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Contrapontos

versión On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.19 no.2 Florianopolis ene./dic 2019  Epub 02-Ago-2019

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v20n2.p10-27 

Artigos

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA SOB O ENFOQUE DA RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA: LIMITES E POSSIBILIDADES PARA A SUA DEMOCRATIZAÇÃO

THE HISTORY OF BRAZILIAN EDUCATION FROM A PERSPECTIVE OF PUBLIC-PRIVATE PARTNERSHIPS: LIMITS AND POSSIBILITIES FOR ITS DEMOCRATIZATION

LA HISTORIA DE LA EDUCACIÓN BRASILEÑA BAJO EL ENFOQUE DE LA RELACIÓN PÚBLICA-PRIVADA: LÍMITES Y POSIBILIDADES PARA SU DEMOCRATIZACIÓN

Daniela de Oliveira PiresI  * 

Vera Maria Vidal PeroniII 

IDepartamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.

IIPrograma de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

O estudo analisa os limites e as possibilidades para a democratização do direito à educação por meio da construção da esfera pública no Brasil e os impasses da relação com setor privado a partir dos anos 1930. A metodologia utilizada tem como base as análises bibliográfica, histórica e legislativa. Assim, contextualiza-se a relação público-privada na história da educação ao longo da formação política e social brasileira. Conclui-se que a educação brasileira, historicamente, sofreu as consequências dos períodos de instabilidade política e social.

Palavras-chave: História da educação; Parceria público-privada na educação; Democratização da educação

Abstract:

The study analyses the limits and possibilities for the democratization of the right to education through the construction of the public sphere in Brazil, and the deadlocks in the relationship with the private sector since the 1930s. The methodology used is based on bibliographic, historical and legal analyses. The relationship between the public and private sectors is placed in its context in the history of education, throughout the political and social formation of Brazil. We conclude that historically, Brazilian education has suffered the consequences of periods of social and political instability.

Keywords: History of education; Public-private partnership in education; Democratization of education

Resumen:

El estudio analiza los límites y posibilidades para la democratización del derecho a la educación a través de la construcción de la esfera pública en Brasil y los impases de la relación con el sector privado a partir de los años 1930. La metodología utilizada tiene como base los análisis bibliográfico, histórico y legislativo. Así, se contextualiza la relación pública-privada en la historia de la educación, a lo largo de la formación política y social brasileña. Se concluye que la educación brasileña, históricamente, sufrió las consecuencias de los períodos de inestabilidad política y social.

Palabras clave: Historia de la educación; Alianza pública-privada en la educación; Democratización de la educación

INTRODUÇÃO

O objetivo do estudo é analisar a construção histórica da relação público-privada na democratização da educação a partir dos anos 1930. Democracia aqui entendida tanto por direitos materializados em políticas públicas como por coletivização das decisões. Nossa premissa é a de que os interesses privados sempre permearam e direcionaram as ações governamentais em um movimento dialético de correlação de forças sociais. Portanto, a cada articulação da esfera pública, feita com o intuito de organizá-la, forças privatizantes reivindicavam suas pautas e privilégios com implicações para o processo de democratização da educação.

Neste artigo organizamos cada seção considerando períodos de avanços e retrocessos democráticos, pois nos processos democráticos a educação como direito de prerrogativa estatal avançava alguns passos que logo eram barrados por novos processos ditatoriais, conforme demonstraremos por meio dos marcos constitucionais a partir da carta política de 1934 até a Constituição de 1988, e da correlação de forças sociais.

Parte-se de um pressuposto teórico-metodológico cuja relação entre o público e o privado deve ser entendida na sua materialidade, isto é, como parte de um período particular do capitalismo, situada histórica e geograficamente. Estado e sociedade civil são perpassados por projetos de classe, assim a relação entre o público e o privado não ocorre apenas como propriedade, mas projetos societários em disputa (PERONI, 2015).

Ao analisarmos a história da educação sob o enfoque da relação público-privada na democratização da educação, destacamos suas peculiaridades, considerando os sujeitos e os processos em relação, assim como as características do contexto social e econômico. A coleta de dados teve como base documentos históricos, legislação constitucional e infraconstitucional e fontes secundárias da historiografia brasileira.

O artigo é composto de quatro partes, na primeira, abordamos elementos da história da educação brasileira, com fundamento na formação do Estado nacional e a relação público-privada na sua consecução, a partir dos anos 1930. A segunda traz aspectos referentes à ditadura do Estado Novo de Vargas, no final da década de 1930 até o processo de redemocratização nos anos 1946 e os desafios para a democratização da educação. Na terceira parte, será abordado o advento do golpe civil-militar (1964) até o período de abertura política, em meados dos anos 1980 e a correlação de forças sociais, relacionadas à luta pela educação pública e de qualidade. Na última parte, enfocamos o período mais recente de redemocratização até os dias atuais. O principal argumento defendido ao longo do artigo é o de que a formação do Estado nacional esteve diretamente relacionada com os interesses privatistas, por meio da relação público-privada, sendo parte constitutiva do movimento estruturante do Estado nacional e da constituição da esfera pública, os quais historicamente estiveram aliados aos interesses dos grupos sociais hegemônicos e o desenvolvimento econômico do capitalismo, com predomínio da lógica do patrimonialismo e do clientelismo, com implicações para a democratização da educação.

DA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL À PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934: A EDUCAÇÃO COMO UM DIREITO DE TODOS

Verificamos que, a partir dos anos 1930, ocorre a regulamentação nacional do ensino e a necessidade da sua renovação pedagógica, sendo justificada essencialmente pelo estágio econômico de fomento à industrialização (XAVIER, 1990). A educação foi incorporada ao projeto nacional de desenvolvimento, com vistas à preparação da grande parcela populacional. Esta, historicamente alijada das políticas governamentais, passaria a figurar, naquele período específico da trajetória política, como uma estratégia para o desenvolvimento nacional, com a permanência de algumas características próprias da nossa formação social e política, como o patrimonialismo e o clientelismo (FERNANDES, 1987).

Resta claro que a promoção da educação, segundo a relação público-privada, sofreu descontinuidades e/ou permanências ao longo da trajetória da história da educação brasileira a partir das condições materiais de cada contexto político e econômico vigente. Exemplo disso é que, devido à conjuntura política e econômica dos anos 1930, teve-se a coexistência de dois modelos escolares: o que conservava os interesses da elite e aquele que passava a aproximar as camadas subalternas à experiência escolar. Tem-se, portanto, a seguinte reflexão: em termos de permanência, a educação historicamente foi forjada a partir dos interesses privados, mas devido à lógica capitalista-industrial, que o Estado assumiu a partir dos anos 1930, a população menos favorecida passou a gozar do acesso à formação educacional (CURY, 1984). Segundo o autor, essa parcela da população veio a ser reconhecida como “a força propulsora da riqueza nacional” e, com isso, a servir de sustentação para a prevalência da ordem social desigual. Também para Maria Elizabete Xavier a escola foi funcional ao período urbano-industrial que se consolidava no país:

A apreensão do que é “funcional” aos interesses dominantes implica o desvendamento das funções específicas que a escola brasileira foi chamada a assumir, no contexto particular da penetração e do avanço das relações capitalistas no país, atendendo às exigências da ordem econômico-social que se consolidava. Se o liberalismo nacional se constituiu nesse processo para justificá-lo e reforçá-lo, o seu desdobramento num liberalismo educacional peculiar representou o esforço empreendido pela consciência pedagógica nacional, no sentido de adequar o sistema de ensino às condições materiais e ideológicas geradas neste avanço. (XAVIER, 1990, p. 76).

A educação para e não contra o capitalismo, a educação para superar o atraso industrial do Brasil e a educação como o instrumento para se contrapor ao atraso da política dos coronéis passaram a ser suas funções primordiais nos anos posteriores ao primeiro quartel do século XX. Vencer o atraso institucional e preparar o povo para servir à lógica do progresso, controlando qualquer movimento organizado reivindicatório por parte dos trabalhadores, foram os grandes objetivos da época (GERMANO, 1994).

Como um contraponto à lógica privatizante da educação naquele período, tivemos o Movimento dos Pioneiros da Educação Nova, que surgiu no contexto educacional brasileiro, em 1932, com o propósito de evidenciar a função social da educação, a democratização do acesso à educação e a criação de um sistema de âmbito nacional que garantisse aos cidadãos o direito à escola pública, laica, obrigatória e gratuita. Anísio Teixeira, um dos fundadores do movimento, defendia que a educação proposta deveria ser estruturada em “bases sociais e inclusivas”.

A relevância do movimento em defesa da educação pública foi determinante para a elaboração da Constituição Federal de 1934, que acabou consagrando a educação como um direito de todos e uma prerrogativa estatal. Para esse movimento, o Estado é entendido como o ente responsável pela condução dos indivíduos na nova fase modernizadora, a partir da necessidade de desenvolver a sua função eminentemente pública, corroborando assim para o debate em torno da democratização da educação, conforme o art. 149, da Carta de 1934:

Art. 149 - A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros, domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação e desenvolva, num espírito brasileiro, a consciência da solidariedade humana. (RIO DE JANEIRO, 1934).

Também evidenciamos outro avanço importante na democratização da educação, pois inseriu, pela primeira vez, a vinculação de um percentual mínimo do orçamento dos entes federados para ser destinado prioritariamente à educação. De acordo com o disposto no art. 156: “A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal, nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos à manutenção e ao desenvolvimento dos sistemas educativos”. Destacamos a importância da vinculação de recursos para garantia do funcionamento do sistema de ensino e, assim, para o seu próprio aperfeiçoamento democrático.

Em síntese, a Constituição de 1934 materializa, em parte, a luta inicial pelo direto à educação pública no período republicano, mesmo em meio a um embate político-ideológico envolvendo católicos, liberais e protestantes, explicitado durante a assembleia constituinte (CURY, 1984). Enfim, conseguiram encaminhar a proposta, segundo a qual o direito à educação é uma prerrogativa da coletividade e uma obrigação do Estado, pela primeira vez sendo acolhido no texto final da Carta Magna. Contudo, ao mesmo tempo em que a educação deveria ser pública, segundo os preceitos constitucionais, em um processo de correlação de forças, também ocorreu o fortalecimento da lógica privatista, pois os recursos públicos continuaram sendo repassados, por meio de bolsas de estudo, para as instituições privadas para o atendimento da população menos favorecida economicamente (PIRES, 2015).

As conquistas sociais no Brasil que foram declaradas constitucionalmente sofreram as consequências da instabilidade democrática de nossas instituições, já que, muitas vezes, elas não criavam as condições necessárias para a garantia da sua manutenção, deixando de ser reconhecidas como políticas de Estado, conforme passamos a analisar a seguir.

O ESTADO NOVO DE VARGAS (1937-1945) E OS DESAFIOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os países afetados pelo conflito, direta e indiretamente, como o Brasil, ansiavam pelo retorno das garantias individuais e das liberdades civis e políticas. Neste período, o país foi governado por Getúlio Vargas, que institucionalizou o Estado Novo, bem como as perseguições políticas, prisões arbitrárias e a prática da tortura. A educação, sob a égide do Estado Novo, por meio da outorga da Carta Política de 1937, teve, dentre outros retrocessos constitucionais, a retirada da obrigatoriedade do direito à educação. Sob a sua influência, a educação deixou de significar um dever do Estado, passando a ser responsabilidade dos indivíduos e da coletividade, pública ou privada, além da supressão da obrigatoriedade da fixação de um percentual mínimo destinado à educação por parte dos entes federados, conforme é possível analisar, com base no artigo 128:

Art. 128 - A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares. É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e de ensino. (RIO DE JANEIRO, 1937).

Houve uma tentativa de democratização da educação com o advento da Constituição de 1934, mas infelizmente com breve duração, pois, com a outorga da Carta Política de 1937, o papel do estado para com o direito à educação é redefinido, como podemos observar no art. 130:

Art. 130 - O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar. (RIO DE JANEIRO, 1937). (grifo nosso).

Sublinhamos que, apesar do art. 130 declarar a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino, retrocedeu, tanto ao afastar o poder público da titularidade na sua consecução, como também, ao definir a gratuidade apenas aos que comprovassem escassez de recursos, repassando para a iniciativa individual e coletiva dos entes privados a responsabilidade pela sua promoção (art. 128). Assim que o Estado, em parte, se desobriga da promoção do direito estimulando a filantropia por meio do dever de solidariedade das famílias para com os mais “necessitados” e também do incentivo à criação de associações de direito privado sem fins lucrativos, com o propósito de prestar uma espécie de “assessoramento” aos alunos, com vistas a fortalecer, por meio da educação, o desenvolvimento do país, como observamos no art. 132:

Art. 132 - O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas; e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento, dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação. (RIO DE JANEIRO, 1937). (grifo nosso).

Conforme este artigo, a educação é instrumental ao mercado. Para o governo, era necessário estimular a ampliação da promoção da educação no país para contribuir com o desenvolvimento econômico e social. No entanto, o Estado repassou parcela significativa da sua promoção para a iniciativa privada.

Aqui, destacamos que a criação do chamado Sistema “S”, que acabou por fortalecer a lógica público-privada por meio da organização das entidades paraestatais. Tais entidades passaram a influenciar na condução do ensino médio e profissional, juridicamente definidas como entidades de direito privado sem fins lucrativos que prestavam serviços sociais, podendo receber subsídios públicos para o exercício de suas atividades. Tais iniciativas, conforme o nosso entendimento, colaboraram para o aprimoramento da relação público-privada, agora com respaldo legal, qualificando juridicamente as entidades privadas que passaram a compor uma nova e especial categoria: entidades de direito privado com finalidade pública.

Conforme Pires (2015), as entidades paraestatais que compuseram o Sistema “S” passaram a atuar como titulares no fomento de grande parcela da formação educacional industrial. O ensino industrial até meados dos anos 1930, no Brasil, consolidou o caráter assistencial e caritativo dessa modalidade de ensino. Ao mesmo tempo, foi nesse período que iniciaram os embates sobre o papel e a função específica do ensino profissional no Brasil entre os Ministérios da Educação e Saúde e o do Trabalho, Indústria e Comércio. Os conflitos surgiram exatamente sobre o caráter público ou privado da sua promoção.

O Ministério da Educação, sob a titularidade de Gustavo Capanema, argumentava que o ensino profissional deveria ser prestado diretamente pelo Estado, sendo considerado como prioridade governamental o fomento da sua formação para atender as necessidades industriais em todo o país. Já um grupo vinculado à Federação das Indústrias de São Paulo, que representava o grande empresariado paulista, tinha a visão de que a esfera privada, representada pelas corporações industriais, deveria responsabilizar-se pela promoção do ensino profissional. Concordando com o segundo grupo, o Presidente Getúlio Vargas editou a Lei nº 1.238, de 02 de maio de 1939, que dispunha sobre a instalação de refeitórios e a criação de cursos de aperfeiçoamento profissional para trabalhadores, conforme os artigos 1º e 4º do decreto:

Art. 1º Nos estabelecimentos em que trabalhem mais de quinhentos empregados deverá o empregador reservar-lhes local abrigado, higiênico e devidamente aparelhado, onde possam fazer as refeições no intervalo de trabalho. Art. 4º Os estabelecimentos a que se refere o art. 1º manterão, igualmente, cursos de aperfeiçoamento profissional para adultos e menores, de acôrdo com o regulamento cuja elaboração ficará a cargo dos Ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde. (BRASIL, 1939).

Ao analisar os dispositivos, percebe-se que a organização dos cursos não estava sob a responsabilidade exclusiva do Ministério da Educação, mas era de competência conjunta com o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Essa responsabilidade compartilhada demonstrava que a formação educacional do operariado brasileiro se associava estritamente a um projeto de desenvolvimento nacional. A reação do Ministério da Educação foi imediata. Capanema foi enfático ao defender que a formação do trabalhador não poderia estar condicionada à realização da sua atividade profissional, pois deveria imperar a formação integral que possibilitasse a incorporação a qualquer atividade, não somente a uma formação específica. Isto é, a educação se voltava ao empregador e não ao empregado:

Na previsão do Ministério do Trabalho os cursos seriam isolados, sujeitos somente a instruções gerais a cargo do Ministério da Educação, e a cargo das próprias indústrias; Capanema defendia a criação de um órgão burocrático federal para administrar o sistema de ensino industrial em todo o país, e uma participação significativa do governo nos seus custos. (SCHWARTZMAN, BOMENY, CONSTA, 2000, p. 254).

O governo federal não assumiu o financiamento direto pelo ensino profissional, nem de forma subsidiária. A estratégia adotada pelo governo foi a de ampliar as isenções e as contribuições para a iniciativa privada. Portanto, na correlação de forças entre o Ministério da Indústria e da Educação, resultou no governo estruturando o ensino profissional com base nas diretrizes oriundas do Ministério da Indústria, em detrimento das propostas do Ministério da Educação. Assim, ocorria o estreitamento dos vínculos entre o Estado e o empresariado, principalmente o paulista. O Estado não assumia a responsabilidade pelo fomento do ensino profissional ao repassar tal prerrogativa para as indústrias, atuando apenas na concessão de incentivos fiscais para os entes privados (PIRES, 2015). Entendemos que as forças sociais em relação definiam a estratégia adotada pelo setor público no âmbito da promoção do direito à educação.

No próximo subitem, trataremos de alguns aspectos da Constituição Federal de 1946, que se caracterizou pelo processo de redemocratização, após os anos da Ditadura do Estado Novo de Vargas (1937-1945), e pela tentativa de reconciliação do país. No tocante à educação, o texto de 1946 significou a tentativa de superação do atraso constitucional advindo da outorga da Carta Política de 1937.

OS ANOS 1940 E 1950: A AMPLIAÇÃO DA RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA NA PROMOÇÃO DA EDUCAÇÃO

Após o encerramento da Ditadura do Estado Novo, Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) é eleito presidente pelo voto direto. Muitos analistas políticos justificavam a sua eleição pela base política construída por Getúlio Vargas. Dutra assume a presidência no contexto internacional do desenvolvimento da Guerra Fria. No plano interno, uma das suas primeiras medidas foi a convocação de uma Assembleia Constituinte para preparar o novo texto constitucional. Foi neste contexto pluripartidarista que a assembleia foi realizada. Umas das características é a multiplicidade de orientações políticas, que valorizavam o debate e impulsionavam a correlação de forças no congresso.

Especificamente em relação à educação na Assembleia Constituinte, quando discorreu a este respeito, Romualdo Portela de Oliveira destacou alguns tópicos que tiveram maior relevância, dentre eles: o ensino de religião; o Estado e a família; o dever e o direito de educar; a liberdade de ensino e os subsídios; a obrigatoriedade e a gratuidade; o financiamento da educação e a responsabilidade compartilhada entre os entes federados (OLIVEIRA, 2005).

No seu texto final, aprovado em 1946, a Constituição seguiu algumas tendências estabelecidas na Carta Política de 1937, demonstrando que determinadas temáticas educacionais, como a preservação do ensino religioso nos estabelecimentos oficiais e os desafios ante a responsabilização do Estado pela sua promoção, dependiam do grau de democratização experimentado pelo país. A Carta Política de 1946 inaugurava um novo estágio político no Brasil, que imprimia as bases para a redemocratização nacional. Assim, ela superava o atraso constitucional promovido pela Constituição de 1937 e reafirmava o caráter gratuito do ensino primário como sendo uma dimensão do ideário democrático. Um avanço da Carta de 1946, em comparação à Carta de 1937, foi a retomada da determinação de percentuais mínimos para a arrecadação de impostos que deveriam ser utilizados para fins de financiamento educacional, ficando assim estabelecido: “Art. 169 - Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os estados, o Distrito Federal e os municípios, nunca menos do vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino”. Conforme foi mencionado por nós, defendemos a ideia de que, sem o financiamento, o direito à educação não se materializa em políticas. Sendo assim, foi, por meio da fixação de percentuais constitucionais, que os entes federados passaram a ser responsabilizados pela manutenção de um padrão mínimo de investimento para os direitos sociais.

Podemos aduzir que os anos 1950, principalmente com a eleição de Getúlio Vargas para o exercício de seu último mandato, interrompido de forma drástica, significou uma nova tentativa de fortalecimento da ação estatal em prol da educação pública. Após o fim trágico do governo Vargas, foi eleito, em 1955, o presidente Juscelino Kubitschek, tendo como vice-presidente João Goulart. A plataforma governamental estava associada ao desenvolvimentismo, propondo que a educação fosse valorizada pelo seu caráter “utilitarista”. Naquele momento, se consolidavam a descentralização administrativa, a flexibilização dos currículos escolares e a continuidade do financiamento público das instituições privadas.

A educação era reconhecida como um direito de todos, mas não era vista como uma ação de exclusividade pública, pois “se, porém, ainda seguiu Vargas ao conceber a Educação como um direito de cada indivíduo, divergiu dele ao propor que o dever estatal de oferecer à população carecia de apoio do capital privado” (VIEIRA, 1995, p. 104). A esfera pública fortaleceu o diálogo com a iniciativa privada, incentivando a sua participação na execução da educação, repassando fundos públicos, recebendo recursos privados e ampliando os estabelecimentos privados. Isso denotava a sua tendência privatizante. Os alunos e os professores passaram a denunciar também os rumos da educação nacional, especialmente a configuração do Conselho Federal de Educação e dos Conselhos Estaduais que, de acordo com eles, “[...] mostravam o desejo de instalar oficialmente a ingerência das escolas particulares na orientação da política federal de educação e na administração do sistema nacional de educação” (VIEIRA, 1995, p. 111). O restante da população estava envolvido pelos projetos de modernização e de metas para o futuro do país, apresentados pelo governo, tendo dificuldade de identificar os limites das atuações pública e privada na educação.

O governo visivelmente conclamava a participação do capital privado para “alimentar as atividades educacionais”, sob a alegação de que a esfera pública não poderia ser a única responsável. Após, o rápido e polêmico governo de Jânio Quadros (1961), que, durante a sua rápida passagem pela presidência da República, defendeu a mobilização da sociedade contra o analfabetismo. Após a sua renúncia, o desafio político foi de garantir a posse do vice-presidente, João Goulart, que ocorreu em razão da pressão de vários setores da sociedade e fundamentalmente pela Campanha da Legalidade, organizada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola.

João Goulart assume em meio a turbulências políticas, que, embora não possuísse o apoio da maioria dos militares e dos setores econômico-industriais, reforçou a necessidade da titularidade do Estado pela educação, bem como o seu atendimento aos demais direitos sociais, ampliando o diálogo tanto com a União Nacional dos Estudantes (UNE), quanto com os movimentos sociais, com destaque para os Centros Populares de Cultura (CPC) criados em 1961 e os Movimentos de Cultura Popular (MCPs). Isso não significou que João Goulart tivesse conseguido neutralizar a ação privada, pelo contrário, os representantes dos setores privados da educação e a Igreja Católica continuavam exercendo influência, pois passaram a figurar como membros tanto do Conselho Federal quanto dos Conselhos Estaduais de Educação. Logo, transformaram esses espaços privilegiados de discussões a respeito das questões educacionais em um locus em defesa dos interesses privatistas.

Em contrapartida, setores da burguesia industrial, grande parte dos militares e a mídia brasileira, contrários ao governo e com o apoio do governo estadunidense, conflagram em 01 de abril de 1964, o golpe civil-militar (1964-1985), que se caracterizou pelo retrocesso nas garantias e nas liberdades individuais, como também nos direitos políticos e sociais. O próximo subitem possui como propósito demonstrar que este será o momento da história brasileira com grande estímulo à ação privatizante da educação e de fortalecimento dos grupos privados.

DO GOLPE CIVIL-MILITAR - À AÇÃO PRIVATIZANTE NA EDUCAÇÃO E AO CONTEXTO DE REDEMOCRATIZAÇÃO DOS ANOS 1980 - A LUTA PELA EDUCAÇÃO PÚBLICA E DE QUALIDADE

Com a instauração da ditadura civil-militar, em 01 de abril de 1964, nessa conjuntura violenta e de supressão de direitos que irá se estender por mais de duas décadas, verificamos um grande impulso à “privatização da educação”. O estágio econômico experimentado pelo país, naquele momento, beneficiou a burguesia industrial e o capital financeiro. Nessa senda, a educação, conforme as nossas análises, deveria contemplar dois requisitos importantes para aquele contexto: tornar-se uma atividade de base lucrativa e realizar o controle ideológico da população. O governo centralizou o poder de controle para a produção das diretrizes educacionais e promoveu a liberalização do seu fomento à iniciativa privada, itens seguramente respaldados no texto da Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Com relação à promoção da educação, o art. 168, da Carta Constitucional de 1967, evidenciava a desresponsabilização do Estado no que tange à promoção da educação e à associação com a esfera privada:

Art. 168 - A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana. § 2º - Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo. (BRASÍLIA, 1967).

A Carta de 1967, além de significar uma usurpação dos valores democráticos sobre a educação, retirou a previsão da igualdade de oportunidades, evidenciando que elas seriam proporcionadas àqueles que pudessem arcar com os custos da sua promoção. Essa constituição foi significativa, se tomarmos como parâmetro a trajetória histórica da relação público-privada, uma vez que ela acabava por superar as Constituições do Império e da República Velha, as quais a precederam pelo caráter essencialmente privatista da educação.

Como vimos nos itens anteriores, o Estado foi, historicamente, vinculado aos interesses privados, no entanto, após o último período de ditadura, a partir de meados dos anos 1980, entrou na pauta da sociedade, mesmo que de forma tímida, por meio do processo de redemocratização, a defesa da participação, a coletivização das decisões, assim como a garantia dos direitos sociais materializados em políticas. Ao mesmo tempo, os processos de neoliberalismo, reestruturação produtiva e financeirização redefiniam o papel do Estado para com as políticas sociais. Neste sentido, vivemos a contradição de que, ao mesmo tempo em que a privatização do público é cada vez maior (PERONI, 2015), também, em um processo de correlação de forças, avançamos lentamente em alguns direitos materializados em políticas educacionais.

As lutas pela democratização da sociedade e da materialização de direitos na educação pública foram condensadas, em grande parte, pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública - FNDEP. O Fórum estava envolvido na organização do processo constituinte. Ele foi oficialmente lançado em Brasília, em 09 de abril de 1987, na Campanha Nacional em Defesa da Escola Pública e Gratuita, tendo sido inicialmente denominado de Fórum da Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito1.

Dentre as suas reinvindicações, duas questões se destacavam: a luta contra a ditadura civil-militar e a defesa da educação pública. As demandas contidas nas pautas dos movimentos sociais expressavam o repúdio da sociedade em relação à forma como a política educacional brasileira havia sido conduzida pelo governo militar. Tal política caracterizou-se pelo seu viés privatizante e de recusa ao caráter social e coletivo do ensino. A resposta dos setores privados foi imediata, reafirmando a correlação de forças sociais entre o público e o privado durante o processo constituinte de 1987. As principais forças que se opuseram ao FNDEP vieram das escolas particulares privadas, por meio da Federação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (Fenem) e do setor privado confessional, por meio da Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (Abesc) e da Associação da Educação Católica.

Ainda durante o processo constituinte de 1987-1988, o fortalecimento da bipolaridade público-privada evidenciou a presença de algumas questões candentes, tais como o ensino religioso nas escolas públicas, questão que atravessou todo o período republicano; e o repasse de verbas públicas para as escolas particulares, o qual se fortaleceu fundamentalmente a partir da LDB de 1961 (OLIVEIRA, 2005). O texto constitucional de 1988 consagrou, além das esferas do público e do privado, uma nova categoria, o confessional ou filantrópico.

Neste sentido, é possível constatar que o processo de privatização foi se aperfeiçoando legalmente, sendo que, após dez anos da promulgação da Carta Política de 1988, foram editadas, respectivamente, a Lei nº. 9.637/98, que tratava das Organizações Sociais (OS); e a Lei nº 9.790/99, que tratava das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS). Corroborando com essa tendência, temos atualmente a promulgação do chamado Marco Regulatório do Terceiro Setor, por meio da Lei nº. 13.019/14, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil (OSC). Tais legislações fortalecem a tendência, já difundida mundialmente, de a sociedade civil atuar diretamente na promoção dos direitos sociais, por meio das entidades do Terceiro Setor.

No Brasil, não vivenciamos o Estado de bem-estar social, apenas um Estado desenvolvimentista (VIEIRA, 1998) e no período que estávamos dando os primeiros passos na luta por direitos sociais universais, mais uma vez, o setor privado se articulou para ter a direção e a execução (RHODES, 1996) das políticas educacionais. Assim, nesse período particular do capitalismo, a histórica relação entre o público e o privado ocorreu principalmente por meio das organizações do Terceiro Setor, legalmente reconhecidas e que firmavam parcerias com o poder público para a execução de políticas sociais que deveriam ser promovidas pelo Estado.

Ao mesmo tempo em que avançamos na democratização, entendida, neste caso, como a materialização dos direitos em políticas, ocorrida no período pós-abertura política e incrementada nas duas últimas décadas, por exemplo, com o aumento da oferta da educação básica; o Plano de Desenvolvimento da Educação/Plano de Ações Articuladas e o processo de construção de um Sistema Nacional de Educação, ocorreu também o incremento dos processos de privatizações endógena e exógena (BALL & YOUDELL, 2008) da educação pública, tanto por meio da direção quanto pela execução de políticas educacionais (PERONI, 2015).

Embora nesse contexto tenham acontecido simultaneamente avanços inegáveis no acesso à educação, eles ocorreram com os “recursos possíveis” e, muitas vezes, em detrimento dos salários e das condições de trabalho dos profissionais em educação. A ampliação de direitos não foi seguida de condições materiais com a mesma intensidade do que as mudanças.

Vivemos a seguinte contradição, pois ao mesmo tempo em que a privatização do público era cada vez maior, em um processo de correlação de forças, estávamos avançando em alguns direitos, principalmente nos reivindicados durante o processo de democratização dos anos 1980 e materializados, em parte, na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases (LDBEN) de 1996, como a gestão democrática da educação nos estabelecimentos públicos de ensino, a educação básica, entendida como educação infantil, a fundamental e a média, além da gratuidade da educação pública, entre outros itens.

No entanto, ao mesmo tempo em que a garantia do acesso à educação pública foi ampliada, o que consideramos um avanço nesse processo, também verificamos a presença cada vez maior do privado mercantil definindo a educação pública. O Estado continuou sendo o responsável pelo acesso e, inclusive, ampliou as vagas públicas, mas o “conteúdo” pedagógico e de gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições que tinham como objetivo introduzir a lógica mercantil, com a justificativa de que assim estariam contribuindo para a qualidade da escola pública. Dessa forma, a lógica mercantil participou ativamente da direção e da execução das políticas educacionais ao longo do tempo, deixando as responsabilidades intensamente diluídas quanto aos direitos materializados em políticas sociais.

Quanto à atuação do setor privado na direção das políticas educativas, destacamos a existência das parcerias de instituições privadas com o setor público, principalmente a presença do Movimento Todos pela Educação (TPE). O TPE foi criado em setembro de 2006 e atuava influenciando na pauta educacional mediante uma relação direta com o Ministério da Educação, monitorando e avaliando resultados da agenda da política educacional no país. Tal movimento possuía um protagonismo cada vez maior não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. Em setembro de 2011, o TPE organizou um seminário em conjunto com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a criação da rede latino-americana de organizações da sociedade civil pela educação. As parcerias eram também uma forma de atuação do setor privado por meio da direção, pois as escolas permaneciam públicas, e a privatização ocorria via conteúdo da educação, como é o caso do Instituto Ayrton Senna (IAS), no ensino fundamental (ADRIÃO & PERONI, 2010) e do Instituto Unibanco, no ensino médio (MONTEIRO, 2013, PERONI & CAETANO, 2015). Os institutos atuavam graças à formação de professores, à elaboração do material didático, à rotina das aulas e, também, via monitoramento das escolas e das práticas dos professores numa relação de controle e cobrança dos resultados.

Quanto à execução da oferta via Terceiro Setor, destacamos a oferta da educação infantil, da educação de jovens e adultos, da educação especial e da educação profissional. Na educação infantil, frisamos a sua expansão via creches comunitárias. Estudos evidenciam2 que, muitas vezes, o atendimento era precarizado como forma de racionalizar recursos por meio de salários mais baixos para os educadores. Além disso, os critérios eram pouco transparentes, tanto na contratação e no pagamento dos funcionários, quanto nas relações dentro das creches, assim como também acontecia com a instituição mantenedora, com os pais e com a comunidade. Igualmente, para a admissão dos alunos, os critérios também eram pouco claros.

Na Educação de Jovens e Adultos (EJA), destacamos o Programa Brasil Alfabetizado, que atuava também via parcerias para a sua execução. O trabalho docente tornava-se dificultado nessa área, porque os alfabetizadores ou professores eram contratados em outro turno, via bolsa, recebendo menos do que seu salário, o que também entendemos como sendo uma forma de precarização (BRASIL, 2012; COMERLATO, MORAES, 2013).

Na educação especial, observamos que o poder público, historicamente, desresponsabilizou-se dessa modalidade de ensino e, quando este passou a ser um direito, a nova conjuntura de racionalização de recursos dificultou a sua implementação com a qualidade das políticas de inclusão. Mais uma vez, o Estado recorreu às históricas parcerias (BOROWSKY, 2013; PERONI, 2011). Em síntese, desde o período pós-ditadura, estamos vivenciando no Brasil um processo de ampliação no direito à educação, mas, igualmente, de estímulo às privatizações, bem como às parcerias público-privadas, conforme foi apresentado nesse item do artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desse estudo, é possível constatarmos que a relação entre o público e o privado na história da educação brasileira não inicia nesse período particular do capitalismo. Historicamente foram muito tênues as linhas divisórias entre o público e o privado em nosso país. Assim, entendemos que o processo de democratização da educação pública ainda terá um longo processo, sendo que a mercantilização do público é um grande entrave para esse processo.

Entre os anos 1930 aos 1960 ocorreu a regulamentação nacional do ensino e a necessidade da renovação pedagógica, sendo justificada essencialmente pelo estágio econômico em curso de fomento à industrialização. A educação é ressignificada, sendo incorporada ao projeto nacional de desenvolvimento, com vistas à instrução da grande parcela populacional que historicamente esteve alijada das políticas governamentais, mas que passava a figurar, nesse período específico da trajetória política brasileira, como a “força propulsora nacional”. Na esteira dessa reflexão, foi possível identificar dois tipos de formação escolar: o ensino para a elite e para a classe trabalhadora. Poderíamos supor que, nessa conjuntura, quando o Estado necessitava investir na educação em razão das novas contingências do cenário econômico, ele poderia prescindir da participação das instituições privadas, pelo menos parcialmente. Todavia não foi o que aconteceu. Pelo contrário, ocorreu o fortalecimento da visão educacional classista: enquanto a “massa trabalhadora” era atendida pelo poder público; a “elite” continuava a ser formada pelos setores privados, como maneira de alçar lucro e posição de destaque. Em 01 de abril de 1964 foi deflagrado o golpe civil-militar, que perdurou por 21 anos, a mais longa ditadura da América Latina. Em termos educacionais, esse período foi o de maior impulso à privatização da educação, sendo que ela contemplou dois requisitos: tornar-se uma atividade de base lucrativa e realizar o controle ideológico da população. O governo centralizou o controle pela produção das diretrizes educacionais e promoveu a liberalização pelo seu fomento à iniciativa privada, respaldado no texto da Constituição de 1967 e na Emenda Constitucional nº 1/1969.

Os anos 1980 marcaram o esgotamento do Estado de exceção e a luta dos movimentos sociais pela redemocratização pela educação pública, dos quais destacamos o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Todavia, nesse mesmo momento, os Estados Unidos e a Inglaterra difundiam mundialmente a orientação neoliberal, que, dentre suas premissas, constam a privatização dos setores sociais e a não intervenção do Estado na economia. É nesse contexto que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada. Ela consagrou, além da esfera do público e do privado, uma nova categoria, o confessional ou filantrópico, que significava a ação particular, mas com um sentido público, o chamado público não estatal. As entidades públicas não estatais foram amplamente estimuladas a partir dos anos 1990, com o advento das parcerias público-privadas, entre o Estado e as entidades do Terceiro Setor, que se qualificaram juridicamente como entidades de direito privado sem fins lucrativos e que passaram a receber o título de OS ou OSCIP, definidas respectivamente pela Lei 9.637/98 e a Lei 9.790/99. Nesse aspecto residiu uma das maiores inquietações do estudo, pois, quando o Estado se aproximava da titularidade da promoção da educação, admitindo a sua função e empenhando esforços para executá-la, as forças sociais privatizantes se organizavam para deslegitimar essas pretensões.

Portanto, o Brasil viveu um processo difícil de transição para a democratização, entendida como materialização de direitos em políticas sociais e, também, como a coletivização das decisões em um processo de “naturalização do possível” (PERONI, 2015). A população, que mal tinha iniciado a luta por direitos sociais para todos e com qualidade, acabou aceitando políticas focalizadas “para evitar o caos social”, priorizando populações em vulnerabilidade social, nem sempre oferecidas pelo poder público. A construção do Estado nacional, ao longo dos anos, esteve vinculada à correlação de forças entre os interesses públicos e privados. Durante os processos de democratização vivenciamos uma maior participação, coletivização das decisões, direitos sociais materializados em políticas, ao mesmo tempo em que as estratégias do capital para superação de sua crise, neoliberalismo, reestruturação produtiva e financeirização, redefiniram o papel do Estado, minimizando sua atuação na execução das políticas sociais.

No decorrer de todo o artigo, demonstramos como a construção do público aconteceu em um processo de correlação de forças com projetos privatistas. Assim, não tratamos do processo de privatização de algo que já era público, mas do histórico processo de construção do público no país. Sublinhamos ainda que o embate público-privado perpassou a política educacional historicamente. Em que pese, ao longo da sua trajetória, os sujeitos sociais que materializavam o embate se alternavam, conforme exposto no texto. Podemos afirmar que, para que a educação pública seja considerada como de pertencimento à coletividade, ela terá que enfrentar ainda inúmeros desafios ao longo do processo histórico. Estes significam, em última instância, a necessidade da conversão republicana, ou seja, de tornar pública a esfera do Estado, subvertendo, dessa forma, a tendência histórica da privatização do espaço público e da promoção dos direitos sociais.

Referências

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Notas

1Sobre este tema ver Peroni, 2003.

2Ver pesquisas de Susin (2005; 2009).

Recebido: 06 de Fevereiro de 2019; Aceito: 21 de Março de 2019

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