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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 24-Out-2023

https://doi.org/10.5902/1984644443344 

Resenha

O elogio da Literatura

In Prise of Literature

Claudionei Vicente Cassol1 
http://orcid.org/0000-0001-7837-887X

Sidinei Pithan da Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-6400-4631

1Pós-doutorando na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. Professor na URI - Frederico Westphalen-RS, Brasil. E-mail: cassol.cv@gmail.com.

2Professor doutor na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: sidinei.pithan@unijui.edu.br.


O mundo que compartilhamos revela as compreensões que atores e atrizes das processualidades históricas assumem e desenvolvem cotidianamente. As geografias e o conhecimento colocado à disposição, enquanto construções humanas, acumulam e transportam ações e decisões, aprendizados e validações sociais. A educação, acontecimento necessário, apresenta-se contingente ao indicar possibilidades e carregar intencionalidades das potências formadoras. Essa marcação parece relevante no situar o contexto de acontecimento dos processos educativos na pluralidade do mundo produzido. Talvez, processo supra-democrático, na medida em que não participa, necessariamente, da ágora política.

Zygmunt Bauman, preocupado com a dignidade humana e a vida (ALMEIDA, GOMES; BRACHT, 2009), publica, com Riccardo Mazzeo, O elogio da Literatura (2020), para continuar o diálogo sobre a crise que empareda a educação, iniciado, em 2012, em On Education. A obra vê, no diálogo, uma forma de educar já defendida por Bauman e; também enfatiza a preocupação de Mazzeo com o problema do reprodutivismo. As 151 páginas e 12 capítulos de O elogio da Literatura, permitem compreender o mundo em que vivemos, bem como pensar sobre os rumos dos processos educativos formais e não-formais, instituindo compreensões que motivam ações educadoras. A literatura é referida na obra como forma de particular valor na construção de uma cultura reflexiva, porque próxima da sociologia e da educação.

A centralidade do diálogo apresenta a literatura e a sociologia como conhecimentos indispensáveis aos processos de resistência à bestialização, à simplificação das vivências, experiências e sentidos da vida humana. A lógica em curso na sociedade líquida, individualista, consumista e utilitarista encaminha a hegemonização de verdades, princípios e ideias que se apresentam inquestionáveis e impermeáveis nos seus dogmatismos, instaurando sentidos únicos.

Ao reconhecer o valor da linguagem, do discurso e do imaginário como formas constituintes e instituintes do mundo humano, cultural e social, Mazzeo e Bauman, travam lindo diálogo sobre a condição humana, “a vasta experiência de estar no mundo” (MAZZEO, BAUMAN, 2020, p.13) e seu vínculo com a educação, a literatura e a sociologia. Denunciam, na obra em questão, o empobrecimento e o esvaziamento do universo das narrativas e palavras no contexto de uma sociedade de consumidores que hipervalorizada a cultura de blogs e sites. Retomam o questionamento acerca das condições de possibilidade da teoria social e literária (humanidades), em suas distintas e ambivalentes manifestações, antagônicas e complementares, marcando as potencialidades e limites de pensar a “salvação pela literatura”.

Na epígrafe do livro, a citação de Theodor Adorno, extraída de Minima moralia (2001), estabelece um horizonte para uma noção de cultura que é contrária à mera aceitação e administração do mundo. Para Adorno (apud MAZZEO e BAUMAN, 2020, p. 8), “chama-se realidade material o mundo do valor de troca [porém a cultura] se recusa a aceitar a dominação deste mundo”. Este conceito de cultura, assumido por Bauman, em A cultura no mundo líquido moderno (2013), permite entrever o desafio da literatura e da sociologia, como formas culturais, que se valem de “hermenêuticas secundárias” (MAZZEO; BAUMAN, 2020, p.13), potentes para levantar questões sobre as interpretações que se fazem sobre as práticas de vida em uma sociedade administrada.

A nova condição mundial, marcada pela força do poder econômico e da racionalidade instrumental, obstaculiza o nascimento de uma cultura com capacidade educadora, solidária e geradora de sentidos plurais. A valorização da literatura, e nela, do potencial educador aberto pelo diálogo e pelas metáforas novas que ensaiam sentidos diversos sobre a vida e o mundo humano, para além do sentido único do valor de troca, da dominação e da redução da vida como zoo, pode instituir outra cultura (HORKHEIMER, 2000).

O primeiro capítulo considera a literatura e a sociologia como “duas irmãs” com potencial para “rasgar constantemente o véu da pré-interpretação” (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 17), porque é de suas naturezas a ambivalência, na medida em que se compreendem contingentes, porém, portas de entradas ricas em metáforas não simplificadoras da vida, potencializadas como diálogo. A ideia, retomada no capítulo oitavo, ensina que “as metáforas governam o funcionamento cotidiano até nos detalhes mais mundanos (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 92).

O capítulo segundo defende a literatura como possibilidade de superação à cultura da oclusão, da superficialização, da tecnificação e do consumismo. A educação pode trabalhar a “escrita criativa” e despertar a sensibilidade, o pensamento imaginativo, a primavera das emoções, a reflexão e a sociabilidade. Mazzeo e Bauman (2020) sugerem potência para a literatura à medida que, associada à sociologia, incorpora o embrião da pluralidade, da possibilidade, das múltiplas vias. Literatura e sociologia, na perspectiva do livro, são ciência, conhecimento, atitude não doutrinária, não seletiva ou redutora, mas abertura educadora ao diferente, andando de mãos dadas com as experiências da existência.

O terceiro capítulo retoma concepções da obra El retorno del péndulo (BAUMAN; DESSAL, 2014), no que diz respeito a ação pendular dos indivíduos nas relações de poder como possibilidades de novas constituições, enfrentamentos e resistências. O fim das certezas (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 47) coloca a realidade da “continuidade” e da “descontinuidade” no cotidiano das existências e invoca a ambivalência como constante nas relações de poder que se esvaziam em seus centros de hegemonia (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p, 46) pelo crescimento de micropoderes.

O aprofundamento continua no capítulo quarto, metaforicamente, a partir da figura do pai enquanto centro de poder e forte protótipo cultural da história humana. Esse simbólico representa uma totalidade que, teimosamente, apega-se a concepções de valor, de posses, em detrimento de elaborações, sentidos e emoções e, consequentemente, de questionamentos e diálogos que, no movimento centrífugo das elaborações metafóricas, impulsiona para a descoberta das contingências. A cultura hegemônica operou indivíduos forjados nas centralidades de poder e reprodutores (BOURDIEU E PASSERON, 1992), sendo que os processos educativos fortaleceram o paternalismo.

Mazzeo, ao pensar o interregno, apresenta a literatura com possibilidade de atribuir sentido e construir significados potentes na direção de tracejados superadores da condição de vazio no qual “os modos de viver no mundo já não funcionam mais e os novos ainda não foram inventados” (BAUMAN; MAZZEO, 2020, P. 61). As metáforas que emergem da literatura desenvolvem dimensão criadora e promotora de entendimentos que permitem compreender as metamorfoses (BECK, 2018) do mundo. Esta centralidade do capítulo cinco remete ao conteúdo do sexto, ao evidenciar o esvaziamento das forças hermenêuticas, interpretativas e dialógicas na interface das dialéticas da existência.

Os blogs e o desaparecimento das mediações expressam a “geração vazia” em expansão monstruosa também em função da ruptura das possibilidades de veiculação de conteúdo significativo e criativo, com acessos constantes, buscas expressivas e consultas de impacto. O capítulo sexto conecta-se ao primeiro, ao articular a concepção das duas irmãs: sociologia e literatura. Mazzeo e Bauman ocupam-se da “profunda relação entre a literatura e a vida”. O centro vazio de poder, ideia de Italo Calvino, questiona as dificuldades para o crescimento humano ante às carências de lideranças e heranças significativas que possam constituir-se guias e portadoras de mensagens de humanidade, solidariedade e pluralidade de sentidos como o amor, a existência, a vida e a natureza humana.

Na luz do debate da primeira parte do livro, o capítulo sete expõe as mazelas sociais que desenvolvem patologias forçadas pelas normativas do mercado consumista. Poderosas, direcionam compreensões e orientam ações dos indivíduos ao isolamento social e, perigosamente, ao esquecimento da própria condição humana da interação, das experiências diante das incertezas e contingências da realidade. A pergunta do título sugere a condição autista como futuro para a espécie e permite ampliar a pergunta do: “será que estamos nos tornando?” (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 77), para: “não estaríamos sendo forçados ao autismo”? (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 77).

As metáforas do século XXI, capítulo oitavo, indicam o belíssimo serviço de resgate e ascensão da imaginação e da compreensão dos indivíduos na direção da construção de outros horizontes e direções. As redes sociais têm promovido a exiguidade do pensamento, o bloqueio das capacidades criativas e as oclusões mentais: quem não escreve, não elabora, não pensa. Os processos midiáticos desplugaram a necessidade de atenção, concentração, paciência e sentido da duração da vida e seu valor (DUSSEL, 2002). Afrouxou-se o compromisso individual e social com questões específicas do humano e com o cosmos (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 99), reveladas no quanto se pede da vida e no pouco a retribuir. Vê-se o relaxamento nos processos educacionais, formais e não formais (SAVATER, 2005), incorporando a reprodução e legitimando as concepções hegemonizantes financiadas pelas filosofias fragmentadoras, desvinculantes e capitalistas.

Alertas às superficializações do pensar, às máscaras interpostas entre os indivíduos e às intenções do forte poder desses tempos líquidos, volatilizado para dominar mais, o livro critica a realidade fictícia e enganosa, produtora de verdades para poucos. As realidades fakes alastram-se, violentamente, sobre a humanidade, tal qual a realidade nadificante, na metáfora de História sem fim (ENDE, 2000), na terra da fantasia onde a imaginação sofre do niilismo; na Alegoria da caverna (PLATÃO, 2014) e em 1984 (ORWELL, 2009). Mazzeo e Bauman (2020, p. 101) compreendem a “tuiteratura” como forma de esvaziamento dos conteúdos da cultura, bem como questionam os processos de “avatarização” da vida. Ambos os fenômenos representam o reducionismo cognitivo e a forma limitada de vida que acaba sendo produzida para os indivíduos, por meio da mídia e dos poderes manipuladores. A tendência fake é responsável pela morte do esforço, da concentração, da elaboração e da complexidade e pela abdicação do questionar/pensar (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 138). Os processos educativos, reprodutores do status quo, matam as grandes narrativas, as potências das metáforas. Passagem que recorda Adorno, em análise à obra de Spengler, afirmando como este denunciava, no início do século passado, um sentido de decadência que se manifestava na cultura alemã do período anterior ao nazismo, a qual ufanizava o valor dos jornais em menosprezo ao livro. “O mundo dos livros, com seus variados pontos de vista, que obrigam ao pensamento a escolher e criticar, já é somente uma propriedade real para poucos” (ADORNO, 2008, p. 45).

Neste espírito, os autores tecem, no capítulo dez, críticas às compreensões maniqueístas em proliferação no cotidiano massificado e realizam esforço para desmistificar o pensamento teológico fundamentalista, obscurantista e negacionista, em instalação progressiva neste momento da história. Bauman e Mazzeo alertam para o dogmatismo que força indivíduos a polarizar suas relações, abdicar do diálogo e da solidariedade, e serem, deste modo, induzidos a optar entre o bem e o mal como situações absolutas e única possibilidade de escolha. O debate sugere a iminente e perigosa proliferação de uma tendência moralista e puritana no contemporâneo. Essa lógica em instalação transporta os indivíduos para fora de si mesmos e à responsabilização de outrem. Os bons estão de um lado e os maus, no oposto; sentido do título “seco e úmido” (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 113) como mundo polarizado e simplificado, “fábrica de adiaforização”, do mal.

O capítulo onze esforça-se para demonstrar o entrincheiramento que a simplificação e a fragmentação da vida produzem em uma cultura de massas (MAZZEO; BAUMAN, 2020, p.130). Parece haver um enredamento arquitetado para impedir processos dialógicos profundos que, para além de produzir “o bem”, promovam o “sentir-se bem” (BAUMAN; MAZZEO, 2020, p. 129). A condição de caminho para a plenitude ética e moral não se concretiza no solipsismo, mas na aproximação, no olhar, no cuidado, na cooperação e na solidariedade.

O elogio da literatura culmina no capítulo doze, indicando o necessário e urgente esforço para superação da polarização. Elabora, a partir da interface entre Educação, literatura e sociologia, a multidisciplinaridade como construção de alternativas sociais, científicas e culturais. Nada parece fazer sentido se a grande lição não for o amor. Amor é preocupação omnilateral com a outra pessoa; não é indiferença e eliminação dos problemas, mas enfrentamento e consciência de que eles existem e podem ser compreendidos e tratados no horizonte da solidariedade.

Literatura e sociologia alimentam-se para produzir novos horizontes educativos e dialógicos. Abrem possibilidades às críticas, contextos plurais e complexos e revelam as riquezas do diferente. Novas metáforas potencializam discursos, despertam atitudes criativas, artísticas, educadoras de afetividade e solidariedade. O elogio da literatura é valorização da capacidade educadora que as narrativas, ricas em metáforas, detêm, pois produzem possibilidades de sonhos e esperanças, agência (auto) crítica e cultural no mundo. O problema com nossa civilização, insiste Bauman a partir de Castoriadis, “é que ela parou de se questionar” (MAZZEO; BAUMAN, 2020, p.138). O mais importante para educação em sua tarefa ética e política é: 1) permanentemente questionar a mesmice e o conforto mental, “de uma vida apressada e vivida sob a tirania do momento” (MAZZEO; BAUMAN, 2020, p.143), e; 2) despertar o sentido de escolha e responsabilidade com o destino do mundo humano, social e histórico.

Referências

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ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2001. [ Links ]

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SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Planeta, 2005 [ Links ]

Recebido: 04 de Abril de 2020; Aceito: 22 de Maio de 2020; Aceito: 31 de Julho de 2022

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