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Contrapontos

versión On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.19 no.1 Florianopolis ene./dic. 2019  Epub 26-Sep-2019

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v19n1.p249-270 

Artigos

OS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA E NÓS: REFLEXÃO SOBRE TRÊS LIVROS PARADIDÁTICOS

THE CLASSICS OF SOCIOLOGY AND US: REFLECTION ON THREE SUPPLEMENTARY EDUCATIONAL MATERIALS

LOS CLÁSICOS DE LA SOCIOLOGÍA Y NOSOTROS: REFLEXIÓN SOBRE TRES LIBROS PARADIDÁCTICOS

Ricardo Ramos ShiotaI  * 

IPrograma de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil.


Resumo:

Os clássicos da sociologia variam conforme cada país, eles são os autores que gozam de status superior, artífices de práticas exemplares de pesquisa, que levantaram problemas e propuseram soluções teóricas que ainda elucidam aspectos das sociedades contemporâneas. Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber se tornaram clássicos no Brasil, entre outras coisas, devido ao esforço de Florestan Fernandes na década de 1950, quando sistematizou a contribuição de cada um desses autores para uma teoria da investigação sociológica. A recepção desses clássicos no país não perdeu de vista os problemas da sociedade brasileira, que tradicionalmente esteve voltada para explicar o país. Por isso, determinadas leituras foram rotinizadas, criando versões próprias desses autores clássicos. Dessa perspectiva, esse texto faz uma reflexão sobre três livros paradidáticos da coleção “pontos de referência” da Editora Vozes, escritos por especialistas franceses: A sociologia de Marx, de Jean-Pierre Durand; A sociologia de Durkheim, de Philippe Steiner; e A sociologia de Weber, de Catherine Colliot-Thélène.

Palavras-chave: Clássicos da sociologia; Sociologia brasileira; Livro didático

Abstract:

The classics of sociology vary from country to country. They are represented by those authors classified as having superior status, practicing exemplary research, who have raised problems and proposed theoretical solutions that still elucidate aspects of contemporary societies. Karl Marx, Emile Durkheim and Max Weber became classics in Brazil. This was partly through the efforts of Florestan Fernandes, in the 1950s, who systematized the contribution of each of these authors to a theory of sociological research. The reception of these classics in the Brazil has traditionally been geared towards explaining the sociological problems of Brazil. Therefore, certain readings became routine, and particular versions of these classic authors were created. This text proposes a reflection on three textbooks written by French experts and published by Editora Vozes in its collection Pontos de Referência: A sociologia de Marx (The Sociology of Marx) by Jean-Pierre Durand; A Sociologia de Durkheim (The Sociology of Durkheim) by Philippe Steiner; and A Sociologia de Weber (The Sociology of Weber) by Catherine Colliot-Théléne.

Keywords: Classics of sociology; Brazilian sociology; Textbook

Resumen:

Los clásicos de la sociología varían según cada país, son aquellos autores que gozan de estatus superior, artífices de prácticas ejemplares de investigación, plantearon problemas y propusieron soluciones teóricas que aún elucidan aspectos de las sociedades contemporáneas. Karl Marx, Émile Durkheim y Max Weber se convirtieron en clásicos en Brasil, entre otras cosas, debido al esfuerzo de Florestan Fernandes en la década de 1950, cuando sistematizó la contribución de cada uno de estos autores a una teoría de la investigación sociológica. La recepción de estos clásicos en el país no perdió de vista los problemas de la sociedad brasileña, tradicionalmente estuvo orientada a explicar el país. Por eso, ciertas lecturas fueron rutinarias, creando versiones propias de esos autores clásicos. De esa perspectiva, ese texto hace una reflexión sobre tres libros paradidácticos de la colección "Pontos de Referência" de la Editora Vozes, escritos por especialistas franceses: A sociologia de Marx (La sociología de Marx), de Jean-Pierre Durand; A sociologia de Durkheim (La sociología de Durkheim), de Philippe Steiner; y A sociologia de Weber (La sociología de Weber), de Catherine Colliot-Thélène.

Palabras clave: Clásicos de la sociología; Sociología brasileña; Libro didáctico

“Conservadores, reformistas ou revolucionários, aspiravam fazer do conhecimento sociológico um instrumento da ação. E o que pretendiam modificar não era a natureza humana em geral, mas a própria sociedade em que viviam”. Florestan Fernandes (1960, p. 273)

“À luz da redução sociológica, toda produção científica estrangeira é, em princípio, subsidiária”. Guerreiro Ramos (1965, p. 120)

INTRODUÇÃO

A coleção “Sociologia: Pontos de Referência” da Editora Vozes tem publicado livros sobre renomados sociólogos, acerca da história da disciplina e seus desafios como ciência mediante o critério didático, a saber: “apresentar, de forma condensada, mas acessível a todos, uma informação confiável sobre determinado tema”; a coleção oferece ao grande público pequenos livros que se propõem a ser “pontos de referência” no assunto. Dada essa ousadia e a pretensão desses objetivos, a carência e a demanda de materiais desse gênero no mercado editorial brasileiro, embora a Sociologia tenha retornado ao ensino básico há uma década, os livros atinentes aos nossos clássicos - Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber - merecem uma análise e avaliação no tocante a seu uso pelos professores de Ensino Médio para se informar e manejá-los em sala de aula.

Escritos por especialistas franceses, oferecem introduções a esses fundadores e permitem estabelecer um diálogo com a tradição do pensamento sociológico nativo, na medida em que oferecem um tratamento, em alguma medida, distinto em relação às interpretações rotinizadas desses clássicos entre nós. O objetivo deste trabalho é pensar esses livros com base na reflexão sobre quem são os “nossos clássicos” da sociologia, de acordo com a recepção1 que fizemos de Marx, Durkheim e Weber. Desse ângulo de análise, é possível avaliar esses livros, salientando a identidade cognitiva da tradição da sociologia brasileira, isto é, “um sistema próprio e complexo de leitura e reelaboração de autores diversos” (VILLAS-BOAS, 2006, p.20), um modo particular de se apropriar do patrimônio sociológico universal.

Os clássicos da sociologia são aqueles autores que gozam de status privilegiado (ALEXANDER, 1996), continuam importantes para os atuais pesquisadores porque estabelecem os critérios básicos no âmbito da disciplina; delimitam problemas e perspectivas teóricas fundamentais que continuam sendo revisitadas; possuem grande capacidade de empatia, de percepção, de intuição, de interpretação, de compreensão das ações humanas; são mestres em selecionar e reconstruir aspectos do mundo social, em estabelecer relações, inter-relações e comparações; dispõem de uma sensibilidade social, poder de observação aguçados e rara capacidade de taquigrafar o mundo moderno, fundamentando a sociologia como disciplina científica.

Desse modo, esses clássicos simplificam a complexidade da realidade social, facilitam a discussão teórica e estabelecem determinados pressupostos e compromissos distintos. “Produzir uma ‘grande’ ciência social é um dom que, como o de criar uma “grande” arte, varia trans-historicamente entre diferentes sociedades e diferentes seres humanos” (ALEXANDER, 1996, p. 48). O mesmo vale para o reconhecimento de quem são os autores que tiveram essa extraordinária capacidade. Em virtude da natureza inexata e pouco consensual das ciências sociais, divergências, polêmicas e discordâncias são imanentes, até sobre quem são os clássicos da disciplina. Nos EUA, por exemplo, a obra de Parsons elegeu Marshal, Pareto, Durkheim e Weber como responsáveis por fundar a tradição clássica sobre a qual a sociologia devia se filiar doravante. Apenas no final da década de 1970, com a crise do funcionalismo, Marx tornou-se reconhecido como autor clássico. Na França, Raymond Aron, no início dos anos 1960, elegeu como clássicos Comte, Durkheim, Toquevile, Marx, Weber e Pareto (STEINER, 2016). No Brasil, de modo distinto, já no início da década de 1950, em suas publicações, Florestan Fernandes (1959) elegia como “nossos” clássicos Marx, Durkheim e Weber, ao sintetizá-los do ponto de vista do método empírico-indutivo para propor uma teoria da investigação sociológica.

A ausência de um amplo consenso nas ciências sociais torna o significado dos textos clássicos balizado pelos interesses contemporâneos, para além de uma compreensão referida unicamente aos contextos históricos ou intelectuais (ALEXANDER, 1996). Há inúmeras interpretações dos clássicos, todas sempre seletivas, apropriadoras ou voltadas para responder problemas particulares ou sustentar interesses teóricos apriorísticos. A escolha de quem são e a fortuna crítica das obras clássicas, a despeito das diversas escolhas e usos, estão sempre condicionadas pela experiência histórica, pelos contextos nacionais e por interesses teóricos conformados pelas tradições sociológicas e suas escolas, que estabelecem injunções na circulação e na recepção desses escritos.

A recepção dos “nossos” clássicos da sociologia foi mediada pela tradição da sociologia brasileira, sobretudo a que se consolidou nos anos 1950: interessada, engajada, voltada para demandas suscitadas pelos problemas da sociedade:

Quando a sociologia surge no Brasil como disciplina acadêmico-científica, não indaga dos fundamentos da associação entre os homens, à maneira dos estudiosos franceses, nem da possibilidade teórica e metodológica de conhecer a sociedade, à maneira dos alemães. Tampouco lhe interessavam as reformas sociais ou a integração de grandes grupos de diferentes origens étnicas nas grandes cidades, a exemplo dos sociólogos norte-americanos que fundaram o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. A pergunta que funda a disciplina já estava inscrita na tradição de pensamento sobre o Brasil e dizia respeito à identidade da sociedade brasileira. Interessava investigar os problemas concretos do país, principalmente, conhecer suas particularidades para saber das suas possibilidades de integrar-se ao concerto das nações modernas. (VILLAS-BOAS, 2006, p. 26).

A preocupação com a formação da nação em vista da resolução dos problemas nacionais, ligados ao subdesenvolvimento e à dependência, criou uma identidade cognitiva da sociologia, presente na recepção dos autores que consideramos clássicos. Weber e Marx são os autores que mais influxo tiveram no pensamento social e político nativo, estão entre os mais citados em teses e dissertações, “constituem principal referência da grande controvérsia que anima a literatura sobre a interpretação do Brasil” (VIANNA, 1999, p. 174). Ela deriva das diferentes interpretações teóricas a respeito das obras desses alemães a qual dá origem a explicações concorrentes:

[…] Weber foi usado para explicar o atraso da sociedade brasileira. O mesmo poderia ser dito, certamente, em relação a Marx. Nesse sentido, ambos foram usados para ajudar a identificar os obstáculos que nos impediram de ser modernos. Dado o viés desenvolvimentista e modernizador das nossas ciências sociais compreende-se a influência avassaladora desses dois clássicos entre nós (SOUZA, 1999, p. 18).

As formulações teóricas de Weber, de Durkheim e de Marx, tornaram-se, nas mãos dos sociólogos na década de 1940 doravante, “ferramentas de trabalho intelectual para reflexão dos especialistas em torno da realidade brasileira em mudança” (DIAS, 1974, p. 47). As nossas condições sociais e a identidade cognitiva da sociologia brasileira orientaram as apropriações da obra desses clássicos. Aqui reside um ponto importante para a reflexão acerca do material paradidático e introdutório, são leituras pertinentes feitas de outra tradição sociológica. O que não significa desqualificar as interpretações nativas consagradas dos clássicos, mas perceber que esses livros analisados atualizam a obra daqueles mestres, trazendo novas possibilidades de leituras. O contraste das interpretações dos clássicos por tradições sociológicas e escolas diferentes também pode servir de parâmetro para fundar a controvérsia com as leituras que subestimam a sociologia brasileira, sobretudo se for em nome de uma exegese “hipercorreta” ou “consular” (RAMOS, 1957) daqueles clássicos, na contramão de uma leitura que os traduzem para o conhecimento de nossa realidade.

A SOCIOLOGIA DE MARX

A sociologia de Marx possui cinco capítulos, introdução, conclusão e foi escrita por Jean-Pierre Durand, professor de sociologia da Universidade de Évery, autor de livros e artigos sobre temas e problemas ligados à sociologia do trabalho.

Na introdução, após breve apontamento biográfico e acerca das fontes do pensamento de Marx, são expostas as ideias centrais que servem de fio condutor do livro. Segundo o autor, apesar de não ter sido sociólogo, há premissas de uma sociologia na obra de Marx, as quais estão presentes na teoria da exploração, nas teorias das classes sociais e do Estado, apenas esboçadas; e também na crítica da ideologia, da alienação e na teoria do conhecimento elaboradas por este clássico.

No primeiro capítulo - “Teoria da exploração” -, Durand defende que a manufatura e a grande indústria foram o laboratório da sociologia de Marx e Engels, fundadores do marxismo. Ele argumenta que a teoria da mais-valia é a base da sociologia marxista e remete à exploração do trabalho. O autor a reconstrói com referência às categorias: mercadoria, valor de uso, valor de troca, trabalho abstrato, trabalho concreto, capital constante, capital variável, trabalhador livre, força de trabalho, salário, reprodução simples e reprodução ampliada da relação de produção capitalista. Fiel à complexidade da obra de Marx, Durand reitera a objetividade destes conceitos, os quais remetem a um processo histórico concreto que, na Europa, ocorreu com a crise do modo de produção feudal. O modo de produção capitalista separa o trabalhador dos meios de produção e dá origem à mais-valia ou à relação social de trabalho não pago. A força de trabalho é a única mercadoria capaz de produzir valor em mundo de mercadorias, no qual ocorre a generalização da relação de produção capitalista para as diversas formações sociais do planeta, unificando-as em uma mesma totalidade.

Ainda no registro da teoria da exploração, o autor apresenta as categorias mais-valia absoluta, mais-valia relativa e mais-valia extra. Para tanto, recorre à diferença entre taxa de mais-valia (taxa de exploração do capital variável, sendo este a força de trabalho) e taxa de lucro (soma do capital variável e do capital constante, sendo este os capitais e os insumos gastos na produção); e à distinção entre trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho (remunerado sob a forma salário) e sobretrabalho apropriado pelo capitalista (trabalho não pago ou mais-valia). Na interpretação de Durand, enquanto a mais-valia absoluta se assenta na diminuição do valor pago à força de trabalho ou no aumento da jornada de trabalho, a mais-valia relativa se funda na redução dos custos da produção de mercadorias necessárias para a reprodução da força de trabalho, mediante a importação delas a um custo mais baixo ou por meio do incremento da produtividade do trabalho. Face à concorrência entre as empresas e os capitalistas, a mais-valia extra é obtida por meio da inovação técnica, capaz de reduzir o tempo de trabalho pago ao trabalhador sob a forma de salário.

O capítulo é encerrado com a discussão teórica sobre a contradição entre forças produtivas e relações sociais de produção, combinação que dá origem ao modo de produção. Contra a ideia de determinação simples das relações de produção pelas forças produtivas, da superestrutura pela infraestrutura, uma interpretação economicista da sociologia de Marx, Durand mostra que, para o próprio sociólogo, a determinação não é exclusivamente econômica, de mão única, mas recíproca em uma unidade contraditória que abrange os termos e engloba outras determinações como o político, o jurídico e o ideológico. O debate moderno superou a disjunção mecanicista destas categorias (infraestrutura e superestrutura), ou seja, a determinação pura e simples da vida social pelo econômico, as quais aparecem de modo imbricado, segundo uma causalidade dialética recíproca em sintonia com a formulação de Marx e contra a caricatura elaborada pelos intérpretes deste clássico.

No segundo capítulo - “Rumo a uma sociologia do trabalho” -, o autor defende a atualidade de algumas observações de Marx atinentes aos processos de trabalho na manufatura e na grande indústria. Estes processos são explicados em referência à cooperação, à divisão do trabalho, à parcelarização das tarefas, à técnica (mecanização e, hoje, automação), às formas de remuneração e à intensificação do trabalho. Marx é atual porque, “embora as técnicas tenham transformado os conteúdos do trabalho, as relações de produção capitalistas permanecem” (DURAND, 2016, p. 76). Esse argumento também é demonstrado com base nos elementos presentes na obra de Marx, os quais permitem explicar, de modo crítico, o Taylorismo. A ideia básica consiste em associar a divisão do trabalho com o aumento da exploração capitalista, da extração de mais-valia, já que a produção é social (envolve trabalho vivo e trabalho acumulado), mas a apropriação dos resultados do trabalho é privada.

Neste segundo capítulo, Durand expõe a importância do trabalho como mediação entre homem e natureza e sua determinação histórica como trabalho alienado pelo capitalismo no constructo de Marx, retomando a teoria da exploração. Nele, o autor discorre acerca da importância do trabalho e da técnica para a compreensão da singularidade do gênero humano e da natureza histórica e, por conseguinte, mutável dos seres humanos. Também é discutido o papel desempenhado pelas diferentes modalidades de divisão do trabalho para a dominação do homem sobre a natureza e para a constituição dos modos de produção e das formações sociais, sempre determinados pelas formas de organização e de apropriação do trabalho. A evolução da divisão social do trabalho decorre das trocas e especializa o trabalho para torná-lo mais eficaz; implica distintas formas de cooperação, de técnicas, de propriedade e até de constituição de coletividades humanas, tais como grupos, estamentos, classes sociais e frações de classes.

Durand afirma que, na sociologia de Marx, há uma análise que associa macrossociologia (divisão social do trabalho) e microssociologia (divisão em detalhes do trabalho e cooperação entre operários, modificações do trabalho e mudanças técnicas), assim como uma síntese diacrônica da evolução das sociedades que salienta o papel da divisão do trabalho e das formas de propriedade nas transições de modos de produção. Da manufatura à grande indústria e da cooperação simples à cooperação complexa, ocorreram as principais transformações que deram origem ao modo de produção capitalista e efetivaram a subsunção do trabalho ao capital. O capitalismo como relação social promove um processo constante de expropriação dos trabalhadores que, além de livres - no sentido de terem perdido os meios de produção -, têm também subtraídas suas habilidades e conhecimentos laborais, tornando-se meros apêndices das máquinas. A cooperação cria uma força comum (o trabalhador coletivo) que expande a eficácia do trabalho individual, porém beneficia exclusivamente o capitalista, já que este paga apenas o trabalho realizado de forma individual, a despeito de mobilizar e usar uma força de trabalho coletiva.

A cooperação se torna complexa na grande indústria, e a organização dos processos de trabalho uma necessidade imperiosa de reduzir os custos das mercadorias e proporcionar o aumento da extração de mais-valia e o incremento da taxa de lucro. A simplificação cada vez maior das tarefas do trabalhador coletivo na manufatura, e depois na grande indústria, são modos mais eficazes de usar a força de trabalho e, por conseguinte, retirar uma quantidade de mais-valia suplementar. Com a grande indústria, a ciência se torna uma força produtiva a favor do capital, oferecendo métodos para organizar o trabalho dos operários e expropriar as habilidades profissionais do trabalhador, as quais formam a base da manufatura. A grande indústria, pautada na mecanização, torna o trabalhador mero cuidador de um mecanismo que executa as ferramentas e as habilidades, antes em poder de suas mãos, tornando-o um apêndice da máquina-ferramenta.

Para a sociologia de Marx, conforme Durand, a mecanização é um meio de baratear a produção de mercadorias e, por conseguinte, de produzir mais-valia relativa, isto é, reduzir o custo da força de trabalho com o barateamento do custo das mercadorias necessárias à sua reprodução. Tanto a mecanização quanto a automação são formas de subordinação técnicas do trabalho ao capital. O desenvolvimento tecnológico é responsável pelo aumento da produtividade do trabalho, e ambos são acompanhados pelo aumento da jornada de trabalho dos assalariados, ou seja, o aumento da taxa de exploração ou de mais-valia.

No terceiro capítulo - “Classes, Estado e luta de classes” -, o autor apresenta algumas das contribuições de Marx para a sociologia política. Em resumo, o capítulo desenvolve algumas ideias básicas. O conflito entre capital e trabalho é o fundamento da sociedade burguesa na teoria de Marx não sistematizada sobre as classes sociais. Essa sociedade, a despeito da centralidade deste conflito, é compreendida para além da polarização entre burguesia e proletariado. Durand identifica sete classes e frações de classe que se opõem e se aliam, conforme cada conjuntura ou situação histórica concreta nos textos de análise histórica deste clássico. O conflito entre capital e trabalho também é central para a explicação dialética do Estado, mecanismo por excelência da dominação da burguesia, na medida em que garante a propriedade privada dos meios de produção e a reprodução da ordem do capital, devendo se converter em seu contrário na luta de classes protagonizada pelos trabalhadores. O Estado se transformará em arma de opressão contra a burguesia sob a ditadura democrática do proletariado, dominação da maioria sobre a minoria, até que ele próprio, com a mudança nas condições objetivas da sociedade, perca suas razões de existir e desapareça.

O quarto capítulo - “Ideologia e produção social dos conhecimentos” - versa sobre a contribuição de Marx para a teoria do conhecimento e para a sociologia do conhecimento. A discussão tem como referência a oposição entre conhecimento científico versus ideologia e alienação, ambas vistas como empecilho para o conhecimento da verdade.

O conhecimento científico proposto por Marx está centrado na categoria práxis - atividade humana concreta, meio de conhecimento e prova da veracidade da teoria -, teoria que tem como objetivo último a transformação radical. Durand recorre a Lefebvre para elucidar a categoria práxis na obra de Marx. Tanto o conhecimento científico quanto o indivíduo não podem ser explicados sem as relações sociais que os constituem. O materialismo dialético propõe um modo de conhecer atento ao movimento, à contradição, à mudança, à apropriação do real que o reproduz como concreto pensado.

O conceito de ideologia é usado em registro negativo - na chave de Althusser - associado à dominação pela exploração do trabalho e ao desconhecimento do mundo social e histórico. A ideologia é como uma nuvem mística que oferece uma imagem errônea do movimento do real, criando representações distorcidas das condições concretas de existência dos trabalhadores.

A alienação também é uma categoria inerente à exploração do trabalho na medida em que o trabalhador não dispõe do resultado de seu trabalho, o qual lhe é estranho. Porém, o autor recusa a ideia de “ruptura epistemológica” na obra de Marx, defendida por Althusser, ao versar sobre a categoria alienação. Segundo ele, a alienação também ocorre no plano da subjetividade, pelo consumo e pela criação de novas necessidades que amolecem as relações de classe e de exploração do trabalho.

Durand argumenta que temas desenvolvidos na década de 1960, como sociedade de consumo e aburguesamento da classe operária, estão anunciados nos manuscritos de Marx de 1844, assim como a sociologia do trabalho que surge no pós-guerra e tem como referência fundamental as categorias de Marx.

No quinto capítulo - “Marx hoje” -, Durand procura evidenciar a atualidade das ideias de Marx, retomando a questão das classes sociais e do Estado. Da perspectiva da experiência histórica francesa, elucida a questão da dificuldade da polarização social entre as classes (burguesia e proletariado) e a “medianização” ou aumento da classe média, das necessidades, do consumo e de novas mercadorias que amortecem a relação de classe e o conflito entre capital e trabalho. Em seguida, Durand aborda os marxistas franceses e a questão do Estado, destacando a crítica da concepção instrumentalista que o vê apenas como instrumento de uma classe social, com base em Althusser e Poulantzas. Autores como Boudon e Aron, que não pertencem ao campo marxista, são trazidos à análise crítica de Marx.

O livro de Durand sobre a sociologia de Marx, ao se apoiar em outros autores marxistas e em críticos de Marx, evidencia a força constitutiva dessa obra, um clássico que se prolonga tanto em termos de seus continuadores quanto de seus críticos. Porém, o critério de seleção destes autores não considera as distinções e os conflitos de interpretação da obra de Marx no próprio campo marxista, que não é homogêneo. Althusser e Lefebvre são citados por Durand sem que as polêmicas e as diferentes interpretações de Marx, feitas por esses autores, sejam ponderadas. A forma de exposição, assentada em categorias presentes na sociologia de Marx, leva o autor a um ecletismo mal temperado que, ao falar da ideologia, se pauta no estruturalismo de Althusser e, ao discorrer sobre a práxis, recorre ao historicismo de Lefebvre. A seleção dos autores marxianos operada por Durand é mais problemática pela falta de mediação do que propriamente pelos autores selecionados, já que Lenin, Althusser, Balibar, Lefebvre, Lukács, Gramsci, entre outros, continuam sendo lidos nos círculos marxistas brasileiros2.

Além disso, o livro de Durand perde força argumentativa por se persuadir com críticas externas que não fazem jus às nuanças, à envergadura e à complexidade da obra de Marx. Algumas críticas, que são motivos de inúmeras polêmicas, são mencionadas de forma superficial, tais como a imputação da ideia de progresso e de evolucionismo; e de uma suposta abordagem teleológica da história. Por exemplo, a sua obra teria esposado a ideia conforme a qual “cada organismo, fosse ele biológico ou social, encaminhava-se para um nível de organização superior” (DURAND, 2016, p. 12). Nada mais distante da visão dialética do sociólogo: aquilo que é contingente nega a si mesmo, transformando-se em algo diverso. Há uma diferença profunda entre as maneiras positivista e dialética de conceber o mundo, pois para a última o movimento se dá pela negação do existente, não havendo nada que conserve as coisas idênticas a si mesmas ou que garanta um determinado sentido para a história. Não há evolução sucessiva nem cumulativa para Marx, pois a própria objetivação que exprime as formas sociais se dá de modo contraditório, e essas são também contraditórias e históricas, portanto à mercê das contingências.

Durand também faz uma assepsia da obra de Marx ao buscar nela uma sociologia, dissocia o científico do político e contraria o próprio princípio epistemológico que orienta a obra desse clássico. Tal como ocorre com os intérpretes brasileiros, essa leitura enfatiza aspectos parciais em função de diferentes motivações; mudam-se as formas de apropriação, os problemas de fundo, as filiações e as interpretações teóricas. De forma diferente, nas interpretações mais tradicionais do Brasil que se apropriam de Marx, verifica-se:

[...] a valorização do tema da vontade política como recurso da superação da disjuntiva atraso/moderno, tendo motivado - principalmente nos círculos extrauniversitários - uma leitura que privilegia os seus textos políticos que, por sua vez, contemplam a possibilidade de saltos revolucionários, dá curso a um marxismo cujo paradigma é a Rússia, enquanto a preferência pela análise do processo de imposição do capitalismo no Brasil, como na grande reflexão social paulista, conduz a uma maior aproximação com o modelo de O capital com base no paradigma inglês. (VIANNA, 1999, p.174).

O fato é que desde o ensaio Agrarismo e industrialismo de Octávio Brandão (1926), passando por Evolução política no Brasil de Caio Prado Júnior (1933) e pelo famoso “Seminário Marx” na Universidade de São Paulo no final dos anos 1950, a obra deste clássico tem sido objeto de interpretações, com intenções diversas por militantes, cientistas sociais, historiadores, economistas, no campo do Direito, do Serviço Social, entre outros. As inúmeras apropriações permitem falar de uma tradição marxista brasileira com suas diferentes escolas, a qual tem produzido obras mais rigorosas e didáticas que a de Durand3, embora muitas delas não tenham esse propósito. Para que o leitor tenha ideia da recepção diferente das teses de Marx no Brasil, em descompasso com a leitura de Durand, a discussão sobre mais-valia relativa e mais-valia absoluta serviu menos para entender os mecanismos de exploração do trabalho pela economia capitalista do que para entender o surgimento do capitalismo na sociedade brasileira por meio dos debates sobre modos de produção4. Assim, temos também Marx, que tem servido para dizer algo sobre nós como formação social.

A SOCIOLOGIA DE DURKHEIM

O livro A sociologia de Durkheim é de autoria de Philippe Steiner, que leciona sociologia econômica e história das ciências sociais na Universidade de Paris-IV Sorbonne e no Institut Universitaire de France. Ele possui diversas publicações sobre autores e temas ligados à escola durkheimiana.

A obra tem sete capítulos, introdução e conclusão. Há também um prefácio à edição brasileira redigido por José Benevides Queiroz, que destaca o valor do livro para reposicionar Durkheim na tradição da sociologia brasileira e, até mesmo, para abrir novas perspectivas e abordagens dessa obra, um referencial para o estudo da sociedade contemporânea.

Com efeito, na Introdução se lê que um dos pontos fortes do livro é apresentar um “novo” Durkheim, contrariando as alcunhas e os lugares comuns, coloca-nos diante de uma reflexão de envergadura e complexa que serviu de inspiração para diversos intelectuais, tais como Mauss, Siminad, Bouglé, Marc Bloch, Lucian Febvre, Levi’Strauss, Parsons, Bourdieu, Habermas, entre outros, ao mesmo tempo também foi objeto de crítica de especialistas: sociólogos, antropólogos, geógrafos, psicólogos, historiadores, economistas, juristas, pedagogos, disciplinas cujas fronteiras foram delimitadas ou até subsumidas nas tentativas de aproximação com a sociologia. Durkheim criou uma concepção particular da disciplina na França do final do século XIX por meio de uma abordagem inovadora, que foi sendo lapidada ao longo da trajetória no esforço de explicar os fatos sociais, os fatos morais e os fatos religiosos.

O primeiro capítulo - “Émile Durkheim: 1858-1917” - contém informações biográficas deste clássico, a respeito do itinerário intelectual e profissional, da atividade social e política, com destaque para a formação do L’Année Sociologique, e para o perfil da revista e de seus membros. A classificação das matérias sociológicas publicadas no periódico, em uma tabela à parte, oferece uma ideia geral ao leitor do temário que unia Durkheim e seu grupo. Steiner contraria determinadas interpretações que o taxam de positivista, de liberal ou conservador, por exemplo, de modo sútil afirma que o apelido de Durkheim era “o metafísico” no período de formação na École Normale Supérieure. Ele também destaca a presença de um horizonte socialista em Durkheim, apesar da discordância e das reservas deste com o materialismo histórico e a defesa da união entre trabalhadores e burgueses nos agrupamentos profissionais. Ao longo do livro, esses argumentos são reiterados em algumas passagens para persuadir os leitores quanto a essas facetas de Durkheim: socialista e nem todo positivista.

No segundo capítulo - “Formação e evolução de uma problemática” -, são apresentados os questionamentos de Durkheim e a evolução ocorrida ao longo de sua trajetória intelectual. O autor do livro apresenta a situação da sociologia na França no momento em que é publicada a obra Da divisão social do trabalho, de 1893. Destaca a presença das ideias de Frederic Le Play, René Worms e Gabriel Tarde. A referência ao contexto intelectual permite tornar mais clara a originalidade da démarche de Durkheim na explicação de como a autonomia dos indivíduos na modernidade implica uma dependência maior da sociedade. Vista do prisma das regras morais, a divisão do trabalho sujeita os indivíduos a certas normas e produz formas distintas de solidariedade, conforme a morfologia social e o tipo de direito prevalecente.

Entre 1895-1897, Durkheim cria uma nova problemática na sua obra, que se volta aos fatos religiosos, surgindo novos pontos de vista sobre o social. Embora coloque o fato religioso no centro da explicação do social pelo social, a relação indivíduo e sociedade, ligada à teoria da socialização, permanece como problemática. Não há ruptura definitiva com os temas anteriores, mas continuidade da obra, defende Steiner, que pondera mudanças e permanências no pensamento de Durkheim no desenvolvimento do livro.

No terceiro capítulo - “O método sociológico” -, é apresentada a demarché de Durkheim para estudar os fatos sociais. Novamente, Steiner se vale do contexto intelectual relativo às tentativas de definir o objeto e o método da sociologia de Spencer, de Le Play, de Auguste Comte e John Stuart Mill para singularizar a contribuição de Durkheim, apontando os desafios vigentes de superar a filosofia da história e a psicologia introspectiva. Em seguida, ele faz uma análise sucinta das Regras do Método Sociológico e sustenta que essa formulação não é central no conjunto dos trabalhos de Durkheim e seus discípulos. Ao investigar o modo pelo qual esse método é aplicado, ele demonstra que Mauss difere bastante de seu mestre e que, no uso do próprio Durkheim, sofre uma evolução já presente no livro O Suicídio. Nele, esse clássico parte do estudo dos suicídios individuais e não de uma abordagem holística, mediante hipóteses abstratas e não do método indutivo. Por conseguinte, ao longo de sua obra, “Durkheim opera com um conjunto de métodos variados que, na prática da pesquisa afastam-se da rigidez que ele mostrou em 1895” (STEINER, 2016, p.74), ao publicar As Regras do Método Sociológico.

O quarto capítulo - “O processo de socialização” - se ocupa em reconstruir a teoria da socialização de Durkheim que, além da integração, abrange também a regulação social. Esses processos sociais distintos são complementares, pois o grupo social, além de atrair os indivíduos para si, também regula as interações deles. Após elucidar esses conceitos no interior do sistema de Durkheim, Steiner analisa como essa teoria da investigação foi mobilizada no livro O Suicídio com vistas a elucidar a contribuição que oferece para a sociologia contemporânea, considerando outros estudiosos que aprofundaram o assunto. Por fim, Steiner aponta o enriquecimento da teoria da socialização com a virada de Durkheim em direção aos fatos religiosos, ponderando as mudanças e as continuidades da teoria da socialização.

No quinto capítulo - “Da ciência à ação” -, o autor discute o tema da relação entre teoria e prática social em Durkheim e o uso político dos conhecimentos sociológicos como meio de “regulação positiva da conduta”. Esses problemas são tratados à luz da teoria da socialização com base na distinção dos conceitos normal e patológico, fundada na generalidade que deve ser identificada de modo quantitativo e explicada teoricamente. A normalidade do crime é utilizada para exemplificar o uso desses conceitos. Em seguida, Steiner sustenta que a problemática da mudança social está presente na obra de Durkheim em duas dimensões temporais: mudanças de longa duração, que dizem respeito às transformações dos fatos morfológicos, como a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica; e mudanças de curta duração, como o aumento das taxas de suicídio na França do século XIX. O tema da relação entre ciência e ação também é desenvolvido mediante a discussão do sistema escolar e dos agrupamentos profissionais. Ao dimensionar o fato religioso estudando as práticas religiosas das tribos australianas, Durkheim pensa a mudança social pelo prisma de como são produzidos os ideais na sociedade, mantendo-se no registro da teoria da socialização.

No sexto capítulo - “O fazer-se de uma moral” -, Steiner precisa o significado, a distinção e o lugar dos fatos morais e dos fatos religiosos no sistema de Durkheim, pondera como a noção de sagrado modifica a compreensão do fato moral, ao trazer para a análise a dimensão desejada do ato moral, ao lado da sua obrigatoriedade ou dever para os agentes. A compreensão da vida moral é aproximada da vida religiosa, pois esta pressupõe crenças e práticas relativas ao sagrado e à adesão a uma Igreja. Temas atinentes ao pensamento religioso, sagrado e profano, são elucidados para mostrar a função criadora e recriadora de crenças nos meios sociais efervescentes, a importância do social para a religião e dos símbolos religiosos para as consciências individuais se comunicarem e expressarem estados interiores.

A reflexão do fato religioso na obra de Durkheim é apresentada do ponto de vista de sua contribuição para a sociologia do conhecimento, pois reconhece a autonomia relativa das representações coletivas de segunda ordem diante da morfologia ou do substrato social. O escritor precisa a distinção entre fato social, fato moral e fato religioso, reiterando os processos sociais de aprendizagem e ideais que eles implicam. Em vez de ruptura, a abordagem de Durkheim da questão religiosa promove mudanças e continuidades profundas no seu sistema. A teoria da socialização é central para a compreensão da evolução da obra desse autor, segundo Steiner.

No sétimo capítulo - “O impacto da obra” -, o autor narra a recepção de Durkheim na França. Primeiro, retoma os debates acirrados estabelecidos por Durkheim com outras disciplinas e, depois, as tentativas de aproximação, como é o caso da reavaliação da história e da psicologia no texto Representações coletivas e representações individuais, de 1898, e no livro As formas elementares da vida religiosa, de 1912. Steiner também narra a trajetória da obra e dos membros do grupo em torno da revista L’Anné Sociologique para defender a produtividade da obra de Durkheim na história da sociologia francesa. Apesar das inúmeras críticas e da recusa da obra desse clássico por uma geração de sociólogos que começa no entreguerras e se estende até a década de 1970, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron contribuíram para reabilitá-lo na França. E, desde então, um interesse crescente pela obra tem indicado a atualidade de Durkheim para determinadas questões da sociologia contemporânea.

Como salienta o prefácio de José Benevides Queiroz, o livro de Steiner apresenta um Dukheim distinto em relação ao modo pelo qual foi recebido no Brasil. O livro contribui para deslocar “as recorrentes explicações, definições e estereótipos que foram sedimentados no interior dessa [tradição] sobre o fundador da sociologia francesa” (QUEIROZ, 2016, p.8). No entanto, o livro não invalida os usos das ideias de Durkheim pela sociologia nacional, porque, da mesma forma, os estudos desse sociólogo têm como motivação responder aos problemas ligados à moderna sociedade europeia (STEINER, 2016), como também Marx e Weber. O mesmo é feito na recepção destes clássicos, em boa medida, voltada para a compreensão dos problemas brasileiros.

Márcio de Oliveira (2009) argumenta que a obra de Durkheim continua pouco estudada pela sociologia brasileira. Após investigar a recepção desse clássico no Brasil atentando-se para a trajetória da obra na França e para a recepção dela nos campos e espaços institucionais locais, avalia que, além de fragmentada e descontinua, estaria longe de ser completa. Primeiro, ela foi recebida no campo do Direito por Paulo Egídio de Oliveira no final do século XIX e início do século XX. Em seguida, nas décadas de 1920 e 1930, serviu de referência para os educadores do Movimento da Escola Nova e para Mesquita Filho e Fernando de Azevedo no contexto da criação da Universidade de São Paulo. Apenas alguns livros atinentes a essas disciplinas, Direito e Pedagogia, foram usados de modo instrumental, traço este presente inclusive nos manuais da disciplina nas décadas de 1930 e 1940. Neles, a sociologia de Durkheim “serviu sempre aos mesmos propósitos: apresentar a disciplina da sociologia e debater o tema do crime e/ou da moral, da norma, do controle social e a questão da educação” (OLIVEIRA, 2009, p. 236).

O terceiro momento ocorre na década de 1950 com a institucionalização da sociologia. Na universidade, Florestan Fernandes teria contribuído para reduzir o interesse por Durkheim ao se aproximar do marxismo nos anos 1960. “O desenvolvimento das ciências sociais durante as décadas de 1950 e 1960 consolidaria a visão de que as obras de Durkheim seriam pouco afeitas à modernidade e à mudança social” (OLIVEIRA, 2009, p. 242). A obra também não teve repercussão favorável no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, no Recife, em Porto Alegre e no Paraná. Além disso, “a ditadura que se instala no Brasil em 1964-68, ao lado do fortalecimento da equação ‘educação-desenvolvimento’, estaria na origem da imagem ‘tradicionalista’ que alguns estudiosos associaram a sociologia educacional de Durkheim durante os anos 1970 e 1980” (OLIVEIRA, 2009, p. 245). De meados da década de 1980 até o tempo presente surgiram novos ensaios sobre o autor, mas de modo descontínuo. Todavia, tem havido um interesse crescente pela obra por parte dos sociólogos brasileiros, em sintonia com a revalorização de Durkheim na França e nos Estados Unidos.

Com efeito, em vez de uma má compreensão da obra de Durkheim, essa recepção descontínua e fragmentada diz muito sobre a tradição da sociologia brasileira e de suas diferentes escolas até meados da década de 1970, quando o interesse pelos clássicos estava nitidamente mais voltado para pensar os problemas da sociedade brasileira, do que ao exercício da exegese desinteressada. Nesse sentido, esta tradição é fiel ao preceito de Durkheim, conforme o qual as “pesquisas não valeriam a pena nem uma hora se elas tivessem somente um interesse especulativo” (DURKHEIM, 1983, p. XXXIX apud STEINER, 2016, p. 107), e dos demais clássicos, salvaguardas as diferenças, recusam-se a fazer a teoria pela teoria. No dizer de Florestan Fernandes, traduzindo o preceito durkheimiano para nossa realidade, “a sociologia não valeria uma missa se não fosse possível associar a pesquisa sociológica à revolução democrática na sociedade brasileira” (FERNANDES, 1976, p. 9). Steiner (2016) reitera que estamos diante de uma obra aberta, a de Durkheim e, portanto, passível de novas apropriações.

A SOCIOLOGIA DE WEBER

A sociologia de Weber, da autora Catherine Colliot-Thélène, professora na Universidade Rennes-I, escritora e tradutora de livros de Weber para o francês, é composto por cinco capítulos, introdução e conclusão.

Na introdução, a autora narra a história da recepção da obra de Weber na França, destacando três momentos. O primeiro ocorre com o apadrinhamento da obra por Raymond Aron e Julien Freund entre as décadas de 1930 e 1960, em contraponto ao marxismo e ao estruturalismo. Weber foi apresentado ao público francês como adversário de Marx ao propor uma sociologia da ação (contrária à sociologia das estruturas), ao defender o “individualismo metodológico” (oposto ao holismo) e ao manter relações como liberalismo político.

O segundo momento data das décadas de 1970 e 1980 e foi influenciado pela leitura de Habermas em sua Teoria do agir comunicacional, que enfatiza temas como “racionalização ocidental”, “desencantamento do mundo”, legitimidade, valores e neutralidade axiológica nas ciências sociais.

O terceiro momento ocorre na década de 1990, quando novos textos de e sobre Weber foram traduzidos para o francês, com destaque às interpretações distintas das anteriores, como as de Wilhelm Hennis e Stephan Kalberg. Desde então, os especialistas têm se beneficiado da edição completa da obra de Weber pela Academia Bávara de Ciências e este autor tem adquirido cada vez mais prestígio. Neste último momento, insere-se o livro da autora, que pretende ser uma leitura possível, entre outras, todavia pautada nos problemas das ciências sociais contemporâneas e de nosso tempo presente. A despeito das diversas áreas de pesquisas nas quais o pensamento de Weber se move, a autora sugere a existência de questionamentos-chave que conferem unidade à obra, sendo esta portadora de um “programa de conhecimento” passível de ser interpretado tanto em termos “macro” quanto “micro”.

No primeiro capítulo - “A formação, a carreira científica, a obra” -, a autora traz informações sobre a trajetória de Weber e sobre diferentes facetas de sua obra, cuja particularidade é ser composta, majoritariamente, de artigos publicados em diversas revistas e reunidos, sobretudo, após sua morte. Ela divide a obra em cinco temas centrais: textos metodológicos (as questões da objetividade, da imputação de causalidade, do perspectivismo, do método comparativo, dos valores e da neutralidade axiológica, das condições do exercício da ciência na sociedade moderna); sociologia das religiões (vista do prisma da eficácia das ideias e do papel socializador das religiões); economia e sociedade (comenta a obra-prima do autor); e textos políticos (é patente nestes que a “neutralidade axiológica” se restringe ao docente no exercício de sua profissão, não implicando o resguardo como cidadão). A divisão com base no critério temático permite à autora transitar entre diferentes textos de Weber para reconstruí-los com base nos posicionamentos assumidos pelo autor em seu contexto intelectual.

Ademais, ela apresenta um Weber pouco conhecido na França e também no Brasil: o sociólogo empírico (artigos sobre os operários na Alemanha) e o historiador da antiguidade (textos sobre a antiguidade). Em relação às pesquisas empíricas sobre os operários, ela demonstra que o autor não ignorava essa dimensão do trabalho sociológico. Nelas está presente a temática da “conduta de vida”, das causas que lhe dão forma e de seus efeitos sobre as evoluções econômicas e culturais, temas presentes em livros como: A ética protestante e o espírito do capitalismo, A ética econômica das religiões mundiais e Economia e sociedade. Quanto aos textos da antiguidade, eles revelam a falsidade da ideia imputada a Weber de que a modernidade decorre de causas puramente culturais ou religiosas, pois a cidade medieval criou as condições institucionais (técnicas, jurídicas e políticas) que serviram de base para o capitalismo moderno e ocidental.

No segundo capítulo - “Teoria e história” -, Colliot-Thélène trata a metodologia e sistematiza os procedimentos argumentativos do autor. Ela argumenta que há uma forma autêntica pela qual Weber une a pesquisa histórica às exigências da teoria, expressa na preocupação metodológica com “as condições de imputação causal para o caso de sequência de acontecimentos singulares” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 50). Embora tenham particularidades em relação às ciências naturais, a história e a sociologia não são refratárias à análise racional. A sociologia compreensiva é a ciência do particular, ocupada com a elaboração de conceitos de tipos e conhecer padrões, ao passo que a história se volta para estabelecer conexões causais entre acontecimentos singulares, e não narrar os fatos.

Após apresentar as relações entre sociologia e história, a autora elucida o tipo ideal, isto é, a ferramenta por meio da qual Weber articula teoria e história, teoria e empiria. Este sociólogo reconhece a existência de limites para a teoria pura e para o dedutivismo, pois a complexidade do real, a impossibilidade de o conceito exprimir a realidade e a existência de uma multiplicidade de causas desautorizam a explicação monista, realista ou substancialista. O tipo ideal é uma interpretação construtivista do sentido do uso dos conceitos e da teorização nas ciências históricas e sociais contra aquelas modalidades de explicação.

Colliot-Thélène salienta que os tipos ideais são conceitos criados pelo investigador para compreender o mundo empírico, a partir de questões teóricas que recortam o objeto de estudo; são construções do pesquisador para dar inteligibilidade ao real, conforme as questões que formula a propósito de seu interesse de conhecimento. Partindo destas definições unívocas previamente formuladas, o material empírico a ser estudado pode ser compreendido pela aproximação ou pelo distanciamento em relação à definição prévia. Neste último caso, um novo tipo ideal deve ser usado para interpretar o fenômeno. Esse “quadro de pensamento” faz com que a teoria se articule com a empiria, serve para a imputação das conexões causais. Na obra de Weber, a teoria se revela como soma de tipos ideais, isto é, uma construção do investigador, sempre condicionada por um ponto de vista particular e não o reflexo de uma realidade que existe em si mesma.

No terceiro capítulo - “Entre a psicologia e a teoria do direito: a sociologia compreensiva” -, é discutida a epistemologia weberiana, a concepção da natureza do conhecimento sociológico e histórico. A sociologia compreensiva de Weber parte da interpretação da ação social para estabelecer a imputação causal e probabilística das motivações, dos desenvolvimentos e dos efeitos das ações sociais, pensados ou não pelos indivíduos, pois as ações sociais produzem consequências não pensadas pelos indivíduos.

Colliot-Thélène apresenta o confronto da sociologia compreensiva com a psicologia e com a teoria jurídica para destacar as especificidades do empreendimento teórico de Weber. Este clássico busca o sentido das ações, uma inteligibilidade distinta das regularidades comportamentais que a psicologia estuda. O “sentido que o agente atribuiu para sua ação contribuiu de forma decisiva em determinar as formas desta” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p.74). As motivações são decisivas, são as causas das ações que Weber propõe interpretar e compreender; ao contrário, as regras jurídicas orientam, mas não determinam as ações dos indivíduos, que sempre consideram as expectativas concernentes à ação dos outros.

No quarto capítulo - “Racionalidades” -, a autora sustenta a diversidade de usos do conceito de racionalização e defende a ambiguidade de conceitos como “racional, racionalidade e racionalização” e questiona as interpretações do conjunto da obra de Weber que se apoiam no tema da “racionalização”, expediente que seria menos uma solução do que um problema. Colliot-Thélène elucida a tipologia da ação social: ação teleologicamente racional (não questiona os fins), ação axiologicamente racional (pauta-se nos valores), ação afetiva (motivada pelas emoções, ausência de reflexão sobre os fins e de elaboração sistemática da conduta, característica da ação racional) e ação tradicional (ação cotidiana).

A autora, em seguida, pondera cada um dos múltiplos usos do termo racional na obra do sociólogo, seguindo as esferas de ação propostas por Weber, as quais instituem a previsibilidade na esfera econômica: racionalidade política (burocracia como forma de dever-função e dominação legal; razões de Estado, impessoais); e formalismo jurídico (moldura jurídica mais apropriada para o capitalismo moderno, de empreendimento privado).

No quinto capítulo - “As ‘condutas de vida’ e as ‘potências sociais’” -, a autora afirma a coerência das posições epistemológicas de Weber com suas análises empíricas, pois “condutas de vida” e “tipos sociais” para além de tipos ideais são os termos-chave do programa de conhecimento do autor. Programa este que remete a outras noções como habitus, “disposição”, “estilo de vida”, “espírito”, “tipo humano”, entre outros, sendo capaz de resolver, antes mesmo de terem sido levantados pela moderna teoria social, os problemas das dicotomias entre: ação e estrutura, microssociologia e macrossociologia.

Colliot-Thélène diz que a noção “conduta de vida” permite Weber transitar entre os níveis micro e macrossociológicos de análise, oferece a imagem de toda a obra que busca compreender para explicar a ação social, ou seja, compreender as lógicas das condutas de vida. As condutas de vida manifestam os habitus e as disposições dos indivíduos, “é porque as condutas de vida se prestam a uma interpretação a partir da lógica inteligível das disposições que elas exteriorizam, que elas constituem o objeto central da sociologia compreensiva” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 121). As condutas de vida criam determinados tipos humanos pelos quais Weber se interessou, porque na sua obra “as diferenças dos tipos humanos são mais importantes do que o universal do qual eles são atualizações” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 124). As culturas sempre fomentam o surgimento de tipos humanos favorecidos em detrimento de tipos humanos dominados.

As novas condutas (motivadas pelas religiões, como ascese protestante, por exemplo) produzem os habitus que possibilitam sua reprodução, e estes habitus constituem as particularidades de cada tipo, seus modos de viver e agir, o caráter de cada tipo humano dominante ou dominado. Habitus, disposição e condutas de vida resolvem o problema da ação e da estrutura, conforme a autora, e em lugar de conceitos coletivos, há na obra de Weber conceitos que designam ações individuais, que adquirem lógicas de conduta da vida, explicando as estruturas sociais pelas práticas coletivas que lhe dão existência e possuem um sentido para os agentes, uma motivação, um por que e para quê? A formação das condutas requer processos de interiorização (primeira infância, escola) e luta entre tipos humanos (modificação deliberada da conduta sob efeito de valores, crenças e convicções). Disposição e conduta significam que o indivíduo é capaz de agir e se determinar pelas próprias representações conscientes.

As potências sociais são “os diferentes fatores que contribuem para socializar os indivíduos e para dar a essa socialização as características particulares que tornam singulares as sociedades e a cultura” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 137). Por exemplo, a burocratização da administração pública e a extensão do mercado são potências racionalizadoras do Direito, de suas qualidades formais. Novas obrigações mais racionais induzem a mudanças nas condutas de vida de certos grupos sociais “interessados no direito” como juristas e dirigentes políticos.

O conteúdo das crenças pode reorientar e mudar a forma das condutas de vida, pois as concepções de mundo exigem o dever da coerência e moldam as práticas sociais, e “até mesmo estruturas mais fundamentais dos agenciamentos institucionais” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 138). As representações racionais tornaram-se potência social na modernidade, nas diversas esferas de ação que atuam os indivíduos (religião, economia, direito, política, cultura, música). As ideias e as concepções de mundo dão forma para a expressão de interesses, não determinam a ação, mas reforçam determinadas linhas de conduta e tipos humanos dominantes ou dominados. A modelagem das condutas depende de diversos fatores, uma pluralidade de potenciais sociais.

Um dos pontos interessantes do livro é a aproximação feita entre Weber e Marx ao longo do texto. Ao contrário de uma visão que estabelece o conflito entre esses autores, Colliot-Thélène defende que as proximidades são maiores, pois Weber “via na interpretação dos fenômenos históricos sob o ângulo de sua condicionalidade econômica uma perspectiva particularmente fecunda, ao fim das contas, muito próxima de suas próprias preocupações” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 68). No Brasil, Gabriel Cohn (1979) já havia chamado atenção para este ponto, salientando que a oposição maior do pensamento weberiano seria Durkheim e não Marx. Além disso, ao analisar as diferenças entre esses clássicos, Cohn argumenta que o pensamento de Weber se move no terreno da distribuição e da apropriação dos recursos escassos, ao passo que o pensamento de Marx se move no âmbito do trabalho e da produção. Essa interpretação e o apontamento do ethos senhorial de Max Weber por Cohn (1979) revelam a identidade cognitiva da sociologia brasileira, a saber, a apropriação dos clássicos da sociologia pela mediação das nossas condições sociais e de uma problemática ligada ao que somos como sociedade.

Como notou Dias (1974), a obra de Weber passou a ser lida pelos sociólogos nativos na década de 1940 adiante quando houve o pioneirismo da tradução mexicana e a edição de 1944 de Economia e sociedade, livro que teve grande repercussão e que mudou o rumo do pensamento sociológico no país. Weber, Durkheim e Marx tiveram uma recepção interessada, com vistas à “construção teórica dos esquemas de análise dos fenômenos de mudança social no Brasil” (DIAS, 1974, p. 49). Essa ideia é justificada também por Vianna (1999), ao afirmar que “nosso Weber” tem sido usado para explicar o atraso da sociedade brasileira, “incidido bem menos na inquirição das patologias da modernidade do que nas formas patológicas de acesso ao moderno” (VIANNA, 1999, p. 174). Não obstante o interesse diverso na apropriação desses clássicos nas décadas de 1950 e 1970, os sociólogos brasileiros “demonstraram notável autonomia de pensamento, quer no sentido de prescindir dos comentadores mais conhecidos, quer no espírito crítico, de modo a rejeitar como errôneas certas interpretações” (DIAS, 1974, p. 56).

Outro ponto importante do livro é a crítica à centralidade do tema da racionalização na obra de Weber. Segundo essa leitura, “apesar de toda multiplicidade de interesses que caracteriza a obra weberiana, esta foi marcada por uma questão fundamental: a tentativa de estabelecer a especificidade do racionalismo ocidental” (SOUZA, 1999, p. 10). Conforme a autora, “o status privilegiado concedido a esse esquema permanece uma fonte de dificuldades, na medida em que Weber não se atém a uma interpretação construtivista deste tipo ideal, mas, às vezes, o apresenta como expressão das possibilidades imanentes relativas à realidade fenomenal” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 91). A ambiguidade presente nos tipos ideais racional, racionalidade e racionalização - constructos heurísticos ou processos reais? - manifestar-se-ia na interpretação de Weber da história. Assim, “no coração daquilo que só pretende ser um artefato metodológico (a tipologia dos determinantes da ação) se encontram embutidas as premissas de uma teleologia histórica comparável àquelas filosofias da história recente” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 95). Essa leitura, dos anos 1950 ao final dos anos 1970, destaca o tema da racionalização e teve vigência na Europa Ocidental graças à interpretação de Habermas, quando o crescimento econômico e a estabilidade política do Welfare State alimentaram uma fé no progresso. Contrária a ela, Colliot-Thélène defende que a metodologia comparatista de Weber, em vez das histórias universais, permite pensar as “múltiplas modernidades” - conceito de Eisenstadt (2001), para o qual há uma multiplicidade de padrões culturais modernos - e os diversos modos pelos quais o desenvolvimento técnico e econômico se efetua nos diversos casos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aquilo que se escreve sobre os clássicos da sociologia diz mais sobre as “configurações dos problemas próprios aos diferentes momentos da história intelectual […] do que sobre o sentido de sua própria obra. E o projeto de conhecimento destas ciências é sempre tributário de uma pré-compreensão determinada da historicidade [...]” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 151). As leituras e as interpretações estão sempre condicionadas por tradições, escolas, interesses, recortes temáticos, contextos nacionais e identidades cognitivas.

Desse ângulo de análise é possível avaliar esses livros paradidáticos que se propõem a ser “pontos de referência” no assunto. Todos eles operam seleções nas obras dos clássicos para delimitar a contribuição sociológica, conforme critérios particulares, mas condicionados pelo contexto nacional e pelas tradições sociológicas as quais se filiam.

O livro de Jean-Pierre Durand tem valor didático e são muito interessantes os dois primeiros capítulos, ligados à sociologia do trabalho, especialidade do autor, podendo ser recomendados aos professores de sociologia de Ensino Médio. No terceiro e quarto capítulos as categorias escolhidas são discutidas de forma problemática. Neles, o autor recorre a Lenin, Althusser, Poulantzas, Balibar e Lefebvre sem ponderar as distinções marcantes entre esses pensadores. Mais grave ainda é o uso de Raimond Aron, consagrado sociólogo francês que não partilha dos pressupostos marxianos, para endossar uma crítica externa a Marx. A presença do contexto nacional e da tradição francesa aparecem no quarto capítulo manifestas na oposição entre ideologia e ciência, conforme a interpretação de Althusser. Sem as devidas mediações, diferenças e nuanças importantes entre aqueles autores, atinentes a conflitos de interpretação da obra de Marx, são apagadas. No quinto capítulo, a discussão está centrada, de forma mais explícita, no contexto francês e pode servir de contraste para pensar o Brasil. O livro não pode ser considerado um ponto de referência seguro para se informar sobre a vasta contribuição sociológica de Karl Marx, a despeito de apresentar com bastante clareza a teoria da exploração. Nele há o uso de diversas citações de livros de Marx sem os devidos esclarecimentos meticulosos, tornando árida a leitura para os discentes.

O livro de Pierre Steiner é didático, com linguagem acessível e, de fato, pode ser considerado um ponto de referência seguro para uma introdução à sociologia de Émile Durkheim. Ele usa como fontes as obras de Durkheim, a revista criada pelo sociólogo francês L’Annnés Sociologique, as publicações dos discípulos ou membros da equipe dessa revista e os principais livros ligados à fortuna crítica desse clássico. Mediante uma abordagem que tem como fio condutor a teoria da socialização de Durkheim, Steiner apresenta a trajetória das formulações teóricas desse autor, destacando nuances, inflexões e continuidades, ao lado do impacto, do sucesso, do esquecimento, da retomada dessa contribuição e sua atualidade na sociologia. O livro merece ser adotado integralmente como fonte de informação e como material paradidático.

O livro de Colliot-Thélène é uma bela introdução didática ao pensamento de Max Weber, está baseado na leitura de 39 volumes de um total de 46 prometidos pela edição crítica da obra completa desse sociólogo, realizado em Munique pela Comissão de História Social e Econômica da Academia Bávara de Ciências. Pode ser considerado um “ponto de referência” para orientar a compreensão da obra de Weber e também ser integralmente usado para se informar e como material paradidático.

Enfim, Alexander (1996) parece ter razão ao afirmar que “os cientistas sociais, imersos em fórmulas clássicas e disciplinados pelo que tomam por seu legado, não conseguem perceber que são eles mesmos, com suas interpretações e interesses teóricos, que transformam os textos em clássicos e dão a cada um destes um significado atual” (ALEXANDER, 1996, p. 55). Interesses diversos, práticas interpretativas, tradições, escolas e contextos nacionais distintos fazem dos clássicos aquilo que são. No Brasil, como indicam as epígrafes de Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos, os “nossos clássicos” da sociologia (Marx, Durkheim e Weber) têm sido interpretados em vista da ação, subsidiando a elaboração de conhecimento para o imperativo de transformar a sociedade brasileira ou formar a nação.

Referências

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Notas

1A estética da recepção consiste numa abordagem hermenêutica que investiga o sentido do texto enfatizando seu contexto de difusão, isto é, aquilo que foi dito e escrito sobre ele. Os críticos literários Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser Jauss são os maiores expoentes dessa perspectiva de análise.

2Ver, por exemplo, as publicações do Cemarx-Unicamp.

3Ver, por exemplo: Naves (2008).

Notas

4

Recebido: 06 de Maio de 2019; Aceito: 22 de Julho de 2019

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