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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.47  Santa Maria  2022  Epub 17-Jun-2024

https://doi.org/10.5902/1984644448049 

Artigo Demanda Contínua

História Oral das mulheres usuárias da Assistência Social: diálogos com a Educação Não Formal

Oral History of Women Social Assistance Users: Dialogues with Non-Formal Education

Patrícia Cristina Antonietto1  , Mestre em Educação
http://orcid.org/0000-0002-3354-8238

Lívia Morais Garcia Lima2  , Pós-doutoranda
http://orcid.org/0000-0001-9962-7820

1Mestre em Educação pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo. São Paulo, Brasil. pantonietto@yahoo.com.br

2Pós-doutoranda na Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. São Paulo, Brasil. liviamglima@gmail.com


RESUMO

O presente trabalho visa conhecer e analisar os significados que as usuárias atribuem às ações educativas desenvolvidas nos serviços de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência (PAIF) e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) na cidade de Americana/SP, concebidos pela Política Nacional de Assistência Social. A revisão bibliográfica subsidiou a pesquisa de campo, utilizando-se para tal a metodologia de História Oral, na modalidade de depoimento oral. É por meio das vozes das mulheres que os efeitos da ação educativa desenvolvida nos serviços se fazem conhecer, assinalando a importância dos espaços grupais como mediadores da aprendizagem e de perspectivas para o fortalecimento dos vínculos comunitários, uma vez que permitem a identificação e percepção de classe, de coletivo. A História Oral desvela outra realidade que para a mídia não interessa mostrar. Por fim, a nebulosa relação entre Assistência Social e Educação Não Formal, que pode contribuir para o fortalecimento grupal, combinando novas possibilidades metodológicas da Educação Não Formal com o poder de alcance que o status de política social dá à Assistência Social.

Palavras-chave: Educação Não Formal; Assistência Social; História Oral

ABSTRACT

The present work aims to know and analyze the meanings that the users attribute to the educational actions developed in the services of Protection and Integral Assistance to the Family and Coexistence Service (PAIF) and Strengthening of Links (SCFV) in the city of Americana/SP, conceived by the Policy National Social Assistance. The bibliographic review supported the field research, using the Oral History methodology for this, in the form of oral testimony. It is through the voices of women that the effects of the educational action developed in the services are made known, pointing out the importance of group spaces as mediators of learning and perspectives for the strengthening of community bonds, since they allow the identification and perception of class, of collective. Oral history unveils another reality, which the media is not interested in showing. Finally, the nebulous relationship between Social Assistance and Non-Formal Education, which can contribute to group strengthening, combining new methodological possibilities of Non-Formal Education with the reach power that the social policy status gives to Social Assistance.

Keywords: Non-Formal Education; Social Assistance; Oral History.

Introdução

As últimas décadas foram marcadas por mudanças importantes nos âmbitos econômico e produtivo, pela adoção de políticas de caráter neoliberal unidas às inovações tecnológicas que substituíram os postos de trabalho, contribuindo para o aprofundamento da chamada questão social, que se materializa na pobreza, na fome, na violência e em outros problemas que assolam a sociedade, e que tem sido ‘combatida’ por meio de políticas públicas, especialmente a política de Assistência Social. No entanto, há ainda, outra faceta dessa questão social: a pobreza política.

A pobreza política torna ainda mais grave tal situação, pois veta possibilidades de enfrentamento da desigualdade em suas raízes. A adoção de políticas que promovam a participação social é essencial para o combate de suaprópria pobreza, de acordo com Demo (1996). Do mesmo modo, Gohn (2001) afirma que a defesa das culturas e identidades é fundamental para o reconhecimento e desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos para uma leitura crítica e transformação da realidade que vivenciam.

Aprender a perceber, refletir e compreender a conjuntura é um exercício para além da transmissão do conhecimento; é preciso experienciar. De modo geral, os programas sociais promovem ações educativas que, muitas vezes, não são reconhecidas como tal por não se enquadrarem no modelo ‘escolar’, visto que possuem características próprias do campo da Educação Não Formal.

Na luta diária pela superação dos desafios concretos que a questão social impõe a milhões de brasileiros, é que se vislumbram os sujeitos dessa pesquisa: os(as) usuários(as) do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Ação Social e Desenvolvimento Humano na cidade de Americana/SP e em parceria com uma Organização Não Governamental (ONG), na região conhecida como Praia Azul. Tais usuários - geralmente mulheres - vêm em busca de respostas às suas problemáticas, que são diversas e estão, inclusive, para além da escassez material - o machismo expresso nas relações conjugais, a educação dos filhos e o relacionamento intergeracional, a administração financeira do lar com poucos recursos, o autodesenvolvimento negado em prol da família - as quais são frutos de desigualdades históricas e basais do próprio capitalismo.

Assim, o objetivo principal deste artigo é apresentar e analisar os significados que as usuárias atribuem às ações educativas desenvolvidas nos serviços citados. E ainda, identificar os tipos de ações e métodos utilizados na intervenção educativa; conhecer a percepção dos sujeitos acerca de sua autoimagem, de sua comunidade e das políticas públicas a eles dirigidas.

A revisão bibliográfica subsidiou a pesquisa de campo, utilizando-se para tal a metodologia de História Oral, na modalidade de depoimento oral - participação nas reuniões do PAIF/SCFV e entrevistas com as participantes. Conforme consulta às bases de dados SciELO e BDTD utilizando os descritores “Assistência Social”, “Educação Não-Formal” e “História Oral”, não foram encontradas pesquisas similares com enfoque nas atividades grupais na proteção básica da Assistência Social.

A Assistência Social, enquanto política social, em seus programas e projetos, utiliza-se de ações de cunho educativo como estratégia de enfrentamento às vulnerabilidades sociais. Isso se pauta na concepção de que mudanças culturais (educacionais) podem gerar mudanças sociais. A Educação, de fato, possui tal potencial, o que não significa que ela o faça obrigatoriamente.

Nesse aspecto, atenta-se para o campo da Educação Não Formal, o qual tem interagido fortemente com a Assistência Social, especialmente nas últimas décadas, por meio do terceiro setor, numa relação por vezes nebulosa.

Essa relação estreita que a Educação Não Formal tem com a Assistência Social, gera tensões, já que esta última tem o reconhecimento e o aparato orçamentário de política social e a outra, ao contrário, é marcada pela fraca institucionalização, pela independência de certificação e variedade de metodologias. No entanto, se entrelaçam na prática pelos objetivos comuns: fazeres com objetivos sociais, porém de modos diferentes. Logo, suscita uma discussão sobre os objetivos e resultados positivos ou negativos dessa parceria.

Pela fala das mulheres que participam das atividades grupais nos programas da Assistência Social, pode-se conhecer melhor os ganhos, saberes, dificuldades e potencialidades dessa relação entre Assistência Social e Educação Não Formal.

Educação e Assistência Social: possibilidades e desafios

Para Santos (2012), a questão social pode ser compreendida como efeito do desenvolvimento do capitalismo e se expressa em diversas dimensões, como o colonialismo, patriarcado e questões étnicas. Segundo Wallerstein (2001), o capitalismo é um sistema social histórico. O capital representa muito além de um acúmulo de coisas - mercadorias, imóveis, máquinas - sendo, também, um modo de organizar a sociedade rumo à expansão do acúmulo de bens, onde o capital deve ser agente gerador de mais capital. Para isso, cria a ideia de valor atribuído às coisas e às relações ao estipular que há trabalhos com e sem valor, mais e menos importantes, e/ou o homem sendo superior à mulher, assim como o branco ao negro, e a criação da existência de um centro e uma periferia.

Conforme Garcia (2005), o avanço da questão social é perigoso para o capital ao pôr em xeque sua viabilidade enquanto sistema social e econômico. Nesse contexto, a política social surge como estratégia de resposta às problemáticas, mas, não de enfrentamento às causas delas, o que implicaria na superação do próprio sistema. Assim, a proteção social é construída conforme a necessidade de o capital lidar com a pressão das classes subalternas por melhores condições de vida, especialmente nos momentos de crise estrutural do capital (IASI, 2013; BEHRING e BOSCHETTI, 2011)

A Assistência Social, por sua vez, historicamente tem realizado essa ação de amortecimento das mazelas sociais, e enquanto política social, não pretende romper com essa atuação. Todavia, pelas lutas dos trabalhadores, vislumbra-se nela um espaço de reivindicação de suas demandas e resistência à dominação, numa relação de avanços e retrocessos.

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004 traz como inovação a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), garantindo à Assistência Social continuidade, recursos e diretrizes em âmbito nacional. A matricialidade familiar e a territorialidade ganham destaque, subsidiando a organização dos serviços, com a promessa de valorização da identidade e cultura dos grupos sociais.No entanto, há um modelo político-econômico neoliberal que visa à desconstrução de direitos e do Estado, que se materializa na crescente atuação das ONGs, assumindo a execução dessa política social (BEHRING, 2010)

Tais instituições formadas por agentes privados ou com vínculos institucionais com o setor estatal, mas que se intitulam ‘3º setor’, recebem verbas governamentais para sua manutenção e servem a seus interesses, assumindo ações que deveriam ser próprias do Estado. Para Martins (2007), o perigo dessa relação é uma práxis comunitária, vazia e acrítica, que pode reforçar a exclusão, fomentando um mercado - mercado social - que se alimenta dessas situações de vulnerabilidade em busca de novas formas de geração e apropriação de lucros, nos moldes do capitalismo. Por outro lado, pela sua proximidade com o concreto, com a população e com a prática, pode ter uma ação transformadora se conseguir realizar a práxis social, que o autor entende como a militância voltada para a mudança social.

A vulnerabilidade econômica, segundo Demo (1996), é a materialização da questão social, mas há ainda uma pobreza política que atinge as classes subalternas, mascarando sua própria condição na luta de classes. O investimento em Educação é comumente apontado como solução para o desenvolvimento econômico e social do país. Porém, é preciso compreender seu real significado e função.

Como Brandão (2007) e Charlot (1986) apontam, a Educação ocorre de maneira múltipla: por meios informais, não formais e formais, com igual validade, porém com métodos e objetivos diversos. A Educação de modo algum é neutra e também serve para firmar a hegemonia - de um padrão cultural, da classe dominante - e criar distinção - de saberes e de funções sociais.

A Educação Não Formal, entendida como um campo distinto e em construção, oferece métodos que favorecem a formação crítica de indivíduos e grupos, podendo ser uma estratégia contrahegemônica, já que o controle estatal se desenvolve em outras esferas e contextos. Enquanto a educação informal se dá de modo espontâneo, sem planejamento, a Educação Não Formal tem intencionalidade, planejamento, se diferenciando pela flexibilidade e tempo, conteúdos, métodos diferentes dos comumente usados na Educação Formal, inclusive, não apresentando certificação (FERNANDES, 2017; GOMES, 2008)

A Assistência Social tem sido um espaço de interseção entre o campo da Educação Não Formal e o Estado, mediada pela ação do terceiro setor, o qual tem atuado como agente executor de políticas sociais, na conjuntura neoliberal. (GROPPO, MARINHO e COSTA, 2013). São notáveis os desafios da participação social da classe subalterna; e a Educação, enquanto cultura, influi nesse processo.

Gohn (2011) afirma, porém, que a cultura se tornou o mais importante espaço de luta e de resistência das classes subalternas frente o processo alienante encabeçado pela globalização, na defesa de sua identidade e interesses efetivos. Essa identidade e interesses têm sido representados por ‘outros’ - o intelectual, especialmente. Conforme Spivak (2010), os técnicos que atuam junto aos grupos populares tem especial responsabilidade nesse processo: buscar recuperar a consciência de classe desses grupos, para que se tornem sujeitos de sua história, ou, corroborar sua subalternidade.

A relação da mulher com a política social se destaca: o capital a incumbiu do papel de cuidadora do bem-estar da família; são elas que buscam os serviços públicos e deles recebem a missão de reproduzir na família os objetivos das políticas sociais. Contudo, essa é a figura que o patriarcado obliterou e desqualificou no desenvolvimento capitalista. Até então, havia pouca diferenciação das atividades de homens e mulheres: embora existisse uma divisão de trabalhos, ambos trabalhavam a terra sem uma hierarquia de valor; ambos eram responsáveis pelo sustento da família.

O espaço da moradia também era o espaço do trabalho. O advento da indústria separou o trabalho da vida particular, e o trabalho realizado pela mulher, em casa, passa a ser visto como um não trabalho, por não gerar remuneração. Cada vez mais o trabalho doméstico e a maternidade foram propagados como algo inerente à mulher, portanto, um não-trabalho, uma vocação que justifica,atualmente, a dupla jornada, o salário mais baixo da mulher, e que geram lucro ao capital. O trabalho restrito ao lar também enfraqueceu a coletividade feminina, dificultando a troca de informações (FEDERICI, 2017).

Carloto e Mariano (2010) apontam para esse entendimento da família como lócus de atuação da mulher, e sobre família, aquela capaz de prover materialmente seus membros, manter a saúde e educação (escolar) das crianças, da transmissão das tradições. O trato da família almeja, muitas vezes, uma dinâmica de regularização e controle que não considera que ali é também um espaço de contradição, debate, enfrentamento, desigualdade, e que a divisão público/privado não é realmente tão evidente, pois a família reproduz em seu interior as problemáticas, cultura e comportamentos vigentes na sociedade.

A mulher assume um papel de mediação entre a família (privado) e a política social (público); apesar de muito se falar em família, o que se tem efetivamente é a participação da mulher. Conforme as autoras, a política pública, em sua documentação/diretriz, mascara a realidade ao chamar de família o que, na verdade, se trata do sujeito (CARLOTO e MARIANO, 2010).

Se destaca, também, o espaço de moradia como esfera de igualdade e conflito, com desafios e potencialidades. As cidades modernas trazem os vestígios do capital que precisa mercantilizar tudo: nos espaços, as memórias devem ser destruídas para atender as leis de mercado. No entanto, os monumentos cristalizam a memória de uma época. A ruína é aquilo que persiste ao tempo; é um sinal do arcaico, destruição, mas também é revolucionária ao manter viva a lembrança do vencido, daquilo que poderia ter sido (MATOS, 2009).

A Praia Azul é um desses espaços que ostenta em sua ruína, o que foi e o que pode ser: nas águas da represa e nos antigos hotéis deteriorados, as histórias de glória do turismo no interior paulista, contrastando com os conjuntos habitacionais populares que não param de se multiplicar. O passado e o presente tentando encontrar o futuro no mesmo espaço.

Conforme apresenta Bauman (2009), as cidades modernas são feitas para afastar ao invés de integrar seus habitantes à comunidade, especialmente se forem econômicos e socialmente distantes. Quanto mais as pessoas visualizam os espaços de modo individualista, menos consciência local e mais incapazes de perceber as ameaças e as determinações globais elas ficam. São os grupos subalternos os quais habitam os espaços e não podem se esquivar deles, que geralmente vão perceber os problemas e vão participar mais ativamente de sua resolução.

A territorialidade é um aspecto importante para a compreensão da realidade social, pois é no espaço da residência onde as pessoas fixam relações de afeto, tecem planos de futuro, aprendem a ser e a conviver com o diverso. Conforme Picheth e Chagas (2018), o conceito de território é antigo e sofreu mudanças ao longo do tempo: inicialmente, representava o domínio do Estado-Nação, e nos períodos mais recentes, é utilizado para compreender a atuação dos movimentos sociais. As autoras defendem que território é o fruto do processo de apropriação, concreta ou simbólica, de um espaço por um ator (uma sociedade, um indivíduo), portanto, a constituição do território emana uma relação de poder, de posse. Assim, o território é definido pelas relações sociais e culturais estabelecidas ali, muito além do espaço geográfico. Há diferentes comunidades num território e múltiplas identidades, portanto, é uma dinâmica construída socialmente e em constante mudança (PICHETH e CHAGAS, 2018).

Nos territórios - termo usado pela PNAS, referindo-se a uma determinada região geográfica - se encontram as comunidades. O entendimento de comunidade transcende o espaço físico e se refere às relações existentes entre as pessoas, assim, uma população não é necessariamente uma comunidade. E nem a comunidade é algo homogêneo, mas reproduz a ideologia dominante e os conflitos existentes no contexto macro.

Conforme Souza (1996), é preciso ter clareza de que a comunidade é espaço de antagonismos. Gomes (2008) também atenta para valor benéfico dado ao termo comunidade - tanto que não se costuma usar esse termo para definir um coletivo considerado mau. Assim como o termo ‘social’, discutido por Garcia (2005), a comunidade está investida de um sentimento utópico de solidariedade, igualdade, do bem comum. No entanto, a comunidade é o espaço do cotidiano, das alegrias e tristezas, onde o global se materializa no local, espaço das diferenças.Logo, essa convivência de contraditórios nem sempre é harmoniosa.

Assim, é no espaço da comunidade que o global e o local se encontram, e se materializam no cotidiano das pessoas. O modo como elas percebem as implicações do modelo econômico e social adotado, o embate da cultura de massa e local e os significados da política social mediadas pelas ações educativas, são o grande interesse deste trabalho. Para isso é preciso ir ao povo e entrar na roda1.

História Oral: memória das mulheres usuárias da Assistência Social

Para conhecer as percepções das participantes do PAIF e SCFV, optou-se pela abordagem metodológica qualitativa, utilizando a metodologia da História Oral2. Thompson (1988) salienta que a História Oral tem como característica - e talvez sua maior riqueza enquanto metodologia - permitir o conhecimento da História pelas palavras de quem a vivenciou e sentiu, portanto, é investida de significados e sentimentos que vão além dos fatos, proporcionado novas interpretações das situações.

Conforme Thompson (1988), a História ‘oficial’ se preocupa em representar a trajetória da luta pelo poder - são os atos das classes dominantes que são relatados - e, muito pouco, se destina à vida cotidiana das pessoas comuns, que vivenciaram de formas diversas e construíram a evolução das sociedades. Pela História Oral, pode-se obter um retrato histórico mais fidedigno, já que permite trazer à luz as vozes de outros segmentos populacionais.

A abordagem adotada nas entrevistas com as participantes foi realizada de acordo com Lang (2000), a partir da modalidade do depoimento oral que visa obter informações do entrevistado acerca de sua participação e vivência em certas situações ou instituições.

O serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF, é ofertado no CRAS, e é uma das principais ações desenvolvidas nos territórios para atendimento às famílias em situação de vulnerabilidade, para que a família consiga desempenhar seu papel de modo pleno, entendendo-a como espaço de afeto, mas também de diferenças, e, por vezes, de violação de direitos.

A vulnerabilidade social tem um conceito multifacetado, pois não se trata de pobreza, embora a pobreza possa levar ou ampliar o risco social, mas engloba os fatores subjetivos e culturais - o preconceito e a desqualificação social também podem levar a situações de exclusão social - logo, seu enfrentamento deve atuar em várias frentes.

Já o serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) é ofertado de maneira complementar ao PAIF, com atividades em grupos, divididos por faixas etárias ou ciclos de vida, sendo organizadas em percursos. Assim como o PAIF, o SCFV integra as ações da proteção básica, especialmente no que tange a segurança de convívio, que significa a prevenção e proteção frente a situações de isolamento e discriminação. Para cada faixa etária são definidos alguns eixos de atuação e objetivos, sendo que, para a pesquisa, interessou os grupos de 18 a 29 anos (jovens) e de 30 a 59 anos (adultos).

A pesquisa foi realizada na cidade de Americana/SP, numa região conhecida como Praia Azul, a qual está separada da maior parte urbanizada do município pela Rodovia Anhanguera. O nome se deve à Represa Salto Grande, área inundada pelo Rio Atibaia na década de 1950 para ampliação da hidrelétrica de Salto Grande. Nas décadas seguintes, a região se destacou como ponto turístico, movimentando o comércio na região. Em outro ponto da represa, a Praia dos Namorados, se consolidaram os condomínios de veraneio, hoje uma área nobre da cidade. No entanto, na Praia Azul foi liberada a implantação de hotéis e boates, que favoreceram a prática da prostituição na região, uma característica que contribuiu para a estigmatização do local. Com o declínio do turismo pela poluição das águas da represa, a Praia Azul se torna uma área de empreendimentos habitacionais populares, alterando o perfil da região.

Para conhecer mais sobre as atividades educativas realizadas no SCFV e PAIF, foi realizada pesquisa de campo com participação nas reuniões grupais e entrevista individual com 05 mulheres integrantes desses serviços, abordando as percepções acerca do espaço em que residem; acerca das políticas públicas (os serviços dos quais participam); relacionamento grupal/comunitário e sobre participação comunitária.

São famílias jovens - a maioria na faixa dos 30, 40 anos de idade. A trajetória delas se cruza com a Praia Azul na busca de melhores condições de vida. Ao contrário do que se imaginava antes de conhecer a região - mas condizente com o histórico do território - é uma população imigrante, de outras regiões do país e do estado, que não cresceu na região, encontrando-a já em sua configuração atual. A possibilidade de obter o imóvel próprio foi o grande atrativo para a vinda ao bairro, seguida pela existência de familiares nas imediações. Assim, tem-se a implicação do capital nas possibilidades de decisão das pessoas: o pobre não pode efetivamente escolher onde deseja habitar, mas está à mercê das condições impostas pelo mercado imobiliário; este, por sua vez, define o que tem maior ou menor valor, e logo, qual é o lugar de habitação das classes dominantes e das subalternas, reproduzindo no espaço da cidade o lugar das pessoas no sistema de produção capitalista.

Embora as mulheres percebam a região como um local bom para se viver, tranquilo, também percebem a falta de infraestrutura e serviços públicos e privados, necessários para um bairro residencial. Perdura ainda a reputação de um lugar de criminalidade e prostituição - é mais uma periferia pobre, e conforme Bauman (2009), o pobre é a classe perigosa - o que recai mais fortemente sobre a figura feminina: pobre, imigrante e mulher. A dificuldade para encontrar emprego, o assédio na rua e a discriminação étnica são percebidos por elas.

O passado glorioso da região é conhecido pelas entrevistadas, por meio dos relatos dos vizinhos mais antigos. Aliás, são as relações sociais construídas com os vizinhos a base do vínculo com esse espaço. Conforme Picheth e Chagas (2018), o conceito de identidade se relaciona com o território, pois este se concretiza como tal à medida que os habitantes criam vínculo, se apropriando daquele espaço de modo simbólico. O território reforça a identidade individual e grupal, pois também produz significações, decorrentes das relações sociais existentes ali, por meio do saber-fazer, de suas edificações, monumentos, dialetos, crenças, das relações familiares travadas, empresas, etc., materializando essas identificações, ainda que somente tenham esse significado de uma perspectiva endógena. Logo, a memória se mostra como um fator importante no sentimento de pertença e no tipo de vínculo com o espaço e comunidade em que se vive.

Os relatos também denotaram as diferenças culturais e os novos hábitos que o imigrante tem que lidar num novo espaço - sendo que as que vieram de cidades maiores fazem menos críticas do que as de cidades menores, que percebem mais dificuldades;entretanto, todas relatam os problemas com os serviços públicos e infraestrutura. Demonstram, ainda, que é preciso fazer essa reivindicação no lugar e da forma certa, embora não saibam realmente como fazer isso efetivamente. Manter as classes subalternas nessa posição de ‘não saber’ é importante para a manutenção da ordem estabelecida.

As experiências das entrevistadas são semelhantes às de outras mulheres que ingressam em grupos. Inicialmente, há o convite de alguém próximo, o receio, e por fim, o engajamento. A participação nesses espaços é, geralmente, algo novo para elas, impensável talvez, visto que não é comum ouvir a respeito da atuação dos atores da área de assistência social - ainda muito vinculada à ideia de assistencialismo, doação, trocas de serviços e um foco voltado unicamente para a superação de dificuldades materiais - diferente de outras áreas sociais como Saúde ou Educação, que têm uma atuação mais abrangente e, logo, mais conhecida. Esses espaços são apresentados por outra pessoa - a irmã, a escola, a amiga - que encoraja essa aproximação na busca por melhorias em suas vidas e fruição de direitos para o grupo familiar.

A participação nos grupos é voluntária. Sair de casa para frequentar um grupo de conversa no meio do dia nem sempre é bem-visto pela família - conforme dados do caderno de campo, elas relatam que precisam se impor em casa para essa participação. Dessa forma, sair de casa para se reunir com outras mulheres, voluntariamente, é também um ato de resistência e de enfrentamento. E diante de séculos de relações clientelistas entre a política pública e a população, a participação voluntária numa atividade que não assegura ganhos materiais assinala um avanço e suscita a pergunta: o que representa o grupo para essas mulheres? O que aprendem nessa atividade?

As vozes das mulheres revelaram a importância dos espaços de fala e escuta, como no grupo, e indicam transformações em sua forma de ver o mundo e se relacionar com ele. A experiência do grupo rompe o medo: quanto mais próximo se está das pessoas, dos diferentes, quanto mais se conhece o espaço físico e social, mais segurança se percebe, pois já não são estranhos e sim amigos.

Os vizinhos e parentes, embora apontados como fator positivo, não fornecem essa oportunidade da fala; isto se deve ao medo do julgamento dos iguais. Uma das funções da educação é transmitir normas morais e punir as condutas divergentes por meio do próprio grupo social.

A importância da garantia do sigilo das informações é notável na fala delas. A exposição da vida particular leva a exposição dos companheiros/maridos, dos outros membros da família ao julgamento de outras pessoas; e embora isso não seja tão pronunciado, é perceptível o receio da retaliação, já que ali é um espaço onde se fala o que não se ‘pode’ falar para os parentes, para a família. Ainda assim há confiança maior em dividir com pessoas estranhas do que com os do círculo familiar. Cabe lembrar que nem sempre essas mulheres trazem histórias fáceis; ao contrário, há muita luta em seus relacionamentos, tanto que buscam se fortalecer nessa atividade.

Falar e ser ouvida parece ser um privilégio que as mulheres buscam há muito tempo na história. Roy (2017), ao estudar o Grupo Mulheres na Periferia (GMP) também aponta a relevância dos espaços e momentos de lazer e discussão para as mulheres, pois podem conversar livremente. A fala das participantes durante as reuniões do grupo indicam a falta desses espaços, pois em outros grupos com os quais se relacionam muitas vezes sua fala não é problematizada.

É possível perceber o quanto a escuta sensível é importante para as pessoas, pois além do ato de ouvir, é, também, aconselhar, olhar, tocar, demonstrar atenção. Como observado nas respostas, a maioria definiu tal aprendizado como ter paciência. Porém, aprender a ter paciência significa muito além de saber esperar:

Significa saber ouvir o outro sem julgar ou, ao menos, lidar com a opinião divergente. Uma transformação importante conforme o relato delas, já que a escuta efetiva e sensível é o que leva a compreensão adequada e reflexão do que o outro expõe. A posição de ouvinte - de não-agir, de permanecer - é um passo para a verdadeira experiência, como entendido por Larrosa-Bondía (2002); é estar disponível para se deixar tocar.

Também ficou em evidência o saber argumentar para expor um ponto de vista de modo racional e lógico. A argumentação depende de alguma reflexão; “analisar, depois falar”, como citaram as entrevistadas. Isso apresenta outro paradigma que substitui o agir impensado, a velocidade e a efemeridade que a vida na modernidade capitalista tanto enaltece. Saber argumentar pode impedir a ruptura; ao contrário, é capaz de reabrir o diálogo e construir novos pontos de vista.

Saber ter empatia para se colocar no lugar do outro e tentar ver as situações por outro ângulo, como comentou uma entrevistada: “eu tinha assim pra mim: nossa eu tenho que ser só eu; é só pra mim. Não, não é. Eu tenho que entender, tem o próximo; eu pensava só em mim.” Essa afirmação denota mais uma vez a influência, a que todos estão submetidos, de viver de modo individualista e competitivo. No entanto, a participação grupal mostra que existem outras formas de viver e que o outro não é tão diferente de si mesmo, bem como, que verdadeiramente só é possível se autoconhecer por meio da percepção do outro, que como um espelho reflete quem se é e também revela que o outro é muito semelhante a si.

O saber ter sigilo é um aprendizado implícito nessa participação, pois essa é uma grande preocupação de quem chega, e a garantia dessa confidencialidade é o que faz com que o grupo seja efetivamente um espaço de liberdade e de crescimento. O sigilo também reforça o sentimento de cumplicidade e reciprocidade entre elas, pois é um elemento importante para todas e propicia o difícil exercício da confiança mútua.

Embora muito comentado sobre o saber ouvir o outro, observa-se que poderia ser acrescentado o saber falar, pois, como elas relataram, o início no grupo é marcado pelo medo, pela vergonha, pela insegurança em se manifestar sobre algo. O exercício grupal também provoca essa habilidade - complexa - de ter coragem de falar, de se expor, e repetir isso nos relacionamentos, onde antes havia palavras de agressão para resolver as pendências, com base na lei do mais forte. Hojehá o diálogo, o ouvir e o falar.

São reafirmadas as atividades desenvolvidas no grupo como pautadas no campo da Educação Não Formal, pois se trata de uma ação planejada, com objetivos definidos, embora as técnicas utilizadas sejam distintas do modelo escolar conhecido e reconhecido pelos órgãos governamentais como modelo educacional a ser reproduzido através dos tempos e lugares.

Acompanhando as reuniões do grupo entre junho/2018 e dezembro/2018, destacam-se os temas que enfatizam o empoderamento feminino, os relacionamentos interpessoais, a família. As temáticas, ou ao menos esse percurso acompanhado, tem um foco grande em problemáticas relativas ao gênero e aos vínculos familiares, mas pouco problematiza o macro - o que foi mais perceptível em temas como o feminicídio - ou as problemáticas locais (enquanto bairro/cidade). Observou-se que para disparar o debate, foram utilizadas técnicas diversas: dinâmicas de grupo, filmes, música, livro, entre outros.

É notável o trabalho do educador - no caso,da assistente social - no desafio semanal de trazer inovação e instrumentos que facilitem o diálogo com o grupo, e principalmente, que levem o grupo a interagir entre si. Observa-se que não são atividades aleatórias, simples entretenimento; elas conseguem provocar as pessoas, permitindo a reflexão sobre algo que se deseja abordar. Interessante salientar, como apontado por Garcia (2007), que a Educação Não Formal não tem um caráter reformista ou de substituir a Educação Formal, mas se constitui em algo diferente. Experiências como a do grupo de mulheres ilustram bem a dinâmica dessas práticas. A ninguém interessa um certificado, ou a aprovação governamental, dizendo que estão aptas a tal, mas o que importa é como cada uma consegue modificar a si mesma, suas relações interpessoais e as melhores estratégias para a lida cotidiana.

Acerca da participação comunitária e do relacionamento com o grupo, obteve-se que as mulheres não mantêm uma proximidade fora do espaço dos serviços. Elas afirmaram que procuram ficar em suas casas. Chama a atenção essa resposta, que é mencionada como um valor. O modo de viver no capitalismo favorece o individualismo, forjando muros invisíveis entre as pessoas. Também não é segredo a existência da dupla jornada feminina, que assume na maioria dos lares a integralidade dos afazeres domésticos, da criação dos filhos, o que consome tempo e energia. Mas, também respaldando essa situação, há a cultura patriarcal, que determina o lar como espaço da mulher direita e não a rua (espaço masculino). Especificamente na região da Praia Azul, a mulher sofre as determinações de sua classe social, de sua etnia, e de sua condição de mulher. Nesse local, em que atuam as prostitutas, ser mulher muitas vezes é entendido como ser disponível.

A fala das entrevistadas reflete o desafio da mulher subalterna, que se vê triplamente oprimida e percebe na luta concreta pela sobrevivência o quanto isso está presente. As participantes citam sobre a discriminação étnico-racial que vivenciam - questionadas se são babás dos próprios filhos (brancos).

Observou-se que o grupo ainda é muito dependente das entidades promotoras, não tendo efetiva participação na preparação/execução das atividades. Esta não parece ser uma característica exclusiva do grupo estudado, mas se trata do formato do serviço pensado na política pública, que ainda não favorece a formação de comunidades autônomas. Ainda que haja ali um fortalecimento do vínculo grupal, não há um sentimento coletivo forte para mover ações de interesse comum, para um efetivo desenvolvimento comunitário.

Uma alternativa para potencializar esse feito seria criar formas da participação efetiva dos membros na formulação das atividades do grupo ou atividades culturais ou desportivas que permitissem a participação de todos os membros da família, inclusive com a ajuda deles na preparação. A Educação Não Formal se caracteriza por ser um campo de saber e de fazer. O fazer também gera maior envolvimento das pessoas, que se sentem responsáveis e mais inseridas no grupo. Acredita-se que esse é um viés que ainda é tímido nos programas da política de Assistência Social, ainda muito centrados na figura feminina como agente multiplicador, o que é uma tarefa árdua.

Nas falas das entrevistadas há o senso de que a população, se unida, tem poder perante o Estado. Todavia, elas confirmam não saber como efetivar essa união. Com quem falar? Onde buscar informação e apoio? Como se organizar? Esse é o papel mais importante que a política social poderia ter: intervir para sanar a pobreza política da população.E não se trata tanto da falta de percepção dos problemas ou de reconhecer o seu potencial nas lutas sociais, mas, da ausência de políticas participativas que possibilitem o acesso dessa população a outras esferas de poder, de saber e de representatividade. E sem essa articulação o subalterno continua amordaçado e de mãos amarradas pela sociedade capitalista.

Percebe-se que, a intervenção grupal do PAIF/SCFV usa de modo expressivo a História Oral, embora não o faça de modo consciente, por assim dizer, enquanto metodologia. É comum os participantes relatarem sua história de vida nas discussões, o que alimenta a reflexão, o estímulo e o apoio mútuo no grupo. Além disso, mantém viva a importância da memória, do lembrar e do contar histórias, o que, em última análise, alimenta a perpetuação da evidência oral. Quando perguntado às entrevistadas se conheciam a história do bairro, se vivenciaram essa época, a maioria delas disse que não vivenciou esse período, pois vieram morar na região bem mais tarde. No entanto, todas disseram que sabiam que a região já tinha sido turística, por que tinham ouvido falar: “as pessoas contam que era bom”, afirmou uma entrevistada. Esse gesto tão simples, certamente partilhado numa conversa de vizinhos sentados na calçada numa noite quente de verão talvez, mantém acesa a memória do que se foi, e por que não, do que pode vir a ser?

Incentivar o relato, assim como a reconstrução das lembranças, é um exercício que remete à História Oral e pode ser aprofundado, realizado de forma metódica, para o reconhecimento desses saberes cotidianos. No período de acompanhamento do grupo, além dos relatos de vida que as participantes faziam, houve também dinâmicas que solicitavam a lembrança de fatos, e com uso de fotos, o que demonstra que esses são recursos importantes para a reconstrução da identidade pessoal e comunitária almejada pelos projetos.

Considerações Finais

A compreensão da relação entre Educação Não Formal e Assistência Social implica em saber que nenhuma política é neutra, e as políticas sociais, de modo geral, surgem para dar resposta aos efeitos nefastos da exploração capitalista, geradora de desigualdade. Não se trata de um ato benevolente das classes dominantes, mas é uma resposta necessária às lutas das classes subalternas.

Historicamente, o pobre tem sido visto como perigoso, e de fato o é: a revolta das camadas empobrecidas (que no sistema capitalista são a maioria) pode pôr em risco a legitimidade do sistema, portanto, nessa lógica, a pobreza deve ser controlada. Em cada época, e conforme as características de desgaste do capital, as classes dominantes, via Estado, apresentam uma intervenção para o controle dos subalternos: seja oferecendo direitos e serviços públicos pelas políticas sociais, ou reduzindo a oferta destes. Essa é a face atual da política social: a construção da seguridade num contexto de desconstrução do Estado, com a privatização da saúde, da Assistência Social (por meio do terceiro setor), e Previdência Social, pelas reformas constantes.

Embora a Assistência Social seja uma política social que, tradicionalmente, tem atuado no enfrentamento da questão social (esta por sua vez, se expressa pelas questões ligadas ao gênero, à etnia/raça, à classe social), numa relação dúbia com o capital - ora favorecendo, ora se opondo - se utilizando de práticas educativas para produzir as mudanças consideradas necessárias para a implementação de seus objetivos. Especialmente, se utiliza do campo da Educação Não Formal, uma vez que, o ensino não é parte de suas atribuições como política social.

A Educação Não Formal é aqui entendida como um campo de saber e de fazer em construção e distinto da educação escolar, modelo adotado como política social. A Educação Não Formal se caracteriza e se difere por contemplar outras metodologias de ensino/aprendizagem, flexibilidade nos tempos e de compreender o educador como um mediador na aprendizagem, tendo assim, uma possibilidade de aplicação em diferentes áreas da vida.

Os principais achados da pesquisa foram: as mulheres entrevistadas não cresceram no território, portanto ele não faz parte de suas memórias antigas e nem conheceram a região quando tinha uma característica mais rural. O vínculo construído com o território não está representado pelo espaço físico - ruas, prédios, memórias de lazer - mas, sim, pelos laços de amizade com os residentes. Assim, conclui-se que a existência de relações afetivas é o fator principal para a formação de vínculo e da memória social.

As entrevistadas destacam a discriminação por residirem nessa região, tida como uma área de criminalidade e prostituição. Contudo, a falta de serviços e infraestrutura foi mais predominante na fala delas do que a criminalidade. Embora não claramente citado por elas, conclui-se que há uma tripla discriminação pesando sobre elas: ser mulher, ser imigrante e ser pobre.

Percebeu-se, ademais, o quanto a Assistência Social é uma política social isolada, que ainda não é percebida como um direito efetivamente. Evidentemente, ela não é universal como a Saúde, não é contributiva como a Previdência (com caráter de seguro), é para ‘quem dela precisar’, definição dada conforme as diretrizes de seus programas e projetos. Porém, há ainda um acanhamento diante dela; não é como requisitar a política educacional - escola para os filhos. Nem como usar uma unidade básica de saúde, gratuita e pública do Sistema Único de Saúde (SUS), ou fazer a inscrição para a casa própria - política habitacional. A chegada à Assistência Social é mediada por alguém geralmente muito próximo ao usuário, e por vezes, uma decisão a que se resiste, se adia. Assim, conclui-se que a Assistência Social está, ainda, muito revestida de seu passado assistencialista e caritativo, ainda não sendo clara sua condição de política social como qualquer outra. Portanto, é necessário o investimento na divulgação dos direitos e dos serviços que ela tem a oferecer à população, para que atinja o seu público alvo.

É notável a presença feminina na área da Assistência Social. Fenômeno tanto entre os usuários quanto entre os profissionais que atuam nos serviços. Isso se deve à sua relação histórica com o ‘cuidado’ como função da mulher. Ainda hoje as mulheres são a maioria entre os trabalhadores da área - sejam eles assistentes sociais, psicólogos, educadores, etc. - e usuárias, pois é da mulher que se espera o cuidado da família, emocionalmente ou materialmente, quando o homem não consegue suprir plenamente essa demanda.

Nas vozes das entrevistadas ficou evidente a motivação para a participação espontânea no grupo: poder falar. A princípio pode parecer simplório, até bizarro; mas se trata de falar e ser ouvida. Ser ouvida não é ser interrompida e receber orientações; falar e ser ouvida é não ser reprimida, não ser julgada; é ter sua fala problematizada como algo precioso a ser trabalhado, lapidado.

Sim, as mulheres vão ao grupo para falar sobre si, sobre seus companheiros, filhos, sobre as lutas e alegrias cotidianas, sobre seus sonhos e desventuras. Dividem o que deu certo e o que lhes atormentam. Pedem conselho, recebem a devolutiva; há também o embate de ideias e culturas; falam de seus relacionamentos, de sua condição de mulher, na família e na sociedade.

A atividade grupal permite a identificação e favorece a percepção de classe, de coletivo - tão atacada pelo ideário individualista no capitalismo. Ainda conforme as falas das entrevistadas, percebe-se que, para muitas, o PAIF/SCFV é o único espaço coletivo que efetivamente participam. Isso evidencia a importância e a potência dessas atividades junto às classes subalternas, para a formação e consolidação de vínculos comunitários.

No grupo se percebem como gênero, com problemáticas coletivas ao invés da ‘tragédia pessoal’. A adesão a esse grupo, em relação a outras experiências grupais, denota a importância de práticas que remetam aos interesses reais dos participantes, logo a concepção das atividades deveria ser compartilhada com eles, o que ainda não ocorre efetivamente. Apontam ganhos pela e na convivência intergeracional. Os aprendizados identificados pelas participantes são proeminentes no âmbito do relacionamento interpessoal, mas tímidos enquanto coletividade, ao que se conclui que o fazer junto que a Animação Sociocultural promove pelas atividades culturais, poderia favorecer a autonomia do grupo. Deveras, a atividade grupal promove o compartilhamento dos saberes individuais e coletivos (nas memórias, crenças, interesses comuns), que alcança também o educador (assistente social) e outros funcionários das instituições promotoras, que criam laços com essas mulheres, transbordando a relação institucional, afetando também suas perspectivas pessoais e profissionais.

A metodologia de História Oral privilegia a escuta, a voz do sujeito, valorizando a subjetividade singular que cada pessoa atribui aos fatos narrados, revelando outras interpretações da realidade, muitas vezes pouco divulgadas pela mídia de massa.No caso em tela: Praia Azul como lugar tranquilo e solidário ao invés da periferia violenta, marcada pela criminalidade e prostituição a que a região é frequentemente associada. As memórias das entrevistadas revelam, a elas e a todos, que há um saber próprio delas, que é capaz de ensinar coisas a quem “tem estudo” (nas palavras da entrevistada), reforçando assim o pensamento de Boaventura Santos (2007) sobre uma ecologia de saberes, para além do acadêmico.

Salienta-se que a escolha dessa metodologia foi fundamental para a apreensão das vivências individuais dos entrevistados e sua relação com a política de assistência social, já que evidenciou os ganhos/saberes construídos nesse trajeto e sua percepção de mundo, objetivo principal da pesquisa.

Por fim, concluiu-se que a Educação Não Formal e a Assistência Social podem contribuir no fortalecimento dos grupos populares, unindo a capacidade de alcance da Assistência Social, enquanto política social, com as novas possibilidades metodológicas da Educação Não Formal, em favor de um projeto societário que emane dessas classes subalternas, se descobrindo como classe, como iguais e com possibilidades de promover mudanças em seu cotidiano, reconhecendo a luta de classes e se assumindo nela.

Embora ainda exista um longo caminho para um efetivo fortalecimento comunitário, a pesquisa indicou potencialidades importantes dos espaços coletivos e das práticas do campo da Educação Não formal para autonomia dos grupos subalternos, no entanto, elas demandam a iniciativa e compromisso pessoal dos atores envolvidos na execução das práticas educativas, já que, via de regra, essa não é a função da política social num contexto capitalista.

Não se trata de um processo fácil, pois esses profissionais também são assalariados e estão submetidos à crescente precarização do trabalho, o que dificulta a reflexão e a leitura crítica da realidade, bem como seu espaço para o exercício profissional. Ainda que a política social venha formatada para promover mudanças que não alterem a estrutura social, é sempre possível ir além e plantar nas pequenas brechas as sementes que podem florescer a autonomia do grupo.

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1Alusão à roda de conversa, sistema em que é realizado o grupo.

2As abordagens e os instrumentos metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica em Ciências Humanas e o projeto investigativo foi aprovado pelo parecer no. 2.808.403.

Recebido: 07 de Julho de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2021; Publicado: 27 de Janeiro de 2022

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