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Educação UFSM

Print version ISSN 0101-9031On-line version ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.47  Santa Maria  2022  Epub Oct 18, 2024

https://doi.org/10.5902/1984644464914 

Artigo Demanda Contínua

A hermenêutica reconstrutiva na educação comparada: uma abordagem voltada para a aprendizagem com o “outro”

The Reconstructive hermeneutics in comparative education: an approach focused on learning with the “other”

Aldenora Conceição de Macedo1 
http://orcid.org/0000-0002-0311-3647

Cátia Piccolo Viero Devechi2 
http://orcid.org/0000-0002-5147-1609

1Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. aldenora.acm@gmail.com

2Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. devechi@unb.br


RESUMO

O artigo objetiva apresentar as contribuições da abordagem hermenêutica reconstrutiva aos estudos comparados em educação. Parte da compreensão da hermenêutica filosófica de Gadamer, passa pela leitura reconstrutiva da hermenêutica com base no pensamento habermasiano, para discutir a educação comparada numa perspectiva de aprendizagem com o “outro”. O debate fundamenta-se na compreensão de que a hermenêutica reconstrutiva se constitui como uma importante estratégia de troca discursiva entre unidades de comparação, na qual o “outro” não apenas auxilia na compreensão, mas contribui no tratamento argumentativo dos problemas.Uma possibilidade de pesquisa a ser construída não apenas por sentidos interpretativos alcançados de forma singular, mas pela força do argumento racional diante do “outro” e dos pares.

Palavras-chave: Hermenêutica; Pesquisa qualitativa; Intersubjetividade

ABSTRACT

The article aims to present the contributions of the reconstructive hermeneutic approach to comparative studies in education. Part of the understanding of Gadamer's philosophical hermeneutics, goes through the reconstructive reading of hermeneutics based on Habermasian thinking, to discuss comparative education from a learning perspective with the “other”. The debate is based on the understanding that reconstructive hermeneutics is an important strategy for discursive exchange between units of comparison, in which the “other” not only helps in understanding, but contributes to the argumentative treatment of problems. A research possibility to be built not only by interpretative meanings reached in a singular way, but by the strength of the rational argument before the “other” and the peers.

Keywords: Hermeneutics; Qualitative research; Intersubjectivity

Considerações iniciais

Fazendo uma incursão arqueológica na história da educação comparada, Malet (2004), importante comparatista da educação, destaca a evolução epistêmica do campo por meio de um processo iniciado desde os primeiros empreendimentos que buscaram instituí-la como ciência, na década de 1960. Em cada períodovigoraram culturas comparatistas diversas em que componentes contínuos eram aprimorados e marcavam cada etapa dessa transformação. Os dois primeiros componentes, conforme Malet (2004), foram o determinismoe opragmatismo. O terceiro,a crítica e, os componentes mais recentes, ou pós-modernos, seriam a globalizaçãoe a hermenêutica. Conforme observado na sistematização apresentada pelo autor, a educação comparada, tendo suas origens no período pós-iluminismo, iniciacom uma perspectiva determinista e pragmatistade ciência na qual prevalecia a objetividade na busca do aprimoramento da educação e a universalização/generalização das análises. Por meio de um método estritamente descritivo e estático, buscava-se propostas/ideias para o aperfeiçoamento de seus sistemas. Essa importação indiscriminada de modelos educacionais mostrou-se, portanto,incoerente, abrindo espaço para uma utilização mais progressista da educação comparada, com destaque para as relações de solidariedade e unificação, ocorridas, sobretudo, por conta das necessárias reconstruções e reformas no sistema educacional deixadas pela Segunda Guerra.

A partir de então, a educação comparada passa a ser uma importante ferramenta nas tomadas de decisões e objeto de políticas reformadoras. Uma mudança que, de acordo com Malet (2004), toma como base o social, voltando seu interesse para os países em desenvolvimento, mas que, porém, vem na esteira de uma perspectiva paternalista que tem como pano de fundo a centralização de um modelo impositivo e intervencionista caracterizado pelo desprezo às diferentes realidades e no qualvigoravaa ideia de sujeição. É nesse contexto que a concepção crítica se coloca para apresentar oposição a essa abordagem “assistencialista” de manutenção das desigualdades sociais estabelecida pelas relações de dependência e subordinação. Malet (2004, p. 1.311) destaca, desse modo, que a crítica no discurso da educação comparada desenvolve-se em oposição:

a) as concepções objetivistas e fechadas dos fenômenos educativos e culturais que o funcionalismo tende a promover; b) as perspectivas do evolucionismo social que, cegadas por uma concepção continuísta da história e uma abordagem pragmática dos fatos educativos, tende a descuidar dos processos de mudança social; c) o consensualismo, que impede a empreitada científica de questionar seus fins, o que constitui o melhor meio de iludi-los, sobretudo quando os espaços de intervenção ultrapassam as fronteiras nacionais.

O elemento globalização,nesse sentido, diz respeito às perspectivas que trazem enfoque aosestudos internacionais que desvelam as relações de interdependência cultural e econômica, o retraimento das identidades culturais e, como já dito, a transposição de modelos educacionais de forma descontextualizada. Tal fato advém do “expansionismo cultural do período pós-guerra” que “favoreceu uma interdependência crescente dos sistemas educativos nacionais que obriga a não pensar mais sua evolução em referência apenas a processos intranacionais” (MALET, 2004, p. 1.315). Porém, essa mesma expansão enfraquece o Estado-Nação, de acordo com Malet (2004, p. 1314), e a difusão cultural e o desenvolvimento de redes de interdependência transnacionais passam a apontar a necessidade de “repensar os quadros espaciais da educação comparada em função das novas formas de regulação política e de difusão cultural e educacional”.

Nesse sentido, metodologicamente os estudos comparatistas devem se voltar não mais, e apenas, às realidades externas, mas objetivar o elucidamento dos fenômenos educativos locais vistos na totalidade social. Momento que traz um repensar da educação comparada e dá destaque à questão sócio-histórica como fator indispensável para a melhor compreensão dos processos educacionais, fomentando uma tendência hermenêutica para o campo, atenta ao reconhecimento do outro e “às modalidades de construção dos imaginários sociais” (MALET, 2004, p. 1.315). Uma concepção construtivista de comparação que se interessa pelo desenvolvimento discursivo de sentidos e identidades.

A questão do “outro”, assevera Maria Franco (2000, p. 200), é onde deve repousar o princípio da comparação, seu reconhecimento e o reconhecer-se a si mesma/o. Nesse sentido, comparar diz respeito a um processo “de assumir valores nesta relação de reconhecimento de si própria/o e do outro. Trata-se de compreender o outroa partir dele próprio e, por exclusão, reconhecer-se na diferença”. Os sentidos da comparação, na mesma perspectiva, passam a buscar o conhecimentodo “outro” com vistas àcompreensão dos contextos. Desse modo, é que o ato de comparar “emerge da capacidade humana de conhecer fazendo analogias, singularizando os objetos, identificando suas diferenças e deixando emergir as semelhanças contextualizadas, suas particularidades históricas” (FRANCO, 2000, p. 207).

Também para Nóvoa (2010, p. 23), a educação comparada tem no “outro”sua razão de ser, o enxergando comoum modelo ou referência, “que legitima as ações ou que impõe silêncios que se imita ou que se coloniza”. Pois é, também, um campo de poderes no qual existem consagrações e imposição de limites e por isso, sempre com centros e periferias, em que se destaca historicamente a mundialização de um modelo educacional europeu, não como sendo apenas o melhor, mas, muitas vezes, o único possível. Uma ideia de dominação dos saberes ilustrada pelo trabalho comparativo em educação em que a retórica da descentralização não resiste às visões eurocêntricas e unilineares e que “impõem-se, assim, sentidos (concepções) que revelam muito mais do excesso do mesmo do que do reconhecimento do outro” (NÓVOA, 2010, p. 24). É nesse sentido que o autor alerta ser preciso, hoje, haver consciência dos limites das interpretações trazendo para a educação comparada novas questões que nos permitam construir outras histórias, não somente as que seguem sendo contadas.

Com essas percepções, de acordo com Catia Devechi, Gionara Tauchen e Trevisan (2018, p. 3) “pode-se dizer que a educação comparada passou de uma lógica de comparações e julgamentos, seguida de intervenções e direcionamentos, para a compreensão de contextos socioculturais”. Ou seja, se coloca além da comparação entre semelhanças e diferenças e chega às pesquisas que visam a produção de sentidos e de solidariedades simbólicas, na tentativa de empreender estudos em que se aprenda com o “outro”. É nessa perspectiva que as autoras e o autor apresentam a abordagem da hermenêuticareconstrutiva, sugerindo a retomada do debate acerca do lugar do “outro” na educação comparada (DEVECHI; TAUCHEN; TREVISAN, 2018).

As diversas mudanças pelas quais vem passando os estudos comparados influem diretamente no modo como esses são entendidos, tanto no que diz respeito à abordagem teórica quanto à metodológica. As propostas de estudos comparados não mais se detêm à internacionalização e às marcações bem delimitadas das diferenças culturais, a exemplo das novas possibilidades e necessidades, mas ao entendimento de que existem saberes e problemas compartilhados que permitem uma aprendizagem entre diferentes unidades. Pesquisas que destacam a necessidade de abordamos não apenas o particular, mas buscam tratar de problemas comuns. É o que apontam Catia Devechi, Gionara Tauchen e Trevisan (2008, p. 11) quando dizem que a atualidade dos estudos comparados “revela que a compreensão científica tem exigido a investigação de contextos diversificados de modo que possa elucidar problemas comuns”.

Nesse sentido, é que propomos dar continuidade aos debates sobre a educação comparada a partir da hermenêutica reconstrutiva, entendendo-a como uma estratégia de aprendizagem discursiva em que o “outro” não apenas auxilia na compreensão, mas se coloca como contribuinte no tratamento argumentativo de problemas. Uma possibilidade de aprendizagem construída não só por sentidos interpretativos alcançados de forma singular, mas pela força do argumento racional diante do “outro” e dos pares. Para tecermos tal discussão tomamos a hermenêutica filosófica de Gadamer como contextualização fundamental, uma vez que dela Habermas abstrai a historicidade da compreensão para elaborar criticamente suas ideias, considerando que Gadamer (2009) destaca em sua proposta filosófica as experiências do mundo da vida, os sentidos da historicidade, não só de obras, textos, mas também dos acontecimentos cotidianos.

Para alcançarmos tal objetivo, organizamos o artigo em três partes. A primeiratrata da base do pensamento hermenêutico, a partir da compreensão filosófica de Gadamer; a segunda apresenta a hermenêutica reconstrutiva com base no pensamento habermasiano,e;a última, discute os propósitos e contribuições da hermenêutica reconstrutiva para a educação comparada.

O horizonte interpretativo da hermenêutica filosófica

Podemos entender a hermenêutica como um olhar investigativo baseado no rompimento da ideia de verdade objetiva e na abertura para a linguagem (GADAMER, 1999). Recorrendo à Nadja Hermann (2002) temos que provém de uma longa tradição humanística que se relaciona à interpretação de textos bíblicos, à jurisprudência e à filosofia clássica, com o intuito de extrairsentidos explícitos ou ocultos. Segundo a autora, a hermenêutica ressurge no contexto da luta contra a pretensão de haver um único caminho de acesso à verdade. Opõe-se, portanto, à ideia positivista de que somente com dados objetivos pode-se produzir conhecimento, ou seja, “ao mito do objetivismo”, à crença em uma verdade objetiva correspondente da realidade. A hermenêutica traz, portanto, “a perspectiva do interpretar, da produção de sentido e da impossibilidade de separar o sujeito do mundo objetivado” (HERMANN, 2002, p. 15-16), na qual, o fenômeno da compreensão se sobrepõe à pretensão de verificação de fatos objetivos.

Para Nadja Hermann, tal perspectiva marca uma posição contra o modo exclusivo de acessar o conhecimento por meio da observação ao admitir outra perspectiva em que o fundamento da verdade não está em dados empíricos objetivos ou na verdade absoluta, mas nas condições humanas da linguagem. Trata-se de um processo de conhecer no qual a/o sujeita/o não domina o conhecimento, presumindo, portanto, “a necessidade de abandonar a pretensão de controle do processo de conhecer e se entregar ao texto, ao diálogo, na busca de um sentido que é sempre plural e renovado”, sendo, para tanto, a busca de sentido e a interpretação o seu problema fundamental (HERMANN, 2002, p. 25). Assim, “para a reflexão hermenêutica todas as estruturas de sentido são concebidas como textos que podem ser interpretados, desde a natureza, passando pela arte, até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana” (HERMANN, 2002, p. 51).

Como dito pela autora, a hermenêutica possui um longo caminho histórico e foi discutida por muitas mentes importantes, como Dilthey, Heidegger, Hegel, Derrida, Ricoeur, Gadamer, Habermas, entre outras. Segundo ela, Gadamer, por exemplo, traz como grande contribuição uma perspectiva filosófica à hermenêutica clássica/tradicional, o que faz por influência do entendimento de compreensão em Heidegger. O autor reelabora a hermenêutica, trazendo amplitude e sentidos diversos da anterior “hermenêutica geral das ciências do espírito” e também da dialética hegeliana, em que se apresentam a abertura da linguagem e a possibilidade de cada intérprete transcender seu horizonte interpretativo(HERMANN, 2002). Para o autor, compreender significa um diálogo entre a/o sujeita/o intérprete e o texto/acontecimento interpretado, um processo de “fusão de horizontes”, no qual a linguagem é o caminho e a meta da autocompreensão (GADAMER, 1999, p. 23). Diz ele,

só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião.

Assim, importa-nos ressaltar, conforme explica Nadja Hermann (2002, p. 45), a pré-compreensão e a historicidade como bases da interpretação de Gadamer, advindas da ideia de estrutura circular da compreensão heideggeriana. Uma historicidade que implica diretamente na compreensão. De tal modo que

compreender um texto ou uma situação consiste na elaboração de um projeto prévio de sentido, que será substituído por novos projetos até que opiniões equivocadas sejam superadas. Portanto nunca temos uma compreensão desde já fechada. Há a necessidade de se abrir à opinião do outro (expor-se), entregar-se ao texto. Essa receptividade é incompatível com uma auto-anulação do intérprete; ao contrário, uma consciência hermenêutica pressupõe a incorporação das opiniões prévias e preconceitos, por meio dos quais se modula a historicidade (HERMANN, 2002, p. 45).

É nessa perspectiva, para Nadja Hermann (2016), que a hermenêutica filosófica de Gadamer possibilita reconhecer os limites do próprio olhar, uma vez que os questionamentos estão inseridos no horizonte da linguagem e da historicidade, ou seja, trata-se de reconhecer que para se chegar à “verdade” se faz preciso empreender processos sucessivos de aproximação. Portanto, uma compreensão nunca é definitiva, mas sempre provisória. É com esse pensamento que, segundo a autora, a grande contribuição de convergir uma pesquisa no campo educacional com a hermenêutica se dá na possibilidade de realizar um acompanhamento mais por dentro do processo, “revelando as estruturas que orientam a pesquisa empírica” (HERMANN, 2016, p. 6). Agir dentro do princípio hermenêutico diria respeito ao reconhecimento da devida importância do contexto histórico, conceitual, científico e subjetivo, no qual não só se vislumbra a problemática, mas se considera o mundo da vida de todas/os as/os sujeitas/os inseridas/os, incluindo-se também o horizonte das/os pesquisadoras/es. Manter-se compromissada com tal princípio, conforme a autora, demanda uma “prestação de contas histórico-conceitual”, considerando que os conceitos sempre carregam a historicidade. É nesse sentido que o trabalho hermenêutico na “pesquisa educacional seria uma tentativa de colocar em cena aquilo que não foi explicitado, reconstruir o processo reconhecendo o que foi excluído” (HERMANN, 2016, p. 6), uma vez que a sua tarefa é, para Gadamer (2000, p. 211), “saber do quanto fica, sempre de não-dito quando se diz algo”.Neste artigo,a hermenêutica filosófica de Gadamerfundamenta a hermenêutica reconstrutiva habermasiana, por se tratar deum posicionamento questionador da incapacidade da racionalidade em explicar de forma reducionista as experiências da verdade, pois esta é entendida de forma imbuída na dinâmica do tempo (HERMANN, 2002). A hermenêutica filosófica traz a ideia de finitude e de historicidade do ser que problematiza a experiência e a existência, a fim de ressaltar a condição interpretativado processo de compreender o mundo objetivado, basilar ao projeto reconstrutivo de Habermas.

A hermenêutica a partir da perspectiva reconstrutiva de Habermas

Para Habermas (1987), a hermenêutica filosófica forjada por Gadamer tem como objetivo investigar a competência interpretativa de sujeitas/os capazes de linguagem e ação que podem compreender em lugares diferentes manifestações e proferimentos incompreensíveis. Utilizando-se do exemplo de interpretação textual em uma “comunicação perturbada”1,Gadamer demonstra a importância do ato interpretativo, no qual se faz necessário que a/o intérprete “aprenda a diferenciar da compreensão do autor a sua própria compreensão de contexto” (HABERMAS,1987, p. 86),por meio da exploração ou dedução das situações transmitidas pelo texto a partir da vida daautora, do autor, e do público a quem o texto é destinado. A significação do texto é alcançada quando se compreende o contexto em que ele foi pressuposto, ou seja, os elementos cognitivos, morais e culturais que embasaram a transmissão das ideias colocadas. Tal é a compreensão dos propósitos de Gadamer em torno da “conversação hermenêutica”que sugere

elaborar uma linguagem comum, em condição de igualdade com a conversação real, e que esta elaboração de uma linguagem comum tampouco consistirá na preparação de um instrumento com vistas ao acordo, mas que, tal como na conversação, coincide com a realização mesma do compreender e do chegar a um acordo. Entre as partes dessa "conversação" tem lugar uma comunicação, como se dá entre duas pessoas, e que é mais que mera adaptação. O texto traz um tema à fala, mas quem o consegue é, em última análise, o desempenho do intérprete. Nisso os dois tomam parte (GADAMER, 1999, 565).

É partindo dessas concepções que Habermas incorpora, então, a historicidade da compreensão de Gadamer, reestruturando a hermenêutica com uma posição crítico-dialética. Segundo Stein (1987), Habermas parte da crítica das ideologias ao ponderar que os saberes precisam ser expostos a diferentes análises, as quais possam se basear na busca de um conhecimento emancipatório intersubjetivo que leve em conta a historicidade. É aí que o pensador recorre à dialética. A partir de uma análise crítica ao pensamento de Marx, Habermas reconstrói sua teoria identificando na dialética uma possibilidade de pensar a hermenêutica numa perspectiva crítica. Stein (1987), destaca que a crítica de Habermas é realizada apontando, sobretudo, para a necessidade de se levar em conta a totalidade da vida social, nas quais as relações são instituídas por meio de diálogos contextualizados que, por sua vez, são construídos sob relações de poder carregadas de movimentos e contradições refletidas nessas comunicações. É com essa interpretação que Habermas analisa criticamente os limites da compreensão na hermenêutica filosófica reconstruindo a relação entre texto e intérprete.

Para Habermas (1989) a linguagem é entendida como ação, uma vez que é empregada pelas/os participantes (falantes e ouvintes) com vistas à compreensão coletiva de algo. Nesse sentido, vem carregada de subjetividades que dizem respeito não apenas ao mundo objetivo, mas às relações no mundo social. Há assim, uma tríplice conexão entre o proferimento e o mundo, na perspectiva de falante e ouvinte, em que se leva em conta o mundo da vida e suas suposições e práticas comuns. É desse modo que para o autor a linguagem exerce três funções: reprodutora cultural ou da presentificação das tradições; integradora social ou coordenadora dos planos de diferentes atrizes e atores na interação social e; socializadora da interpretação cultural das necessidades.

Com destaque à função “integradora social ou coordenadora dos planos de diferentes atrizes e atores na interação social” da linguagem, Habermas desenvolve a Teoria do Agir Comunicativo, em 1981. Essa teoria de destaque nas reflexões habermasianas apresenta a racionalidade comunicativa sustentada no entendimento mútuo. Assim, compreender algo demanda a participação na relação discursiva entre falante e ouvinte. A/O falante, ao comunicar-se, deve expressar aquilo que compreende sobre algo no mundo objetivo, social e cultural, justificando a sua validade diante do “outro”. Nesse sentido, para o autor (HABERMAS, 1989, p. 40-41), a hermenêutica “tem de se ocupar, ao mesmo tempo, da tríplice relação de um proferimento que serve: como expressão da intenção de um falante; como expressão para o estabelecimento de uma relação interpessoal entre falante e ouvinte e; como expressão sobre algo no mundo”. A sua proposta diz respeito à razão comunicativa em ação - com diálogo, questionamentos, ou seja, uma dialética social, na qual as pessoas agem, colaborativamente, em busca de objetivos comuns.

Nesse sentido, nas interações comuns, cotidianas, o mundo da vida das/os sujeitas/os de linguagem é construído nas relações coletivas, com o “outro” e consigo. A racionalidade comunicativa parte do uso discursivo do conhecimento proposicional nos atos de falas, sendo contrária à racionalidade instrumental, em que não há uso comunicativo desse saber. A proposta traz um conceito mais amplo de racionalidade com conotações que, em última análise,

remontam à experiência central da capacidade de unir, sem coações, e de gerar consenso, por um discurso argumentativo em que diversos participantes superam a subjetividade inicial de seus respectivos pontos de vista e, graças a uma comunidade de convicções racionalmente motivada, asseguram, ao mesmo tempo, a unidade do mundo objetivo e a intersubjetividade do contexto em que desenvolvem suas vidas(HABERMAS, 2003, p. 27).

Habermas (1989) destaca que a/o intérprete deve atuar como uma/um agente comunicativa/o que precisa apresentar pretensões de validade a serem reconhecidas no discurso. E, nesse ponto, destaca o papel ativo de quem interpreta. Para ele,entendimento significa a obtenção de um acerto entre participantes de uma comunicação acerca da validade de um proferimento que diz respeito ao reconhecimento intersubjetivo da pretensão de validade da/o falante que apresenta argumentos racionais diante das/os participantes da comunicação (HABERMAS, 2003a).

Observa-se que é reconhecido à/ao intérprete a capacidade e autonomia de, e para,interpretar o texto a partir de seus conhecimentos, de sua história e de sua capacidade interpretativa. No entanto, essa/e necessita justificar as suas compreensões diante do “outro”, condição que se sobressai das contribuições da hermenêutica filosófica, pois, segundo Habermas (1987, p. 93-94),

o intérprete só pode esclarecer a significação de uma manifestação simbólica enquanto virtual participante do processo de entendimento dos partícipes imediatos; que o posicionamento performativo sem dúvida o vincula à pré-compreensão hermenêutica inicial; porque ele pode tornar útil para si a estrutura interna racional do agir orientado para o entendimento e reivindicar reflexivamente a competência avaliadora de um participante responsável da comunicação, para; pôr em relação sistematicamente o mundo da vida do autor e de seus contemporâneos com o seu próprio mundo da vida e; para reconstruir a significação do interpretandum com o conteúdo objetivo pelo menos implicitamente avaliado de uma maneira criticável.

É partindo do destaque interpretativo gadameriano reconstruído intersubjetivamente por Habermas, principalmente, e sua abordagem discursivada hermenêutica, que, no contexto das pesquisas qualitativas, se forja a hermenêutica reconstrutiva discutida, com destaque, por Catia Devechi e Trevisan, e proposta a partir do ponto de vista da racionalidade comunicativa, com a finalidade de

contribuir para explicitar os limites e possibilidade dos elementos que dão base aos fundamentos epistemológicos e ontológicos de cada abordagem. A partir de um horizonte comum, como lugar de fala ou possibilidade de aproximação das diversas abordagens teóricas, é possível superar as ambiguidades das discussões que acabam criando mais um clima de animosidade do que, convenientemente, de concertamento. Na medida em que compreendemos as abordagens qualitativas para além dos seus detalhamentos, portanto, a partir de enfoques fundamentadores, podemos fazer a sua associação com o mundo da vida, ultrapassando desse modo a compreensão negativa que poderia provocar a sua relação equivocada com o senso comum (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 150).

A ideia de uma discursividade intersubjetiva, central na hermenêutica reconstrutiva, cumpre-nos destacar, é uma ideia desenvolvida mais enfaticamente em sua obra “Verdade e Justificação”, de 1999. Porém, julgamos importante ressaltar dois momentos, anteriores,dentre outros, em que de modo mais ilustrativo a questão da reconstrução é abordada no pensamento habermasiano. Assim, primeiramente, temos a obra “Conhecimento e Interesse”, de1968, (HABERMAS, 1982), apresentando, em problematizações reconstrutivas iniciais,a psicanálise como exemplo de ciência que por utilizar metodicamente a autorreflexão traz, para ele, uma combinação entre hermenêutica e ciências da natureza, sendo, ela mesma, uma forma especial de interpretação. Destaca-se a valorização dada pelo autor ao trabalho crítico de interpretação psicanalista que sendo oposto à tradição filológica, não elimina as lacunas/deficiências apresentadas no texto, mesmo que isso o torne uma manifestação parcial do sentido a ser compreendido. Ao contrário, as consideram importantes por serem influências internas, para além das influências externas, que são típicas das estruturas dos textos comuns.

Em uma analogia à reconstrução do histórico de uma/um paciente desenvolvida por meio do proferimento fragmentado de eventos já esquecidos ou não conhecidos, mas significativos para entendimento de sua patologia, Habermas compara o movimento psicanalítico de interpretação ao desenvolvido na História e na Arqueologia. O destaque para essa questão, segundo ele, está no fato de que o trabalho intelectual é realizado por médica/o e paciente. A/O médica/o, em resposta aos textos defeituosos ofertadas pela/o paciente, vai incentivando sua memória por meio da apresentação de construções hipotéticas que visam a reconstrução de determinada história/memória. Habermas (1982, p. 248) ressalta que no método “o trabalho da construção, próprio ao analista, apresenta uma grande concordância com reconstruções que um arqueólogo, por exemplo, empreende em lugares de investigação arqueológica”.

O segundo momento diz respeito à obra “Para a Reconstrução do Materialismo Histórico”, de 1976, na qual Habermas (1983) apresenta um conceito que, segundo ele, já provinha de diversas tentativas de encaminhar a elaboração de uma formulação teórica do que entendeu como reconstrução. Embora o foco do referido texto seja a teoria de Marx, nos interessa a fundamentação de tal pensamento. Portanto, nas palavras dele, reconstrução significa “que uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se fixou: esse é o modo normal (...) de se comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar” (HABERMAS, 1983, p. 11).

Assim, vemos que em “Conhecimento e Interesse” o destaque para a participação ativa e presente da/o analista, juntamente com a participação necessária da/o paciente, torna-se considerável para o início efetivo da teoria reconstrutiva de Habermas. Uma obra de muita importância para o entendimento de suas reflexões iniciais, reconstruída pela perspectiva do discurso na “Teoria da Ação Comunicativa”. Observa-se, desse modo, que ele promove constantes reflexões sobre suas teorias: avança de uma relação linguística - como é o caso da análise da/o médica sobre o proferimento da/o paciente, para uma perspectiva em que a reconstrução acontece no discurso, fruto de conversações e acertos intersubjetivos. Já em“Verdade e Justificação”, o autor retoma tal abordagem, agora com foco na teoria discursiva. Nessa perspectiva, “o olhar vertical sobre o mundo objetivo justapõe-se à relação horizontal com os membros de um mundo da vida intersubjetivamente partilhado. A objetividade do mundo e a intersubjetividade do entendimento mútuo remetem uma à outra” (HABERMAS, 2004, p. 24).

Assim, aconcepção de reconstrução, conforme o pensamento de Repa (2008, p. 137-138), é uma das maiores inovações das ideias de Habermas, a partir de “Conhecimento e Interesse”,rediscutida nas demais obras com base no discurso.Uma conceituação da qual constituem a filosofia, as ciências humanas e que tem como objeto a produção de um saber hermenêutico e explicativo sobre a geração e a observância de sistemas de regras intersubjetivamente partilhadas. Portanto, a reconstrução, para Habermas, pontua o autor, “trata de sistemas de regras universais que estão na base de ações, manifestações linguísticas e operações cognitivas e que são seguidas por qualquer sujeito competente” e tem como pretensão “transformar o saber implícito e intuitivo (saber pré-teórico), incorporado no uso daquelas regras, em um saber explícito (saber teórico)”. Desse modo, as ciências reconstrutivas2 representariam, para Habermas, um saber especial no sistema de ciências e, sendo contrárias às ciências objetivantes, tem como base o caráter reflexivo, próprio dos discursos, sobre os pressupostos e regras seguidas implicitamente nas argumentações. Uma vez que, estando no rol das ciências empíricas, a reconstrução “requer sempre novas averiguações, recorrendo a sujeitos empíricos (...) dada a enorme diferença entre as intuições de regras e as reconstruções conceituais dessas mesmas regras” (REPA, 2008, p. 148).

Em texto recente, Repa e Nobre (2020), aprofundam a análise dessas significações e pontuam que reconstruir, em Habermas, não significa apenas um refazer conceitual de algo dado, um recontar da história ou uma simples reprodução factual. Mas diz respeito a uma reflexão sobre “as regras que tem de ser supostas como princípios para a compreensão do sentido e mesmo do não sentido do que é construído social e simbolicamente” (REPA; NOBRE, 2020, p. 04). É nessa perspectiva que no âmbito da pesquisa científica destacamos a diferença fundamental da reconstrução: a atitude reconstrutiva pressupõe uma participação no processo de comunicação e busca pelo entendimento, poiscom tal postura as/os pesquisadoras/es podem reconstruir o saber pré-teórico, aquele implícito e intuitivo, que é supostamente dado nas interações sociais. A/O cientista reconstrutiva/o necessita, portanto, identificar e analisar regras apreendidas nos processos de socialização, segundo as quais determinados constructos simbólicos se efetivam na práxis social. Nesse sentido, observa-se que,

no que diz respeito à teoria e o âmbito objetual, a linguagem teórica não representa uma metalinguagem em relação a uma linguagem-objeto; ambas estão necessariamente no mesmo nível linguístico, sendo impossível estabelecer uma hierarquia de linguagens conceituais; - sobre a relação entre a teoria e o saber cotidiano a ser reconstruído, resulta a impossibilidade de falsear o saber-objeto, somente a reconstrução propriamente dita pode ser falseada, ao passo que, para o outro tipo de ciência, o saber cotidiano é uma espécie concorrente a ser corrigido (REPA, 2008, 143).

Essa capacidade e possibilidade interpretativa de práxis, de ação, abre espaço para que o texto possa ser, na verdade, reconstruído, ou seja, a partir do “mundo da vida” da/o intérprete, seus valores, conhecimentos, cria-se um outro texto que não invalida o primeiro, mas o torna mais “contemporâneo”, mais contextualizado e adequado. Um processo realizado por meio das relações intersubjetivas, na conversação, não findo ou estanque, pois leva em conta todas/os as/os sujeitas/os envolvidas/os e os contextos temporais e históricos.

Desse modo, podemos afirmar que o objetivo da abordagem hermenêutica reconstrutiva é permitir a participação no processo de resolução de problemas mundanos de maneira comunicativa, sem depender da determinação e dos limites dos sentidos, como era o caso da hermenêutica filosófica, pois essa abordagem propõe que o “outro” contemporâneo participe da validação do que está sendo apresentado.

De outra maneira, ela é fiel nesse ponto aos pressupostos da crítica por meios comunicativos, como consciência aguda de negação da alteridade, sejam minorias exploradas, movimentos sociais, povos que lutam pela sua independência e os diferentes. Sendo assim, enquanto a hermenêutica tradicional identifica a tradição com o conhecimento, limitando as possibilidades do compreender, ela propõe uma hermenêutica que se utiliza do processo de reflexão crítica. Compreende igualmente que a hermenêutica não deve ficar presa na substancialidade que o texto determina, e sim constatar e romper com as possíveis determinações por processos reflexivos (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153).

A hermenêutica reconstrutiva tem como base o pensamento de Habermas, como destacamos aqui, mas também de Apel e Honneth, e surge nas pesquisas educacionais, conforme Catia Devechi e Trevisan (2010), para superar os problemas deixados por outras abordagens interpretativas. É,desse modo, alternativa às abordagens hermenêutico-fenomenológicas tradicionais, uma vez que estas agem atribuindo significados à/ao intérprete, sem possibilidade de validação coletiva; e às abordagens crítico-dialéticas, por se restringirem à leitura crítica da realidade social, “não oferecendo possibilidade de solução aos problemas práticos enfrentados pela educação, a não ser na configuração de uma nova visão de sociedade”. Por outro lado, essa abordagem apreende “aspectos ‘críticos’ e ‘evolutivos’ das dialéticas e a preocupação com as categorias ‘contexto’, ‘mundo da vida’ e ‘compreensão' das fenomenológico-hermenêuticas” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153).

O caráter crítico nessa abordagem encontra-se na comunicação interativa em busca de entendimento sobre algo problemático, pois esse só pode ser alcançado por meio de acertos construídos a partir de argumentações racionais, nas quais é intrínseco a competência de aceitação ou não das pretensões de validade apresentadas. As justificações ocorrem, para tanto, sempre de modo intersubjetivo alicerçadas nas demandas do mundo compartilhado.

Os propósitos da hermenêutica reconstrutiva na educação comparada

A hermenêutica crítica de Habermas vista como um processo de reflexão e problematização ora fundamentado, dentre outras, em ideias e características importantes da hermenêutica filosófica gadameriana, é fortalecida pela possibilidade de reconstrução via processos discursivos.Assim, para além da relação sujeita/o e tradição, a hermenêutica entendida como reconstrução traz para a coletividade a possibilidade desolução argumentativa de saberes problemáticos. Os diferentes pontos de vistas baseados no mundo da vida interagem para um entendimentocomum, caracterizando-se poruma perspectiva horizontalizada capaz dereconstrução de saberes inadequados da ação. A universalização, na perspectiva habermasiana, não busca apagar identidades, mas reconstruir compreensões problemáticas com base em vivências compartilhadas e não questionadas.

É nesse sentido que a compreensão dos dados de uma pesquisa comparada com essa perspectiva é orientada pela abertura para o discurso com “outro” e com os pares, na qual a crítica está no olhar do “outro” que dialoga, que argumenta, que avalia, que aceita ou não o que está sendo compreendido. Uma visão aplicada não apenas na construção dos dados, mas em toda constituição teórica que envolve o objeto de pesquisa. Buscar uma compreensão significa dialogar com as/os participantes, com os pares, sujeitas/os envolvidas/os, leitoras/es etc. É nesse sentido que a pesquisa comparada, sustentada na abordagem reconstrutiva, “produz não apenas interpretações subjetivas dos sentidos oriundos dos contextos, mas tem no outro a possibilidade de troca ou acerto argumentativo sobre algum problema no mundo”(DEVECHI; TAUCHEN, 2015, p.10).

O propósito é “compreender e reconstruir os sentidos num dado espaço-tempo, entendidos como sistemas discursivos de relações”, numa perspectiva “intracontextual’, em que se busca a compreensão da “natureza subjetiva e os sentidos que lhes são atribuídos pelas/os diferentes atrizes e atores (individuais e coletivos) nos seus imaginários sociais e também compreender o universal e o particular não como dois processos distintos, mas derivados de um mesmo processo histórico” (DEVECHI; TAUCHEN, 2015, p. 6). Nosso entendimento é de que as relações sociais, os diferentes ambientes, a bagagem individual, as trajetórias de vida, as socializações vivenciadas em diferentes espaços, a representatividade social e o modo como o Estado, a mídia e os pares se enxergam e se interpretam historicamente fazem parte da constituição de suas identidades e devem ser consideradas em uma perspectiva de intersubjetividade, uma vez que

ao se debruçar sobre os problemas educacionais, a educação comparada pode, por meio do discurso com o outro, encontrar caminhos cada vez mais adequados às nossas experiências mundanas. Isso porque, não podendo mais compreender os processos educacionais por fatos objetivos, mas especialmente por meio da linguagem, tem-se no discurso a oportunidade de renovar os saberes da área pelas objeções dos outros interlocutores (DEVECHI; TAUCHEN; TREVISAN, 2018, p. 11).

Entendemos que a renovação de saberes, por meio de práticas discursivas, defendida por Catia Devechi, Gionara Tauchen e Trevisan (2018), tem potencial para auxiliar as/os comparatistas em educação na desproblematização de saberes problemáticos e, ao mesmo tempo, permitir a reproduçãodas certezas não questionadas da ação. Desse modo, a hermenêutica reconstrutiva nos estudos comparativospode consentir “pensar sua compreensão como forma comunicativa de alcançar argumentos válidos (...) constituídos com a finalidade de valorizar proferimentos que, partindo do empírico, pretendem alcançar saberes cada vez mais amplos ou universais” (DEVECHI; TREVISAN, 2011, p. 412).

O estudo comparado em educação, de abordagem hermenêutica reconstrutiva, caracteriza-se, portanto, por ser uma alternativa de produção de dados que se dá pelo contato direto com a situação estudada, por enfatizar mais o processo do que o produto, se preocupar em retratar a perspectiva das/os participantes e oferecer a abertura para conversação e validade de saberes produzidos diante do “outro”. Segundo Repa (2008, p. 143), na perspectiva discursiva de Habermas, “é a consciência de regra de falantes competentes” que proporciona às/aos pesquisadoras/pesquisadores a obtenção dos dados “mediante procedimentos maiêuticos operacionalizados pelo cientista, e não mediações de variáveis do comportamento linguístico”, de atitudes objetivantes, como na abordagem empírico-analítica.

Para além da questão metodológica nas pesquisas em educação, a hermenêutica reconstrutiva é, ainda, segundo Catia Devechi e Trevisan (2011), uma perspectiva teórica importante nos estudos comparados por possibilitar a interação comunicativa na multiplicidade interpretativa na qual, por meio da apresentação de argumentos racionais, as múltiplas vozes contribuem na busca por solução de problemas. Desse modo, “a proposta é produzida na contingência como expediente para a produção de novos proferimentos, não para ser mecanicamente aplicados às diferentes realidades, mas sobretudo para ser reconstruídos diante das necessidades das práticas vividas”(DEVECHI; TREVISAN, 2011, p. 414).

É assim que o caráter intersubjetivo cobra das/os comparatistas assumirem uma postura comunicativa aberta às trocas argumentativas, uma vez que a base da abordagem é o reconhecimento do “outro”. Nessa premissa, Habermas (2003, p. 119), afirma ser “o mundo da vida, intersubjetivamente compartilhado, que constitui o contexto da ação comunicativa”. Assim, deve-se almejar “ter como pressuposto a análise das crenças pela aceitação pública, como voz a ser levada em consideração em todas as decisões da vida pública”, uma vez que tais abordagens consideram não apenas o contexto, “mas uma ideia de universalidade, ou seja, o conhecimento é acordado diante dos interesses gerais, porém sempre suscetível de falibilidade” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 154).

As metodologias e técnicas utilizadas nas pesquisas comparatistas em educação, pela via da hermenêutica reconstrutiva, são as mesmas de outras abordagens interpretativas: questionário, entrevista, observação participante, narração, história de vida, estudo de caso, etnografia, pesquisa participante e pesquisa-ação. Contudo, o diferencial desta abordagem está no tratamento dos dados, pois deve buscar sempre “a validade diante do outro e do todo maior”, apresentando, portanto, hipóteses que possam ser compreendidas no discurso. O foco do estudo está nas relações entre as/os sujeitas/os, sendo objeto apenas a referência comum do entendimento. Ou seja, “a compreensão ocorre mediante a reflexão intersubjetiva dos problemas oriundos do mesmo mundo objetivo” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 159), sendo este possível somentecomo suposição, pois na abordagem reconstrutiva, assim como na hermenêutica tradicional, só podemos ter acesso à realidade por meio da linguagem.

É nessa perspectiva que a proposta de uma comparação entre duas ou mais unidades busca,além das aproximações e distanciamentos,possibilidades de aprendizagem comunicativa.Assim, por meio de trocas discursivas, é possível empreender a decomposição do problema de pesquisa em partes mínimas, no intento de alcançá-lo em sua completude. Por isso, “um dos desafios atuais da investigação comparada é tentar enxergar além dessa visão metafísica e perceber o outro enquanto interlocutor em pé de igualdade no trato com o mundo” (DEVECHI; TAUCHEN; TREVISAN, 2018, p. 3). Não se trata, desse modo, de um método científico no sentido tradicional, mas de uma abordagem de produção de conhecimento ampliada que se articula com a racionalidade comunicativa, por carregar a possibilidade de compreensão do agir pedagógico, de produção e reprodução de sentidos confiáveis por meio de acordo coletivos voltados ao bem comum.

Considerações finais

Com essa discussão buscamos explicitar que a hermenêutica reconstrutiva habermasiana, impulsionada pela perspectiva filosófica de Gadamer, traz importantes contribuições para pesquisa comparada, ao verificar a validade da compreensão nas trocas comunicativas. Como buscamos desenvolver, tal abordagem pode ser compreendida, portanto,como um potencial metodológico para os estudos comparados. Uma vez alicerçada na linguagem, a investigação tem origem em um problema prático comum,passando pela compreensão das/os envolvidas/os na pesquisa que, com base em pretensões de validade, elaboram hipóteses a serem apresentadas, problematizadas, argumentadas e justificadas no discurso. De modo que, o saber validado deve ser devolvido ao ponto de partida inicial da experiência junto ao mundo objetivo para ter a sua adequação atestada. Uma vez validados no discurso, os saberes estão em condições de serem devolvidos para prática, junto ao mundo, para que possam ter a sua adequação atestada.

Assim, a finalidade da hermenêutica reconstrutiva na educação comparada, é permitir o tratamento de problemas via trocas argumentativas entre diferentes olhares. Uma possibilidade de abertura ao “outro” que atende, de forma mais ampla, a compreensão da complexidade da educação, ao mesmo tempo que representa um avanço para os estudos comparados, ao proporcionar apossibilidade de uma aprendizagem viabilizada pelo caminho da melhor compreensão, fundamental ao conhecimento confiável e democrático da área.Enfim, a abertura crítica para o “outro”, a possibilidade de revisão de saberes pré-teóricos, sobretudo, a possibilidade de uma aprendizagem comunicativa que visa a compreensão e a solução de problemas compartilhados, são as contribuições da hermenêutica reconstrutiva para os estudos comparados em educação.

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1 “(...) quando (algumas) condições linguísticas para um entendimento direto entre (pelo menos) dois participantes da interação não são preenchidas” (HABERMAS, 1987 p. 87).

2Ciências reconstrutivas, nesse contexto: a lógica, a linguística geral, filosofia da linguagem, a teoria do conhecimento, a ética, a teoria da ação, a estética, a teoria da argumentação etc.(REPA, 2008;).

Recebido: 23 de Março de 2021; Aceito: 19 de Maio de 2022; Publicado: 21 de Novembro de 2022

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