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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 20-Out-2023

https://doi.org/10.5902/1984644462013 

Artigo Demanda Contínua

Juventude e educação:a militarização das escolas em Goiás

Youth and education: the militarization of schools in Goiás

Flávio Munhoz Sofiati1  , Professor Associado
http://orcid.org/0000-0002-6422-4471

Caio Henrique Salgado Barbosa2 
http://orcid.org/0000-0002-6630-1741

1Professor Associado da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil. flavio_sofiati@gmail.com

2Universidade Federal de Goiás. Goiânia, Goiás, Brasil. caiohenrique.salgadobarbosa@gmail.com


RESUMO

O artigo analisa as consequências do processo de implementação dos Colégios da Polícia Militar do Estado de Goiás, Brasil, a partir dos conceitos de controle do corpo e de instituições totais, mostrando como esse modelo autoritário está intimamente ligado à política de restrição da liberdade de expressão da comunidade escolar. O texto analisa os argumentos dos agentes públicos para a vertiginosa expansão desse modelo educacional e faz uma leitura crítica das regras de conduta aplicadas às unidades educacionais militarizadas no Estado. Constata-se que as normas aplicadas à comunidade escolar nestas unidades - como, por exemplo, a presença cotidiana de uma sequência de atividades garantidas por mecanismos de punição estabelecidos por uma hierarquia e o conjunto de regras que padronizam o visual dos estudantes e causam a perda de identidade - permitem controle rígido das ações de docentes e discentes, regrada a partir da tutela de oficiais designados pelo comando-geral da Polícia Militar, limitando inclusive a liberdade de expressão, considerado como preceito fundamental para uma educação cidadã.

Palavras-chave: Juventude; Educação;Colégios Militares

ABSTRACT

The article analyses the consequences of the implementation process of the Colleges of the Military Police of the State of Goiás, Brazil, based on the concepts of body control and total institutions, showing how this authoritarian model is closely linked to the policy of restricting the freedom of expression of the school community. The text analyzes the arguments of public agents for the vertiginous expansion of this educational model and makes a critical reading of the rules of conduct applied to militarized educational units in the state. It is noted that the rules applied to the school community in these units - such as the daily presence of a sequence of activities guaranteed by punishment mechanisms established by a hierarchy and the set of rules that standardize the look of students and cause loss of identity - allow strict control of the actions of teachers and students, governed by the supervision of officers appointed by the general command of the Military Police, even limiting freedom of expression, considered a fundamental precept for a citizen's education.

Keywords: Youth; Education; Military Colleges

Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar as consequências do processo de ampliação da quantidade dos Colégios da Polícia Militar do Estado de Goiás (CPMGs) a partir dos conceitos de corpos dóceis e de instituições totais, desenvolvidos por Michel Foucault (1999; 2014) e Erving Goffman (2015), respectivamente. Em um movimento sem paralelo em outros Estados, Goiás tem hoje 60 colégios estaduais administrados a partir de um modelo gestão baseado em disciplina rígida dos corpos de docentes e discentes, controlada a partir da tutela de oficiais designados pelo comando-geral da Polícia Militar (PM). Este trabalho foi executado a partir de estudo bibliográfico e pesquisa documental que visou sistematizar informações sobre a expansão vertiginosa da militarização e os argumentos utilizados por agentes públicos para justificar esse movimento. Também foi levada em conta a leitura crítica das regras rígidas de conduta aplicadas no dia a dia destas unidades educacionais, definidas por um Regimento Interno.

O artigo é o resultado parcial de uma pesquisa que faz parte de um esforço coletivo de pesquisadores pertencentes ao Observatório Juventudes na Contemporaneidade, com sede na Universidade Federal de Goiás, que congrega docentes das mais importantes instituições no Estado. O fenômeno da intervenção militar em colégios públicos de Goiás, implementadas pelos últimos governos estaduais, tornou-se tema recorrente e necessário entre os estudiosos do campo (ALVES, REIS, SANTOS, SILVA, FERREIRA, 2019). A proposta é entender os principais aspectos políticos dos colégios militares e suas consequências para a educação pública, gratuita, laica e de qualidade no Brasil.

Diante do exposto, o texto está organizado da seguinte maneira:começa-se um histórico da política de implementação dos colégios militares no Brasil, em Goiás, acompanhado do discurso político que justifica a militarização. Em seguida, apresenta-se o Regimento Interno, considerado como o principal documento oficial de normatização da conduta no cotidiano das escolas militarizadas. Por fim, analisam-se as principais normas de controle do Regimento a partir da teoria de Foulcault e Goffman, principalmente seus conceitos de controle do corpo e instituição total.

Política pública de educação: controle militar das escolas

A militarização das escolas e colégios estaduais é um fenômeno que tem atraído a atenção dos pesquisadores em Goiás devido à rápida e intensa ampliação deste modelo nos últimos anos na rede estadual de ensino (ALVES & TOSCHI, 2019). Mesmo sendo regulamentado somente nos anos 2000, as origens dos colégios militares remontam ao período da ditadura militar instaurada no Brasil entre 1964 e 1985. O artigo 23 da lei que trata da organização básica da Polícia Militar (PM), editada no período ditatorial, já havia previsto como órgão de apoio ao ensino o Colégio da Polícia Militar (GOIÁS, 1976). A militarização das escolas e colégios foi efetivamente regulamentada em dezembro de 2001, quando foi sancionada uma lei que tratava da criação de unidades de ensino fundamento e médio que teriam comendo e direção de oficiais da PM, notadamente tenentes-coronéis e majores. O mesmo texto, proposto à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás e sancionado por Marconi Perillo, à época governador em primeiro mandato, prevê a supervisão das práticas de ensino como atribuição da Secretaria Estadual de Educação, mas a indicação dos comandantes-diretores ficou a cargo do comandante-geral da Polícia Militar (GOIÁS, 2001), caracterizando uma espécie de intervenção militar nas unidades escolares.

Esta característica intervencionista, como mostram Alves, Toschi e Ferreira (2018), é bem diferente do que foi planejado com a lei de 1976. O projeto, somente foi colocado em prática em 1998, com a criação do Colégio Militar Coronel Cícero Bueno Brandão.Num primeiro momento, previa unidades de ensino militarizadas apenas dentro da Academia de Polícia Militar e voltadas para os dependentes do corpo de oficiais da PM. A proposta de 2001 também estabeleceu que a administração das unidades passaria a ser exercida de acordo com um regimento interno a ser estabelecido posteriormente. O regimento atual é de 2017, vale para todos os colégios militares e pretende regular, de forma detalhada, os mais variados aspectos comportamentais de docentes e discentes destas unidades.

Este modelo rígido chamou pouca atenção até que, em 2015, o governador Marconi Perillo (PSDB), já em quarto mandato, sancionou uma lei que militarizou imediatamente oito colégios, todos em Goiânia ou na sua região metropolitana (GOIÁS, 2015). O caso despertou o interesse de veículos tradicionais da imprensa nacional. Em agosto daquele ano, a Folha de São Paulo publicou reportagem mostrando que a nova lei fez Goiás saltar de 16 para 24 instituições de ensino administradas pela PM (FOLHA DE SÃO PAULO, 2015).

Goiás passava a ser, então, o estado brasileiro com o maior número de escolas e colégios militares do Brasil, com quase um terço das 93 unidades contabilizadas pela reportagem, ficando à frente de Minas Gerais, que aparecia em seguida com 22 unidades. Acontece que, desde então, o modelo tem sido cada vez mais disseminado. Reportagem publicada pelo O Popular, em 20 de novembro de 2018, mostrou que 12,4% dos alunos da rede estadual já estudam em Colégios Estaduais da Polícia Militar do Estado de Goiás (CEPMG), apontando para a existência de 57 escolas em 43 municípios, atendendo um total de 63.595 alunos (O POPULAR, 2018).

Desde então, foram mais três colégios militarizados, conforme consta em tabela atualizada que é disponibilizada no Portal CEPMG, que é mantido pelo Comando de Ensino Policial Militar e reúne todo tipo de informação sobre estas unidades. Atualmente, são 60 unidades espalhadas por 46 municípios goianos. Isso quer dizer que a cada cinco cidades goianas uma possui, pelo menos, uma unidade educacional militarizada. Também é digno de nota o fato de que 22 escolas estão distribuídas pela Região Metropolitana de Goiânia, como ficará demonstrado nas tabelas abaixo:

Tabela 1 Quantidade de Colégios Estaduais da Polícia Militar por município do Estado de Goiás, em 2020 

Município Quantidade
Goiânia 8
Anápolis 3
Aparecida de Goiânia 3
Trindade 3
Goianira 2
Alexânia 1
Anicuns 1
Bom Jesus de Goiás 1
Caldas Novas 1
Catalão 1
Ceres 1
Formosa 1
Goianápolis 1
Goianésia 1
Goiás 1
Goiatuba 1
Guapó 1
Hidrolândia 1
Inhumas 1
Ipameri 1
Iporá 1
Itaberaí 1
Itapaci 1
Itapuranga 1
Itauçu 1
Itumbiara 1
Jaraguá 1
Jataí 1
Jussara 1
Luziânia 1
Morrinhos 1
Nerópolis 1
Novo Gama 1
Palmeiras de Goiás 1
Pirenópolis 1
Pires do Rio 1
Porangatu 1
Posse 1
Quirinópolis 1
Rio Verde 1
Rubiataba 1
Sanclerlândia 1
São Luiz dos Montes Belos 1
Senador Canedo 1
Uruaçu 1
Valparaiso 1
Total 60

Fonte: Portal CEPMG (2020).

Tabela 2 Quantidade de Colégios Estaduais da Polícia Militar de Goiás por município da Região Metropolitana de Goiânia, em 2020. 

Município Quantidade
Goiânia 8
Aparecida de Goiânia 3
Trindade 3
Goianira 2
Goianápolis 1
Guapó 1
Hidrolâncida 1
Inhumas 1
Nerópolis 1
Senador Canedo 1
Total 22

Fonte: Portal CEPMG (2020).

A expansão do modelo militarizado a partir de 2015 consolidou a posição de Goiás como o Estado com o maior número de colégios administrados pela PM. Uma reportagem da Revista IstoÉ, sobre o modelo de escolas cívico-militares que está sendo adotado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que merece um estudo à parte, aponta a política pública goiana como inspiração e mostrou que, em fevereiro de 2019, os 60 colégios detalhados acima representavam exatamente a metade dos 120 em atividade no Brasil (ISTOÉ, 2019). Desde então, o governo do Distrito Federal, que também argumenta ter se inspirado em Goiás, decidiu pela militarização de 11 escolas.

Apesar de expressivo, o número de colégios militares tende a ser maior nos próximos anos. Na verdade, só não o é agora por conta da falta de efetivo na Polícia Militar goiana. Uma reportagem publicada pelo Jornal O Popular, em 20 de maio de 2019, mostra que as 60 unidades poderiam ser ampliadas para 97, uma vez que 37 novas unidades já estão previstas em lei, mas não há militares e nem recursos suficientes para a militarização das mesmas (O POPULAR, 2019).

A mesma reportagem relata que 156 policiais foram retirados dos colégios na mesma época para reforçar o efetivo da PM nas ruas e também como uma medida de corte de gastos. Consta no texto que, mesmo com a redução, 864 militares atuam nos colégios em Goiás, sendo 303 da ativa e 561 da reserva. Estes últimos recebem indenização de convocação que representa aumento de 45% no salário.

O discurso para implementação desta política pública tem como fundamento o processo de disciplinamento e controle tanto de docentes como discentes da rede pública de ensino em Goiás (OLIVEIRA & ALVES, 2018). A secretária de Educação do Estado de Goiás, Fátima Gaviloli, afirma que o “critério para implantar (os colégios militares) são as que estão em locais de risco, violência e drogas” (O POPULAR, 2019). O argumento foi reforçado pelo atual governador Ronaldo Caiado (DEM) ao anunciar que três unidades cívico-militares do modelo adotado pelo governo federal iriam para o Entorno de Brasília, mais especificamente para as cidades de Águas Lindas de Goiás, Luziânia e Novo Gama (PORTAL MEC, 2019).

Entretanto, o discurso mais explícito de disciplinamento veio do Governador Marconi Perillo. Tanto em 2001, quando a regulamentação dos colégios militares foi alterada para permitir a militarização de unidades educacionais civis, quanto entre 2015 e 2018, período de maior expansão do modelo, Marconi era o governador de Goiás. Figura hegemônica na política goiana por 20 anos, entre 1998 e 2018, ele deu declarações simbólicas a respeito das motivações que o levaram a apostar na adoção desta política pública.

Em dezembro de 2015, ano que marcou a expansão do modelo militarizado de ensino em Goiás, Marconi entrou no assunto de forma voluntária durante um evento realizado por um grupo de empresários em Salvador, na Bahia. Enquanto falava da política educacional que pretenderia levar a cabo no quarto mandato de governador, que ele tinha iniciado naquele mesmo ano, notadamente o processo de transferência da gestão de unidades para organizações sociais (OSs), em uma política privatizante, o político justificou a ampliação do modelo militarizado de ensino da seguinte forma:

Fui num evento e tinha um grupo de professores radicais da extrema esquerda me xingando. Eu disse: tenho um remedinho pra vocês. Colégio Militar e Organização Social. Identifiquei as oito escolas desses professores. Preparei um projeto de lei e em seguida militarizei essas oito escolas. O Brasil está precisando de “nego” (sic) que tenha coragem de enfrentar (A TARDE, 2015).

Em outro momento da mesma fala, o ex-governador citou que não consegue “ver a educação avançando com sindicatos agressivos e essa coisa de professor pedir licença para tudo a qualquer hora”. Marconi fez referência a um episódio informado por SANTOS (2016, p. 25) em sua dissertação de mestrado. O autor relata que durante evento de entrega de bolsas atleta no Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia, Perillo se irritou quando foi vaiado por professores da rede estadual. Em greve por mais de trinta dias na época, os servidores protestaram na entrada do evento.

O discurso dos três políticos citados acima, dois governadores e uma secretária de educação, remete a uma ideia de imposição de disciplina àqueles que não seguem um padrão de comportamento desejado pelo Estado. De um lado, temos o argumento de controle de jovens empobrecidos tidos como foco de domínio do tráfico de drogas, de outro, os perigos da crítica dos professores organizados em sindicatos. Portanto, trata-se de uma política pública construída na contramão dos argumentos fundamentais de produção de uma educação pública para a liberdade e democracia, de acordo com o encontrado na análise de Paulo Carrano (2018) acerca da escola.

Passemos à análise do regimento interno dos colégios militares.

Escolas militarizadas: normas de conduta

Como as leis que tratam destas unidades militarizadas são omissas em relação a padrões e técnicas de ensino, quase tudo que diz respeito à atuação de civis e militares está regulamentado apenas pelo Regimento Interno. O exemplar analisado neste artigo é padronizado para todas as unidades de Goiás (PORTAL CEPMG, 2020), contendo 74 páginas e 276 artigos que tratam dos mais variados aspectos da vida escolar, determinando padrões de controle e comportamento, com definição de desvios e suas punições.

Entender a estrutura organizacional destes colégios militares é muito importante. Isso porque o regimento prevê que todos tenham a direção composta por oficiais da PM. No topo da hierarquia dos colégios está o Conselho Geral Colegiado dos CEPMGs (COLÉGIO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE GOIÁS, 2017 p.4). De caráter consultivo, normativo e deliberativo, o colegiado toma decisões que “possuem caráter de padronização de procedimentos administrativos e financeiros para todos os colégios” (CEPMG, 2017, p.5). Ele é composto por Presidente, Vice-Presidente, Secretário, Tesoureiro, Conselho de Diretores e Associação de Pais Mestres e Funcionários. Apenas os membros da associação, que têm direito a participação com um representante por unidade, não são obrigatoriamente integrantes da polícia (CEPMG, 2017, p.6).

No âmbito de cada escola, a autoridade máxima é exercida pela figura do Comandante e Diretor, que tem assento garantido no conselho. As duas funções são acumuladas e o documento obriga que elas sejam exercidas por um oficial, “preferencialmente” um tenente-coronel (CEPMG, 2017, p.7). A exigência de pertencer ao quadro de oficiais da corporação também vale para o Subcomandante, tratado como substituto eventual do Comandante. O único que foge à regra é o vice-diretor, que, apesar de cumprir ordens do Comandante e Diretor e ser indicado por ele, deve integrar os quadros da Secretaria Estadual de Educação (CEPMG, 2017, p. 9).

Posto fundamental para a análise pretendido neste artigo, o cargo de Chefe da Divisão Militar do Corpo Discente aparece logo abaixo do vice-diretor na hierarquia escolar e também é ocupado por um militar. Este indivíduo tem atribuições como “apurar e documentar as transgressões disciplinares do corpo discente”; “confeccionar e publicar em documento próprio as atividades relacionadas ao corpo discente”; “controlar e manter atualizada a ficha individual de alterações do corpo discente” (CEPMG, 2017, p. 10).

Diante do fato de que o Regimento foca no controle dos docentes e discentes, é fundamental apresentar como são entendidas e tratadas as transgressões.

As transgressões disciplinares dos alunos (o Regimento Interno lista 85 transgressões) podem ser classificadas como sendo de natureza leve, “aquelas que não chegam a comprometer os padrões morais, pedagógicos e escolares, situando-se exclusivamente no âmbito disciplinar”, acarretando advertência; média: “aquelas que atingem aos padrões de disciplina e/ou comprometem o bom andamento dos trabalhos escolares”, cujo transgressor recebe uma repreensão; e grave: “aquelas que comprometem a disciplina, os padrões morais e os costumes, bem como o andamento dos trabalhos pedagógicos”, sendo o aluno suspenso da sala de aula (CEPMG, 2017, p.46-51).

As técnicas de controle dos corpos ficam evidentes já na instituição das normas disciplinares das transgressões leves. Eis alguns dos exemplos: “transitar ou fazer uso de vias de acesso não permitidas ao corpo discente”; “conversar ou mexer-se quando estiver em forma”; “usar óculos com lentes ou armações de cores esdruxulas, mesmo sendo de grau, boné, tiaras, ligas coloridas ou outros adornos, quando uniformizados”; “mascar chiclete ou similares nas dependências do CEPMG, ou quando uniformizado”; “dobrar short ou camiseta de Educação Física para diminuir seu tamanho, desfigurando sua originalidade” (CEPMG, 2017, p. 46-47).

Eis algumas transgressões médias: “ter em seu poder, introduzir, ler ou distribuir, dentro do Colégio, publicações, estampas ou jornais que atentem contra a disciplina, a moral e a ordem pública”; “deixar de cortar o cabelo na forma regulamentar ou tingi-lo e/ou apresentar-se com barba, ou bigode por fazer e costeleta fora do padrão”; “não manter a devida compostura no refeitório (cantina), quer por ocasião de entrada ou saída”; “sentar-se no chão estando uniformizado”; “Dirigir memoriais ou petições a qualquer autoridade, sobre assuntos da alçada do comandante do CEPMG” (CEPMG, 2017, p. 47-48).

Por último, seguem exemplos de transgressões graves: “promover ou tomar parte de qualquer manifestação coletiva e/ou espalhar boatos ou notícias que venham a macular o nome do CEPMG ou a comunidade escolar”; “provocar ou tomar parte em manifestações de natureza política, em horário pedagógico”; “manter contato físico que denote envolvimento de cunho amoroso (namoro, abraços, beijos, etc.) dentro do Colégio, em suas adjacências ou em ato representativo escolar ou fora dele, estando uniformizado;”; “pichar ou causar qualquer poluição visual ou sonora dentro e nas proximidades do CEPMG”; “Desrespeitar os Símbolos Nacionais” (CEPMG, 2017, p. 49).

Fica evidente na análise do regimento interno dos colégios militares que há uma preocupação com o controle do posicionamento político e ideológico dos alunos, assim como de toda a comunidade escolar, especialmente quando se trata de ações coletivas. Faz-se necessário considerar, também, que a ampliação da política de instituição de escolas militarizadas coincide com o aumento das práticas coletivas de jovens que desde 2013 reassumiram um papel político importante na cena política brasileira, principalmente com as ocupações de universidade e escolas em todo o país (GROPPO, 2018; BECK, 2019).

O controle também fica evidente quando o documento define padrões de comportamento para os docentes. Mesmo não sendo vigiados por um profissional militar designado especificamente para isto, assim como acontece com os estudantes, os professores dos colégios militares goianos também atuam sob regras rígidas, estabelecidas através dos “deveres e vedações” impostos à comunidade escolar em geral.

É dever de todos, por exemplo, “comunicar à direção, imediatamente, todas as irregularidades que tenha conhecimento”. Entre as vedações estão “fazer proselitismo religioso, político-partidário ou ideológico, em qualquer circunstância, bem como, pregar doutrinas contrárias aos interesses nacionais, influenciando os demais membros da comunidade à tomada de atitude indisciplinada, irreverente ou de agitação, ainda que de forma dissimulada” e “descumprir, negligenciar ou incentivar o não cumprimento de qualquer ordem emitida por autoridade competente ou das disposições legais”, bem como “promover ou participar de movimento de hostilidade ou desrespeito ao CEPMG ou a qualquer autoridade constituída”. Por último, é digna de nota a proibição de “falar, escrever ou publicar artigos ou dar entrevistas, ou ainda divulgar assunto que envolva, direta ou indiretamente, o nome do CEPMG e da comunidade escolar, em qualquer época, sem que para isso esteja autorizado pelo Comandante e Diretor” (CEPMG, 2017, p. 40-41).

O documento que define os padrões de comportamentos dentro dos CEPMGs também trata do “respeito e apreço aos militares, funcionários civis e colegas”, manifestado, por exemplo, pela continência, sendo obrigatório “em todas as situações e atividades inerentes ao CEPMG” (CEPMG, 2017, p.55).

Enfim, a análise do documento evidencia uma visão limitada do papel das juventudes, no caso dos e das estudantes, no ambiente escolar, na contramão, por exemplo, do que é descrito nos estudos de Marília Sposito (2018) e Luís Groppo (2017) ao qual demonstram que as juventudes devem possuir papel ativo no processo de educação. Entretanto, a visão estabelecida nos colégios militarizados não entende as novas gerações como participantes do processo de educação, sendo que o próprio conteúdo escolar oferecido articula uma lógica educacional muito distante da perspectiva cidadã e libertária.

O controle dos corpos na educação militar

A escolha da noção de “corpos dóceis”, inspirada em Foucault, como ponto de partida para a análise dos procedimentos adotados nos CEPMGs, justifica-se a partir do olhar do autor para o que ele chama de “mecânica do poder” e “sua forma capilar de existir”. O autor aponta para seu interesse em buscar o ponto em que o exercício do poder encontra os indivíduos e seus corpos, a vida cotidiana, atuando sobre gestos atitudes e aprendizagem (FOUCAULT, 2014, p. 74).

Esse modo de enxergar o poder e o exercício do mesmo veio, segundo ele, a partir de um esforço para quebrar, de certa maneira, com a tradição dos estudos históricos, quase sempre voltada para as pessoas que detém o poder, notadamente os “heróis”, reis e generais e seus grandes feitos. Em oposição a isso, surge a história dos processos e das infraestruturas econômicas, que, por sua vez, deu lugar ao que Foucault chama de “história das instituições”, “do que se considera superestrutura em relação à economia” (FOUCAULT, 2014, p. 80). Deste modo, estratégias que ao mesmo tempo são gerais e sutis foram deixadas de lado. E mais ignoradas ainda foram as relações entre poder e saber, que muito interessam a este estudo.

Para Foucault, o poder tem em seus mecanismos estratégias que são, ao mesmo tempo, gerais e sutis. O autor afirma que “(...) o poder enlouquece, os que governam são cegos”. Ele entende que existe “(...) uma perpétua articulação do poder com o saber e do saber com o poder”. Quem tem o poder “(...) acumula informações e as utiliza”, pois o “(...) exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder”. Assim, o autor considera que não “(...) é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder” (FOUCAULT, 2014, p.80).

Para Foucault, o exercício do poder não se dá sempre de forma negativa, através da repressão, especialmente aquela que ocorre a partir do uso da força e da violência.

Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super−ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo − como se começa a conhecer − e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico (FOUCAULT, 2014, p. 84).

É com base nesses preceitos que Michel Foucault (1999) trata do fim dos suplícios, por meio do qual, indivíduos considerados criminosos ou “fora-da-lei” eram torturados e executados publicamente com objetivo de demonstração de força do soberano. Em rituais deste tipo havia a materialização do poder do monarca e o sujeito da punição servia como exemplo àqueles que presenciavam atos como a já muito conhecida e sádica execução pública de Robert-François Damiens (FOUCAULT, 1999, p. 6 - 8).

Após descrever com detalhes que chocam a morte de Damiens, Foucault aponta que, na transição entre os séculos XVIII e XIX, estas punições públicas e violentas passaram a dar lugar à coerção dos indivíduos com treinamento dos corpos via imposição de disciplinas rígidas. A violência e a coerção ganham um caráter simbólico que remete a Pierre Bourdieu (1989, p. 14), quando o mesmo aponta que os “sistemas simbólicos” cumprem sua função de imposição e legitimação da dominação. Este método está presente nas prisões modernas, onde há hora, local e padrões de comportamento definidos para cada ação dos presos, mas não só. Segundo Foucault:

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (FOUCAULT, 1999, p.163).

O autor entende que: “A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos” (FOUCAULT, 1999, p.163). E constata: “Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar” (FOUCAULT, 1999, p.163).

Esta imposição da disciplina tem como função primordial o “adestramento” que visa fabricar seres obedientes de forma discreta e sem os excessos dos suplícios. Surge “um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente” e de “procedimentos menores se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado”. O poder disciplinar se impõe a partir do “olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 1999, p. 191).

O autor entende que:

A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade de submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção, do general chefe até o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revistas, paradas, desfiles, etc., que permitem que cada indivíduo seja observado permanentemente (FOUCAULT, 2014 p. 106).

Foucault (1999, p. 166) detalha como os ambientes escolares reproduzem esta lógica de disciplina constante que é comum em quartéis, procedendo, primeiramente, a partir da distribuição dos indivíduos no espaço. Em seguida, vem o “quadriculamento”, ou seja: “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (FOUCAULT, 1999, p. 167). Procedimentos complementares aos dois primeiros são identificados nas localizações funcionais, permitindo que os passos de cada indivíduo sejam controlados de forma minuciosa (FOUCAULT, 1999, p. 168).

Os estudos de Foucault dão conta basicamente do modelo dos internatos que foram se consolidando, especialmente a partir do século XIX, inspirados nos conventos. Mas padrões semelhantes podem ser observados, em maior ou menor grau, nas instituições de ensino contemporâneas, como mostra Inês Araújo:

A fila, a carteira, o treino para a escrita, os exercícios com dificuldades crescentes, a repetição, a presença num tempo e num espaço recortados, a punição pelo menor desvio de conduta, a vigilância por parte de um mestre ou monitor, as provas, os exames, os testes de aprendizagem e de recuperação, o treinamento dentro de padrões e normas fixos. E mais, os resultados dos esforços pedagógicos sendo permanentemente avaliados por critérios também eles padronizados, leva a uma simples análise de boletins, que sirva para medir os casos que desviam, portanto, serve para marcar, excluir, normalizar (ARAÚJO, 2002, p. 79).

Se para Araújo o controle dos corpos é regra nas instituições escolares atuais, no caso das escolas e colégios militarizados em Goiás estas práticas parecem se manifestar de forma mais intensa e explicita, uma vez que cada detalhe, inclusive a aparência dos alunos, é regulado com precisão. A escola militarizada aparece como um antídoto ao movimento global de ação coletiva das novas gerações, nos moldes abordados por Dayrell e Oliveira (2018), que demonstram o papel político das juventudes nas manifestações contemporâneas antissistema.

Ao mesmo tempo em que parecem reforçar a obra de Foucault, os dispositivos de controle presentes no Regimento Interno analisado parecem ferir o “equilíbrio” pressuposto para uma vivência dialética da disciplina e da autoridade no ensino. A partir de uma citação de Celso de Melo Vasconcelos, Leandra Augusta de Carvalho Moura Cruz (2017) defende, em sua dissertação de mestrado sobre os colégios militarizados em Goiás, que a autoridade tem papel importante na formação de crianças e adolescentes, mas sempre acompanhada de liberdade. Para ela, o aluno precisa ser reconhecido como único e não somente um receptor de informações técnicas impostas sem que haja oportunidade de argumentar e questionar conteúdos informações. Com base nisso, a autora questiona:

Podemos questionar a eficácia ou não do processo de ensino e aprendizagem da disciplina restritiva, da qual grande parte das escolas, ainda nos dias atuais, faz uso. Se nas escolas públicas “normais e particulares precisamos repensar esse conceito de disciplina, reavaliar a realidade e abolir práticas autoritárias, elaborando coletivamente um plano de ação para mudar a realidade, o que fazer com os colégios militares que se utilizam de práticas autoritárias e de uma disciplina restritiva, considerando ainda que esse é o slogan de propaganda para a sociedade, como um modelo de disciplina ideal para a formação de bons cidadãos? (CRUZ, 2017, p. 97).

Cruz também cita Paulo Freire, segundo o qual “a disciplina é uma das tarefas da autoridade”. A defesa é feita em uma entrevista concedida pelo autor em um evento de profissionais de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo, em 1987, quando concedia uma palestra com o tema “Autoridade e autoritarismo na escola”. Para ele, a autoridade deve ser legítima, coerente e, portanto, guiada para a liberdade.

Seguindo o argumento de Freire, Cruz argumenta que o tempo dispensado para atos ocorridos dentro de sala de aula e que são considerados indisciplinados é muito maior do que o tempo gasto para trabalhar a própria questão da disciplina e que muitas vezes o aluno não sabe ao menos o que é a própria disciplina (CRUZ, 2017, p. 98). A autora entende que a partir de Paulo Freire, toda disciplina envolve autodisciplina. Ou seja: não há disciplina que, bem sucedida, não gere, ao mesmo tempo, o movimento de dentro para fora. O sujeito da disciplina precisa se disciplinar e isso pressupõe liberdade (CRUZ, 2017, p.99).

Entende-se que há no regimento interno dos CPMGs um controle rígido sobre vários padrões comportamentais, com um interesse específico na repreensão de qualquer tipo de manifestação política ou de questionamento de autoridades militares e estatais. Fica então evidenciada a perspectiva de controle dos colégios militarizados em Goiás se encaixa na obra de Michel Foucault:

É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico (FOUCAULT, 1999, p. 167).

No caso dos colégios militares goianos, essa disciplina é operada com o objetivo de garantir que a comunidade escolar corresponda a um padrão que não diz respeito somente ao “conteúdo”, mas também à “forma”. Ou seja, por mais que exista um discurso de levar educação e ensino de qualidade, principalmente para as periferias, é tão ou mais importante garantir a existência de padrões de comportamento, aparência e até mesmo de expressão de ideias e pensamentos, especialmente se os mesmos tiverem conotação política ou contrariarem os interesses do comando militar. Um modelo que se indispõe ao diálogo equânime com os jovens, entendidos como sujeitos de direitos (FERNANDES, 2019).

Nesse sentido, é possível perceber a intenção de submeter os corpos a padrões rígidos de controle. Ao definir a ideia de corpos dóceis, Foucault fala em um corpo “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1999, p. 118). Segundo ele, esse processo se dá a partir de uma “anatomia política” e uma “mecânica do poder” que “define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (FOUCAULT, 1999, p. 119).

Colégio militar e a noção de instituição total

Todas estas técnicas de controle têm paralelo com a militarização das escolas em Goiás e remetem, em parte, às “instituições totais” estudadas por Erving Goffman (2015). Este conceito surge como resultado de pesquisa de campo em um hospital psiquiátrico com o objetivo de compreender o universo social dos seus internos.

Apesar de os colégios militares não funcionarem como internatos e, portanto, não se enquadrarem em uma das características centrais para definição das instituições totais, que são isoladas do mundo externo e não permitem separação entre momentos de descanso e lazer (GOFFMAN, 2015, p. 16), é inevitável a semelhança no que diz respeito à função que as mesmas têm de “proteger a comunidade contra perigos intencionais”. Se o próprio Goffman (2015, p. 17) aponta que sua classificação das instituições totais não é “clara ou exaustiva”, é possível fazer uma comparação desse objetivo com o discurso de Marconi Perillo ao defender a adoção de “remedinho” contra baderneiros e também com o interesse do governo de Ronaldo Caiado em militarizar unidades para tentar resolver o problema da violência.

As semelhanças não param por aí. Também é central neste tipo de instituição a definição de uma rigorosa sequência de atividades que são “reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição” (GOFMMAN, 2015, p. 18). No caso dos CEPMGs, o Regimento Interno prevê, com muitos detalhes, o comportamento dos estudantes na vida cotidiana da escola. Há, por exemplo, uma sequência de artigos do Regimento que tratam do que seria um tipo de “Procedimento Normal”. O art. 209 do Regimento afirma que: “A continência individual é a forma de saudação que o aluno isolado, quando uniformizado, com ou sem cobertura deve aos símbolos, às autoridades e a tropa formada”. A continência deve ser dada na saudação também aos seus pares e aos militares. Há um artigo inclusive que normativa a forma como deve ser feita a continência:

Art. 211. A continência individual que trata o artigo anterior deverá ser feita da seguinte maneira: I - aluno parado e superior deslocando: a) posição de sentido, frente para o superior, leva a mão ao lado direito da fronte; a mão no prolongamento do antebraço, com a palma voltada para o rosto e com os dedos unidos e distendidos; o braço sensivelmente horizontal, formando um ângulo de 45º graus com a linha dos ombros; olhar franco e naturalmente voltado para o superior. Para desfazer a continência, baixa a mão em movimento enérgico, voltando à posição de sentido. b) A continência é feita quando o superior atinge a distância de três passos e desfeita um passo depois que o mesmo ultrapassar o aluno. II - aluno deslocando-se e superior parado ou deslocando-se em sentido contrário: a) se estiver deslocando em passo normal, o aluno fará a continência a três passos do superior, encarando-o com o olhar franco, desfazendo a continência um passo depois. III - aluno, deslocando-se alcança e ultrapassa o superior que se desloca no mesmo sentido: a) o aluno ao alcançar o superior, faz a continência. IV - aluno, deslocando-se é alcançado e ultrapassado pelo superior que se desloca no mesmo sentido: a) ao ser alcançado, o aluno faz a continência e a desfaz quando o superior tiver afastado um passo (CEPMG, 2017, p. 57).

O mesmo nível de detalhamento é utilizado no Regimento Interno para definir o uso dos uniformes e a padronização visual. Aos homens é proibido o uso de costeletas e é definido um corte de cabelo padrão, denominado “meia cabeleira”, “em que se usa para a parte inferior (nuca) e lateral do crânio, a maquina n.º 02 (dois); e para a parte superior do crânio a maquina n.º 04 (quatro)”. No caso das alunas, são previstos cortes curtos, médios e longos. Caso seja adotada uma das duas últimas opções, “os cabelos deverão ser presos por ‘coque’, ‘rabo-de-cavalo’, ou ‘rabo de cavalo trançado de forma simples’, quando a aluna estiver com o 3º uniforme (básico) e 6º uniforme (bata para gestantes)’” (CEPMG, 2017, p. 61 - p. 66).

É evidente a relação com uma das características das instituições totais. Segundo Goffman (2015, p. 28), é “muito provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais mantém, o que provoca desfiguração pessoal”. A referência a itens de higiene se deve ao fato de o autor considerar o isolamento do mundo externo, aos moldes de um internato, como característica fundamental das instituições totais. Apesar de estes exemplos não se encaixarem no nosso tema de estudo, é importante mencionar que a regulamentação dos colégios militares goianos exclui “lentes ou armações de cores esdruxulas, mesmo sendo de grau, boné, tiaras, ligas coloridas ou outros adornos” (CEPMG, 2017, p. 46).

Em Goffman, é possível entender os efeitos dessa grande quantidade de restrições impostas aos indivíduos nas instituições totais, sendo parte delas também presentes nos colégios militarizados de Goiás.

Já sugeri que a autoridade nas instituições totais se dirige para um grande número de itens de conduta - roupa, comportamento, maneiras - que ocorrem constantemente e que constantemente devem ser julgados. O internado não pode fugir facilmente da pressãode julgamentos oficiais e da rede envolvente de coerção. Uma instituição total assemelha-se a urna escola de boas maneiras, mas pouco refinada. Gostaria de comentar dois aspectos dessa tendência para multiplicação de regras ativamente impostas. Em primeiro lugar, tais regras sãomuitas vezes ligadas a urna obrigaçãode executar a atividaderegulada em uníssono com grupos de outros internados. É isso que as vezes se denomina arregimentação. Em segundo lugar, essas regras difusas ocorrem num sistema de autoridade escalonada: qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para impor disciplina a qualquer pessoa da classe de internados, o que aumenta nitidamente a possibilidade de sanção (GOFFMAN, 2015, p. 44).

O regimento interno dos colégios militares prevê que os alunos devem respeito a qualquer integrante do efetivo da PM que atua nas unidades, de maneira semelhante às unidades civis. Entretanto, é previsto que “alunos das séries mais antigas devem corrigir com urbanidade e disciplina as turmas mais modernas” e que “a precedência e a antiguidade entre as séries não podem ser dispensadas, devendo prevalecer em todas as situações” (CEPMG, 2017, p. 56). Apesar de não haver elementos comprobatórios, é razoável supor que, dentro da lógica proposta por Goffman, esta hierarquia, que vale inclusive entre os discentes, tem potencial para aumentar as possibilidades de sanções em determinados casos, tornando a vida cotidiana nos colégios militares permeada de elementos de controle típicos de uma instituição total. Nesse sentido, se já tem sido um desafio as tentativas de participação dos cidadãos estimulada por parte das instituições democratizadas (GALVÃO & SPOSITO, 2019), em um contexto com características de instituição total a ação do sujeito se torna improvável.

Considerações finais

A leitura critica do discurso utilizado para a expansão sem precedentes do modelo de ensino militarizado e das regras que ditam o funcionamento das unidades educacionais militarizadas em Goiás a partir da obra de Michel Foucault e de Erving Goffman revela que este projeto do Governo de Goiás, de forte caráter disciplinador, traz consigo uma ideia de docilização dos corpos. Trata-se de uma proposta de ensino que define padrões rígidos de comportamento; ela classifica e pretende evitar possíveis atitudes de professores e alunos que são vedadas e/ou tidas como transgressoras.

Além de tratarem das mais variadas posturas corporais e comportamentais, as regras estabelecidas para o ensino militarizado goiano indicam especial preocupação com posicionamentos político-partidários e buscam reprimir qualquer tipo de questionamento das autoridades instituídas dentro das próprias instituições educacionais e também no governo do Estado, limitando inclusive a liberdade de expressão da comunidade escolar.

Estas normas rígidas também remetem ao conceito de instituições totais de Goffman. Apesar de não atender a todas as características descritas pelo autor, que incluem a alienação total do indivíduo com o mundo fora dos limites físicos da instituição, é notável a existência de semelhanças significativas. Chama a atenção, neste sentido, o controle rígido de uma sequência de atividades e o conjunto de regras que padronizam o visual dos estudantes que causam a perda de identidade. Também são semelhantes as mecânicas que ampliam as possibilidades de punição ou represálias a partir da definição de hierarquia inclusive entre alunos.

Por fim, é fundamental entendermos que a política pública de intervenção militar nos colégios está em perfeita conformidade com a política de governo estabelecida em Goiás nas últimas décadas e levada a diante no atual governo brasileiro. Os padrões determinados para esta política de militarização denotam uma convergência com os pressupostos neoliberais,segundo o qual, é próprio deste modelo a convivência harmônica entre preceitos fundantes da ideia de um Estado mínimo na economia e na prestação de serviços, mas que é máximo no controle social, na imposição da disciplina e no encarceramento em massa.

Entende-se queeste braço controlador e punitivo recai especialmente sobre populações pobres que são mantidas à margem da sociedade. Não por acaso, este invasivo e autoritário Leviatã funciona como uma espécie de medicamento para a doença crônica cujos sintomas são, entre outros, insegurança e desigualdade sociais.

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Recebido: 30 de Outubro de 2020; Aceito: 04 de Dezembro de 2020; Publicado: 04 de Setembro de 2021

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