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Educação UFSM

versión impresa ISSN 0101-9031versión On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria ene./dic 2021  Epub 22-Nov-2023

https://doi.org/10.5902/1984644461311 

Dossiê – Políticas educativas, mediações e educação de jovens e adultos: olhares de resistência - 2021

A complementaridade entre educação (formal, não formal e informal) e (auto, hetero e eco) formação: uma discussão a partir de autobiografias

La complementariedad entre educación (formal, no-formal e informal) e (auto, hetero y eco) formación: una discusión basada en autobiografías

The complementarity between education (formal non-formal and informal) and (self, hetero and eco) development: a discussion based on autobiographies

Paula Guimarães1 
http://orcid.org/0000-0002-2197-1004

Clarisse Faria-Fortecoëf2 
http://orcid.org/0000-0002-1810-1868

1Instituto de Educação, Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: pguimaraes@ie.ulisboa.pt.

2Universidade Paris 8, laboratoire Experice EA 3971. Paris, França. E-mail: clarisse.fariafortecoef@gmail.com.


RESUMO

Este texto inscreve-se no debate sobre o valor da experiência e das aprendizagens que desta decorrem, tendo como campo teórico a educação de adultos. Nele discute-se a articulação entre as modalidades de educação formal, não formal e informal. Esta relação torna-se coerente nas biografias de sujeitos inscritas em contextos históricos específicos. Esta articulação relaciona-se com a necessária ligação entre a auto, hetero e ecoformação, quando se discutem aprendizagens desenvolvidas. Depois de uma discussão de caráter teórico, são analisadas duas autobiografias que se inscrevem no contexto da emigração portuguesa em França, nas quais os sujeitos relatam momentos-chave de educação e formação. Este debate permite responder à questão: como é que a educação formal, não formal e informal, assim como a auto, a hetero e a ecoformação se traduzem em aprendizagens? A análise de conteúdo é a técnica de discussão de dados usada. A interpretação dos dados coletados enfatiza a circunstância de a educação e a formação, resultantes de dinâmicas individuais e coletivas, permitirem desenvolver aprendizagens que enfatizam saber aprender, saber compreender e saber projetar-se.

Palavras-chave: educação; formação; autobiografia; iniciativa individual; educação de adultos

RESUMEN

Este texto forma parte del debate sobre el valor de la experiencia y los aprendizajes que se derivan de ella en el ámbito de la educación de adultos. En este artículo se defiende la articulación entre las modalidades de educación formal, no-formal e informal, en una relación que es coherente en biografías de sujetos marcadas en contextos históricos específicos. Este texto relaciona esta articulación con la necesaria ligazón entre el auto, hetero y eco formación cuando se discuten los aprendizajes desarrollados. Después de una discusión de carácter teórico se analiza dos autobiografías que se inscriben en el contexto de la emigración portuguesa en Francia, en las cuales los sujetos cuentan momentos-clave de educación y formación. Este debate permite contestar a la pregunta: ¿cómo es que educación formal, no formal e informal y el auto, hetero y eco formación se traducen en aprendizajes? El análisis de contenido destaca la circunstancia de la educación y la formación que resultan de dinámicas individuales y colectivas permiten desarrollar conocimientos que enfatizan saber aprender, saber comprender y saber proyectarse.

Palavras-clave: educación; formación; autobiografías; iniciativa individual; educación de adultos

ABSTRACT

This text aims at contributing to the debate of the value of experience for learning within the field of adult education. In this article it is argued the complementarity among formal, non-formal and informal education in a relation that is coherent in the biographies of subjects living in specific historical contexts. This relation involves a needed articulation among self, hetero and ecodevelopment when learning is developed. After a theoretical discussion, two biographical narratives of subjects that were Portuguese emigrants in France and that focus on key-moments of education and learning are discussed. This debate is directed at answering to the research question: how formal, non-formal and informal education as well as self, hetero and ecodevelopment are translated into learning? Content analysis was the data discussion technique used. Data interpretation emphasises the fact that (formal, non-formal and informal) education and (self, hetero and eco) development are outcomes of individual and collective dynamics and allow the development of different kinds of knowledge: how to learn, how to understand and how to project oneself.

Keywords: education; learning: biographical narratives; individual initiative; adult education

Introdução

O conceito de educação de adultos proposto pela UNESCO, em 1976 (UNESCO, 1977), retomado em 1997, por ocasião da V CONFINTEA (UNESCO, 1998), e em 2015 (UNESCO, 2016), assentou numa definição abrangente, contemplando uma diversidade de iniciativas, de formas e de práticas, de tempos e de espaços nos quais os sujeitos se educam e se formam ao longo da vida. Foi no quadro da educação permanente (FAURE ET AL., 1981) que esta definição de educação de adultos inicialmente se impôs, favorecendo também a aceitação de que a experiência se apresenta como uma poderosa fonte e um importante recurso para o desenvolvimento de novas aprendizagens. Nesta ordem de ideias, a dimensão educativa e formativa da vida resulta dos efeitos produzidos pelas experiências individuais e coletivas dos sujeitos, estando estes efeitos na origem de mudanças mais ou menos permanentes de comportamentos e atitudes, suportadas pelo desenvolvimento de aprendizagens diversas. É a partir destas aprendizagens que outras surgem. Por este motivo, Canário argumenta que “o património experiencial de cada um representa o recurso mais importante para a realização de novas aprendizagens” (CANÁRIO, 2006, p. 198), sendo estas centrais para a formação dos sujeitos. Neste artigo argumenta-se que as modalidades de educação formal, não formal e informal (PALHARES, 2009), ganham coerência nas biografias dos sujeitos, nomeadamente quando estes refletem sobre as suas experiências de vida inseridas em contextos históricos específicos. Defende-se também que a auto, hetero e ecoformação (PINEAU, 1988) são polos complementares e relacionados com as modalidades educativas atrás indicadas.

Num primeiro momento, este artigo inclui uma breve análise de caráter teórico sobre os conceitos de educação formal, não formal e informal e de auto, hetero e ecoformação. Depois de algumas notas metodológicas, estes conceitos são usados na análise de duas autobiografias que se constroem no contexto da emigração portuguesa em França, na segunda metade do século XX (GUIMARÃES & FARIA-FORTECOËF, 2013). Na discussão destas narrativas, procura-se destacar momentos-chave de educação (formal, não formal e informal) e (auto, hetero e eco) formação, assim como a interligação entre os mesmos.

Educação (formal, não formal e informal) e (auto, hetero e eco) formação

A valorização da experiência e a consequente reinterpretação dos percursos educativos dos adultos propostas pela definição de educação de adultos da UNESCO (1977 e 2016) traduziu a importância atribuída às modalidades educativas que se prolongam pela vida e ocorrem em contextos e momentos muito diversos. A relevância atribuída a espaços e tempos não escolares para aprender resultou de uma forte crítica à escola e da crise que autores como Coombs (1976) diagnosticaram a esta organização. Nesta linha de ideias, Lima et al. (1988), Canário (2006) e Palhares (2009), entre outros, identificam diferentes modalidades educativas: i) a educação formal, que possui como referência a escola e o ensino ministrado nesta organização, em propostas educativas marcadas pela intencionalidade, isto é, concebidas para concretizar certas finalidades, com tempos e espaços previamente definidos, atores que detêm papéis específicos, formas de avaliação frequentemente quantificáveis, etc.; ii) a educação não formal, baseada em tempos e espaços de aprendizagem diversos, assim como regras, conteúdos, métodos pedagógicos, etc., diferenciados, em que a participação dos variados atores possui um caráter sobretudo voluntário; e iii) a educação informal, que contempla situações não intencionais, pouco ou nada organizadas, programadas ou estruturadas, a partir das quais é possível desenvolver aprendizagens.

Estas modalidades não são mutuamente exclusivas, nem tão pouco se encontram em clara oposição ou separadas por fronteiras estanques. Diferentes autores destacam a complementaridade entre as mesmas (COOMBS, 1976; LIMA ET AL.,1988; PALHARES, 2009; ROGERS, 2014). Esta característica esbate as fronteiras entre a educação formal, que torna tendencialmente hegemônicas certas formas de ensinar e aprender, nomeadamente através da generalização do modelo escolar, e a educação não formal e informal, quando se “aprende sem ser ensinado”, no que Canário designa de a face não visível da lua (CANÁRIO, 2006).

Esta tipologia de modalidades educativas atribui destaque à educação não formal e, sobretudo, informal. Conduz por isso à valorização da experiência e acentua a centralidade do sujeito que aprende. Leva igualmente a que ganhe relevância a necessidade de pensar sobre os processos de aprendizagem. A reflexividade envolve pensar em práticas, quer sejam estas intencionalmente educativas ou não. Como defende Josso, a reflexão sobre a experiência e a aprendizagem que desta decorre acentua a importância que a vida e os contextos que a caracterizam garantem ao ato de os sujeitos se formarem. Estes pensam sobre o que aprenderam, como aprenderam e o impacto que essas aprendizagens tiveram no seu desenvolvimento enquanto indivíduos. Esta situação envolve a análise dos processos de formação do sujeito, das aprendizagens realizadas, permitindo que dessa forma se interprete o papel da experiência nas biografias dos indivíduos (JOSSO, 2008, pp. 120-123).

Assim, paralelamente à discussão acerca das diferentes modalidades educativas, vários autores, como PINEAU (1988), JOSSO (2008) e CAVACO (2009), têm discutido a formação dos sujeitos, enquanto conceito abrangente que integra e substitui outros, como ensino, instrução ou formação profissional. Esta substituição foi designada por PINEAU (1988, p. 101) de “revolução profunda” no modo como entendemos a educação de adultos. A formação dos sujeitos cruza no seu interior aspectos sincrônicos, decorrentes dos diferentes componentes internos e externos relativos aos sujeitos (físicos, psicológicos, psíquicos, fisiológicos, sociais, etc.) e aspetos diacrônicos, relacionados com os momentos e as fases de transformação do ser.

A reflexão acerca da experiência na formação dos indivíduos é relativamente tardia na educação de adultos, mas acabou por ganhar centralidade. Neste âmbito, três polos de formação se articulam: a autoformação; a heteroformação; e a ecoformação (PINEAU, 1988). Relativamente à autoformação, esta destaca-se pelo fato de suportar-se numa “dinâmica reflexiva”. Esta dinâmica contém uma dupla apropriação do poder da formação: permite ao indivíduo tomar o “poder de formar-se em suas mãos”, tornando-se “sujeito e objecto de formação para si mesmo” (p. 103). Leva ainda a que cada pessoa se diferencie das outras, enquanto permite que se realize uma aproximação sobre o próprio sujeito e relativamente a outros. Favorece igualmente a reflexão sobre si e sobre o que rodeia cada um. Facilita processos de autonomização e de emancipação. Estimula o esforço de autoformar-se. Seguindo esta ordem de ideias, Galvani defende que

oautosé uma expressão de duplo sentido. Pode ser visto como um fenómeno de reprodução, de repetição do idêntico, de auto-reprodução da espécie. Mas é igualmente importante sublinhar que oautosé uma representação de si mesmo, de uma identidade de auto-organização, do indivíduo (GALVANI, 1997, p. 48).

Retomando a centralidade que a autoformação denota, Pineau e Marie-Michèle afirmam que os diferentes polos não podem ser entendidos singularmente. Neste sentido, não parece possível discutir a autoformação sem se evocar a ligação e as articulações possíveis e necessárias com a heteroformação, entendida como a formação recebida pelos outros, e a ecoformação, i.e, a aprendizagem que decorre da vida em sociedade (PINEAU & MARIE-MICHÈLE, 2012, p. 9). De fato, embora autoformação e heteroformação sejam vulgarmente tidos como conceitos opostos, como acontece aliás com as modalidades de educação formal e não formal/informal, não podem deixar de ser vistas como complementares. Nesta linha de ideias, Prévost argumenta que se registra “um sistema no qual o indivíduo definiria os seus objetivos e os seus meios. Neste caso, ninguém interviria e a autoformação seria uma construção de si”; paralelamente, verifica-se a possibilidade na qual “o indivíduo não teria qualquer ação sobre a sua própria formação, uma espécie de condicionamento, de adestramento, que poderia ser designado de heteroformação, um sistema racional no qual a aprendizagem foi pensada e facilitada pelo outro, pelos outros” (PRÉVOST, 1994, p. 35). Adicionalmente, a ecoformação, entendida como a relação que o sujeito estabelece com o mundo, não pode ser desprezada. A aprendizagem social, que decorre da vida no cotidiano, encontra-se profundamente influenciada pelas condições de vida dos sujeitos, bem como pela capacidade de os indivíduos enfrentarem e se confrontarem com os desafios que a experiência com os outros e consigo próprios envolve. É por esta razão o polo mais difícil de apreender, dado que se apresenta como fluído e fortemente articulado com os dois restantes polos. Remete para a dimensão social da aprendizagem, envolvendo o que Rogers (2014) designou de “lado não visível do iceberg”, reconhecendo-se o desconhecimento que ainda se possui relativamente às aprendizagens que deste polo advêm, mesmo que se concorde que possuem um forte impacto na formação do sujeito.

Nesta linha de ideias, é importante partir-se do pressuposto de que se registra um vaivém entre educação formal, não formal e informal, como aliás já tinha sido sugerido por Condorcet, em 1772 (CANÁRIO, 1999), para o caso específico da educação de adultos, quando acentuou a importância da escola e da formação organizadas pelos outros, em paralelo com a influência de outros contextos e agentes educativos no desenvolvimento dos sujeitos. Este pressuposto assenta na reflexão sobre o que se vive e o que se aprende a partir dessas vivências, o que consiste no suporte da autoformação, podendo esta estar ao serviço da emancipação do cidadão, até porque a heteroformação seria estéril na ausência de “uma bagagem intelectual e metodológica para aprender a formar-se sozinho” (PRÉVOST, 1994, p. 127). Na verdade, a autoformação, beneficia-se grandemente de uma educação de base (formal) - de uma heteroformação - de qualidade, permitindo a coerência e consistência para os próprios sujeitos das aprendizagens desenvolvidas.

Assim, a análise dos processos educativos não pode deixar de considerar diversas modalidades. Não se trata de considerar exclusivamente a dimensão formal; é determinante contemplar a não formal e a informal. É a articulação coerente destes diferentes possíveis que permite promover o desejo de aprender e favorecer o ato de educar(-se). Complementarmente, qualquer que seja a idade, a origem social, etc. do sujeito, este só consegue criar condições favoráveis para a construção de um projeto educativo e, consequentemente, um percurso de educação ao longo da vida se a auto, a hetero e ecoformação forem consideradas enquanto dimensões articuladas, no quadro da iniciativa individual (FARIA-FORTECOËF, 2010; FARIA-FORTECOËF, 2014).

Percurso metodológico

Este texto tem origem num projeto que tem como propósito conhecer e compreender os percursos de educação e formação (ao longo da vida) dos sujeitos, assim como interpretar a complementaridade entre as modalidades formal, não formal e informal, e os processo de auto, hetero e ecoformação (GUIMARÃES & FARIA-FORTECOËF, 2013). Neste âmbito, a questão seguinte ganha relevância: como é que a educação formal, não formal e informal, assim como a auto, a hetero e a ecoformação se traduzem em aprendizagens? Esta questão é discutida a partir das interrogações que se seguem: como pensar a educação e formação e compreender os seus efeitos, tendo em consideração o olhar do sujeito sobre a sua vida, a sua visão do mundo, o seu sistema de representações, os seus valores (designadamente no quadro de narrativas autobiográficas)? Como compreender o papel da educação e da formação na vida dos indivíduos?

Este estudo inscreve-se numa abordagem qualitativa e compreensiva (LESSARD-HÉBERT, GOYETTE & BOUTIN, 2005). Tem como método de pesquisa a investigação-formação, apresentando como finalidade “a consciencialização da experiência de vida” (GALVANI, 2006, p. 159). Utiliza as autobiografias comodémarchepara a unificação das atividades de educação, de investigação e de intervenção no próprio sujeito (PILON & DESMARAIS, 1996, p. 12). Neste âmbito, foi preferida a autobiografia refletida[1](DESROCHE, 1990) como estratégia de coleta de dados, tendo envolvido duas etapas. A primeira etapa passou pela redação de duas autobiografias[2]consubstanciadas na reflexão sobre o percurso de vida educativo, assim como na tomada de consciência de aprendizagens desenvolvidas pelas inquiridas, a partir de três eixos: contexto (nacional, social e familiar); educação (formal, não formal e informal) e (auto, hetero e eco) formação; e experiência (profissional, extraprofissional). Ocasionalmente, foram levadas a cabo conversas informais sobre aspectos pontuais destas autobiografias que permitiram esclarecer dúvidas entretanto surgidas.

Uma das biografias foi escrita em francês no quadro de um percurso de ensino universitário, nomeadamente no decorrer da frequência de um mestrado[3]realizado no âmbito de um programa de formação profissional contínua[4]. Esta autobiografia centrou-se sobre as aprendizagens desenvolvidas ao longo da vida, nomeadamente em momentos em que a inquirida aprendeu a se conhecer melhor e a auto realizar-se (GALVANI, 2006). Este documento foi retomado no âmbito deste estudo, tendo sido revisto e traduzido para português. A segunda biografia foi redigida em língua portuguesa, a partir das mesmas orientações[5]. Deve-se ainda notar que estas narrativas foram redigidas em diferentes momentos de rememoração de etapas biográficas significativas, tendo como base de trabalho a importância desses tempos para os percursos de vida, nomeadamente no que remete para a educação, formal, não formal e informal, assim como a formação, ou seja, a auto, hetero e ecoformação (DESROCHE, 1990; JOSSO, 2008). Num segundo momento, estas histórias de vida foram sujeitas à interpretação, através da análise de conteúdo baseada em unidades de registro temáticas (educação/formação) e de contexto (nacional, social, familiar). Procurou-se identificar e compreender os modos como a auto, hetero e ecoformação foram apropriadas e relacionadas com a educação formal, não formal e/ou informal pelas inquiridas (FARIA-FORTECOËF, 2010; GUIMARÃES & FARIA-FORTECOËF, 2013; FARIA-FORTECOËF & GUIMARÃES, 2014).

Estas narrativas tiveram por base a subjetividade (DUBET, 1994), embora se tenha verificado a preferência por relatos descritivos, indicadores de momentos considerados relevantes por quem relatava a sua vida, pontuados por comentários de cariz reflexivo e analítico. É importante notar que estas duas autobiografias tiveram como pano de fundo a vaga de emigração que ocorreu nos anos de 1960 e 1970, uma vez que as inquiridas saíram ambas de Portugal nesse tempo. Este fato ganha outro significado se se pensar que se está perante sujeitos oriundos de grupos populares (LAHIRE, 2008), nos quais a educação formal muitas vezes se limitava à frequência de escolaridade obrigatória (então a 4ª classe), mas que, ao longo das suas vidas, efetuaram percursos de educação longos e ricos, em termos formais, não formais e informais nos quais a auto, a hetero e a ecoformação estiveram presentes. Neste âmbito, deve-se enfatizar que estes percursos foram o resultado de estratégias sociais assentes em projetos familiares (e não exclusivamente individuais) de cariz econômico, de prazos variáveis, “na procura de uma vida melhor”; de projetos de natureza cultural, “na busca de uma vida diferente” no caso das famílias de emigrantes, como aquelas às quais as inquiridas pertenciam (LEANDRO, 2004); bem como de projetos nas quais a iniciativa individual teve um papel importante (FARIA-FORTECOËF, 2010). Os relatos obtidos, umas vezes mais sentidos que noutras, remetem para a história de Portugal nas últimas décadas, para o desenvolvimento das políticas educativas públicas e para o lugar social das classes populares (LAHIRE, 2008), como no caso dos emigrantes, em França, assim como aqueles que voltaram a Portugal. Estes relatos também destacam o local ocupado pela família e pelo trabalho (LEANDRO, 2004) na vida das inquiridas, bem como as transições biográficas inscritas em tempos incertos, como são os atuais. Foram narrativas que não deixaram de evidenciar uma procura de distanciamento dos sujeitos com as suas biografias, num esforço de objetividade, que foi mais evidente quando se tratou de pensar sobre eventos passados, e de subjetividade, no que envolveu outros acontecimentos mais recentes (ALHEIT & DAUSIEN, 2006; JOSSO, 2008). Neste sentido, registrou-se um olhar do presente sobre o passado, num discurso centrado no eu, mas preocupado com as relações sociais e familiares e com os contextos nos quais ocorreram os acontecimentos relatados (BÉZILLE, 2006). Por último, note-se que na análise destas autobiografias foram considerados três momentos-chave do ato de autoformar-se, que se traduziram em aprendizagens diferenciadas: saber aprender, saber compreender e saber projetar-se (FARIA-FORTECOËF, 2010).

As vidas de Júlia e Ana: um vaivém na educação (formal, não-formal e informal) e na (auto, hetero e eco) formação

Júlia nasceu em 1962, numa cidade do Norte de Portugal, numa família ligada a quadros técnicos pouco qualificados: o avô era ourives, enquanto o pai trabalhava numa empresa nacional de gás e a mãe era doméstica. Esta família emigrou “a salto”[6]e procurou na França, no início da década de 1970, “uma vida melhor”, de resto uma ambição então comum a muitos outros emigrantes portugueses (LEANDRO, 2004). Já em França, o pai de Júlia esteve ligado temporariamente a empregos pouco qualificados, tendo mais tarde trabalhado numa fábrica, onde esteve até à sua aposentadoria. Desde a ida para França que Júlia reside nesse país, tendo concluído, num primeiro momento, o ensino secundário. Mais tarde ingressou no setor dos serviços e teve diversas profissões ligadas à administração e ao secretariado. Concluiu o mestrado e, recentemente, o doutoramento. Foi dirigente de uma associação de educação e formação de adultos e é hoje docente do ensino superior[7].

Ana nasceu em 1967, numa aldeia no Sul do país, numa família ligada a pequenos agricultores e a quadros técnicos pouco qualificados. A mãe era então doméstica, embora anteriormente tivesse tido diferentes empregos, ainda quando solteira, tendo sido costureira e operária numa indústria de conservas de peixe. O pai era eletricista. Tal como no caso de Júlia, a família de Ana emigrou por razões econômicas, tendo os pais saído do país em 1969, deixando-a ao cuidado da avó materna. Voltou a viver com os pais, em 1972, nos arredores de Paris, tendo aí frequentado a escola primária.

Se a família de Júlia instala-se no país de acolhimento de forma definitiva, a de Ana voltará a Portugal no início da década de 1980. Concluída a escola básica e secundária, em 1987, Ana frequentou o ensino superior. Depois de concluir a licenciatura e de levar a cabo alguns empregos precários, passou a trabalhar na instituição de ensino superior onde se graduou, entidade na qual concluiu o mestrado, em 1999, e o doutoramento, em 2011. É atualmente docente do ensino superior.

Esta breve descrição permite afirmar que estas biografias denotaram percursos de educação formal longos, pouco frequentes então em grupos sociais populares (LAHIRE, 2008), mas suportados pelas medidas políticas de generalização do acesso à escola, em particular no caso de Portugal (LIMA ET AL., 1988; LIMA, 2008; GUIMARÃES, 2011), de educação formal e de formação permanente, no caso da França, baseados numa forte valorização da educação (FARIA-FORTECOËF, 2010; TANGUY, 2007). A este propósito, uma das inquiridas (Júlia) disse:

Tendo escolhido desde cedo a via da aprendizagem como uma filosofia de vida, o facto de certas pessoas com quem eu falava quando era mais nova não compreenderem que se aprende todos os dias, com tudo o que se faz e independentemente da idade, sempre me deixou perplexa. Tinha a impressão de ser um ser diferente, alguém que não sabia bem qual era o seu caminho e que não tinha outra coisa para fazer senão estudar. Também é verdade que em cada uma das minhasdémarchesse escondia uma questão que podemos considerar existencial: qual o meu lugar na sociedade, relativamente aos outros e relativamente a mim mesma?

Neste contexto, parece ter sido largamente ultrapassado o quadro escolar, como se verá em seguida, sendo igualmente relevantes para a inquirida as modalidades não formal e informal vivenciadas, em diversos processos de auto, hetero e ecoformação.

Saber aprender

Como referiu Rogers, “O indivíduo formado é aquele que aprendeu a aprender, a adaptar-se e a mudar, aquele que compreendeu que nenhum saber pode ser dado como certo e que só a capacidade de adquirir conhecimentos pode permitir um fundado sentimento de segurança” (ROGERS, 1976, p. 102). Este é um argumento importante no caso da educação, bem como da formação, uma vez que uma criança que aprende a aprender poderá tornar-se um adulto que consegue formar-se e, por essa via, construir um percurso de educação e formação (ao longo da vida). Tendo em consideração os dados recolhidos, parece que, desde cedo, Júlia e Ana compreenderam o significado da autoformação e da ecoformação, assim como da complementaridade destas com a heteroformação. De fato, ainda em Portugal, Júlia, no ensino primário, tinha bons resultados escolares e imaginava-se estudante em Coimbra[8]. Quando ingressou na escola em França, teve, no entanto, que voltar a frequentar o ensino primário, apesar da sua idade e de já ter concluído este ciclo de estudos no seu país de origem. Integrou então uma classe que incluía crianças três anos mais jovens que ela. Face a esta circunstância que decorria do seu parco domínio da língua francesa, desenvolveu uma estratégia de educação não formal, cruzado com a autoformação, através da qual aprendeu o idioma já referido, como foi pela mesma dito:

Não havia muitas soluções para sair daquela situação, pois era necessário aprender o mais rapidamente possível. Era uma questão ‘de vida ou de morte’. A minha família não pôde viajar de férias nesse verão (de 1973) e isso até calhava bem. Tinha muito com que me ocupar. Um vizinho deu-me a coleção de banda desenhadaLa Bande à Picsou [9] que ele já não queria e eu fiquei muito contente com a oferta. Tinha os meus primeiros livros em francês e podia começar o meu trabalho. Pode-se aprender um idioma a partir de livros de banda desenhada? Mesmo que isso não agrade a alguns professores e pais, foi graças aos diálogos nesses livros que, no início do ano letivo seguinte, já pude expressar-me e compreender o que me diziam na escola.

Diferentemente, Ana iniciou o seu percurso escolar no jardim de infância, em França, em 1972. Na sua autobiografia, evocou a escola, mas sobretudo as relações com os pares que estabeleceu na construção do seu percurso, atribuindo importância às modalidades formal, como não formal, mas sobretudo informal, acentuando a importância de aprender sem ser ensinada (CANÁRIO, 2006). Como foi relatado,

Aprendi a estar com outras crianças num contexto mais próximo da escola, uma escola diferente daquela que eu tinha ouvido falar, das reguadas e do choro[10]. Em simultâneo, aprendi a falar francês, uma segunda língua que ninguém falava na família; fui fazendo algumas amizades com os miúdos que viviam no mesmo prédio onde eu residia e que também estavam no jardim de infância.

Ao mesmo tempo, foi num ambiente não formal que Ana pôde manter a sua língua-materna:

Nessa ocasião, os meus pais e eu frequentávamos uma associação que reunia portugueses e os seus filhos aos fins-de-semana, onde aprendi canções como “Uma gaivota” e “Grândola, Vila Morena”[11].

É interessante notar a referência a cantigas, como “Grândola, Vila Morena” que anunciaram e marcaram a Revolução do 25 de Abril de 1974. No seu relato, esta evocação reenviou a inquirida para este acontecimento, tendo este momento sido vivido pela família e pela própria a distância, mas com forte emoção:

Os meus pais assinavam um jornal português que trazia notícias espantosas, para quem estava longe de Portugal, sobre a Revolução, sobre a liberdade e sobre as novas oportunidades trazidas pela democracia.

Para Júlia, que também vivenciou esse acontecimento a distância, esta foi uma ocasião para, enquanto emigrante, repensar o seu país, visto desde então como “mais moderno” e mais próximo de outros “mais livres e ricos”, como a França. A inquirida procedeu assim à sua inscrição, enquanto sujeito que se educa e se forma, na história de Portugal, de França e do mundo num acontecimento de caráter coletivo que teve profundas repercussões na sua biografia e no esforço de aprender a viver e a gerir mudanças (JOSSO, 2008).

Nesta combinação de processos, ambas as inquiridas concluíram os seus percursos escolares com sucesso. De resto, foi esta combinação que permitiu a Ana ultrapassar mais um desafio. Quando, aos dez anos, volta para Portugal para frequentar a escola básica, na expectativa de romper com um futuro provável, mas indesejado, de trabalhos de empregada doméstica ou de operária numa fábrica, como se verificava com muitos outros emigrantes, foi integrada no quarto ano da escola primária, embora já tivesse concluído esse ano em França. Neste contexto, os seus pais decidiram que ela deveria obter apoio individual, no sentido de superar as dificuldades que sentia em língua portuguesa. Essa oportunidade de estudar com acompanhamento individualizado permitiu-lhe investir no trabalho escolar e construir uma identidade de “boa aluna” (GAULEJAC, 1999, p. 112), o que favoreceu o desenvolvimento de aprendizagens (CANÁRIO, 2006; ROGERS, 2014), como saber aprender.

Saber compreender

Tanto no caso de Ana como de Júlia, a educação (formal, não formal e informal) foram identificadas como apostas familiares ainda na infância, devido, especialmente, à influência dos pais. Como foi dito por Júlia,

O meu pai valorizava a escola e muito particularmente o meu trabalho escolar, do qual ele estava orgulhoso e levava os meus boletins escolares para o trabalho para mostrar aos colegas.

Talvez por esta razão, Júlia afirmou que era na escola que sentia “existir verdadeiramente” e que “tinha o seu lugar”. A escola representava desta forma uma “porta de saída” para uma situação social, econômica e profissional melhor que aquela conhecida até então. Mas, a escola em si não significava unicamente uma possibilidade de desenvolvimento pessoal, uma abertura a novos mundos e a novos saberes: possuía uma dimensão estratégica essencial, pois requeria um sobre-investimento escolar (LAHIRE, 2008), encerrava uma promessa de uma vida melhor e implicava um investimento (GUIMARÃES, 2011) familiar e pessoal na procura de condições de vida mais favoráveis. Devido a estes motivos, quando confrontada com dificuldades escolares, Júlia tendeu a pensá-las como desafios, como oportunidades nas quais devia comprometer-se, no âmbito de “uma racionalidade competitiva” (DUBET, 1994, p. 202). Neste caso, a autoformação ganhou relevância, devido às reflexões biográficas desenvolvidas:

Lembro-me de uma professora de história que, porque eu estava de conversa com uma colega durante a aula, me disse: “Menina, de qualquer forma, sabe o que a espera, filha de emigrante, filha de operário. Não há trinta e seis soluções para o seu caso”. Ela disse-me isto como se o meu destino fosse uma evidência. Mas este comentário teve em mim o efeito verdadeiramente motivador (...). A minha causa ficou clara. Depois desse acontecimento, passei a sentar-me na primeira fila e esforcei-me para ser uma das melhores alunas da classe.

Assim, a educação formal contribuiu grandemente para que as inquiridas aprendessem a compreender as situações vivenciadas e o mundo no qual viviam, assim como, simultaneamente, levou a que se compreendessem, permitindo que soubessem projetar-se.

Saber projetar-se

Saber projetar-se surge como mais uma etapa nos percursos em análise, fortemente marcados pela autoformação. Não estando em oposição relativamente às aprendizagens anteriores, mas antes em complementaridade, saber projetar-se consiste em identificar e respeitar as regras estabelecidas por outros e, num segundo momento, “produzir as suas próprias regras, introduzi-las no contexto devido. O contexto por esta via modifica-se” (VASSILEFF, 1995, p. 60). No fundo, esta etapa envolve inscrever as ações dos sujeitos ou os seus atos no mundo em mudança (RICOEUR, 1986). Esta circunstância permitiu a Júlia, na idade adulta, voltar à formação contínua e ao ensino superior, e transformar-se “numa eterna estudante”:

Relativamente cedo, escolhi entrar na vida profissional ativa; desde o início do meu percurso profissional, desde cedo, senti a necessidade de recorrer à formação profissional contínua ao frequentar cursos existentes e tirar o melhor partido dos mesmos para o meu projeto de vida. Ao longo do tempo, percebi que continuar a aprender se tinha tornado numa necessidade, como comer ou beber. Já não podia viver sem esta alimentação intelectual.

Esta necessidade, mas também este prazer pela aprendizagem, não significa a ausência de objetivo(s) claro(s), de promessa(s), na aceção de Ricoeur (1986), relativamente ao percurso de vida traçado num quadro formal. Pelo contrário, traduz a importância da iniciativa individual através do recurso à autonomia (PINEAU, 1988) em quadros educativos mais ou menos formalizados (FARIA-FORTECOËF, 2010). Nesta linha de ideias, Ana concluiu a Licenciatura e, depois de alguns empregos, foi contratada como professora de inglês numa escola. Este acontecimento e o que aprendeu com ele levou-a a pensar em encontrar a ligação educativa (CIFALLI, 1998), i.e., oportunidades de educação formal, assim como de educação não formal e informal, que de alguma forma legitimassem o que acabou por se tornar numa opção de vida. Assim, passou a ser capaz de identificar necessidades de educação e formação no seu percurso e a encontrar formar de solucioná-las:

Era professora de inglês. Estava a dar razão à minha mãe que sempre quis que eu fosse professora. E devo dizer que, contrariamente ao que eu esperava, gostei do trabalho de ensinar. O ensino, a relação com os alunos (...). Logo percebi que não poderia continuar o resto da minha vida com a graduação que tinha, que devia formar-me como professora para poder assegurar o posto de trabalho. Tinha que igualmente aprender sozinha novos conhecimentos para resolver os problemas que ia enfrentando no dia-a-dia.

Pelo seu lado, Júlia afirmou:

Aprender é sentir-me totalmente presente num mundo em constante mudança. Aprender permite-me, sem dúvida, responder melhor às mudanças e pôr em questão todas as certezas que me impedem de avançar e de enfrentar os imprevistos ou o inesperado. Não conheço outra forma de perspetivar e de construir o meu futuro com a maior serenidade possível.

Desta forma, tanto para Ana como para Júlia, a escola e, mais amplamente a educação (incluída aqui a formação profissional) e a (auto e eco) formação, foram consideradas importantes para construírem os seus lugares no mundo (LAHIRE, 2008). Se a primeira identificou a sua profissão a partir da experiência de vida indicada atrás, para a segunda, foi no seio da sua família que essa possibilidade emergiu, mais tarde, na sequência das dificuldades sentidas na disciplina de francês pela sua própria filha:

Depois de compreender a situação [de insucesso escolar] da minha filha e com a ajuda do professor dela de francês, procurei perceber onde estava o problema. Era um problema de compreensão, de trabalho, de metodologia? Num primeiro momento, interessei-me pelo programa de francês, pelas leituras, pelos exercícios pedidos. Depois, trabalhámos, a minha filha e eu, alternando trabalho de equipa com trabalho individual. Progressivamente, pudemos identificar o problema, que era de metodologia. Concentrei-me então no ato de aprender, no método mais adaptado e nos instrumentos pedagógicos a utilizar. E aí, a via que eu procurava - consciente ou inconscientemente - havia tanto tempo ficou clara. Ao ensinar a minha filha a aprender, senti-me no meu lugar; eu podia dar, transmitir e partilhar. Em troca, eu recebia outros saberes que pude integrar e transformar antes de poder mesmo transmitir-lhe esses conhecimentos. A ideia de que esta experiência se podia reproduzir com outras pessoas transportou-me literalmente para uma ótica de projeto de vida. Ensinar era a solução lógica, que me enriquecia sempre com novos saberes que me permitiam ver o mundo de outra forma.

Neste sentido, estas duas autobiografias inscrevem-se em diferentes modalidades educativas, através das quais se solucionam dificuldades encontradas, mas também enquanto esferas de desenvolvimento pessoal e social, i. e., de (auto, hetero e eco) formação (PINEAU, 1988). Nestes dois casos, o importante parece ser “a procura da causa ou da razão não só dos insucessos, mas também dos sucessos” (REBOUL, 1999, p. 83), dado que “o ato de compreender compromete o pensamento na dimensão da intersubjetividade que advém da singularidade, pois ele é tão somente a reconstrução parcial e parcelar de um sentido que faltava” (CIFALI, 1998, p. 51). Neste âmbito, a autoformação ganhou importância ao permitir que as inquiridas se distanciassem dos momentos vivenciados, refletissem sobre as suas condições de vida e opções biográficas, escolhessem caminhos que poderiam permitir maior autonomização e emancipação. Neste sentido, procuraram na autoformação dinâmicas reflexivas e de apropriação do poder da formação (PINEAU, 1988). Mesmo se ainda hoje estas inquiridas vivem na atualidade fases de transição, marcadas por dúvidas e incertezas quanto às suas profissões e ao futuro, elas não deixam de perspectivar os obstáculos como oportunidades de desenvolvimento de novas aprendizagens profissionais e pessoais, através de modalidades educativas formais, não formais e informais. A educação e a formação, nas suas várias modalidades e polos, inscrevem-se nos seus percursos de vida vistos em termos de soluções biográficas (ALHEIT & DAUSIEN, 2006). De fato, nestes percursos, a complementaridade entre educação (formal, não formal e informal) e da (auto, hetero e eco) formação decorreu de uma estratégia tida pelas próprias como essencial para os desenvolvimentos dos seus percursos de vida.

Considerações finais

Este artigo baseou-se na análise de trajetórias de vida e procurou demonstrar a complementaridade entre as modalidades de educação (formal, não formal e informal) e os processos de (auto, hetero e eco) formação nos percursos de vida de Júlia e Ana. No contexto de famílias de emigrantes portuguesas que deixaram Portugal no início da década de 1970, diversas modalidades de educação (formal, não formal e informal) foram apropriadas e surgiram como estratégias essenciais na construção de projetos familiares e de vida diferentes daqueles que o grupo social de origem das inquiridas poderia indicar (LEANDRO, 2004; LAHIRE, 2008). Complementarmente, a interligação entre a auto, hetero e ecoformação favoreceu a construção de soluções biográficas (ALHEIT & DAUSIEN, 2006) que Júlia e Ana acentuaram nas suas histórias de vida e que as levaram a considerar a educação e a formação como filosofias de vida. Assim, a discussão das narrativas autobiográficas permitiu descortinar diferentes tensões associadas à educação e à formação. Entre sentimentos de desadaptação e de adaptação, de oportunidades educativas apropriadas e deveres cumpridos, de promessas desejadas e investimentos realizados, o gosto por aprender, ganhou contornos de solução biográfica em tempos de incerteza social e pessoal. Efetivamente, no discurso das inquiridas pareceu registrar-se a preocupação com a constante tomada de decisões que permitisse mudar continuamente a orientação das suas vidas. Esta foi uma preocupação que acabou por ser interiorizada de maneira mais ou menos clara e que se consubstanciou na ideia de que é essencial educar-se e formar-se.

Devido à opção metodológica efetuada, a coleta de dados assentou em narrativas biográficas. Nestas foi atribuída à Julia e à Ana a possibilidade de atribuir coerência às aprendizagens desenvolvidas ao longo da vida. Esta circunstância favoreceu relatos biográficos nos quais foram enfatizadas situações que destacaram a integração e/ou apropriação que as autoras das narrativas fizeram de contextos, tempos vivenciados e oportunidades concedidas pela vida (BÉZILLE, 2006, p. 139). A preferência por autobiografias que incidem sobre a educação e a formação traduziu uma forte aposta na reflexividade; envolveu igualmente umadémarcheque permite destacar os processos formais vividos pela experiência, mas sobretudo iluminar processos (formais, não formais e informais) responsáveis por muito do que os sujeitos sabem, como agem e refletem. Neste âmbito, são de enfatizar as apropriações de processos de autoformação, hetero e ecoformação, num esforço de consciencializar a experiência vivenciada (GALVANI, 2006) e de produzir as suas próprias vidas (VASSILEFF, 1995; PINEAU & MARIE-MICHÈLE, 2012).

Referências

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Notas

0[1]Em francês, Desroche (1990) designa esta narrativa deautobiographie raisonnée.

0[2]Os nomes das inquiridas são fictícios.

0[3]Em francês, este mestrado possui a seguinte designação:diplôme universitaire de formateurs d'adultes(DUFA).

0[4]Em francês,congé individuel de formation(CIF).

0[5]As duas narrativas foram numa nova etapa sistematizadas numa grelha que incluiu os três eixos atrás indicados, inscritos numa linha cronológica.

0[6]A emigração “a salto” caracterizou-se pelo fato de os emigrantes não possuírem documentos legais para poderem sair do país de origem. A passagem (ilegal) das fronteiras entre Portugal e Espanha e entre Espanha e França era feita por isso a pé e a correr - “a salto” -, em zonas de floresta e de mato.

0[7]A cidade de Coimbra, em Portugal, possui a mais antiga universidade portuguesa, a Universidade de Coimbra, uma instituição de ensino superior histórica e muito prestigiada.

0[8]Júlia é hoje docente do ensino superior, na categoria profissional demaître de conférences.

0[9] La Bande à Picsoufoi uma série de animação destinada a crianças muito popular em França, tendo sido emitida entre finais dos anos de 1980 e finais dos anos de 1990. Esta série foi igualmente editada em livros de banda desenhada.

0[10]Ainda na década de 1970, em muitas escolas de educação básica, eram aplicados castigos corporais às crianças que tinham dificuldades de aprendizagem com uma régua ou uma palmatória de madeira.

0[11]Títulos de canções populares que marcaram a Revolução Democrática que ocorreu em 1974, em Portugal

: de ; Recebido: 05 de Outubro de 2020; : de ; Aceito: 04 de Janeiro de 2021; : de ; Publicado: 30 de Março de 2021

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