civilização cristã ocidental”, através das bibliotecas, enfermarias, oficinas e boticas que prestaram assistência à população em geral.

Conforme Tobias (1986, p. 72), foi depois de um século que as sementes lançadas pelos jesuítas começam a desabrochar por meio de novas unidades escolares e também pelo surgimento de outras áreas de ensino. Salienta que “Nóbrega foi o personagem da primeira educação brasileira, que se estende de 1545 a 1759, ano da expulsão dos jesuítas. Provincial, líder, homem de visão, estadista e emérito educador”. Nóbrega era uma pessoa com vasto conhecimento, identificado com o ato de ensinar e com liderança fez a diferença no nascente sistema educacional brasileiro, sendo que ele “ministrou a educação realmente democrática, abrasileiradora e realista, cristã e humana, um modelo de educação, digna do Brasil e de ser continuada e ampliada” (Idem, p. 72). Após os desafios do primeiro século, a educação jesuítica se consolida e constrói sua identidade com a elaboração o método pedagógico próprio (Ratio Studiorum) e será reconhecida como um dos principais correntes de educação e cultura da época moderna.

A identidade da educação e do educador jesuíta: o Ratio Studiorum

Conhecer o Ratio Studiorum permite nos aproximar da identidade da educação e do educador da Companhia de Jesus. Franca (1952, p. 5) destaca que no desenvolvimento da educação moderna o “(...) Plano de Estudo da Companhia de Jesus, desempenha um papel cuja importância não é permitida desconhecer ou menosprezar”. O método foipublicado em 1599 pelo Pe. Cláudio Aquaviva8. Nele se “corporificaram as regras pedagógicas de Santo Inácio e as experiências ulteriores, no campo de educação, o plano completo dos estudos da Companhia devia abranger o curso de letras humanas, o de filosofia, o de teologia e o de ciências sagradas” (AZEVEDO, 1963, p. 519). Desconhecer essa tradição significa perder referências que marcaram a educação brasileira, pois o Ratio Studiorum embasou a organização das escolas criadas pelos jesuítas, também outras, mesmo após a sua expulsão.

Franca (1952, p. 5) reitera que “historicamente, foi por este Código de ensino que se pautaram a organização e a atividade dos numerosos colégios que a Companhia de Jesus fundou e dirigiu durante cerca de dois séculos, em toda a terra”. No Ratio Studiorum há claras orientações metodológicas de ensino, de organização escolar, de densidade de conteúdos e um plano de formação de professores denso e concreto, aspectos estes que possibilitaram que o método pedagógico dos jesuítas colaborasse significativamente com os processos de formação de educadores e de instrução em seus inúmeros colégios.

O corpo docente9, para atender à proposta do Ratio Studiorum,era caracterizado pela competência e eficiência. Franca (1952, p. 11) aponta que “o corpo docente, para preencher as finalidades que tinha Inácio em vista, era muito escolhido e, sem exclusivismo de nacionalidades, recrutado nas diferentes nações com critério único da competência e eficiência”. Dos docentes exigiam-se qualidade no processo de ensino-aprendizagem, mas igualmente, um elaborado e aprofundado conhecimento do conteúdo a ser transmitido. Para atender esta dupla exigência havia uma proposta elaborada de formação para o corpo docente jesuíta. A qualidade da formação humana e da instrução dependia de uma sólida formação dos educadores10.

O método do Ratio foi aplicado primeiramente na Europa, pois lá estavam os colégios mais conceituados da Companhia de Jesus. Depois de um longo processo de estudo e elaboração, o Ratio Studiorum foi enviado a todos os provinciais para análise. Franca (1952, p. 19) descreve este processo e destaca que em agosto de 1585, depois de um longo processo de elaboração, “o P. Geral leu-o com os seus assistentes, deu-o a examinar a uma comissão de professores do Colégio Romano e, não satisfeito ainda, resolveu submetê-lo a um estudo crítico de toda a Companhia”. Depreende-se desse movimento que a elaboração do método pedagógico foi pensado, refletido e revisado, o que demonstra a seriedade com que encaravam a formação de seus educadores e do processo instrutivo. Por fim, em 1586, foi enviado a “todos os provinciais, acompanhado de uma circular de Aquaviva. Nela se recomendava que em cada província se nomeassem pelo menos 5 padres abalizados no saber e na prudência” (FRANCA, 1952, p. 19). Uma vez nomeados esperava-se destes que “estudassem a nova fórmula dos Estudos, primeiro em particular, depois em consultas e, por fim, redigissem livremente o seu parecer, a ser remetido a Roma dentro de cinco ou seis meses” (Idem, p. 19).

Reiterada a seriedade da Companhia ao construir e introduzir o seu método pedagógico, revela-se o compromisso com o processo educativo, independente de sua matriz ideológica, e a prudência nas iniciativas que dizem respeito à educação. Franca (1952, p. 20) relata que diante da incumbência de ler e verificar o Ratio “as diferentes províncias levaram muito a sério as recomendações do Geral, em toda a parte escolheram-se para o exame do projeto homens notáveis pela doutrina e encanecidos na prática do magistério”. Esses homens notáveis pela doutrina e conhecedores da prática do magistério, hoje diríamos com conhecimento teórico e experiência de prática, contribuíram para refletir com propriedade sobre os assuntos da formação de professores e dos processos educativos. Os relatórios que retornaram ao P. Geral sugeriram mudanças no currículo de alguns cursos como Teologia, Filosofia e Humanidades, como observa Franca (1952, p. 25). Tal fato anuncia que o Ratio é fruto de um longo movimento de estudo e aprofundamento.

Para além dos aspectos curriculares, a dimensão pedagógica foi a mais debatida. Segundo Franca (1952, p. 20), “às questões pedagógicas (...) sucedia-se por vezes longos tratados sobre os deveres dos professores jesuítas, sobre a conveniência de iniciar o grego como um dos primeiros elementos do latim”. O Ratio Studiorum previa um professor com uma elaborada formação cultural, identificado e com capacidade de mobilizar vários saberes no ato de educar. Podemos até estabelecer críticas ao intelectualismo, ao enciclopedismo, à retórica, à metafísica da proposta, contudo, isso não desqualifica a preocupação com os aspectos curriculares e metodológicos do método.

O Ratio anuncia uma preocupação com a formação docente considerando, especialmente, os professores iniciantes. Estes, ao concluírem o processo de formação para o magistério, antes de assumirem a docência, acompanhavam um professor já experiente. Tal exigência, conforme Franca (1952, p. 90), é expressa na regra de número nove do reitor que prescreve que no “fim dos estudos da Filosofia, antes de partirem para os colégios, os futuros mestres sejam confiados a um homem profundamente versado na experiência do ensino, docendi peritissimum, que os inicie na prática viva do magistério”. O autor segue seu relato dizendo que nessa experiência o novo docente era submetido a “exercício de prelação, ditado, correção de trabalhos escolares e outros ofícios do bom professor”. A formação do educador jesuíta era compreendida como um processo integral: teoria, cultura e prática, dimensões que constituem, nas palavras do autor, o “bom professor”.

Assim, depois de um meio século de trabalho, de revisão, de estudo minucioso sobre os aspectos pedagógicos, sobre a formação do educador, sobre as exigências do magistério, em janeiro de 1599, é publicada a edição definitiva do Ratio Studiorum.Franca (1952, p. 23) destaca que a publicação do Ratio “representava os resultados de uma experiência de meio século. Experiência rica, ampla, variada, que talvez constitua um caso único na história da pedagogia”. Assim, o processo percorrido até a aprovação oficial do Ratio se expressa em um manual prático, com métodos de ensino que orientam os professores na organização das aulas. A figura central e responsável pelos colégios é o reitor, auxiliado pelo prefeito de estudos.

Franca (1952, p. 46), destaca também que o “Braço direito do reitor, na orientação pedagógica, é o prefeito de estudos. Homem de doutrina e de larga experiência no ensino (...)”. As características exigidas do prefeito de estudos são relevantes para o sucesso da educação jesuítica. De acordo com o autor (1952, p. 46), o prefeito de estudos acompanha a vida escolar “visita periodicamente as aulas, urge a execução dos programas e dos regulamentos, forma e aconselha os novos professores, articula a atividade de todos. Guarda fiel das tradições, assegura, com a unidade atual da obra pedagógica, a sua continuidade no tempo”. A função delegada ao prefeito de estudos revela a seriedade no acompanhamento dos docentes no desenvolvimento da tarefa educativa. Assim, se havia exigências, também eram oferecidas possibilidades de formação continuada e ajuda por parte dos prefeitos de estudos, que eram preparados para acompanhar a vida escolar e os professores, pois há clareza de que o êxito do processo educativo dependeria de professores identificados e qualificados no método.

Diversos eram os saberes docentes que constituíam a identidade do professor e que eram mobilizados na organização e execução das aulas. Franca (1952, p. 50) ressalta que “Para julgar com acerto este currículo (Teológico, Filosófico, Humanista) e a ausência de disciplinas que hoje nos parecem indispensáveis num curso secundário, convém lembrar a situação cultural do século XVI”. Pondera que as ciências experimentais não “haviam tomado o desenvolvimento que hoje conhecemos nem as línguas modernas a importância que lhes deu posteriormente o surto progressivo das nacionalidades e o enriquecimento das respectivas literaturas”. O currículo proposto pelo Ratio ainda estava distante das ciências experimentais e que foi uma das razões alegadas por Pombal para justificar a expulsão da Companhia de Jesus do Reino e de suas colônias, em 1759. Neste sentido, reforça-se a compreensão de que a formação do professor e o desenvolvimento do processo educativo são produções históricas e o método jesuítico é expressão de seu tempo.

Os jesuítas foram flexíveis também na organização do currículo ao longo da história e na ampliação de disciplinas e saberes que constituíam requisito para ser professor. Franca (1952, p. 54) destaca que “com o correr dos anos e o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, introduziram-se outras disciplinas e alargaram-se os respectivos programas”. Nesse sentido, pondera que “os colégios da Companhia acompanharam constantemente o ritmo progressivo das ciências modernas e muitas vezes contribuíram para acelerá-lo”. Acrescenta, ainda, que o “currículo do Ratio conseguiu organizar e sistematizar o que de melhor havia em seu tempo” (FRANCA, 1952, p. 55).

Em relação à metodologia11 de ensino, havia uma multiplicidade de métodos oferecidos pelos quais os mestres podiam optar com liberdade ou inventar novos métodos de ensino. A este respeito, Franca (1952, p. 57) pondera que a “(...) multiplicidade de métodos propostos já deixa uma ampla liberdade de opção adaptada à diversidade de dons e a variedade de circunstâncias”. A liberdade de opção adaptadas aos dons manifesta a valorização dos potenciais dos sujeitos. É importante destacar que aos mestres “(...) se confere largos poderes de iniciativa, não só no emprego dos métodos indicados, se não também na invenção de outros. Norma e liberdade, tradição e progresso balançam-se em justo equilíbrio” (Idem, p. 57). Essa “autonomia” está estreitamente articulada à doutrina da congregação e aos princípios da Igreja.

A liberdade concedida aos professores na organização da aula, na escolha do método para desenvolvê-la, pressupõe docentes com autonomia intelectual, conhecimentos e práticas identificadas com o ofício. A concepção da educação presente no Ratio Studiorum se espelha na fisionomia da época em que o mesmo nasceu. Franca (1952, p. 79) destaca que “como se vê, a finalidade da educação é encarada, com largueza de vistas, em todos os seus aspectos, individuais e sociais, intelectuais e religiosos”. Em síntese, pode-se afirmar que o Ratio previa a formação alargada do sujeito, em sintonia com os princípios da Igreja católica. Franca (Op. Cit. p. 79) destaca que “no plano do Ratio, enquanto os cursos universitários visam mais diretamente à formação profissional, o secundário tem uma finalidade, acentuadamente humanista12”. Dos educadores, exigia-se uma larga formação humanista, intelectual, literária clássica e teológica, pois deveriam ser capazes de atingir a finalidade de instruir o homem, assim como salvar a sua alma.

A este respeito, Franca (1952, p. 86) reitera a importância do professor: “Outro fator de vital influência na pedagogia do Ratio e essencial à eficiência de qualquer sistema educativo, é a importância decisiva por ele atribuída ao mestre”. Esta consciência da relevância do professor com autonomia intelectual e pedagógica foi um dos primeiros passos para investir na formação docente. A exigência de formação e preparação do educador se embasa na proposta do próprio método de ensino utilizado pelos padres jesuítas. Dos futuros educadores, exigia-se, primeiramente, uma sólida formação moral. Neste sentido, Franca (1952, p. 88) relata que a nobre missão do educador “não é só pela sua inteligência culta e ilustrada, é pela sua personalidade toda que o educador modela no educando o homem perfeito de amanhã”. Assim, ao concluir o biênio dedicado ao estudo e à formação da moral, o jovem educador jesuíta iniciava sua formação intelectual e a essa se soma “dois outros anos são consagrados ao estudo mais aprofundado das letras clássicas, latim, grego, hebreu” (FRANCA, 1952, p. 89).

Assim, a exemplo, em 1586, no esboço preliminar do Ratio, foi considerado conveniente inserir na formação do professor uma sólida formação filosófica. Pois se compreendia que “a filosofia dava aos futuros mestres uma visão orgânica da vida, amadurecia-lhes o espírito, e, com mais três anos de estudo, também a experiência de vida” (FRANCA, 1952, p. 89). Destaca-se que esta sugestão permaneceu na redação final do Ratio e também que ao concluir o estudo do magistério, o professor que desejasse seguir o ensino universitário lhe era exigido continuar o estudo cursando Teologia e, em seguida, o aperfeiçoamento na disciplina que desejava se especializar. Após concluir o processo de formação, a inserção do professor na docência era gradativa, lhe era proporcionado um tempo de experiência junto a um professor experimentado, com longa atuação no magistério. Assim, após denso processo de formação, os jesuítas estavam aptos intelectualmente e pedagogicamente para explorar os diversos meios para evangelizar e instruir as crianças e os jovens.

Entre passado (s), presente (s) e futuro (s) da formação de professores e dos processos educativos

Destacamos, como ponto de partida, que a tradição possibilita alargar o entendimento do contexto em que estamos inseridos. Para Marques (1990, p. 94), o entrar na tradição proporciona reconhecer “que o passado e o presente se acham em contínua mediação de reciprocidades, leva a uma compreensão inteligente das situações mudadas, em que o importante não é o que aconteceu, mas o que não cessa de acontecer”. Pondera que “compreender é entrar no acontecimento da tradição, é produzir a significação efetivadora e atualizadora da consciência histórica”. Neste sentido, Kuhn e Toso (2016, p. 93) apontam que quando esclarecida a tradição acumulada essa “pode ajudar a interpretar as novas questões e desafios que a realidade apresenta. Escavar o sedimento constitui possibilidade de reabertura, que se funda na tradição, para pensar sempre de modo novo a tarefa educativa do presente”. Esse movimento abre possibilidades para (re) pensar, (re) criar e (re) significar tanto o processo de formação docente como o processo educativo.

Acerca da compreensão da partícula “re” que aparece reiteradamente, Fontana (2000, p. 157) levanta um questionamento: “o que significa esse (re) que a gente tanto usa”? Ele remete a ideia de voltar a alguma coisa, fazer de novo: “voltar a fazer, voltar a planejar, ver de novo, fazer de novo, planejar de novo”. É relevante este movimento de inacabamento de idas e vindas quando se trata de itinerários formativos. Por isso, conhecer a tradição, voltar a ela nos permite fazer de outro modo. Aprender com o vivido, mas de um modo novo. Compreendemos que é no “diálogo com a tradição, de nossas deliberações acerca do que queremos da educação, de nossas opções emancipatórias, que se constitui a identidade da escola e do professor” (KUHN, 2016 p. 211). Assim o retorno à história não é distanciar-se do contexto presente, mas buscar compreendê-lo de forma mais profunda e é este movimento que possibilita “pensar de modo novo”. Interpretar e compreender a tradição abre a possibilidade de o sujeito docente reconhecer as marcas da historicidade presente na constituição de sua identidade.

O que podemos aprender sobre a formação de educadores e sobre os processos educativos ao (re)visitar a tradição da Companhia de Jesus? Se há muitas críticas dirigidas à tradição jesuítica, e não sem razão, contudo, não significa que nada há a aprender com ela. Os dois aspectos centrais dessa tradição têm algo a nos ensinar: o primeiro diz do compromisso assumido pelo Ratio Studiorum com a formação do educador jesuíta e o segundo diz da pré-ocupação com o processo instrutivo/educativo.

Em relação ao primeiro aspecto, observamos o compromisso da Ordem com a formação do educador jesuíta e destacamos a sólida formação em termos de conhecimentos requeridos para o exercício da docência. Ainda em relação à formação do professor, merece atenção o cuidado da congregação com o professor iniciante. O acompanhamento de um “docendi peritissimum” é outro aspecto que merece destaque. Assim, o aspirante a professor, ao concluir sua formação e assumir propriamente à docência, era acompanhado por um professor experiente, versado nas práticas do magistério, que o iniciava no ofício de bom professor.

Assim, a tradição jesuítica nos permite questionar pelo menos dois pontos em nosso atual processo de formação de educadores: a) a solidez dos conhecimentos gerais, dos conhecimentos pedagógicos e dos conhecimentos específicos da formação do educador e b) a iniciação à docência. Hoje, os currículos dos cursos de licenciatura encontram-se cada vez mais esvaziados de conhecimentos teóricos, pedagógicos e disciplinares e são largamente reduzidos a uma razão instrumental, cada vez mais operacional. Estágios ao longo da formação, ao final da formação, PIBID, Residência Pedagógica, etc., todas são estratégias de aproximação do futuro docente das práticas educativas. Contudo, parece-nos que o cuidado da pedagogia jesuítica com o iniciante à docência, acompanhado por um sujeito versado na vida escolar, nos programas escolares, nos regulamentos, que forma e aconselha os novos professores, extrapola em muito os nossos reducionismos.

Assim, essa dupla exigência da formação dos educadores jesuítas questiona os nossos cursos de licenciatura, pois usualmente temos algumas horas de estágio, durante e antes de concluir o curso e uma vez ‘formado’ o docente iniciante chega à escola, sem muita experiência pedagógica e, em muitas ocasiões, sem o devido acompanhamento de um profissional mais experiente.Nestas circunstâncias, para além da solidez de sua formação, é importante que o iniciante sinta o amparo de alguém com mais experiência que lhe ajude a compreender os processos pedagógicos e a consolidar a sua identidade profissional.

Assim, se o Ratio Studiorum nos ensina algo acerca da formação de professores, também temos a aprender com a pré-ocupação do educador jesuíta com o processo educativo. Um primeiro aspecto a considerar do ponto de vista pedagógico, embora possa parecer controverso, é o respeito pela tradição, pelo conhecimento, conteúdo a ser transmitido aos novos. Nesse sentido, a formação intelectual ocupa um lugar importante na pedagogia jesuítica, pois sustenta a perfectibilidade humana por meio da formação. Por isso, requerem-se, também, professores solidamente formados. Parece-nos que hoje, esquecemos que uma das tarefas da escola é instrutiva, no sentido de assegurar aos novos conhecer a tradição, os conhecimentos que a humanidade produziu e que são importantes serem ensinados aos novos.

Ao aspecto da centralidade do conhecimento, somamos a pré-ocupação com a forma de como ensinar ou a metodologia. “O método é essencialmente ativo” (FRANCA, 1952, p. 58). Tal exigência requer docentes preparados, identificados profissionalmente e flexíveis na sua forma de conduzir o processo de construção do conhecimento. Da mesma forma, pode parecer controverso se tratar de um método ativo quando a pedagogia jesuítica, base da escola tradicional religiosa, é caracterizada pela preleção, pela repetição, pela memorização, pela competição. Contudo, exercitar quotidianamente a memória, não é o mesmo que memorizar. Suplementares a essas metodologias de aula, somam-se a leitura de bons livros e autores, discursos, participação nas academias, teatro, música, arte, versos, dança, tertúlias livres semanais, atividades corporais, etc. Entre as atribuições do educador jesuíta de aprimorar a imaginação, a inteligência, a razão, etc., constava preparar as crianças e jovens para enfrentar os desafios da vida.

Para além do mencionado, o Ratio sugere e abre possibilidades de o professor jesuíta adaptar os métodos de ensino a realidade do aluno para acompanhar o seu processo de desenvolvimento e ajudá-los a ampliar os horizontes de seu conhecimento. A pedagogia brasílica e a ação proposta por Anchieta junto aos indígenas é um exemplo inspirador da flexibilidade do método. Apesar de seu caráter metafísico, a pedagogia jesuítica acredita no potencial do ser humano (livre arbítrio), reconhece-o como alguém dotado de inteligência que precisa ser instigado a desenvolvê-la, isso parece atual.

O movimento de retornar à tradição para compreendê-la, não se trata de fazer apologia a ela, contudo, possibilita tomar pre-sença memórias que contribuem para enfrentarmos os desafios que se apresentam à educação, a formação de professores, às práticas educativas de nosso tempo. Neste sentido, é válido relembrar a frase dita na introdução, a tradição sempre tem algo a nos ensinar. Assim, algumas exigências postas em nosso tempo para a docência, para a iniciação à docência, mesmo orientações metodológicas, parecem não ser tão novas quanto imaginamos. O retornar à tradição permite compreender as heranças deixadas pelos que vieram antes. O método pedagógico jesuítico previa exigências consideradas importantes para o seu tempo, mas que deixaram marcas indeléveis em nossa tradição educativa e podem ajudar a pensar os desafios do nosso tempo.

Referências

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1De acordo com Calvino (1993, p. 11) “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. Destaca que “nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários e interpretações” (1993, p. 12).

2Entre parênteses indicamos as datas das primeiras edições de cada obra, mas para o presente estudo utilizamos edições de 1963, de Fernando de Azevedo e, de 1986 de José Antonio Tobias.

3“Inácio de Loyola (1491-1556), militar espanhol basco, ao se recuperar de um ferimento em batalha, viu-se envolvido por súbito ardor religioso e resolveu colocar-se a serviço da defesa da fé, tornando-se verdadeiro ‘soldado de Cristo’. Fundou então a Companhia de Jesus, daí o nome jesuítas dado aos seus seguidores” (ARANHA, 2006, p. 127).

4Suas bases foram “lançadas em 15 de agosto de 1534 na capela Montmartre por Inácio de Loyola e seus seis companheiros” (AZEVEDO,1963, p. 501).

5Para um estudo aprofundado sobre a pedagogia jesuíta, sua organização e expansão na Europa, ver Mesnard (2017).

6De acordo com Teive (2007, p. 55), a Companhia de Jesus ao chegar no Brasil, em 1549, com a esquadra que trouxe o primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, veio acompanhada por 5 ou 6 padres, que acompanhavam Manuel de Nóbrega, seu superior. Quando da expulsão da Ordem, em 1759, havia aproximadamente 510 jesuítas no Brasil, excluindo os que viviam nos aldeamentos. Para mais detalhes ver Serafim Leite (1953).

7Médio é a nomenclatura utilizada por Tobias (1986), já Franca (1952, p. 47) usa a expressão secundário, termo que está no Ratio Studiorum.

8Padre Cláudio Aquaviva responsável de coordenar o trabalho de elaboração do Ratio Studiorum.

9Em 1550 a congregação funda a Escola Normal com a tarefa de preparar “entre os estudantes da Ordem, os futuros professores, adestrando-os nos melhores métodos e pondo-os em contacto imediato com os educadores mais abalizados” (FRANCA, 1952, p. 10).

10 Contudo, para além da qualidade da formação humana, da instrução e da sólida formação dos educadores, o Plano de Estudos sugere que o educador “(...) consagre aos alunos um afeto paterno, mas sem familiaridades; trate a todos com bondade e justiça, não despreze a ninguém, nem faça distinção entre rico e pobre; não seja precipitado em castigar nem demasiado em inquirir; dissimule muitos defeitos; não só não bata no aluno, mas nem sequer lhe dirija palavra injuriosa, ou o chame senão pelo seu nome ou cognome” (FRANCA, 1952, p. 90).

111Sob o nome metodologia a Ratio Studiorum compreendia “tanto os processos didáticos adotados para a transmissão de conhecimentos, quanto os estímulos pedagógicos postos em ação para assegurar o êxito do esforço educativo” (FRANCA, 1952, p. 56),

122 No curso de formação humanista, “O aluno deve desenvolver todas as suas faculdades (...). As classes de gramática asseguram-lhes expressão clara e exata, a de humanidades, uma expressão rica e elegante, a da retórica mestria perfeita na expressão poderosa e convincente ad perfectuam eloquentiam informat” (FRANCA, 1952, p. 49).

Recebido: 19 de Março de 2020; Aceito: 22 de Fevereiro de 2021; Publicado: 31 de Julho de 2021

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