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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria Jan./Dec 2021  Epub Nov 10, 2023

https://doi.org/10.5902/198464440844 

Dossiê Políticas educativas, mediações e educação de jovens e adultos: olhares de resistência - 2021

Mediações didáticas em uma aula de leitura na EJA - mulheres relendo suas realidades e o mundo

Teaching mediations in EJA reading classes - women rereading their realities and the world

Marinaide Lima de Queiroz Freitas1 
http://orcid.org/0000-0003-3659-4165

Valéria Campos Campos Cavalcante2 
http://orcid.org/0000-0001-9512-1531

1Professora doutora na Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil. E-mail: naide12@hotmail.com.

2Professora doutora na Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil. E-mail: vccavalcante1@hotmail.com.


RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o ensino de Leitura da/na Educação de Jovens e Adultos (EJA), e traz como foco as mediações didáticas vivenciadas em uma aula de leitura. É recorte de uma pesquisa qualitativa, de base colaborativa (IBIAPINA, 2008), realizada em escolas públicas de Maceió, e desenvolvida no âmbito do Observatório Alagoano de Leitura na EJA (2011 a 2015), financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No percurso, dialogava-se sobre o ensino de Leitura e as didáticas/práticas desenvolvidas em sala de aula, perfil dos/as estudantes, suas histórias e necessidades de leituras, entendendo a leitura como prática social que acontece em todos os lugares: na vida, no trabalho e em diversas agências de letramento, incluindo nesse contexto a escola. Neste recorte, os resultados demonstraram que a sala de aula configurou-se como um espaço de exercício de autonomia, dos estudantes e da professora, quando puderam apropriar-se da realidade, captar as pressões, alterando-as, transformando-as em invenções cotidianas, inéditas e irrepetíveis.

Palavras-chave: Mulheres da EJA. Mediações didáticas

ABSTRACT

This paper presents to the reader a reflection on the Reading teaching in EJA, that focuses on the didactic mediations experienced in a reading class. This research is part of a qualitative, collaborative-based research (IBIAPINA, 2008), carried out in public schools of Maceió, and developed as part of Observatório Alagoano de Leitura em EJA (2011 to 2015) project, financed by the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (Capes). Along the way, dialogues about the teaching of Reading and didactics/practices developed in the classroom were provided, considering the profile of the students, their stories and reading needs, and understanding reading as a social practice that happens everywhere: in life, at work and in various literacy agencies, including the school. Further in this article, the results showed that the classroom was set as a space for the exercise of students and the teacher autonomy, especially when they were able to appropriate the reality, capturing the pressures, changing them, and transforming them into unprecedented and unrepeatable everyday inventions.

Keywords: Women in EJA. Didactic mediations

Primeiras palavras

Este artigo é um recorte da pesquisa denominada: A leitura e a formação de leitores, no estado de alagoas: estudo e intervenção de alfabetização, realizada pelo Observatório Alagoano de Leitura em Educação de Jovens e Adultos[1], situada nas ações do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão sobre Alfabetização (Nepeal), pertencente ao Centro de Educação (Cedu), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). A investigação do referido Observatório envolveu quatro escolas públicas, que atuam com a Educação de Jovens e Adultos, situadas na periferia urbana de Maceió, sendo duas municipais e duas estaduais. Essas escolas concordaram com a pesquisa, por livre e espontânea vontade, com o desejo de transformar o ambiente de ensino, uma vez que se tratava de um processo de pesquisa-formação[2],com abordagem colaborativo-interventiva (IBIAPINA, 2008), refletindo sobre mediações didáticas voltadas para área de leitura e a formação de leitores na EJA.

Buscou-se, no processo de estudo com os professores que durou quatro anos, a concepção de investigar com a escola e não sobre ela, contribuindo para que os integrantes da comunidade escolar se reconhecessem como produtores de conhecimentos. Nesse processo, há que se ressaltar a importância da mediação didática das professoras no ensino de leitura. Falar em mediação didática é falar sobre a presença do “outro” e da dinamicidade do signo. É falar da tensão, a reversibilidade, da impregnação da “palavra” que na [...] experiência verbal individual emerge e se configura em meio à incessante interação da enunciação dos outros, num processo, ao mesmo tempo, de incorporação/reação à palavra de outrem. (SMOLKA, 1991, p. 17).

Especificamente na EJA, as mediações didáticas devem ser comprometidas com uma postura perante o mundo, uma práxis política (FREIRE, 1996), que estabeleçam diálogos com as realidades e saberes dos educandos, os vínculos necessários para uma educação dialógica, problematizadora/emancipatória.

Ressalta-se, ainda, que no processo de aquisição de leitura na escola, sobretudo na EJA, a medição do professor é fundamental, pois “quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior a sua exposição a todo tipo de texto, mais fácil será sua compreensão” (KLEIMAN, 2004).

Leitura entendida como “uma atividade na qual leva-se em conta as experiências e os conhecimentos do leitor” (KOCH; ELIAS, 2009, p.11), compreendendo que “[...] a leitura de um texto exige [...] bem mais que o conhecimento do código linguístico [...]” (KOCH; ELIAS, 2009, p.11).

Nesse sentido, explicita-se que o/a leitor/a interage com o texto (re)significando-o, uma vez que o texto não está pronto, necessitando do/a leitor/a para atribuir sentido, considerando que a leitura é “[...] uma atividade complexa, plural, que se desenvolve em várias direções.” tendo como foco a “interação autor- texto-leitor”, altamente complexa de produção de sentidos [...]” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 11).

Neste texto, comentamos sobre: a leitura na sala de aula de EJA e as medições didáticas utilizadas por uma professora de EJA; considerando aspectos referentes à: I. Leitura na sala de aula da EJA - mediação do professor, II. Percursos da Pesquisa: contextos, sujeitos e procedimentos metodológicos, III. Vivências/experiências das mulheres da EJA do/no observatório alagoano de leitura na EJAeapresentamos as mediações didáticas vivenciadas por uma professora, a partir das sessões de estudo e de reflexão[3], ambos vivenciadas no processo da pesquisa formação.

Para tanto, utilizamos dados empíricos que ofereceram possibilidades de análises e contributos para o ensino de Leitura na EJA, possíveis de gerar mudanças na prática pedagógica e nas aprendizagens dos alunos, inspirando-nos em Freire (1996, p. 32), quando diz: “Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”, refletindo sobre o ensino de leitura na EJA e o seu fazer, que constrói conhecimentos cotidianamente.

Centramo-nos, em uma sala de aula da 3ª fase[4]da EJA, de uma escola pública municipal de Maceió, compreendida como uma construção histórica; lugar de interação entre os sujeitos, espaço de diálogos e relações entre os conhecimentos “[...] do mundo dos estudantes e a leitura” (FREIRE, 1996). Na sala de aula em foco, frequentavam entre 15 e 17 estudantes, todas mulheres, há que se ressaltar a importância da presença feminina, o que consideramos bastante significativo, tendo o cuidado conforme nos alerta Louro (1997, p.19) , ao dizer que:

A análise pelo viés apenas do gênero ao qual pertence não caracteriza este grupo bastante significativo e múltiplo como subalterno. Sua condição de excluído/a da escolaregular(grifo nosso) vai muito além do pertencimento ao sexo feminino, por si só. Um conjunto de fatores conduz estes sujeitos à invisibilidade. No entanto, a visão de ‘sexo frágil’, submisso não está mais universalizada.

Compreende-se a escola como um dos lócus de aprendizagens, lugar de avanços que incorporam novos conhecimentos, vivenciados por homens e mulheres, que podem ir além de currículos engessados, já que tem sua gênese na fluidez, na incerteza, no desequilíbrio, como nos aponta Morin (2003, p. 84), quando sustenta que a “Nova consciência começa a surgir: [...] confrontado de todos os lados às incertezas, é levado em uma nova aventura. É preciso aprender a enfrentar a incerteza”.

Leitura na sala de aula da EJA - mediação do professor

O ato de ler foi concebido como processo que ocorre por meio da interação entre o leitor e o autor, dependendo de ambos para a construção dos sentidos. É que nessa concepção o autor no ato da produção de seus textos deixa pistas linguísticas que são recuperadas pelos leitores/aprendizes. Nesse sentido, quando um leitor depara-se com um texto, deve observar os elementos que o compõem, ativando imediatamente os conhecimentos prévios, ideologias, pontos de vista a respeito do tema do que está sendo lido. Nessa concepção, a leitura processa-se a partir das informações presentes no texto e dos conhecimentos prévios dos leitores.

Assim, a leitura passa a ser compreendida como um processo ativo de construção de sentidos, necessitando da interação entre leitor e autor, tendo como veículo o texto. Segundo Koch & Elias (2009, p. 12):

[...] na concepção interacional (dialógica) da língua, os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que - dialogicamente - se constroem e são construídos no texto, considerando o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores.

Os estudos interacionistas de leitura reconhecem que as dificuldades encontradas em relação à compreensão de um texto estão relacionadas não só às dificuldades de decodificar as unidades linguísticas por parte dos leitores, mas, sobretudo, com a falta de conhecimentos prévios dos sujeitos no ato de ler.

Essa abordagem enfatiza que os autores deixam as marcas de intencionalidade nos textos produzidos, por meio das pistas linguísticas, cabendo ao leitor recuperar a intenção do autor, reconstruindo os sentidos a partir de seus conhecimentos de mundo. Dessa forma, o leitor deixa de ser um “depósito” de informações contidas no texto e passa a ser um coautor do material que está lendo.

Podemos afirmar que a compreensão do texto, neste processo, depende principalmente do propósito do leitor. Os professores que adotam essa concepção de leitura acreditam que existem diferentes formas de leitura para diversas situações da vida, nesse sentido, conforme nos lembra Solé (1998): existe aleitura para deleite(gêneros literários, anedotas, crônicas, etc); aleitura para trabalho(gêneros profissionais - relatórios, manuais de instruções, etc.)a leitura para estudo(gêneros didáticos - exposições, dissertações, ensaios, etc.);a leitura para  autoajuda (parábolas, fábulas, pensamentos, etc.) e algumas outras funções sociais que a leitura assume na sociedade. Sendo assim, todos os gêneros textuais devem ser prestigiados nas salas de aula da EJA.

Para Bakhtin (2006, p. 285):

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discursos.

Na nossa compreensão, inspirada na citação acima, ousamos afirmar que a escola necessita preparar seus jovens e adultos para a prática de uma leitura, que seja feita com o objetivo de se construir o sentido do texto que se lê e não apenas de decodificá-lo, mesmo porque os gêneros que circulam na sociedade são cheios de intencionalidade e portanto marcados ideologicamente. Essas marcas ideológicas não devem ser ignoradas, ao contrário devem ser apresentadas aos alunos, para que se possa refletir a respeito do funcionamento ideológico dos discursos.

Acreditando nestes pressupostos entendemos a relevância das mediações didáticas do professor da EJA no desenvolvimento da competência leitora dos estudantes, tornando-os, assim, aptos a interagir socialmente, por meio de textos, dos mais variados gêneros, nas mais diversas situações de interação social.

Desta forma, os professores devem priorizar, em suas aulas, atividades de leitura e produção de texto, deixando de lado, o ensino da gramática com frases soltas e descontextualizadas. Agindo assim, esses professores estarão possibilitando aos alunos: a) refletirem sobre o funcionamento da língua nas diversas situações de interação verbal; b) utilizarem os recursos que a língua lhes oferece, para compreensão e adequação dos textos a diversas situações cotidianas necessárias.

A referência para o estudante da EJA de um professor como leitor experiente e assíduo se torna ainda mais forte, uma vez que grande parte desses sujeitos não possui fora da escola convivência com pessoas que tenham hábitos leitores, que possam lhe servir como influência. Ademais, diante da precariedade das escolas da EJA, sobretudo em Alagoas, observa-se que a responsabilidade de formar leitores nas escolas tem recaído, quase que exclusivamente, na didática do professor em sala de aula.

Mediações didáticas no Ensino de Leitura na EJA

Mediações didáticas, entendidas como ações que envolvem questões simbólicas, culturais, sociais, epistemológicas e pedagógicas, constituindo-se em um campo heterogêneo, que atua sobre as habilidades cognitivas dos sujeitos. É por meio de mediações didáticas/dialógicas que ocorrem as interações na EJA, os sujeitos da aprendizagem produzem e ampliam seus conhecimentos. Partindo desse pressuposto, entende-se que a mediação didática nas aulas de leitura da EJA deve permitir a formação de leitores críticos, considerando que “a reflexão didática parte do compromisso com a transformação social, com a busca de práticas pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente [...].” (CANDAU, 1993, p. 10). Nesta concepção ao se implementar práticas de leitura na EJA, o educador deve estabelecer relações dialógicas entre o sujeito/leitor e o texto lido.

Isso porque a constituição dialógica do sujeito sustenta-se na enunciação, entendida como um processo social em que o “eu” institui-se mediado no outro e como o outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade que emerge o diálogo, tendo em vista que o homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo, (BAKHTIN, 2006, p. 180).

Durante a trajetória de nossa pesquisa compreendemos que os fundamentos político-epistemológicos e reflexões nos permitiram avançar para além da dicotomização e da hierarquização entre os diferentes conhecimentos e didáticas desenvolvidas nas salas de aula da EJA. Entendendo, portanto, que os conhecimentos construídos nas salas de aula de leitura observadas se enredaram aos processos de reflexão em torno da emancipação social e da possível contribuição das escolas a esse processo.

Ao focar nossa atenção nas mediações didáticas nas aula de leitura na EJA, compreendemos que os sujeitos da pesquisa, estudantes jovens, adultos e idosos, junto com as professoras trouxeram saberes de suas vidas para a escola, e esses saberes se entrelaçaram nas salas de aula, sobretudo nas aulas de leitura, construindo processos de mútuos de conhecimentos. Numa perspectiva dialógica contínua, permitindo desvelar intenções e compromissos éticos, explicitando o sentido e a coerência das ações, como sempre nos ensinou Freire (1975).

Diante desses pressupostos, reconhecemos que as salas de aula da EJA são espaços de diálogos que ampliam os conhecimentos dos estudantes. E a dialogicidade poderá permitir a construção de didáticas democráticas e emancipatórias nas salas de aula. No âmbito educacional há que se ressaltar que dialogar não pode ser “catequizar”, mas socializar para uma reflexão-ação. Dialogar é problematizar o fazer pedagógico e suas consequências, é suscitar exigências para a mudança. Não se trata de apresentar respostas prontas, mas questionar as intenções e contradições do constituído, processar a reconstrução.

Nesse sentido, o diálogo torna-se a concretização do próprio exercício para a liberdade, uma vez que, segundo Freire (1992, p. 92),

[...] a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.

Ressaltamos, portanto, a importância do educador enquanto mediador nas aulas de leitura, reconhecendo, que não há nenhum instrumento ou tecnologia que o substitua, sendo assim, sua presença, seu exemplo, sua experiência representam a possibilidade de mediação entre os sujeitos alunos e os conhecimentos sistematizados por intermédio do domínio das habilidades de leitura e escrita que a sociedade vem exigindo.

Nas palavras de Freire, uma Educação como prática da liberdade (1975, p. 150) requer: “[...] que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como força de transformação do mundo”. Transformação social que é mediada pelo diálogo, considerando que “[...] os seres humanos se constroem em diálogos, pois são essencialmente comunicativos”. Não há, portanto, educação sem diálogo, e que o momento do diálogo é o momento para transformar a realidade.

Nesse sentido, o educador da EJA comprometido com a emancipação dos estudantes, institui mediações didáticas na área de leitura permeadas pelo diálogo formador e democrático, nesta concepção, ao pensar uma didática da leitura, o educador deve considerar que a mediação didática pressupõe uma epistemologia da prática, que implica em garantir a aprendizagem de todos, como forma de justiça social e curricular (SANTOS, 2010). Tal perspectiva apoia-se na compreensão de que a mediação didática da leitura na EJA deve partir de uma tomada de posição a respeito das concepções de leitura, do lugar do sujeito leitor, dos sentidos atribuídos aos textos e das práticas sociais de uso da leitura no mundo letrado.

Considerando as vozes dos sujeitos estudantes e professores, o contexto em que estão inseridos; as comunidades em que vivem, as práticas culturais e sociais com que têm contato em suas comunidades, em suas motivações e expectativas em relação à escola, entre outros. Estamos assumindo que “[...] as escolas públicas como lugares onde, apesar de todas as pressões sofridas, a esperança ainda é um dado de vida. Também queremos, de antemão, deixar registrado nosso otimismo em relação às escolas e aos seus sujeitos” (FERRAÇO, 2001, p. 79).

Dessa maneira, os professores da EJA precisam garantir aos educandos um processo que ultrapasse a visão de apenas ensinar a ler e escrever, ou seja, um ensino de leitura que agregue as duas dimensões do letramento: a individual, que se refere à alfabetização, e a sociocultural que envolve o uso e práticas de leitura e escrita (SOARES, 2003). Uma prática comprometida com indivíduos possuidores de saberes, como afirma Freire (1992, p.36 e 37):

Decência e boniteza de mãos dadas. [...] mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos.

As práticas de leitura e escrita exercidas no contexto escolar não podem ser desvinculadas dos contextos socioculturais reais dos educando, para que os sujeitos da EJA tornem-se leitores experientes e elevem o seu nível de letramento. Leitura assim compreendida enquanto processo de interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo. E, que esses conhecimentos auxiliem na elaboração de uma proposta de leitura que valorize os aprendizes/leitores como sujeitos portadores de conhecimentos, capazes de dialogarem com os autores e negociar significados.

Percursos da Pesquisa: contextos, sujeitos e procedimentos metodológicos

Ocorpusque fundamenta nosso diálogo, adveio de observações, que foram gravadas e filmadas, bem como falas dos estudantes, por meio de grupos focais realizados em uma das escolas que dominamos de Rubi - nome fictício - entre as quatro unidades que compuseram oslocida pesquisa do Observatório Alagoano de Leitura na EJA.

A opção por essa escola, deu-se por termos acompanhado de forma sistemática, as suas ações e a presença marcante de mulheres-estudantes nas salas observadas, suas histórias de vidas e as tentativas de superação. As observações assumiram a perspectiva nos/dos/com os cotidianos (ALVES, GARCIA 2002, DE CERTEAU, 1994) posicionando-se na compreensão do “cotidiano como invenção”, tomando como foco especificamente as aulas de leitura na EJA. Nesse percurso, ficou explícito que:

[...] entender, de maneira diferente do aprendido (que já sabemos não dar conta do que buscamos), as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano de modo geral, exige que estejamos dispostos/as a ver além daquilo que outros já viram e muito mais: que sejamos capazes de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade, captando sutilezas sonoras, sentindo a variedade de sabores, tocando coisas e pessoas e nos deixando tocar por elas, cheirando os cheiros que estão em cada ponto de nosso caminho diário e aprendendo a ler o corpo, este desconhecido que tantos sinais incompreensíveis nos dá (ALVES; GARCIA, 2002, p. 261).

Com base nessa citação ficamos provocadas a não sermos meras observadoras passivas que descrevem, apenas, os acontecimentos. Assumimos, com clareza, que o nosso papel deveria ser de pesquisadoras imersas no cotidiano escolar, configurando-nos no sentido de:

[...] compreender como os sujeitos das práticas tecem seus conhecimentos de todos os tipos, buscando discutir, assim, o que poderíamos chamar o fazer curricular cotidiano e as lógicas de tecer conhecimentos nas redes cotidianas, as das escolas, de seus professores/professoras e de seus alunos/alunas, dentre tantas (ALVES, 2002, p. 17).

Dessa forma, fortalecendo-nos na compreensão, sobretudo na metáfora da rede, referendada por Alves (2002), a qual aponta que ospraticantesdesenvolvem conhecimentos em extensas e poderosas redes de contatos, comunicação e informações, não agindo somente enquanto consumidores. Mas no uso que fazem do que é criado pela ciência e pela técnica, assumem sempre o lugar decriador, para muito além da passividade.

Fomos despertadas, ainda, para que o nosso olhar permanecesse, durante a trajetória desta pesquisa, sempre debruçado sobre as leituras realizadas em sala de aula, e as imagens e narrativas, buscando entender quais as principais características dessas redes ao serem tecidas com outros tantos cotidianos em que vivem esses sujeitos. É a partir desse sentimento que comentamos os itens que se seguem.

Ao observar a prática em sala de aula da EJA, nos interessava, neste estudo, as relações que eram estabelecidas nessas aulas, bem como as redes desaberesfazerese poderes entrelaçados nas práticas de leitura, que aconteciam nessesespaçostempos, onde aconteciam também a interação entre as professoras e os estudantes.

Mulheres da EJA

Especificando as/os estudantes que estão frequentando as aulas noturnas da EJA em Alagoas, podemos avaliar que sujeitos são vítimas da indiferença, desemprego e do descaso, socialmente estigmatizados e excluídos, muitas vezes, vítimas ou envolvidos em casos de violência. A escola da EJA, portanto, reconhecida como espaço de diversidades, entre os sujeitos sociais, que abriga cenários em que vivência e aprendizagem são construídas. As diversidades culturais dos/das estudantes apresentaram características singulares, entre elas: múltiplas opções religiosas, variedades linguísticas, expectativas socioculturais diferentes e práticas de leitura e de escrita inerentes às agências de letramento, que fazem parte.

Considerando a presença maciça das mulheres nas salas de aulas da EJA em Alagoas, em nossas observações do Observatório podemos constar que, em várias aulas, havia apenas o público feminino, diante disso, entendemos ser necessário, abrimos um parênteses para ressaltarmos suas identidades. Identidades e diferenças entendidas na perspectiva de Canen e Xavier (2011, p. 642), que numa leitura de Silva (2000)[5]e Hall (1999)[6]afirmam ser “[...] como construções discursivas que se deslocam e se conflitam, ‘reinscrevendo’ novos signos em sua composição”, constituindo-se com interlocutores socioculturais com identidades próprias no processo deensinoaprendizagem [7] .

Entretanto, a escola muitas vezes finge não enxergar as diferenças invisibilizando-as, com relação ao papel da escola, tornando-se, no dizer de Louro (2004), formadora de desigualdades e invisibilidade, sobretudo no que diz respeito às relações de gênero, e que muitas vezes as produz. É que:

Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos - tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinha acesso. Ela dividiu também, internamento, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela civilização ocidental moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para ricos e para pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas (LOURO, 2004, p. 57).

Para compreender as identidades e as diferenças das estudantes, que participaram da pesquisa do observatório, foi importante escutá-las, não simplesmente para decodificar as suas mensagens, mas para compreender os sentidos que foram produzidos em condições determinadas e o que esses sentidos têm a ver com o que é/foi vivido pelas mulheres/estudantes, suas experiências, suas histórias de vida.

No contexto vivido consideramos, sobretudo, as narrativas das envolvidas com/na pesquisa, pois essas narrativas carregavam o peso da legitimidade de todo processo, uma vez que os narradores/as trabalham na primeira pessoa, falam de si, de suas emoções, dos seus “erros”, das suas preferências. Nesse processo são detalhadas experiências vivenciadas pelo/a narrador/a.

A garantia da presença da mulher nas turmas da EJA está explicitada em diversos documentos nacionais e internacionais, como, por exemplo, a CONFINTEA V, realizada em Hamburgo - Alemanha, em 1997 e a CONFINTEA VI, realizada no Brasil, em 2010, que geram: A Declaração e o Marco de Belém, respectivamente. A primeira Conferência explicitou que:

As mulheres (grifo nosso) têm o direito às mesmas oportunidades que os homens. A sociedade, por sua vez, depende da sua contribuição em todas as áreas de trabalho e em todos os aspectos da vida cotidiana. As políticas de educação voltadas para jovens e adultos devem estar baseadas na cultura própria de cada sociedade, dando prioridade à expansão das oportunidades educacionais para todas as mulheres, respeitando sua diversidade e eliminando os preconceitos e estereótipos que limitam o seu acesso à educação e que restringem os seus benefícios. (CONFINTEA V, 1997).

Tomando como referência as mulheres da EJA que frequentavam a turma investigada, podemos constatar que grande parte dessas educandas já frequentou a escola em outros momentos da vida, tendo uma história escolar marcada por múltiplas reprovações, o que faz com que elas cheguem à modalidade como estudantes marcadas pelo fracasso, mas que atualmente lutam pela permanência na escola. Entendendo permanência, como,

[...] ato de durar no tempo que deve possibilitar não só a constância do indivíduo, como também, a possibilidade de transformação e existência. Permanecer é estar e ser continuum no fluxo do tempo, (trans)formando pelo diálogo e pelas trocas necessárias e construidoras [...] (REIS, 2009, p. 68).

Consideramos que isso é possível quando Louro (1997, 49), nos alerta que,

[...] As mulheres estão rompendo com estas amarras e estão construindo novas possibilidades, novos caminhos. Assim sendo, conscientes de que são sujeitos de sua história, desconstroem paradigmas e transpassam fronteiras. Saem do luto. Vão à luta. Mesmo com essas interpretações estáticas e repletas de estereótipos desfavoráveis, o universo feminino vem buscando estratégias de se fazer ouvir no interior de uma sociedade que nega voz histórica, política, educacional e culturalmente (LOURO, 1997, p. 49).

Mulheres essas, que depois de muitas entradas e saídas da escola, abandonaram a possibilidade de permanecer estudando, por motivos, sobretudo, de machismo do pai, provocando a opção pelo casamento e se tornarem mães precoces, sem, com isso, sair das “amarras” do machismo, dessa vez do companheiro.

Neste trabalho, ficou explicito a “[...] forte experiência humana[...] de mulheres alagoanas como “[narradoras]praticantespensantestraçando/trançando as redes dos múltiplos conhecimentos na escola que chegaram/chegam até nós, neles inserindo, sempre, o fio do nosso modo próprio de contar […]” (ALVES; GARCIA, 2002, p. 274) e demostram que possuem conhecimentos adquiridos na vida cotidiana, por meio das experiências com familiares, comunidade, mundo do trabalho, e vivem um movimento pendular de saídas e entradas da escola, só no ensino dito regular e na EJA, como já dissemos.

Nesse contexto, para essas estudantes da EJA a escola aparece como principal agenciadora de leitura, que lhes permite certo status, na comunidade linguística que circulam. Considerando seus saberesdentroforada escola, que envolve captar, estar abertos e sensíveis as experiências sociais. As práticas de leitura em salas de aulas, personificados em mediação das professoras, e leituras de textos, puderam constituir como possibilidades emancipatórias na/da EJA, pois, acreditamos que não podemos mais aceitar que nos cotidianos escolares prevaleça a valorização do conhecimento formal em detrimento do conhecimento trazido pelos/as estudantes.

Vivências/experiências das mulheres da EJA do/no Observatório Alagoano de Leitura na EJA

A legitimidade desta pesquisa é compreendida a partir dos aspectos inerentes as ações pedagógicas, especificamente de leitura, desenvolvidas na referida escola, considerando as leituras, realizadas em sala, enredadas em conhecimentos, valores, crenças e convicções em diferentes contextos sociais em processo de interação (OLIVEIRA, 2012), o que permitiu reconhecer as experiências das mulheres que estudavam a época da investigação.

Entendemos que os acontecimentos no espaço escolar “[...] são articulados uns aos outros, embora de modo desigual e com diferentes intensidades, e se inter-influenciando, permanentemente" (ALVES, 2010, p. 55). Não podemos desconsiderar as múltiplas produções dos sujeitos que praticam e habitam os cotidianos das escolas. E a sala de aula um espaço que amplia os conhecimentos das estudantes, lugar de diálogos, de permanentes inovações, inscritas no que Santos (2004) sustenta como emancipação social, sendo esta uma possibilidade de criação de relações mais ecológicas, entre diferentes conhecimentos, temporalidades, culturas, escalas e sistemas de produção.

Nesse percurso no/do/com o cotidiano nas escolas de EJA observadas, buscamos, principalmente, por não possuir uma pretensão de manter a verdade absoluta, uma vez que buscamos refletir sobre práticas de leitura centradas nas variadas tradições culturais, nos saberes do cotidiano dos estudantes e professoras, nas suas experiências de vida, sem negar o valor e a importância dos conhecimentos produzidos pela ciência.

Conforme ressaltamos anteriormente, nesta aula de leitura especificamente só estavam presentes mulheres, para essas estudantes da EJA, envolvidas na pesquisa, a decisão de voltar à escola é uma forma de resistência, e é, de certa maneira, uma possibilidade de melhorar a situação socioeconômica. Em seus discursos fica claro que mesmo diante de suas situações de subalternidade em relação à vida, situações socioeconômicas, ou como afirmam “[...]mesmo com todas dificuldades da vida” insistem em permanecer na escola.

Nessa caminhada, no cotidiano das escolas da EJA, ao nos envolver mais com as estudantes, fomos percebendo que essas mulheres, a cada dia na sala de aula, resistem, permanecem burlando e contrariando a opressão dos currículos engessados. Nesse sentido, rompem e inventam, demonstrando que currículos advêm das práticas cotidianas, negando as “duas formas de inconsciência, a que se recusa a ver os destroços e a que se exime de reconstruir, a que nega o problema e a que renuncia a buscar uma solução” (DE CERTEAU, 1994, p. 54). E, acreditando nisso, esta pesquisa sondou atentamente as vias da lucidez e da ação dospraticantespensantesnas escolas envolvidas.

Por isso, durante a pesquisa, necessitamos escutá-las, entendendo que a mulher da/na EJA busca na escola, sobretudo, como meio de transpor uma condição social que lhe é desfavorável. O que nos faz entender que:

Isso poderá [leva-las] ao (re)conhecimento de que a escola também constrói novas relações, produz identidades de classe, de raça, de gênero, fixa comportamentos, posturas, jeitos de ser e de pensar, reconstrói a cultura, os valores, reproduz ou transforma hierarquias; e se constrói, ao mesmo tempo, de forma dinâmica no tempo e no espaço (LOURO, 1997 ).

Diante das aulas de leitura observadas, e com o olhar aguçado para as mediações didáticas da professora e as interações e diálogos estabelecidos em sala de aula, esta investigação nos permitiu expandir a realidade no cotidiano da EJA, conforme observaremos no próximo item.

Leitura na sala de aula da EJA - Mediações didáticas para além dos muros da escola

O evento de aula de leitura na EJA que se segue (Quadro I) foi escolhido dentre as criações curriculares cotidianas que dispomos, no Banco de Dados da pesquisa desenvolvida pelo Observatório Alagoano de Leitura, disponibilizados pelo Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão (Nepeal) do Centro de Educação (Cedu) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Sua realização foi protagonizada pela professora Andréia - nome fictício - da escola pública municipal Rubi, que já nos referimos.

Nesse evento, focalizar-nos-emos aos acontecimentos de dois fragmentos de uma aula de leitura no cotidiano da sala de aula de EJA e as mediações vivenciadas pela professora Andrea (PA) e as trabalhadoras-estudantes (E1, E2, E3, E4, E5, E8....) que lhes permitiram fugir dos rigores dos currículos prescritos, na tentativa de criarem possibilidades emancipatórias.

Burlando as prescrições didáticas orientadas pela Secretaria de Educação, na qual é vinculada, nessa aula de leitura, a professora escolhe a música “Terezinha” de Chico Buarque, com o objetivo de construir uma relação sistemática com o mundo da vida das estudantes, assente na participação de todos/as. Nesse dia em sala de aula estavam presentes doze mulheres.

Ao planejar a aula, a professora fez a escolha pelo gênero textual música que buscou na internet, com a intenção de aproximar-se das histórias de vida das estudantes e incorporou em seu fazer docente a validade e a legitimidade de diferentes saberes, práticas e modos de estar no mundo, superando a hierarquização [...] viabilizando processos interativos entre os diferentes que não os tornem desiguais (OLIVEIRA, 2008, p. 68).

Demonstrou, na nossa compreensão, que estava instigada pelos desafios que a pesquisa do Observatório Alagoano de Leitura em EJA vinha provocando por meio das sessões reflexivas e de estudo, respectivamente, sobre os saberes e a forma singular de aprendizagem docente. Isso permitiu que a professora fosse utilizando táticas (DE CERTEAU, 1994) e nesse sentido recriando currículos de acordo com as possibilidades que as situações ofereciam, como veremos a seguir:

Quadro 1 - Evento de Aula nº. 3 - Música -Terezinha -3ª Fase - Anos Iniciais

Terezinha

O primeiro me chegou

Como quem vem do florista:

Trouxe um bicho de pelúcia,

Trouxe um broche de ametista.

Me contou suas viagens

E as vantagens que ele tinha.

Me mostrou o seu relógio;

Me chamava de rainha.

Me encontrou tão desarmada,

Que tocou meu coração,

Mas não me negava nada

E, assustada, eu disse "não".

O segundo me chegou

Como quem chega do bar:

Trouxe um litro de aguardente

Tão amarga de tragar.

Indagou o meu passado

E cheirou minha comida.

Vasculhou minha gaveta;

Me chamava de perdida.

Me encontrou tão desarmada,

Que arranhou meu coração,

Mas não me entregava nada

E, assustada, eu disse "não".

O terceiro me chegou

Como quem chega do nada:

Ele não me trouxe nada,

Também nada perguntou.

Mal sei como ele se chama,

Mas entendo o que ele quer!

Se deitou na minha cama

E me chama de mulher.

Foi chegando sorrateiro

E antes que eu dissesse não,

Se instalou feito um posseiro

Dentro do meu coração.

Compositor: Francisco Buarque de Hollanda

Fonte: Internet

Após a escuta da música Terezinha, a professora explorou os elementos do texto e buscou, por meio do diálogo, provocar para que as estudantes fizessem um paralelo entre a letra da música e as suas histórias de vida, chamando a atenção para os significados que se apresentam em forma de poesia. Deu-lhes pistas linguísticas, para que como leitoras recuperassem a intenção do autor, na tentativa de que assumissem a coautoria do texto, a proporção que as estudantes fossem reconstruindo os sentidos a partir de seus conhecimentos prévios.

Sentindo-se envolvidas as mulheres assumiram o diálogo como protagonistas, conforme veremos:

Fragmento1

PA - Oi gente vocês ouviram a música? Já conheciam?

E1 - Eu conhecia professora, ela é um pouco antiga;

E2 - Eu também já conhecia, é boa né professora?

PA - Eu acho muito boa dona M, e aí a música fala de quê? Afinal quem era Terezinha? Que mulher é essa? Como ela vivia/vive? O que acontecia com ela? Digam aí mulheres? O que vocês acham, mesmo as que não conheciam;

E1 - Professora eu estou entendendo que a Terezinha, teve muitos namorados, ela era Namoradeira (risos);igual a mim, (risos);

E2 - Verdade L eu acho que ela teve muitos namorados, ganhou presentes desses homens, eu mesma entendo que a música diz isso:Trouxe um bicho de pelúcia,trouxe um broche de ametista, acho que ela ficou feliz;.

PA - Sim, mas ela tem alegria? E o que mais J, você que é a mais nova da turma o que acha?

E3 -Eu fiquei pensando que ela sofreu muito na vida, com esses homens;

PA - J por que você acha que ela sofreu? Onde aparece na música que ele sofreu?

E3 - Eu ouvi, e está escrito aqui na música, diz assim:Ele vasculhou minha gaveta; me chamava de perdida; Professora essa história eu conheço bem;

PA - Entendo J você mesmo nova tem uma vida sofrida, você contou aqui

E4 - É professora nós já conversamos sobre violência doméstica;

Nos diálogos constatamos que as trabalhadoras-estudantes estavam muito envolvidas com a temática discutida em sala, sentindo-se à vontade para colocar seus sentimentos, como por exemplo, quando E1 - afirma: Professora eu estou entendendo que a Terezinha, teve muitos namorados,igual a mim, ou ainda quando E3 diz: [...]Elevasculhou minha gaveta; me chamava de perdida;Professora essa história eu conheço bem.

O diálogo entre a letra da música e a identidade das estudantes fez com que que submergissem suas memórias, suas histórias de vida, desencadeando uma interação autor-leitoras. Interação essa, que entrelaçaram as suas vidas ao conteúdo poético da música.

Concordando com Freire (1979), percebe-se que as estudantes, nesse momento, estavam vivenciando uma educação humanizante, circunscrita às sociedades e a mulheres concretas, indo na contramão de uma: “[...]:educação para a “domesticação’, para a alienação e como educação para a liberdade. ‘Educação’ para o homem-objeto ou indivíduo para o homem sujeito” (FREIRE, 1979, p. 36).

O diálogo, nessa aula, foi revelando que o conhecimento que foi sendo tecido, superando a previsibilidade, tomando como referência o conhecimento trazido por meio das redes de conhecimentos das estudantes. Como podemos perceber, a mediação didática da professora convida os estudantes a refletirem e avançarem no diálogo, embora algumas se mantiveram em silêncio, o que pode ser traduzida como uma outra forma de linguagem; outras sentiram-se à vontade para trazerem histórias, suas realidades e as vivências tão próximas do eu lírico do poema.

As narrativas das estudantes nos permitiu compreender e enxerga-las como pessoas, com suas mais variadas histórias, e perceber suas especificidades para além da escola e da sala de aula.

Fragmento 2

E4 - Quando a senhora tava lendo eu fiquei tambémpensando que parece com minha vida, por que eu tive um companheiro assim, mas hoje tenho um homem bom. “Ele não me perguntou nada, mas se instalou no meu coração[...]”, achei bonita essa parte da música. Hoje posso estudar, e viver a minha vida.

E5 - Eu também dona R - entrou no diálogo, uma aluna que tinha ficado em silêncio -,pensei na minha vida, tive muitos homens no interior [referindo-se à cidade onde residiu], agora que estou mais idosa deixei essa vida para lá, homem dá muito trabalho.

O diálogo acima registrado entre a professora e as estudantes foi construído, mais uma vez, relacionando as identidades dos estudantes com a música, de modo próprio às regras que lhes são dadas para consumo, como refere E4 - Quando a senhora tava lendo eu fiquei aquipensando, parece com minha vida,e E5 - Eu também dona B,pensei na minha vida eu também fiquei pensando quando eu ainda morava no interior, eu sofri muito, primeiro com meu pai depois com meu casamento.

Como podemos constatar neste diálogo, as trabalhadoras-estudantes mesmo tendo um currículo que lhes é imposto rompem, na sala de aula, com essa prescrição curricular, trazendo suas histórias de vidas e realidades para a aula de leitura.

A leitura em forma de música possibilitou construir uma educação dialógica, em que as estudantes da EJA tiveram seus saberes reconhecidos, suas histórias, suas verdades e realidades. Educação compreendida como uma atividade extremamente importante no processo formativo do indivíduo, indo muito além de apenas decodificar letras e palavras.

Nesse aspecto, os diálogos nesta aula, especificando o discurso das estudantes, mostram-nos que, mesmo diante de suas situações de subalternidade em relação à vida, situações socioeconômicas, ou como elas mesmas afirmam “mesmo com todas as dificuldades da vida”,[...]“Hoje posso estudar, e viver a minha vida”,essas mulheresinsistem em permanecer na escola. E nessa caminhada, no cotidiano das escolas da EJA, ao nos envolver mais com as estudantes fomos percebendo que a cada dia na sala de aula, resistem, permanecem burlando e nos mostraram que têm condições de aprender e superar dificuldades enfrentadas no contexto interno e externo à instituição escolar.

Nessa aula de leitura, especificamente, ficam explícitos os modos específicos e singulares como a professora, com sua mediação libertadora, deu-lhes outros contornos, contrariando, assim, a perspectiva da educação bancária. Percebemos, também, que a professora assume uma prática comprometida com a ética, à medida que reconheceu:

[...] nos educandos um processo de saber mais, os sujeitos, com ele, deste processo e não pacientes acomodados; segundo, reconhecer que o conhecimento não é dado aí, algo imobilizado, concluído, terminado, a ser transferido por quem o adquiriu e quem não o adquiriu (FREIRE, 1992, p. 29).

Consideramos que essa aula, em específico, constituiu-se como possibilidade emancipatória na/da EJA, nesse sentido, os conhecimentos das mulheres da EJA que antes eram silenciados, invisibilizados, aos poucos vão surgindo, ocupando o status de igualdade com o conhecimento científico. Nessas circunstâncias, possibilitou-se construir uma educação problematizadora em que aspraticantespensantestiveram seus saberes reconhecidos na escola, suas histórias, suas verdades e realidades. Educação compreendida como uma atividade extremamente importante no processo formativo do indivíduo, indo muito além de apenas decodificar letras e palavras.

Diante das narrativas das estudantes podemos constatar que essa aula de leitura, especificamente, trouxe grandes contribuições para que as mulheres pudessem, por meio da palavra, reler o mundo. As narrativas tiveram em muitas falas um foco autobiográfico em que se misturavam muitos fios. Para Alves (2008), só ouvindo essas narrativas é que podemos compreender e “[...] escrever uma história [...] na qual o que conta é a experiência cotidiana [dos] praticantes, dentro e fora dela, em todas as redes de conhecimentos e significados nas quaisaprendemosensinamos” (p. 133).

A sala de aula configurou-se como lugar de emancipação, onde as relações entre os saberes escolares e os saberes dos estudantes não foram concebidas como dois polos independentes, mas sim como universos entrelaçados que se tecem constantemente validando conhecimentos. Estando a prática da educadora atrelada à Emancipação social, evidenciou-se que as estudantes foram concebidas como sujeitos sociais, protagonistas no processo educativo, que tiveram direito de voz.

Considerações finais

Este texto traz um recorte da pesquisa desenvolvida no Observatório Alagoano de Leitura em EJA que, como um dispositivo de pesquisa- formação assumiu uma metodologia colaborativa interventiva, que nos fez, de forma horizontal, dialogarmos com as professoras das escolas e estudantes de pedagogia um processo de formação continuada e inicial, respectivamente, nesse recorte especifico, tendo como foco as trabalhadoras-estudantes da EJA.

Nesse sentido, superamos a concepção de se investigar sobre os sujeitos da EJA, e passamos a investigar com os sujeitos alunos e professores e suas realidades. Isso contribuiu, não para encontrar “culpados”, mas, para que todos os envolvidos/as na pesquisa se reconhecessem como produtores/as de conhecimentos.

Nesse processo, a professora em foco a partir das mediações didáticas em sala de aula, por meio da música e utilizando uma concepção de língua como interação, que assume o objetivo e o subjetivo, como elementos de interpretação, proporcionou aos estudantes e a si a possibilidade de produção de conhecimentos e de leituras significativas da realidade, rompendo com a dicotomia existente entre os saberes escolares e os saberes docentes e discentes.

Observamos ainda a ausência de controle regulador por parte da professora, que permitiu às estudantes tecerem conhecimentos de forma dinâmica e múltipla, que não foram medidos nem controlados, seguiram a força das experiências pessoais no entrecruzamento de valores, significações.

Nessa perspectiva, as estudantes e a professora praticaram diferentes modos de experimentar/problematizar a leitura que não foram centrados em verdades absolutas e, sim, na horizontalidade em que os conhecimentos das estudantes foram reconhecidos e valorizados, não existindo uma hierarquização de saberes. A inserção crítica do real na sala de aula proporcionou aos envolvidos a superação possível das limitações que a vida lhes impõe.

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Notas

01O Grupo de Trabalho do Observatório envolveu: 11 professoras, sendo 04 objetos de estudo e bolsistas da Capes, com atuação em turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental de EJA; 04 bolsistas Capes, 03 bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), todos estudantes, predomindantemente, do curso de Pedagogia e um bolsista Capes com formação em jornalismo, para o apoio logístico as ações de filmagens, edição e elaboração do videodocumentário; 03 pesquisadoras da Ufal, em nível de coordenação da pesquisa, que atuaram com executores e fizeram uma coordenação colegiada e 03 pesquisadoras colaboradoras, sendo duas, também, professoras da Ufal e uma técnica da Secretária Executiva de Educação do Estado de Alagoas, que em 2014 inseriu-se com professora no quadro docente da Ufal.

02Entende-se que o caráter formativo de uma pesquisa formação não se reduz à eleição de temas educacionais aleatórios, mas permite a inserção de um modo de fomentar uma cultura de formação na escola a partir dos desafios postos e impostos pela cultural escolar.

03Sessões de estudos e reflexões - eram momentos de encontros nos quais se realizam estudos de textos e pesquisas sobre leitura, sujeitos da EJA, teóricos. Esses encontros aconteciam semanalmente nas escolas participantes da pesquisa. Nestes momentos havia um processo de formação com o grupo da escola, estavam presentes professoras, coordenadoras e gestores que atuavam na EJA.

04No município de Maceió o Ensino Fundamental de EJA é composto de seis fases, sendo a terceira fase correspondente a última dos anos iniciais.

05SILVA, Rosa Helena D. Da. Escolas em movimento: trajetória de uma política indígena da educação. Cadernos de Pesquisa . São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 111, dez. 2000.

.6HALL, Stuart A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

07Optamos por apresentar ao longo do trabalho sintagmas (nominais ou verbais) juntos, com o propósito de deixarmos claro a indissociabilidade semântica que existe entre eles

: de ; Recebido: 03 de Outubro de 2020; : de ; Aceito: 04 de Novembro de 2020; : de ; Publicado: 30 de Março de 2021

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