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Contrapontos

versión On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.19 no.1 Florianopolis ene./dic. 2019  Epub 22-Ago-2019

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v19n1.p222-235 

Artigos

REFLEXÕES SOBRE ÉTICA E BOM SENSO NO COTIDIANO DOCENTE

REFLECTIONS ON ETHICS AND COMMON SENSE IN DAILY TEACHING

REFLEXIONES SOBRE ÉTICA Y BUEN SENTIDO EN EL COTIDIANO DOCENTE

Ione da Silva Cunha NogueiraI  * 

Silvana Alves da Silva BispoII 

IPrograma de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, MS, Brasil.

IICurso de Pedagogia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Três Lagoas, MS, Brasil.


Resumo:

Diariamente os professores se deparam com situações que ultrapassam a barreira das ações relacionadas exclusivamente a sua prática pedagógica e de ensino. As decisões tomadas nesses momentos têm relação direta com a atuação do professor e os rumos que podem tomar seus próprios alunos. Em seu livro Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire (2017) nos traz, dentre outros saberes elencados por ele como necessários à prática docente, o bom senso e a ética. Este artigo tem como objetivo problematizar a atuação docente, apontando-a como algo que vai além das atribuições a ela destinadas. Além disso, traz os conceitos de bom senso e ética na visão freireana e a reflexão sobre sua influência na atuação prática do docente e as formas de efetivamente torná-los aplicáveis ao professor. A pesquisa, de cunho qualitativo, analisa os dizeres de três professoras da Educação Básica acerca de “bom senso” e “ética”, buscando perceber de que maneira identificam a materialidade dos conceitos em sua prática pedagógica.

Palavras-chave: Bom senso; Ética; Prática docente

Abstract:

Teachers face situations on a daily basis that go beyond the barrier of actions related exclusively to their pedagogical and teaching practice. The decisions made at these times are directly related to the teacher's actions and the directions his or her students may take. In his work Pedagogy of Autonomy, Paulo Freire (2017) brings, among other knowledge that he deems necessary for teaching practice, common sense and ethics. The aim of this article is to investigate teaching performance, viewing it as something that goes beyond the attributions assigned to it. It also addresses the concepts of common sense and ethics in the Freirean view, and reflects on their influence on the practical action of the teacher and how than can effectively be made applicable to the teacher. This qualitative research analyses the words of three Basic Education teachers on "common sense" and "ethics", seeking to understand how they identify the materiality of these concepts in their pedagogical practice.

Keywords: Good sense; Ethics; Teaching practice

Resumen:

Diariamente los profesores se enfrentan a situaciones que superan la barrera de las acciones relacionadas exclusivamente con su práctica pedagógica y de enseñanza. Las decisiones tomadas en esos momentos tienen relación directa con la actuación del profesor y los rumbos que pueden tomar a sus propios alumnos. En su libro Pedagogía de la Autonomía, Paulo Freire (2017) nos trae entre otros saberes que son necesarios para la práctica docente, el sentido común y la ética. Este artículo tiene como objetivo, problematizar la actuación docente, apuntándola como algo que va más allá de las atribuciones a ella destinadas. Además, trae los conceptos de buen sentido y ética en la visión freireana y la reflexión sobre su influencia en la actuación práctica del docente y las formas de efectivamente hacerlos aplicables al profesor. La investigación, de cuño cualitativo, analiza las palabras de tres profesoras de la Educación Básica acerca de "buen sentido" y "ética" buscando percibir de qué manera identifican la materialidad de los conceptos en su práctica pedagógica.

Palabras clave: Buen sentido; Ética; Práctica docente

São inúmeros os desafios que perpassam o cotidiano da atividade docente. Ao professor, nas práticas pedagógicas, cabe fazer escolhas e agir de maneira a resolver conflitos os mais diversos, posicionando-se diante de situações que fogem à normalidade. No que se refere ao relacionamento entre alunos e alunos, e também entre alunos e professores, aplicar a rigidez do Regimento Escolar ou outro documento que discipline as relações entre esses indivíduos no ambiente escolar, desde a Educação Infantil ao Ensino Médio, nem sempre assegura um tratamento humanizado. Essa situação remete-nos à concepção de Paulo Freire: em Pedagogia da Autonomia, o autor assume que para ser professor deve ter-se bom senso. Mas, o que significa bom senso? E mais, o que seria o bom senso que Freire tanto preza a ponto de elegê-lo como um dos saberes da prática educativa? À reflexão sobre bom senso subjaz outro conceito - o de ética, nomeadamente ao considerarmos que ambos se complementam e se fundem na eticidade da profissão/atuação docente.

Dessa maneira, este artigo tem como objetivo geral problematizar a atuação docente, apontando-a como algo que vai além das atribuições a ela destinadas. E como objetivos específicos, conceituar bom senso e ética na visão freireana e refletir sobre a influência desses conceitos na atuação prática do docente e as formas de efetivamente torná-los aplicáveis ao professor. Para tanto, utilizaremos os pressupostos teóricos de Paulo Freire (1996; 1997; 2001) e outros teóricos que nos auxiliam a compreender a visão sobre os temas explicitados. Ademais, a pesquisa realizada analisa os dizeres de três professoras da Educação Básica acerca de “bom senso” e “ética” e de que maneira percebem a materialidade dos conceitos na prática pedagógica.

BOM SENSO E ÉTICA NA PERCEPÇÃO FREIREANA

O professor desenvolve cotidianamente uma série de atividades que tem como objetivo o sucesso ou o êxito de seus alunos em momentos de ensino e aprendizagem. A educação é um dever do Estado a todas as crianças e jovens de quatro (4) a dezessete (17) anos, assegurado constitucionalmente, conforme Art. 208 da Constituição Federal de 1988 e Art. 4 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96, dentre outras leis. A garantia legal desse direito se materializa - ou não - nas escolas, nas salas de aulas, mediante a ação intencional do processo educativo, ou seja, na prática docente.

Para dar conta da atividade docente, o professor se capacita em cursos de formação inicial e continuada. Cabe aos cursos de formação inicial fornecer-lhe os conhecimentos teóricos, metodológicos e práticos que o preparam para a profissão docente. Porém, ainda na formação inicial, o futuro docente deve ser levado a compreender que a formação continuada é uma necessidade e exigência para dar conta dos problemas que envolvem a atividade docente, porque “os saberes pedagógicos são construídos ao longo da vida do professor em diferentes situações e contextos [...]”. (MARINO FILHO et al, 2016, p.13).

Entretanto, os saberes pedagógicos, ao serem legitimados na prática educativa, carecem de certos quesitos que são inerentes ao educador progressista, libertador, que prima por uma educação democrática e humanizadora. Um desses quesitos é o bom senso. No capítulo 2 do livro Pedagogia da Autonomia, Freire desenvolve um tópico com o título “Ensinar exige bom senso”. Nele, o autor destaca que:

É o meu bom senso que me adverte de que exercer a minha autoridade de professor na classe, tomando decisões, orientando atividades, estabelecendo tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever. (FREIRE, 1996, p. 23)

Zelar pela aprendizagem de cada aluno é uma tarefa docente que implica uma série de atividades que faz parte das ações educativas, portanto esse não é um favor que o professor concede ao aluno, tampouco deve se vangloriar por considerar que desempenha bem a sua função.

Isso se traduz em contrassenso, uma vez que desempenhar bem a função de professor deve fazer parte do exercício da profissionalidade docente. Tal situação soa como contraditória na medida em que parecem ser consensuais as premiações ao bom professor. É como se o bom professor fosse cada vez mais uma exceção. Por que será que isso acontece? Não é preciso ir muito longe para mostrar que o sistema educacional, principalmente o que atende alunos da camada popular, está falhando em uma de suas principais tarefas: o sucesso na vida escolar.

Desse modo, o professor busca formas de exercer sua profissão já um pouco confuso sobre suas obrigações. Ser “bom” é obrigação ou é exceção? O que significa ser bom professor em um tempo em que a educação sofre com os constantes modismos metodológicos e didáticos e quando poucos professores conseguem se posicionar conscientemente a respeito da melhor forma de atuação? E ainda, em meio à avalanche de informações, de modismos e à rigidez do currículo, o que significa exercer uma boa prática educativa? É muito comum encontrar professores que se posicionam de maneira bastante conservadora a respeito da forma de lidar com os alunos, repetindo o jargão: “Mas antigamente é que era bom... o aluno era tratado com rigor... ele sabia qual era o seu lugar...”, e outras frases semelhantes.

Assim, o docente vive a constante contradição entre manter-se fiel aos posicionamentos conservadores ou apresentar um comportamento mais atual e comprometido, sendo reflexivo diante das diversas situações com as quais é confrontado diariamente: por um lado, quer exercer a autoridade docente e, por outro, quer se posicionar mais democraticamente. Freire nos esclarece bem esse dilema vivenciado, mostrando que “Não resolvemos bem, ainda, entre nós, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade”. (FREIRE, 1996, p.23).

Por outro lado, o autor lembra que o bom senso exige vigilância constante de nossa prática educativa, ou seja, não seria algo que se consiga fazer com naturalidade, mas que exige do professor um estado de alerta, uma autoanálise contínua que promova reflexão e retomada de rumos.

Dessa maneira, exercer a autoridade docente não é o mesmo que ser rigoroso a tal ponto de não se colocar no lugar do outro, mas sim se posicionar numa relação de horizontalidade em que o professor considere o saber do educando. Tal postura envolve a afetividade por considerar que

[...] o mundo afetivo desse sem-número de crianças é roto, quase esfarelado, vidraça estilhaçada. Por isso mesmo essas crianças precisam de professoras e de professores profissionalmente competentes e amorosos [...]. É preciso não ter medo do carinho, não fechar-se à carência afetiva dos seres interditados de estar sendo. Só os mal-amados e as mal-amadas entendem a atividade docente como um que-fazer de insensíveis, de tal maneira cheios de racionalismo que se esvaziam de vida e de sentimentos (FREIRE, 1997, p. 46-47, destaque nosso).

Ser afetuoso com o outro não significa ser “bonzinho” ou ser aquele professor que a tudo diz sim, ao contrário, o afeto aqui descrito é o que Freire defendeu ao longo de sua vida e que exige discernimento, conquista, diálogo, não neutralidade. As ideias de Freire foram captadas por inúmeros professores, pesquisadores, como percebemos no depoimento da prefaciadora de Pedagogia da Autonomia:

A competência técnico científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas. Essa postura ajuda a construir o ambiente favorável à produção do conhecimento onde o medo do professor e o mito que se cria em torno da sua pessoa vão sendo desvalados. É preciso aprender a ser coerente. De nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável a mudanças. (OLIVEIRA, 1996, p.7, destaque nosso)

Há clareza na escrita de Freire ao enfatizar e mostrar com suas ações que a relação entre professor e aluno deve ser construída com base na amorosidade, no respeito. O professor é o profissional que, dotado de conhecimentos técnicos, metodológicos e científicos acerca da docência, mobiliza as dimensões física, afetiva e intelectual, tendo, contudo, a convicção de que é um ser em formação, portanto “inconcluso”, e se compromete com a aprendizagem do aluno. Procura, assim, meios para que ele se vincule à atividade de estudo.

Na esteira desse entendimento, é preciso que o professor “pense certo” e

[...] pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classe popular, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, 1996, p.15)

Muitas vezes, os conteúdos trabalhados nas salas de aula são tratados de forma “fria”, estanque, em disciplinas isoladas e sem nenhuma problematização. Tais posturas são tidas por Freire (2011) como pertencentes à educação bancária em que não está presente o diálogo nem a problematização. O aluno é silenciado na dinâmica da aprendizagem, cabendo a ele somente ouvir, acatar e reproduzir.

O desafio colocado às escolas públicas, a seus gestores e professores, é proporcionar meios para que o aluno se aproprie da cultura mais elaborada. Para Gadotti (2004, p.47), a escola é o “[...] lugar físico do exercício dessa educação, que acaba por ‘expropriar o poder comunitário’ e impor a ‘totalidade do saber necessário’”. Porém uma das formas de favorecer aos alunos da camada popular o acesso a essa cultura será por meio de uma educação libertadora, progressista, contrária à educação bancária. A principal marca da educação libertadora é que ela prima pela humanização dos homens e tem o diálogo como referência. De acordo com Ana Maria Freire1,

Paulo foi um homem dialógico que acreditava em um diálogo da pergunta e da resposta e de uma nova pergunta sobre a resposta. Nesse diálogo, se vai descobrindo a razão de ser das coisas do mundo e esse fenômeno é o conhecimento do mundo. Dessa maneira se vai discernindo as coisas e indo ao encontro da substantividade das coisas. O diálogo possibilita a conscientização, a crítica e propicia, portanto, entender a natureza do objeto que se procura. (Trecho de entrevista apud VASCONCELOS, 2016, p.113)

A forma de organização curricular, a segmentação de disciplinas e a rigidez das horas-aula são alguns - talvez os principais - fatores que dificultam a prática do diálogo. Além disso, a própria oralidade é por vezes negada em prol da atividade escrita. Dessa maneira,

[...] Saber ouvir o aluno é tarefa nem sempre valorizada pelo professor. Habituado ao ensino verborrágico da educação bancária, viciado em longas aulas expositivas (pouco ou nada dialogadas), confundindo participação com indisciplina, temos um docente autoritário e pouco comprometido com a transformação de seus alunos em cidadãos críticos e questionadores. (VASCONCELOS, 2016, p.116)

É preciso primar por uma docência ousada e que se contraponha ao que a autora critica anteriormente. Tal ousadia demanda uma postura de vigilância, crítica e reflexão da própria prática. No entanto, para que o professor exerça a capacidade reflexiva, ele necessita de

[...] contextos que favoreçam o seu desenvolvimento, contextos de liberdade e responsabilidade. [...] é preciso vencer inércias, é preciso vontade e persistência. É preciso um esforço grande para passar do nível meramente descritivo ou narrativo para o nível em que se buscam interpretações articuladas e justificadas e sistematizações cognitivas. (ALARCÃO, 2003, p. 45)

Voltando ao conceito do “pensar certo”, podemos fazer uma analogia entre este e o atuar com bom senso e ética e podemos dizer que ambos se complementam. Assim, o educador que pretender “pensar certo” precisa saber que agir com bom senso e ética são atitudes quase subconsequentes a essa forma de pensamento.

Para Freire (1996), agir com bom senso significa “saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando” e mais do que isso, perseguir uma prática que não se contraponha a esse conhecimento. O autor mostra o quanto é difícil alcançar essa virtude, mas que é o próprio educador quem caminha em sua busca e quem luta diariamente, muitas vezes, contra si mesmo, para alcançá-la. É o seguir em busca da proximidade entre o que falamos e o que fazemos.

Por outro lado, como já exposto, a ética (sempre acompanhada da estética), para Freire, está totalmente vinculada à existência do ser humano. Para o estudioso, estar longe ou fora da ética é uma transgressão da natureza humana. Assim, educar é formar e todas as atitudes do professor atingem seus alunos, sejam elas positivas ou negativas, éticas ou antiéticas, morais ou imorais. Ao respeitarmos a natureza do ser humano, não é possível optar pela escolha do ensino de conteúdos alheio à formação moral do educando. (FREIRE, 1996, p. 26)

É aqui que alcançamos a intersecção entre o agir com “bom senso e ética” e o “pensar certo”, pois para Freire, o pensar certo exige uma atitude de aprofundamento na compreensão e na interpretação dos fatos, supõe disposição em mudar e reconhecer que houve essa mudança, pois não existe pensar certo desvinculado de princípios éticos, que incluem assumir a mudança necessária, pois “todo pensar certo é radicalmente coerente”. (1996, p. 16)

Esses conceitos, de grande importância para aqueles que pretendem se tornar profissionais que assumam uma pedagogia libertadora e humanizadora, nem sempre são facilmente identificáveis e compreensíveis. A seguir, apresentaremos o relato obtido por meio da entrevista realizada com três professoras da Educação Básica, na busca por identificar seu conhecimento sobre essas ideias e a forma como elas se reconhecem como educadoras.

BOM SENSO E ÉTICA NA VOZ DE PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO ENSINO MÉDIO

Com o intuito de aproximação da realidade educativa e percepção de quanto o pensamento de Paulo Freire continua presente e se faz necessário no meio educacional, realizamos uma pesquisa de cunho qualitativo. Essa abordagem metodológica

[...] tem como fonte direta de dados o ambiente natural, constituindo-se o investigador seu próprio instrumento. Ela é também descritiva, interessando-se mais pelo processo do que simplesmente pelo resultado ou produtos. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva e o significado é de vital importância. (BOGDAN & BIKLEN, apud MELLO, 2004, p. 21).

Assim sendo, para perceber como o bom senso está presente - ou não - nas práticas educativas de professores da Educação Básica, optamos por fazer a coleta de dados junto a três professores da rede pública em Mato Grosso do Sul. Importante destacar que seus dizeres refletem suas atuações docentes demarcadas pelas políticas de formação. Portanto, os dados devem ser vistos dentro da conjuntura atual do cenário educacional brasileiro no qual há uma sobrecarga de informações e diretrizes, muitas vezes sem uma unidade metodológica. Corrobora com essa ideia a afirmação de que

[...] as sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro, num embate constante entre o que está dado e o que está sendo construído. Portanto, a provisoriedade, o dinamismo e a especificidade são características fundamentais de qualquer questão social. (MINAYO, 2001, p. 13).

Dessa forma, os conhecimentos que forem aqui apreendidos não podem ser considerados como cristalizados e estanques, ao contrário, a realidade é dinâmica e mutável. Com tal entendimento, apresentamos às professoras a intenção com a pesquisa e entregue a cada uma o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que foi por elas lido e assinado. Formalizamos o compromisso de manter-se o anonimato, portanto, os nomes aqui apresentados são fictícios. A coleta de dados se deu por meio de questionário, contendo perguntas semiestruturadas. Entretanto, o diálogo esteve presente ao longo de todo o processo de coleta de dados por meio de longas conversas com cada uma, sanando dúvidas que surgissem de ambas as partes.

É possível afirmar, portanto, que as pesquisadoras e as professoras foram, de fato, interlocutoras nesse processo. Cada relato foi revivido pelas professoras e teve a escuta sensível por parte das pesquisadoras e, por vezes, deu origem a novas questões.

A seguir, faremos uma descrição das entrevistadas, que conforme relatado anteriormente, terão sua identidade mantida em sigilo, por isso serão chamadas de professora 1, professora 2 e professora 3. A professora 1 é Pedagoga, atua na Educação Infantil, tem curso de especialização lato sensu e Mestrado na área da Educação. Participa de cursos de formação continuada oferecidos pela Rede Municipal de Ensino, atua como supervisora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) em Curso de Pedagogia de universidade pública, possui 21 anos de experiência docente. A professora 2 é Pedagoga, atua nos anos iniciais do Ensino Fundamental, tem pós-graduação lato sensu na área de Educação, participa de cursos de formação continuada que são oferecidos pela Rede Municipal de Ensino de Três Lagoas/MS, possui 20 anos de experiência docente. Além da docência nos anos iniciais do Ensino Fundamental, foi Coordenadora Pedagógica e professora na Educação Infantil. A professora 3 tem graduação em Letras, é docente de língua inglesa no Ensino Médio, tem curso de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado), participa de cursos de formação continuada e desenvolve trabalhos na área de sua formação, tem 10 anos de experiência docente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Superior.

Com a finalidade de apreender como se dá a compreensão a respeito dos conceitos aqui analisados, ética e bom senso, questionamos as professoras a respeito de suas concepções sobre o assunto e de que maneira identificavam essas atitudes em suas práticas.

A professora 1 trata a questão como algo implícito ao trabalho do professor, diretamente relacionada ao trato com a criança e aos diversos direitos que ela possui em relação à educação. Para ela, agir com ética e bom senso,

É o que nós professores precisaríamos fazer. Em muitos casos observamos que o professor faz um julgamento da criança e não uma avaliação. Penso que nessas situações não há ética e nem bom senso, precisamos também da mesma forma que avaliamos ser avaliados por nossas crianças. Ouvimos tanto falar em reflexão, mas não observamos efetivamente ninguém fazendo reflexão de si, de suas ações, das aulas mal dadas, dos dias que as crianças foram dispensadas mais cedo e tiveram cerceado seu direito de estudar quatro horas por dia, dos dias em que ela faltou à escola e não procuramos saber os motivos. Brigamos por tantos direitos, e temos mesmo que lutar e brigar por eles, mas esquecemos de respeitar direitos básicos das nossas crianças dentro de nossas escolas. (Trecho retirado de questionário respondido pela Profa. Márcia)

O relato da professora é rico e apresenta diferentes situações nas quais é possível constatar a ausência de princípios éticos na atuação docente e no cotidiano da escola, entretanto um aspecto se sobrepõe aos demais que é o não cumprimento de dias letivos e carga horária a que o aluno tem direito. Para os professores, “sair mais cedo” é como se fosse uma vantagem dada e não percebem que se trata de uma omissão da função docente.

Essa professora reconhece ética e bom senso em atitudes vivenciadas diante de situações que abrangem a profissão, porém, de maneira ampla, referentes à sua relação com todos os agentes educacionais e não apenas com seus alunos:

Eu entendo que é minha obrigação cumprir meus horários dentro da instituição, já aconteceu de eu ou meus filhos amanhecer doente e eu precisar arrumar alguém para ir me substituir de última hora e fui para a escola receber as crianças até a substituta chegar para ficar com as elas. Acho que isso foi uma questão de ética, de cumprimento de deveres, porque usando o bom senso, sei que na escola não tem ninguém que fique com minhas crianças se eu faltar. Outras situações que frequentemente acontecem é atraso ou falta de professores e a direção ou supervisão vir pedir para o professor que está em hora atividade ir segurar a turma enquanto o outro professor não chega ou não se arruma um substituto, desde que não seja com professores que façam disso uma prática corrente não vejo mal em usar o bom senso e ajudar, porém penso que a diretora e a especialista em educação também tivessem que ir segurar sala nesses casos, afinal, porque só os professores? (Trecho retirado de questionário respondido pela Profª Márcia)

Pelo dizer da professora, no que se refere a “segurar” a sala de aula enquanto o professor titular não chega ou mesmo o substituto dele, os demais professores fazem uso do bom senso para ajudar o colega em sua ausência, entretanto tal postura não é observada por parte da direção e/ou supervisão. Agindo dessa maneira, notamos, pelo relato da professora, que falta bom senso por parte da equipe gestora de se colocar no lugar do outro, ou seja, de exercer a docência por um curto espaço de tempo, auxiliando a sanar o problema.

A professora 2 apresenta uma definição bem direta dos conceitos e diz que “ética é agir com cem por cento de razão, ou seja, sabe ou não sabe, é ter atitude como a do sistema. Já o bom senso leva em consideração algumas questões prévias, ou seja, analisa o histórico anteriormente”. Seu conceito adquire materialidade ao apresentar um relato que envolve o uso da ética e do bom senso em situação real, portanto relatos de sua prática apontando exemplos muito mais específicos, voltados à relação com os alunos:

Houve momentos na minha prática que refiz todo o diário em função de uma criança que ia reprovar devido ao número excessivo de faltas. Isso aconteceu depois que eu tomei conhecimento do histórico familiar da aluna e de saber que as faltas se davam porque a criança não tinha quem a preparasse para ir para escola, ela não recebia o cuidado necessário que toda criança deve ter em casa. A família era totalmente desestruturada. Entretanto, a criança era uma excelente aluna. Entendia tudo na primeira explicação. Combinei com ela que ela teria que fazer uma prova junto com os demais alunos que haviam ficado de recuperação, no dia da prova ela chegou quase uma hora após a prova ter sido entregue, perguntou se podia fazer, eu disse que sim e ela fez tudo com rapidez e sem erros. Percebi que, embora contrariando a norma, agi com bom senso ao não reprovar uma aluna de 2º ano do Ensino Fundamental e, ao mesmo tempo não senti que estava faltando com a ética porque ela dominava plenamente os conteúdos curriculares do ano escolar em que estava.

Já a professora 3 traz um relato emocionante sobre suas ações referentes ao uso de ética e bom senso, deixando claro que o trabalho docente não pode se dar de maneira desconectada da realidade que cerca o professor:

Acredito que seria agir sempre pensando em formar educandos conscientizando-os sobre a importância de se ter uma reflexão crítica da própria realidade a qual eles estão inseridos. E, pensando em Paulo Freire, agir com humildade diante dos fatos, não sermos autoritários no sentido real da palavra, que possamos perceber que o bom senso requer que tenhamos certa igualdade diminuindo a distância entre a nossa fala e a nossa prática.

Ao ser solicitada que exemplificasse, ela relata:

Lembro-me de um episódio em que eu estava trabalhando duas palavras em inglês: Like (gosto) e Dislike (não gosto). Coloquei na lousa as duas palavras e fui questionando os alunos o que eles gostavam e o que não gostavam. Muitos alunos responderam que não gostavam de Deus e que gostavam de fumar maconha. Então eu coloquei as palavras em inglês tal como eles iam dizendo, embora tenha sido um pouco constrangedor, eu decidi trabalhar algumas questões voltadas para essa situação. Levantamos uma discussão a respeito de Deus e do ato de fumar maconha sem fazer disso algo problemático, mas como algo importante e tentei de uma forma bastante subjetiva (sic) mostrar que nem sempre estamos corretos e que algumas vezes fazemos escolhas erradas. E acredito que a aula foi muito proveitosa dentro daquela realidade e daquele momento. O desafio de trabalhar com a turma era constante. Estou me referindo a turmas do Ensino Médio, noturno, escola pública de periferia. Muitos dos alunos são trabalhadores, chegam em suas casas já perto do horário da aula e não tem tempo de jantar ou fazer um lanche para irem para escola no período noturno - talvez nem sempre tenham esse alimento preparado - e por isso ficam esperando ansiosos o horário do lanche. No período noturno nem sempre tem merenda suficiente para todos os alunos, às vezes servem uma banana e um suco, em outras uma fatia de melancia, é servido também algumas bolachas, apenas duas vezes por semana a escola serve algo consistente como arroz com alguns pedaços de carne. Muitas vezes eles me pediam para eu pegar e fingir que era para mim e dar a eles, pois é proibida a repetição, por isso sempre dava o meu lanche para os alunos. Assim, eu sempre cedia o meu lanche para alguém da turma.

As falas das professoras mostram que todas compreendem seu papel como seres humanos e acima de tudo como profissionais éticos, mas deixam claro que esse sentimento de cumprimento da ética, como obediência a regras e normas padronizadas, não deve estar acima das necessidades observadas em seus alunos e naquilo que devem fazer como professoras conectadas ao ambiente e aos problemas de sua época.

É Freire (1996) quem mostra o quanto é importante viver dentro dos padrões éticos, não sendo possível ao homem viver fora da ética. A professora 2 diz que procura “[...] fazer uso da ética diariamente, procuro ter um padrão de comportamento considerado normal dentro dos princípios e valores recebidos da família que está diretamente ligada à sociedade”. Posto isso, é possível estabelecer a relação com a fala de Paulo Freire:

Antes, por exemplo, de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu bom senso que me diz ser tão negativo, do ponto de vista de minha tarefa docente, o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho de um aluno por perda de prazo, apesar das explicações convincentes do aluno, quanto o desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos. (FREIRE, 1996, p. 23)

Percebemos que o agir contra o formalismo insensível foi o que a professora 2 fez ao refazer o diário para atender uma aluna. Pode parecer à primeira vista uma transgressão, mas é possível afirmar, mediante o pensamento freireano, que a materialização do bom senso em diversas situações exige ousadia e humildade.

As entrevistadas demonstraram compreender e utilizar o conceito de ética e bom senso em suas práticas e muitas vezes se utilizam de estratégias de recurso pessoal para beneficiar os alunos, como relato da professora 3 que, ao trabalhar em escola de periferia e sem recursos didáticos para atuar com a disciplina de língua inglesa, optou por “fazer um ‘custo benefício’, montei apostilas gratuitas de acordo com a grade de ensino e como o que considero importante para a aprendizagem deles, e assim trabalhamos durante o ano todo. Foi muito rentável, para mim e para os alunos” (Trecho retirado de questionário respondido pela professora).

Importa destacar que, em busca da realização de uma prática educativa que prime pelo direito de aprendizagem dos alunos, garantido constitucionalmente, muitas vezes o professor desempenha o papel que é do Estado, ou seja, adquire materiais para os alunos. A professora relatou que fez isso porque na escola não tinha material adequado e nem suficiente para todos os alunos que garantisse uma aprendizagem sólida para os anos seguintes. A docente agiu em nome de princípios éticos com o exercício da profissão.

Atitudes como esta são compreendidas por alguns professores, outros tantos são contrários a essa postura e ela sentiu na unidade de ensino o olhar de “desaprovação” por parte de alguns colegas. De acordo com seu relato, ela fez isso após analisar a própria prática e constatar que “[...] é possível trabalharmos desta forma [ou seja] uma maneira de observarmos a situação ou a realidade que nos deparamos e não ficarmos de braços cruzados”. Assim, apesar de alguns olhares, o aumento significativo da participação dos alunos nas aulas mostrou que o caminho estava certo, portanto, ela estava segura. Ela argumenta que “A preocupação com a aprendizagem dos mesmos me leva a investir numa educação mais democrática, menos sisuda. Isso é marca de Freire que sempre se preocupou com os oprimidos, com a classe popular”.

Freire nos lembra que “A segurança, [...] demanda competência científica, clareza política e integridade ética. Não posso estar seguro do que faço se não sei como fundamentar cientificamente a minha ação se não tenho pelo menos algumas idéias em torno do que faço, de por que faço, para que faço. (FREIRE, 1997, p.40). O fato de entender o que é necessário para a aprendizagem dos alunos provocou na professora 3 o desejo de preparar o material, ainda que sua ação causasse olhares de desaprovação em seus colegas. Sua competência profissional e integridade ética lhe deu a segurança necessária para manter-se firme em sua decisão.

COMO ASSEGURAR ÉTICA E BOM SENSO NA PRÁTICA DOCENTE?

Conforme a definição de docência apresentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada em Nível Superior de Profissionais do Magistério para a Educação Básica:

§ 1º Compreende-se a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem na construção e apropriação dos valores éticos, linguísticos, estéticos e políticos do conhecimento inerentes à sólida formação científica e cultural do ensinar/aprender, à socialização e construção de conhecimentos e sua inovação, em diálogo constante entre diferentes visões de mundo. (BRASIL, 2015, p.3)

A partir dessa definição e da afirmação freireana de que a prática educativa não é neutra e deve ter uma intencionalidade, é possível pensar em alguns meios que podem auxiliar o professor a materializar na prática educativa os conceitos - ética e bom senso. Também essas questões devem ser alvo de intencionalidade no trabalho docente e não podem permanecer no plano da imaginação e da espontaneidade, devendo ser projetadas no planejamento do professor.

Planejar é uma atividade inerente a toda profissão, porém na docência é uma exigência sem a qual o professor pode se perder na esfera educativa. Isso porque a “[...] a prática educativa não deve ser uma espécie de marquise sob a qual a gente espera a chuva passar. E para passar uma chuva numa marquise não necessitamos de formação” (FREIRE, 1997, p.37).

Segundo Vasconcellos (2000), o planejamento é um desafio, pois, muitas vezes, na caminhada exaustiva, o educador se deixa envolver pelo cansaço e desânimo, considerando que o planejamento seja desnecessário ou de menor importância. Por outro lado, conforme o autor, o que move a escola não é o planejamento, são as pessoas, por isso o planejamento deve considerar os seres que dão vida à escola, acrescentando que “Numa concepção libertadora, sujeitos, projeto e organização devem-se articular a partir do fundamental, que são as pessoas, construtoras e destinatárias da libertação” (VASCONCELLOS, 2000, p.37).

Todos precisam de planejamento e apenas os que agem por condicionamento não percebem sua importância, por não verem necessidade de mudança, não se comprometendo com ela por estarem alienados no processo. Isso nos leva a refletir sobre o engessamento da prática educativa por meio dos materiais paradidáticos, como as apostilas que são adquiridos por muitos municípios e adotados como muletas. A adoção desse material sem qualquer análise ou inferência não é ético e influencia toda a prática educacional, desvalorizando a realização do planejamento por parte do professor.

O planejamento não é uma camisa de força, mas é algo que confere uma direção, sendo flexível, porém objetivo. Vasconcelos aponta ainda que o que “modifica efetivamente a realidade é a ação e não as ideias, porém, a ação sem ideia é cega e ineficaz” (VASCONCELLOS, 2000, p.45)

Tendo o planejamento como o grande escopo ou a âncora que assegura diversos aspectos do processo ensino-aprendizagem, alguns pontos podem ser destacados que, se constantes no planejamento, podem contribuir com uma prática docente que se aproprie dos conceitos de ética e bom senso de maneira mais efetiva.

O primeiro ponto a ser considerado é a autoavaliação da prática - Avaliar as próprias ações é uma tarefa importante e necessária quando se trata da prática docente. Entretanto, avaliar a própria prática exige esforço ético para apontar as próprias falhas e também as qualidades do trabalho docente exercido. Reconhecer as lacunas e as dificuldades na realização de certas práticas pedagógicas é o primeiro passo para alterá-las rumo a uma prática mais eficaz. Freire (1996, p.26) destaca que “[...] a avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades [...]” e acrescentamos que revela também as lacunas da prática. Portanto, o exercício da autoavaliação exige bom senso e é uma tarefa ousada que exige esforço do professor que a realiza.

O segundo ponto a ser considerado é reflexão na ação - Durante o exercício da docência muitas vezes surgem temas polêmicos. Como já afirmado, estamos vivendo um momento de muitas mudanças: economia, política, constituição familiar e outros. Elas dizem respeito aos rumos que a sociedade está tomando, novas configurações surgem e mexem com os costumes e os valores do homem. A escola não é um mundo à parte. Freire (1977) já afirmava “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Dessa maneira, ao surgirem temas polêmicos, a escola não pode silenciar-se, esquivar-se. É no diálogo e no debate coletivo que tais temas devem sejam apresentados. Isso não quer dizer que buscamos um consenso ou um pensamento único a respeito deles, mas sim uma clareza, melhor discernimento a respeito do assunto. É preciso que o professor esteja atento a essas questões e que reflita sobre os acontecimentos diários para que não corra o risco de que situações que envolvam problemas importantes passem despercebidos, sem que sejam trabalhados como importante fonte de aprendizagens para os alunos.

Por fim, uma última questão apresenta significante importância para que tais conceitos se façam presentes na prática docente, que é a da formação continuada, articulada a partir da própria escola. A escola, na figura de seus gestores (direção e coordenação), deve assumir o papel de provedora da formação continuada de seus professores. E, nos encontros, tratar dos temas “polêmicos” que os inquietam em “sala de aula” se trata de promover contextos que favoreçam a reflexão como “[...] uma política de valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições escolares, uma vez que supõe condições de trabalho propiciadoras da formação como contínua dos professores, no local de trabalho” (PIMENTA, 1999, p. 31). O professor, como outros profissionais, não nasce pronto, é preciso ir se formando dentro da própria profissão e construindo sua identidade docente. Conforme as palavras do próprio Freire, “ninguém nasce feito... Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tornamos parte. Não nasci professor ou marcado para sê-lo”. (2001, p.40)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problematizar os conceitos de bom senso e ética na prática educativa sob a ótica freireana aponta para o fato de que são conceitos distintos, mas que se complementam na atuação docente. Freire nos ensina a necessidade de vivenciar tais conceitos aliados a tantos outros que estão presentes em seu livro Pedagogia da Autonomia. Tais concepções se materializam em uma prática educativa libertadora, ousada, humanizadora, que pressupõe a apropriação da cultura mais elaborada por crianças, jovens e adultos da escola pública.

No entanto, tal empreitada exige vigilância e postura transgressora de não espontaneísmo e neutralidade. O cenário educacional, embora se declare democrático, na verdade impõe uma relação de poder que o circula e se materializa por meio de uma avalanche de informações, alterações curriculares e de metodologias de ensino, cobranças burocráticas à escola e aos professores, enfim em situações que dificultam a atuação democrática. Em meio a esse cenário, o professor que é crítico busca formas de alterar a realidade dentro de uma educação humanizadora e, muitas vezes, faz uso do bom senso em situações conflitantes do seu dia a dia, como é o caso das professoras sujeitos de nossa pesquisa.

É com o uso do bom senso nas práticas pedagógicas que o professor libertador não nega o conhecimento nem os debates mais polêmicos, ao contrário, é ele que prima pelo saber científico que ultrapassa os saberes ingênuos do cotidiano para que o aluno alcance o conhecimento epistemológico. E, nessa busca constante, o professor não nega princípios éticos e morais, pelo contrário, precisa deles para legitimar uma educação de qualidade, que é um direito dos alunos.

Referências

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Notas

1Entrevista concedida para a professora Dra. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos no ano de 2016 e que faz parte do capítulo do livro Paulo Freire em Tempo Presente (2016).

Recebido: 15 de Abril de 2019; Aceito: 10 de Junho de 2019

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