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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.5902/1984644444292 

Artigo Demanda Contínua

A arte da desaparição como experimentação tateante de pensamento: contribuições à pesquisa educacional

The art of disappearance as a groping thought experiment: contributions to educational research

Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci1  , Professor Doutor
http://orcid.org/0000-0003-2914-3032

Cintya Regina Ribeiro2  , Professora Doutoranda
http://orcid.org/0000-0002-7924-4539

1Professor Doutor na Universidade do Estado de Minas Gerais. Divinópolis, Minas Gerais, Brasil. christian.guimaraes.vinci@gmail.com

2Professora Doutoranda na Universidade de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil. cintyaribeiro@usp.br


RESUMO

O artigo tem como objetivo discutir as implicações da forma ensaística de pensamento para o campo da pesquisa educacional. A partir da triangulação de forças entre o pensamento de Michel de Montaigne, Enrique Vila Matas e Gilles Deleuze-Félix Guattari, o estudo explora de que modo, na aurora da subjetividade moderna, certa arte do retrato, produzida a partir da forma ensaística desenvolvida por Montaigne, permitiu a emergência de um modo de experimentação tateante do pensamento, cujo horizonte se volta a uma condição de desaparição. O trabalho visa esmiuçar essa distinta arte do retrato dedicada à desaparição, focando-se em sua potência fabulatória, bem como explorar suas ressonâncias nos modos como concebemos o ofício do pesquisador, sobretudo no campo educacional, em contraposição a outra arte de retrato denominada cartesiana. Por fim, a discussão aponta que a desaparição, ao instaurar outra geografia de pensamento, possibilita ao pesquisador educacional mobilizar procedimentos outros tendo em vista ensaiar o impensável.

Palavras-chave: Desaparição; Ensaio; Pesquisa Educacional

ABSTRACT

This article aims to discuss the so-called essayistic form of thinking and its impact for the field of educational research. From the triangulation of forces between the thinking of Michel de Montaigne, Enrique Vila Matas and Gilles Deleuze-Felix Guattari, the study explores how, in the dawn of modern subjectivity, a certain art of portraiture produced from the essayistic form developed by Montaigne, produces a groping mode of thought experimentation whose horizon turns to a condition of disappearance. This work aims to study this distinctive portrait art dedicated to disappearance, focusing on its fabulous power, as well as explore its resonances in the ways we conceive the researcher's craft, especially in the educational field, as opposed to another portrait art called cartesian and developed by René Descartes. The discussion points out that the disappearance, by establishing another geography of thought, enables the educational researcher to mobilize other procedures in order to research the unthinkable.

Keywords: Disappearance; Essay; Educational Researche

Introdução

“Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. (...) O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente”, asseverou Michel Foucault (1999, p. 536) em As Palavras e as Coisas. Esse seria um fato inconteste, argumenta o filósofo, e seria possível apostar que, muito em breve, o homem desapareceria “como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 1999, p. 536). Retomando o prognóstico foucaultiano, Enrique Vila-Matas (2009) também buscou sondar a trágica fortuna do homem, figura nascida sob o signo do esvaecimento. O desaparecimento, compreendido pelo escritor catalão como uma irrefreável sina, marcou indelevelmente os dois grandes marcos da modernidade: os Ensaios, de Michel de Montaigne, e as Meditações Metafísicas, de René Descartes.

Vila-Matas recorda que Montaigne, ao escrever os seus Ensaios, enclausurou-se em uma das torres de seu castelo em Bordeaux, isolou-se do mundo e desfrutou de uma relativa tranquilidade para poder pintar-se em palavras. Não almejava “o favor do mundo” e, por esse motivo, mostrava-se em sua “maneira mais simples, natural e habitual, sem apuro e artifício” (MONTAIGNE, 2002, p. 4). Aconselhava o seu leitor: “não é sensato que empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão” (MONTAIGNE, 2002, p. 4). Não raro, surgem certas construções coloquiais, destoantes da alta erudição demonstrada pelo ensaísta e passíveis de ilustrar aquela ausência de apuro e artifício propagada pelo escritor em sua apresentação. Dentre as expressões montaignianas, Vila-Matas (2009) ressalta a seguinte:“roubemos espaço aqui para uma história” (MONTAIGNE, 2002, p. 167). Esse recurso popularesco, argumenta o escritor catalão, possibilitaria inserir um relato qualquer no interior de reflexões filosóficas mais densas. Por meio dessas fórmulas singelas, Montaigne conferia movimento e velocidade ao seu pensar e, ademais, transmutava as mais altas sabedorias em simples prosa. Uma reflexão conferia espaço para uma ou outra banalidade que, por sua vez, permitia o surgimento de um relato pessoal e este, por seu turno, apontava para uma ponderação filosófica. No “Eu” mais profundo de Montaigne, parecia pulsar o mundo. O retrato pintado pelo ensaísta parece carecer de clareza e precisão. Os devaneios mais diversos ou os relatos mais triviais o encantavam e acabavam por conduzir sua narrativa por caminhos pouco ou nada convencionais. Em determinada altura de sua obra, Montaigne não se furta a dizer:

Os outros formam o homem; eu o descrevo, e reproduzo um homem particular muito mal formado e o qual, se eu tivesse de moldar novamente, em verdade faria muito diferente do que é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se extraviam, embora mudem e diversifiquem-se. O mundo não é mais que um perene movimento. (...) Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem. (...) Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova. (MONTAIGNE, 2002, p. 27-8)

Trata-se de uma curiosa arte do retrato, preocupada em apreender a passagem. Uma arte que, conforme argumentou Vila-Matas (2009), contrapor-se-ia àquela dita cartesiana. René Descartes também optou pela clausura, trancafiando-se em um lugar solitário de Ulm para escrever seus textos. Estes, contudo, não partilham do mesmo impulso presente nos escritos de Montaigne. Em suas Meditações Metafísicas,por exemplo, Descartes (2011) adotou uma visão mais sóbria, acreditando que qualquer devaneio ou coloquialismo seria uma forma de se desviar do seu “Eu” e, por conseguinte, da verdade. Não por outro motivo, ao refletir sobre qual a melhor arte do retrato que um pintor deveria adotar, argumentou:

Os pintores, mesmo quando se esforçam com o maior artifício em representar sereias e sátiros com formas esquisitas e extraordinárias, não lhes pode, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas fazem somente certa mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se talvez sua imaginação for bastante extravagante para inventar algo de tão novo que jamais tenhamos visto nada de semelhante, e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente fingida e absolutamente falsa, por certo no mínimo as cores com que eles o compõem devem ser verdadeiras. (DESCARTES, 2011, p. 33-34)

Descartes esconjura o ímpeto fabulatório do pensamento e busca fiar-se apenas em sóbrios elementos, matematicamente inquestionáveis. Frutos de um gênio maligno, qualquer distração - sentidos, devaneios, sonhos etc. - deve ser calada em prol do mais simples e do mais verdadeiro, do imutável e do estático. Diferentemente de Montaigne, interessado em entregar-se aos loucos devaneios de seu pensamento. Não por outro motivo, em Da ociosidade, lemos:

(Meu espírito) engendra-me tantas quimeras e monstros fantásticos, uns sobre os outros, sem ordem e sem propósito, que para examinar com vagar sua inépcia e estranheza comecei a registrá-los por escrito, esperando com o tempo fazer que se envergonhe de si mesmo por causa deles. (MONTAIGNE, 2002, p.46)

Na aurora da subjetividade moderna, em resumo, deparamos com duas artes do retrato, distintas e singulares. Uma, dita cartesiana, preocupada em captar o ser em sua pretensa essência imutável e verdadeira. Outra, ensaística, buscando entregar-se aos ébrios movimentos do pensar. Em ambas presentifica-se o risco do desaparecimento vislumbrado tanto por Foucault (1999) quanto por Vila-Matas (2009). No primeiro caso, o desaparecer do homem estaria atrelado às ilusões impostas pelos sentidos, pelos sonhos ou por um gênio maligno qualquer; no segundo, desaparecer seria uma espécie de inevitável movimento do próprio pensamento. Para Descartes, desaparecer é um problema a ser evitado; para Montaigne, um ponto a ser atingido.

Explorar esses dois vetores de força constitutivos de nossa modernidade, no âmbito de suas implicações para o campo da pesquisa educacional, constitui-se como o alvo desse artigo. O trabalho visa esmiuçar essas distintas artes do retrato dedicadas à desaparição e suas ressonâncias nos modos como concebemos o ofício do pesquisador, sobretudo no campo educacional. Há tempos, a pesquisa educacional, mormente aquela de acento deleuziano e/ou deleuzo-guattariano, busca flertar com essa arte montaigniana do retrato, de modo a escapar do teor metafísico presente no modo de pensar cartesiano e, assim, promover a desaparição do homem em prol de radicais experimentações empíricas de pensamento (VINCI; RIBEIRO, 2017; VINCI, 2019). Nesse sentido, o presente estudo busca explorar a potência fabulatória própria dessa arte do ensaio mobilizada por Montaigne, articulando de modo singular algumas discussões promovidas por Enrique Vila-Matas bem como por Gilles Deleuze, com ou sem seu parceiro Félix Guattari.

“Fora-daqui” ou perdendo teorias

Os devaneios ensaísticos de Montaigne o conduziram a um lugar sem nome, uma espécie de “fora-daqui”. Um mundo obscuro, no qual vivem canibais, vigoram medos de muitas ordens, a ociosidade é tão valorosa quanto a reflexão obstinada e assim por diante. Mundo no qual as impressões do “Eu” não chegam a configurar certezas, apenas ocasiões para se deixar levar numa longa jornada noite adentro, rumo ao desaparecimento. O ensaísta move-se pelas sendas daquilo que Vila-Matas denomina de regiões inferiores, lugares nos quais o olhar se fixa “somente nos acontecimentos mais minúsculos, em tudo o que parece provisório, transitório” (VILA-MATAS, 2009, p. 129). Decorre disso seu interesse pelas histórias mais banais. O “fora-daqui” de Montaigne não se encontraria em um além-mundo, sendo antes o efeito extraído da construção de outra relação com o espaço do vivido. Seria, pois, uma espécie de “fora-daqui” imanente.

Descartes, por sua vez, não obstante ciente de que o homem tende naturalmente a entregar-se aos mais loucos devaneios e seguir em direção ao desaparecimento, esforça-se em achar o eterno e o imutável. Para tanto, sua arte do retrato segue os preceitos defendidos há tempos em Discurso do Método, quais sejam: a) “nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal” (DESCARTES, 2009, p. 33), ou seja, aceitar apenas aquilo que se apresenta de maneira imediata e inconteste como correta ao próprio espírito - no caso, as verdades matemáticas -, de modo claro e distinto; b) no exame dessas verdades, dividir as dificuldades que se apresentam em “tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2009, p. 34); c) iniciar a análise dessas pequenas partículas pelas partes mais simples e mais fáceis de se conhecer; e, por fim, d) enumerar e revisar cada conclusão, nada omitindo.

Tal método, acessível a uma grande maioria (DESCARTES, 2009), estabelece uma série de preceitos capazes de nortear a priori uma investigação. Evitando se mover pelas tais regiões inferiores, nas quais tudo é transitório e incerto, o autor das Meditações Metafísicas pensa um caminho seguro para orientar seu pensamento e elevar-lhe o espírito a fim de melhor observar o mundo ao seu entorno. Descartes também almeja um “fora-daqui”, mas, diferentemente daquele buscado por Montaigne, esse encontrar-se-ia alhures. Para Descartes, a verdade e a certeza partiriam de um ser extramundano, Deus, cuja maior manifestação seria a nossa própria individualidade como seres pensantes que somos, o dito cogito. As histórias banais, os relatos fantásticos e as fabulações dos homens não lhe interessam, por serem frutos de seres iludidos e enganados. Ali, aonde Montaigne enxerga potência para acreditar nesse mundo, Descartes só vê erro e ilusão, quando não, loucura.

A pintura de Descartes, em resumo, segue preceitos muito bem definidos e delineados. Tais preceitos permitir-lhe-iam extrair os fundamentos de seu mundo a fim de melhor representá-lo em seus quadros; Montaigne, por sua vez, apresenta-se como um desvairado artista, uma vez que seus quadros não seguem regras ou protocolos de nenhuma ordem. Enquanto Descartes cria teorias e metodologias para melhor representar o seu mundo, Montaigne as perde.

Perder teorias, diz-nos Vila-Matas (2010), seria algo essencial para o exercício do pensamento. Para aqueles que primam por mover-se nas chamadas regiões inferiores, não existiria um alhures ou algo similar, apenas movimentos e devires. Para captá-los, precisamos criar um espaço outro, um “fora-daqui”. Poderíamos dizer que, aqui, não se trata de vislumbrar um além-mundo, tal qual Descartes, acessando uma imagem de um lugar mais verdadeiro ou perfeito; trata-se de habitar o espaço do vivido com suas baixezas e impurezas, ou seja, apossar-se das forças constitutivas de nosso mundo de modo a transmutá-las em algo impensável. Para tanto, convém escapar dos desmandos do cogito, dos imperativos da razão e buscar acessar uma zona nebulosa na qual não há nada senão fabulações e invenções, senão aquilo mesmo que poderíamos considerar como pensamento. As teorias e metodologias, elementos importantes da arte cartesiana, atam-nos linearmente ao cotidiano, obrigando-nos a focalizar o estático e o imutável, produzindo, assim, um instantâneo do mundo; uma arte ensaística como a de Montaigne, por sua vez, produz um fluxo voraz de pensamento, a partir do qual o impensável pode passar a ser ensaiado, por meio da criação de procedimentos singulares.

Foi Gilles Deleuze (1988) quem, certa vez, atestou o lastro criativo do pensamento. Defende o filósofo que apenas ao acessarmos o impensável, aquilo que não encontra referência no platônico mundo sensível ou das ideias, passamos realmente a pensar. Poderíamos aproximar a arte de Montaigne de um tal preceito? Acreditamos que sim. Vejamos. O pensamento, prossegue Deleuze, é de ordem intensiva, jamais extensiva - não obstante o privilégio da sensibilidade para sua produção:

O pensamento só pensa coagido e forçado, em presença daquilo que “dá a pensar”, daquilo que existe para ser pensado - e o que existe para ser pensado é do mesmo modo o impensável ou o não pensado, isto é, o fato perpétuo que “nós não pensamos ainda”. É verdade que, no caminho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade. Do intensivo ao pensamento, é sempre por meio de uma intensidade que o pensamento nos advém. O privilégio da sensibilidade como origem aparece nisso: o que força a sentir e aquilo que só pode ser sentido são uma mesma coisa no encontro, ao passo que as duas instâncias são distintas nos outros casos. (DELEUZE, 1988, p. 210)

Esses encontros violentos com certas intensidades constitutivas do mundo engendram pensamento em nós e emergem daquelas regiões nas quais Montaigne, Vila-Matas e tantos outros buscam habitar. Regiões nas quais não há método ou caminho seguro para nos guiar, apenas uma forte corrente fabulatória.

Seguindo algumas pistas dadas por Deleuze (1976; 1988; 2010), poderíamos afirmar que a arte cartesiana do retrato partilharia de uma concepção fragilizada do que significaria pensar, sendo portadora de uma imagem dogmática de pensamento. Essa imagem estaria assentada em três pressupostos, quais sejam: a) haveria uma relação necessária e natural entre a verdade e o pensamento; b) desviamo-nos da verdade por conta de uma série de distrações - sentidos, sonhos, devaneios etc. -, uma vez que não somos única e exclusivamente seres pensantes; e, por fim, c) para evitar tais distrações, bastaria um método - um artifício - capaz de nos colocar novamente em contato com a nossa natural propensão à verdade. Para os adeptos dessa imagem dogmática, pensar significaria o estabelecimento de relações entre supostos fatos empíricos e verdades há muito estabelecidas, partilhadas por todos graças ao senso comum ou por encontrarem-se instituídas em um além-mundo. A dificuldade em não conseguir forjar tais relações derivaria do fato de não sermos unicamente seres pensantes, mas sujeitos dotados de sensibilidade. Descartes, para sanar esse problema, concebe uma parcela de nós tomada como puro pensar - o cogito - a qual, de posse de um método preciso, seria capaz de acessar a verdade primeira do mundo - aquela estabelecida por um Deus portador de bondade infinita -, livrando-nos dos nossos mundanos erros e equívocos.

Entretanto, para Deleuze (1988), esse sujeito cartesiano jamais conseguiria efetivamente pensar, uma vez que o pensamento seria antes uma criação da ordem de movimentos terríveis, apenas suportados por sujeitos larvares, do que uma verdade reconhecida por uma substância pensante completamente formada, o dito cogito. Pensamos no movimento mesmo de nossa involução, ou seja, ao deixarmos de portar um “Eu”, uma consciência ou algo similar. Pensamos quando do encontro com o fluxo intensivo próprio das tais regiões inferiores, no momento em que desaparecemos.

A questão que fica, pois, é: como acessar esses movimentos terríveis? Em primeiro lugar, prossegue Deleuze, seria preciso “engendrar pensar no pensamento” (1988, p. 174). Para isso, seria necessário escaparmos da imagem dogmática de pensamento, aquela mesma propagada por homens como Descartes, livrando-nos de seus pressupostos e criando um “fora-daqui”. Como bons pintores, precisaríamos começar limpando os clichês de nossas telas, como nos instiga Deleuze:

O pintor tem várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no ateliê. Ora, tudo o que tem na cabeça ou ao seu redor já está na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou menos atualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na tela, sob a forma de imagens, atuais ou virtuais. De tal forma que o pintor não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não pinta para reproduzir na tela um objeto que funciona como modelo: ele pinta sobre imagens que já estão lá, para produzir uma tela cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia. Em suma, o que é preciso definir são todos esses “dados” que estão na tela antes que o trabalho do pintor comece. E, entre esses dados, quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho preparatório. (2007a, p. 91)

Encontramos ressonâncias, nessa imagem deleuziana, com a discussão de Vila-Matas sobre perda de teorias. Para o autor catalão (2010) a escrita só acontece quando a permitimos seguir seus próprios rumos ou quando deixamos de imaginar o que escreveríamos caso escrevêssemos e passamos simplesmente a escrever. As metodologias, nesse sentido, podem ser danosas, uma vez que estão carregadas de pressupostos sobre como escrever ou pensar. Enchem, portanto, a folha em branco de modelos e orações pré-formatadas. Ora, não sabemos de antemão como uma escrita acontece, como estabelece seus próprios caminhos, e tampouco do que seria capaz. Para responder a isso, seria preciso enfrentar, afirmativamente, o ato mesmo de escrever em luta com os clichês.

Vila-Matas (2010), ao esvaziar a página em branco e buscando construir seu “fora-daqui”, propõe abdicarmos de qualquer teoria ou metodologia, para que possamos adotar procedimentos. Por meio do estabelecimento de conexões diversas - Vila-Matas, por exemplo, escreve seus textos distorcendo citações literárias e filosóficas, algumas inventadas por ele -, o procedimento permitiria a criação de ocasiões para a escrita, situações nas quais somos conduzidos pelos fluxos fabulatórios dos próprios movimentos escriturais. Diferentemente do método, o procedimento é informe. Não possui pressupostos, tampouco regras ou ponto de chegada. Acredita piamente nesse mundo, procurando habitá-lo, sendo o seu único compromisso com as forças criativas das regiões insuspeitas.

Um procedimento, diante da folha em branco, brinca com os elementos que já estariam lá de maneira virtual: ora permitindo à escrita encontrar-se com um ou outro vetor de força capaz de potencializar o escrever, conduzindo-nos forçosamente a zonas de fabulação; ora os descartando, por impedirem os devaneios. O procedimento, como argumenta Deleuze (1997), nada mais é do que a escrita em processo. Processo infinito, incapaz de ser domado, tal qual o pensamento. Processo que surge quando, paradoxalmente, desaparecemos com o “Eu”, com o cogito, e com toda e qualquer metodologia. Se, caso optemos por embrenharmo-nos nessa vereda, não há método ou caminho seguro, tampouco modos de domar o pensamento-escrita, como prosseguir? Talvez seja preciso uma mudança de posição, uma conversão radical a certo empirismo, abrindo mão de qualquer porto seguro.

A arte do ensaio como um empirismo radical

Em Do costume - e de não mudar facilmente uma lei aceita, Montaigne compartilha o seguinte relato com o leitor:

Roubemos espaço aqui para uma história. Um fidalgo francês sempre se assoava com a mão - coisa muita avessa ao nosso costume. Acerca disso, defendendo sua atitude (e era famoso pelos ditos espirituosos), ele perguntou-me que privilégio tinha aquela suja excreção para que lhe fôssemos preparando um belo lenço delicado a fim de recebê-la e depois, o que é pior, empacotá-la e guardá-la cuidadosamente em nós; que isso devia causar mais horror e náusea do que vê-la ser lançada fora de qualquer maneira, como fazemos com todas as outras excreções. Achei que ele não falava totalmente sem razão e que o costume me eliminara a percepção dessa extravagância, que no entanto consideramos tão horrível quando é narrada a propósito de outro país. (MONTAIGNE, 2002, p. 167)

Surpreende o ensaísta esse estranho hábito do fidalgo francês, tão distante dos rituais adotados pelos nobres franceses. Esperava-se tal gesto, amiúde considerado extravagante e horrendo, de selvagens ou outros povos, ditos pouco ou nada civilizados, quando muito da plebe francesa. O costume do qual Montaigne estava embebido, porém, turvou-lhe a percepção. O uso de lenços, até então, era visto pelo ensaísta como algo essencial para a preservação da sociedade e caso algum cidadão recusasse assoar o seu nariz com um pedaço de pano bordado ou coisa que o valha, o edifício social quiçá entrasse em colapso. Haveria, para Montaigne, um império do costume, responsável por:

apoderar-se de nós e prender-nos em suas garras de tal forma que mal conseguimos libertar-nos de seu jugo e voltar a nós para refletirmos e raciocinarmos sobre suas ordens. Na verdade, porque o ingerimos com o leite de nosso nascimento, e porque a face do mundo se apresenta nesse estado ao nosso primeiro olhar, parece que nascemos para seguir esse procedimento. E as ideias comuns que vemos ser respeitadas ao nosso redor e infundidas em nossa alma pela semente de nossos pais parecem ser as gerais e naturais. (MONTAIGNE, 2002, p. 173)

O costume, esse “mestre-escola violento e traidor” (MONTAIGNE, 2002, p. 162), surge-nos como algo natural, uma vez que o ingerimos junto com o leite de nosso nascimento, e acaba por retirar nossa liberdade, condicionando, pois, nosso espaço de experiência ao infligir certas regras morais e prescrições comportamentais. Aprendemos quando crianças, por exemplo, com os nossos pais e professores, as maneiras corretas de agir, que se tornam hábitos, os quais não ousamos questionar, pois, se constituem como marcas indeléveis de uma boa educação.

Passamos, na sequência, a avaliar os hábitos alheios a partir do costume no qual fomos educados. Não raro, ousamos “educar” os adeptos de outros rituais ou, em outros termos, impondo-lhes nosso costume - por vezes, à base da força -, por considerá-lo mais civilizado ou avançado. Quão pesado fardo afigura, para Montaigne, essa nossa sanha educadora. Pretensos educadores que somos, na visão do ensaísta, agimos como a velha aldeã que “tendo aprendido a trazer nos braços um bezerro desde a hora de seu nascimento, e continuando sempre a assim fazer, pelo hábito ganhou isto: que ele já era boi adulto e ela o carregava ainda” (MONTAIGNE, 2002, p. 162). Convencionou-se chamar esse modelo “pedagógico” de cultura.

Montaigne, desconfiando do modo operatório de nossa cultura, procurou seguir por outra via, enxergando, na multiplicidade de hábitos existentes no mundo, a expressão de uma infinita potência criativa. Visando desvencilhar-se desse boi adulto, buscou, frente aos múltiplos costumes com os quais deparou ao longo de sua vida, compreendê-los em sua singularidade. O mais tresloucado ritual, para o ensaísta, daria mostras de uma liberdade de pensamento ímpar. Um costume surgiria sempre de modo a responder a uma situação específica, a um determinado problema. Longe de expressar alguma tendência natural da humanidade, um costume calaria as potências vitais dos homens ao condicioná-los a determinado modo de viver juntos. Não seria descabido afirmar que, em Montaigne, deparamos não só com o embrião de uma crítica ao universalismo, mas também com uma recusa à metafísica. Montaigne não acredita na natureza humana, embora considere, os ditos selvagens, homens de boa índole, e sequer confia em valores imutáveis; crê, unicamente, na potência criativa do mundo, dada a multiplicidade de suas manifestações. Não olha o mundo tal qual um francês, tampouco como um europeu, mas como um fabulador, alguém interessado em construir ou ensaiar outra relação com o espaço do vivido. Sua pátria, portanto, é o ensaio, o espaço de fabulação por excelência.

Para habitar esse espaço outro, Montaigne vale-se de uma crença singular ou, caso optemos pela companhia de Deleuze e Guattari (1992), mobiliza uma espécie de conversão empirista. Esta, embora seja uma das mais importantes tarefas políticas de nosso tempo, não é algo fácil de se alcançar, uma vez que exige a construção de um espaço diferencial. Na perspectiva de Deleuze e Guattari (1992), tal espacialidade se traduz em plano de imanência ou, em outros termos, uma “imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento... Não é um método, pois todo método concerne eventualmente aos conceitos e supõe uma tal imagem” (p. 53). Pré-filosófico, tal plano não opera por conceitos propriamente, mas “implica uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 58, grifos nossos).

Numa aproximação, poderíamos afirmar que aquela dita conversão empirista, ou a crença de Montaigne nas potências criativas do mundo, expressaria não só a busca pela construção desse plano, mas também os modos como procuramos habitá-lo - com maior ou menor sucesso. Dizem-nos, assim, os autores de O que é a Filosofia?

Sobre o novo plano (de imanência), poderia acontecer que o problema dissesse respeito, agora, à existência daquele que crê no mundo, não propriamente na existência do mundo, mas em suas possibilidades em movimentos e em intensidades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos animais e dos rochedos. Pode ocorrer que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência por descobrir, hoje, sobre nosso plano de imanência. É a conversão empirista (temos tantas razões de não crer no mundo dos homens, perdemos o mundo, pior que uma noiva, um filho ou um deus...). Sim, o problema mudou. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 99)

Produzidos na modulação da cultura, porém, habituamo-nos a outra imagem de pensamento, aquela denominada de dogmática por Deleuze e Guattari, e, por conseguinte, a outra imagem de sociedade. Tal imagem não teria sido criada pelo próprio processo de pensar, mas por algo que lhe seria exterior: o senso comum, a cultura, os costumes ou algo similar. Uma imagem que definiria o modo como devemos nos orientar no campo do pensável bem como aquilo que significaria pensar verdadeiramente ou ainda, a maneira de ordenar o espaço do comum. Uma imagem, ainda, capaz de instaurar pré-julgamentos e estabelecer o certo e o errado, o bem e o mal. Converter-se ao plano de imanência, à imagem engendrada pelo pensamento quando este ousa pensar o impensável, significaria desvencilhar-se das coordenadas herdadas por nós como se fossem naturais e buscar entregar-se a algumas experimentações tateantes. Um dos maiores empecilhos, nesse processo, decorreria dessa instância chamada “Eu” ou, em termos cartesianos, do dito cogito. Por já portar uma imagem do que significa pensar e por almejar atingir um alhures, o cogito impediria nossa conversão ao povoar o plano de imanência com memórias, valores e opiniões, com uma imagem de pensamento construída de véspera. Tal modo operatório da ciência cartesiana possuiria implicações políticas e epistemológicas para aqueles que buscam problematizar imagens de pensamento, sobretudo quando remetemos às práticas de pesquisa e nos encontramos implicados ao empirismo radical de um Montaigne ou de um Deleuze e Deleuze-Guattari. Nesse sentido, buscamos discutir, a seguir, as ressonâncias das discussões aqui apresentadas para o campo das pesquisas educacionais.

Ressonâncias educacionais

Para Nadja Prestes (1997) em sua obra Metafísica da subjetividade na educação: as dificuldades do desvencilhamento, a geografia do cogito teria determinado o espaço do pensável em Educação e os modos de viver juntos. Pensar seria, partindo da certeza de que verdades existem, refletir sobre os melhores modos de conviver em companhia de outrem a partir de um referencial pré-estabelecido e moldar, assim, a ação educativa visando atingir esses fins. A razão, desse modo, transmutar-se-ia em razão instrumental, sendo utilizada de forma a domar a potência criativa do mundo. Para Prestes (1997), vigoraria no modelo educacional fundado nessa arte cartesiana um dever ser, pautado numa ideia de um sujeito racional capaz de ser educado para se tornar um ente autônomo. O cogito cartesiano, essa essência partilhada pelos seres racionais, legitima o edifício pedagógico, cuja principal função é autonomizar os sujeitos, ou adequá-los a certa imagem de sociedade. Domá-los em seu pensar e em seu sentir. Na arte cartesiana do retrato, como vimos, há o risco da perdição, do desaparecimento do “Eu”; mas esse risco pode e deve ser evitado por meio de uma boa educação. Essa arte, por conseguinte, implicaria de largada uma necessidade de obedecermos a valores e costumes formatados de véspera. Não por outra razão, o edifício pedagógico moderno, aquele herdado por nós, imbui-se de uma série de tarefas de acento metafísico.

Diferentemente de Montaigne, para quem os costumes seriam os responsáveis por nos privar de nossa liberdade de pensamento, Descartes crê que os valores morais e cívicos de um povo, bem como sua cultura, devem ser respeitados indubitavelmente, pois apenas assim poderíamos pensar livremente. Defende, pois, o dito Império do Costume com afinco, chegando inclusive a elaborar uma moral provisória, responsável por conduzir seu espírito na busca da verdade sem afrontar qualquer valor estabelecido. Sua primeira máxima, aliás, foi assim apresentada:

Obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando com constância a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde minha infância, e governando-me em qualquer outra coisa segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso, que fossem comumente aceitas e praticadas pelas pessoas mais sensatas entre aquelas com quem teria que conviver. (DESCARTES, 2009, p. 44)

Essa moral justificaria a importância do cogito. Se o mundo não pode ser questionado em seus fundamentos, restaria apenas atuar sobre meu “Eu”. Descartes aposta que o grande locus de seu embate é sua própria subjetividade: “nunca meu propósito foi mais do que procurar reformar meus próprios pensamentos e construir um terreno que é todo meu” (DESCARTES, 2009, p. 27-28). Pensar implicaria moderar nossos apetites e buscar sensatez em nosso viver, seguindo os preceitos e protocolos há muito estabelecidos e partilhados pelo senso comum. O fluxo fabulatório da vida deve ser calado e suas múltiplas manifestações, ignoradas. As experimentações tateantes do plano de imanência, por sua vez, devem ser evitadas ao extremo.

A ciência dos homens, para Descartes, estabelece que os costumes devem ser respeitados, não competindo a um pesquisador afrontar os problemas estabelecidos em dada cultura, forjando novas e ousadas questões ou problematizando alguns de seus procedimentos; antes deve-se buscar refletir de maneira clara e detida sobre aquilo que está dado. Refletir, pois a verdade se faz sempre metodologicamente acessível e encontra-se já formatada em um alhures, sendo passível de ser atingida pelo cogito. Basta um pouco de comedimento e um método capaz de frear nossa louca voragem fabulatória, para pensarmos corretamente. Esse é um mundo no qual há verdades indubitáveis e eternas, cujo acesso dependeria apenas de nosso bom senso - bom senso para obedecer, bom senso para calar os apetites mais vorazes.

Os efeitos dessa arte cartesiana no campo da educação não podem ser desprezados, uma vez que tal território faz reverberar muitos dos preceitos científicos propagados por Descartes bem como suas múltiplas variações. Uma boa pesquisa educacional, levando em consideração a discussão sobre a prevalência dos costumes, questionaria: qual o melhor método para levar a cabo determinada prática? Tal perspectiva tende a rechaçar a pergunta que colocaria em xeque a própria necessidade ou a naturalização de referida prática e, consequentemente, a naturalização da premissa de que um método contemplaria uma melhor execução de uma ação educacional.

Assim, o pensável, para Descartes, diria respeito não ao procedimento em si, considerado como natural ou verdadeiro, mas às formas por ele assumidas no espaço do vivido e aos modos como elas se aproximam ou se afastam do original. Um mundo melhor, em Descartes, seria aquele no qual todos realizam suas práticas tal como reza o protocolo. Ainda que alguns, mais rebeldes, confrontar-se-iam com a moral estabelecida, permanece a prerrogativa de certa imagem transcendental disposta pela cultura e responsável por condicionar nossa experiência.

Por essa razão Montaigne envereda por um outro caminho, mais tortuoso: valendo-se do personagem do fidalgo sem lenço para abordar a problemática do costume, prefere abster-se de julgamentos peremptórios, lançando mão dessa situação paradigmática como uma ponte para o estabelecimento de outra relação com o mundo, em toda sua potência criativa. Muda, portanto, a geografia do pensável.

A arte de Montaigne abre uma picada singular na densa mata do pensar, ao buscar outras formas de se relacionar com a diversidade do mundo, defendendo a necessidade de nos relacionarmos com seu caráter criativo e indomável. Poderíamos fabular que Deleuze, muito provavelmente, argumentaria que o ensaísta buscou a saída justa, procurando engendrar em seu pensar, o próprio impensável, buscando, assim, a virtude do absurdo. Nessa chave, a figura montaigniana do fidalgo sem lenço não opera nos Ensaios como uma bandeira para a promoção de uma revolução dos costumes, reivindicando a mera substituição de um costume por outro. Trata-se, diferentemente, de uma aposta radical no impensável do mundo - eis a tarefa do pensamento, por excelência. Como nos instiga Deleuze (2007b), nessa passagem memorável:

Pois não é em nome de um mundo melhor ou mais verdadeiro que o pensamento apreende o intolerável nesse mundo, é, ao contrário, porque o mundo é intolerável que ele não pode mais pensar um mundo, nem pensar em si próprio. O intolerável não é mais uma grande injustiça, mas o estado permanente de uma banalidade cotidiana. O homem não é um mundo diferente daquele no qual sente o intolerável e se sente encurralado. O autômato espiritual está na situação psíquica do vidente, que enxerga melhor e mais longe na medida em que não pode reagir, isto é, pensar. Qual é, então, a saída sutil? Acreditar, não mais em outro mundo, mas na vinculação do homem e do mundo, no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossível, no impensável, que, no entanto, só pode ser pensado: “algum possível, senão sufoco”. É essa crença que faz do impensado a potência distintiva do pensamento, por absurdo, em virtude do absurdo. (...) Devemos, antes, nos servir dessa impotência para acreditar na vida, e encontrar a identidade do pensamento e da vida. (p. 205)

Na emergência da subjetividade moderna, portanto, deparamos com essa outra arte do retrato, cujo principal objetivo é forjar um “fora-daqui”, um espaço intensivo em constante tensão com aquele outro dito cartesiano. Tal tensão permanece nos nossos fazeres, visto que vez ou outra questiona-se se o pensamento deve acomodar-se a um suposto real, modificá-lo em prol do seu avesso ou fazê-lo transbordar em prol do impensável. Vez ou outra, um ou outro pesquisador indaga-se: pensar significaria refletir sobre o mundo, aprimorá-lo e colocá-lo no reto caminho estabelecido pelo senso comum, ou, pelo contrário, deveríamos apostar que

ao pensamento não caberia a condição pacífica de guardião da cultura e dos valores modernos, fazendo reverberar a conformidade do homem com supostas ontologias do mundo e de si. Refratário a qualquer modo de complacência diante das condições do viver, o pensamento seria de qualidade eminentemente combativa: um vetor de força que se faria contínuo no jogo do poder, produzindo a transgressão do pensável como gesto incondicional de resistência. (RIBEIRO, 2011, p. 620)

Como um vetor de força, talvez caiba ao pensamento tensionar os procedimentos há muito estabelecidos, afrontando o império do costume. Nesse sentido, não poderia furtar-se aos embates nas relações de poder. O pensamento seria, pois, da ordem da transgressão. Transgredir como um modo de atacar o intolerável, mas não visando produzir outro mundo, melhor e mais verdadeiro, mas buscando construir outra relação com esse mundo mesmo, por meio da forja de outra sensibilidade. Acreditar nesse mundo seria a principal tarefa desse outro modo de pensar - forjar e sustentar esse espaço que se faz como um “fora-daqui” e que implicaria na construção de condições que se abram às forças do impensável, ou, poderíamos dizer, na abertura a um plano de imanência.

Pesquisar, nesse diapasão, não implicaria um modo de fomentar melhorias nesse suposto real intolerável, numa visão meramente reformista. Numa perspectiva de imanência, pesquisar diz respeito a potencializar a relação dos homens com o mundo que habitam. Cada vivente possuiria uma relação única com o mundo, passível tanto de ser calada e uniformizada pela cultura quanto potencializada em sua singularidade. Para essa potencialização, seria preciso fazer durar esse espaço criado por cada qual e, para tanto, convém estabelecer conexões vitais que lhe deem sustentação. Permitir ao impensável surgir e perseverar, pois. Ao pesquisador, por conseguinte, não caberia o papel de ordenar processos a partir de um olhar exterior, adequando o trabalho investigativo a uma norma padrão estabelecida culturalmente e partilhada pelo senso comum. Diferentemente, sua tarefa diz respeito a acompanhar e potencializar distintos processos. Vitalizá-los, pois.

Modifica-se o terreno, modifica-se a geografia. Não são mais as coordenadas do cogito, mas uma coordenada que experimenta tatear linhas e processos. Modifica-se o modo operatório dessa ciência: “o objeto-processo requer uma pesquisa igualmente processual e a processualidade está presente em todos os momentos - na coleta, na análise, na discussão dos dados e também na escrita dos textos” (BARROS; KASTRUP, 2012, p. 59). Estamos em um outro espaço, sem fora e sem fronteiras. Espaço no qual só existem processos, no qual nada é eterno e imutável, no qual vige um eterno “fora-daqui”. “Fora-daqui” como força plástica, que não visa à instauração de um alhures, à realização de um mundo ideal no aqui-agora, mas à construção e ao fortalecimento de novas relações entre os homens e esse mundo, levando-os a experimentar o máximo de afectos possíveis e criando, assim, novas formas de viver juntos. Trata-se de uma louca ciência, pois.

“A ciência enquanto tal é como qualquer coisa, existe nela tanta loucura que lhe é própria”, afirmaram certa vez Deleuze e Guattari (1995, p. 102). Dar passagem a uma loucura científica e, poderíamos complementar, filosófica e artística, seria um dos maiores desafios na busca por um pensamento capaz de fazer transbordar o vivente e o vivido em prol de potências inauditas. Para tanto, seria preciso olhar o tarefeiro (COSTA, 2011), ou seja, essa figura que mobiliza incansavelmente os lugares comuns de nossos campos de saber, lançando-lhe outros olhos, mais afoitos e vorazes. Observar os gestos incomuns e pouco usuais em sua própria razão de ser, tal qual Montaigne o faz com seu personagem fidalgo, sem recorrer a imagens transcendentais. Praticar, “ir a campo, seguir processos, lançar-se na água, experimentar dispositivos, habitar um território, afinar a atenção, deslocar pontos de vista e praticar a escrita sempre levando em conta a produção coletiva do conhecimento” (BARROS; PASSOS, 2012, p. 203).

Esse outro espaço, sem “contornos estáveis” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2012, p. 92), rearranja as fronteiras do vivido ao evocar para si uma ciência louca, em fabulação. Ciência empirista, cujos objetos e sujeitos não estão dados de antemão, mas são configurados ao longo de um processo de experimentação. Neste não existem fronteiras disciplinares, uma vez que ciência, arte, e porque não dizer, filosofia, entram numa estranha comunhão. A dificuldade dessa outra geografia consiste no desafio de nos relacionarmos diferentemente com o mundo, em particular, o educacional. Vejamos a seguinte imagem, muito similar àquela encontrada nos retratistas cartesianos:

A cena tende a se repetir: professores limitados a reproduzir antigos métodos de ensino e avaliação (tais como a reprodução mecânica de roteiros, planos de aula, mimeógrafos sem vida e sem inovação); alunos e crianças, desde cedo, apartados de seu espírito artístico, alegre, curioso, inventivo são conduzidos para a rigidez do cumprimento do dever, de tarefas e horários desprezíveis. (COSTA, 2011, p. 280)

Em vez de conectar e comparar a cena com uma imagem do que seria uma boa educação ou um bom espaço escolar, tratar-se de ia de conclamar experimentações. Assim, um novo olhar se faz necessário, um olhar que busque captar as potências das redes cotidianas (FERRAÇO, 2007), daquilo que acontece em suas zonas impensadas, e potencialize cada pequeno modo de crer no mundo. Cada mínimo gesto serviria como uma ocasião, guardaria uma potência capaz de nos violentar e de nos levar a pensar. Gestos que só podem surgir quando de uma pesquisa, uma experimentação tateante, capaz de nos surpreender, pois, como argumentam alguns autores: “a vida de uma pesquisa é algo intrigante. Sujeita à sorte, ao tempo, aos lugares, à hora, ao perigo” (OLIVEIRA; PARAÍSO, 2012, p. 161).

Considerações finais

A arte do retrato elaborada por Montaigne na aurora da modernidade implica a construção de um espaço de pensamento singular no qual é possível experimentar ensaiar o impensável. Esse espaço, construído tanto a partir de uma imersão na mundanidade quanto no embate com os valores transcendentais vigentes, implica riscos, os quais passam a ser tomados como elementos constitutivos dessa nova geografia de pensamento.

A partir da triangulação de forças entre Montaigne, Vila Matas e Deleuze-Guattari, poderíamos afirmar que um dos riscos mais potentes nessa arte do retrato em pesquisa educacional encontra-se na força de desaparição. Ensaiar uma tal pintura, interessada em apreender a passagem e o devir, implica uma entrega aos loucos fluxos do pensamento e, como paga, a perda de qualquer porto seguro - o cogito, por exemplo. Seguimos de ideia em ideia, procurando saturá-las e levá-las aos seus limites, até aquele ponto no qual uma ideia se encontra com outra e, dessas núpcias, alguma outra coisa possa emergir, algo sem nome, um retrato da ordem do impensável. Esse movimento, ensaístico por excelência, seria a expressão máxima da desaparição.

Desparecer, seguindo Enrique Vila-Matas (2005), não implicaria um movimento de retração ou apagamento, mas o contrário. Desaparecer seria a expressão da mais voraz e absoluta entrega ao mundo, desfrutando de suas potências criativas, de modo que possamos ensaiá-lo lentamente e nos deleitarmos com as experimentações por ele propiciadas. Desaparecer, por conseguinte, não significaria se evadir ou declinar das coisas da vida, mas se empanturrar e se impregnar delas, ainda que das mais triviais. Uma tal força, vislumbrada pelo pensador catalão no pensamento de Montaigne, exige o apagamento das individualidades, o borrar da fronteira entre subjetividade e objetividade, e o abandono de toda e qualquer teoria. Nesse espaço, nada resta senão o ensaiar, senão viver o ensaio como gesto capaz de permitir a experimentação de mundos outros.

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Recebido: 14 de Maio de 2020; Aceito: 03 de Agosto de 2020; Publicado: 04 de Setembro de 2021

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