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Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.20 no.2 Florianopolis  2020  Epub Feb 01, 2021

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v20n2.p289-311 

Artigos

TEMAS EMERGENTES EM ESTUDOS DO E NO CORPO NO CURSO DE PEDAGOGIA

EMERGING THEMES IN STUDIES OF THE BODY ON THE PEDAGOGY COURSE

TEMAS EMERGENTES EN ESTUDIOS DEL Y EN EL CUERPO EN LA CARRERA DE PEDAGOGÍA

Lucia Maria Salgado dos Santos Lombardi1 

1Departamento de Ciências Humanas e Educação, Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba, SP, Brasil.


Resumo:

O objeto desta pesquisa são os temas emergentes nos estudos do e no corpo no curso de Pedagogia, tendo como questão-problema: quais são as principais demandas de conhecimento de futuras pedagogas no campo da educação do corpo? O artigo apresenta resultados da interpretação de dados coletados por meio de narrativas de estudantes no período de 2014 a 2020 no âmbito de uma disciplina da graduação. Foram analisadas 645 respostas para a pergunta: “Qual seu maior encantamento e sua maior decepção em relação à questão do corpo e do movimento ao longo de sua vida escolar?”. Os resultados revelam que o debate sobre o corpo dentro da instituição educativa precisa de abordagem interdisciplinar no que tange aos temas a serem estudados, levando em conta a diversidade dos corpos que transitam pelos espaços da escola e da universidade.

Palavras-chave: Corpo; Formação de professores; Pedagogia; Diversidade; Avaliação educacional

Abstract:

The object of the research is the emerging themes in studies of and in the body on the Pedagogy course. Its research question is: what are the main demands of knowledge of future teachers in the field of body education? The article presents the results of an interpretation of data collected through student narratives from 2014 to 2020, within the scope of an undergraduate discipline. A total of 645 responses to the following question were analyzed: What is your greatest delight and your greatest disappointment in relation to the question of the body and movement throughout your school life? The results reveal that the debate about the body within the educational institution requires an interdisciplinary approach to the themes to be studied, taking into account the diversity of bodies that transit through the school and university spaces.

Keywords: Body; Teacher education; Pedagogy; Diversity; Educational evaluation

Resumen:

El objeto de esta investigación son los temas emergentes en los estudios de y en el cuerpo en la carrera de Pedagogía, teniendo como problema de pregunta: ¿cuáles son las principales demandas de conocimiento de futuros pedagogos en el campo de los estudios del cuerpo? El artículo presenta resultados de la interpretación de los datos recopilados a través de las narrativas de los estudiantes de 2014 a 2020 dentro del alcance de una disciplina de pregrado. Se analizaron 645 respuestas a la pregunta: “¿Cuál es su mayor encanto y su mayor decepción en relación con la cuestión del cuerpo y el movimiento a lo largo de su vida escolar?” Los resultados revelan que el debate sobre el cuerpo dentro de la institución educativa necesita un enfoque interdisciplinario con respecto a los temas a estudiar, teniendo en cuenta la diversidad de cuerpos que transitan por los espacios escolares y universitarios.

Palabras clave: Cuerpo; Formación de profesores; Pedagogía; Diversidad; Evaluación educativa

Introdução

Este trabalho é fruto da atitude docente de refletir e pesquisar com base na prática pedagógica e sobre a prática. Ele se fundamenta no entendimento de que o cotidiano da sala de aula se constitui como um micro universo composto por todas as questões políticas, sociais, culturais, econômicas e comportamentais presentes no âmbito macro da sociedade e das comunidades locais às quais cada sala de aula pertence. Os corpos nela presentes são portadores de todas as histórias e marcas que a vida lhes imprimiu e imprime. A sala de aula é um ambiente multifacetado para o qual não existem supostos limites que separariam o sujeito pessoal do tecido social. As pessoas são seres amalgamados em tempos, espaços e acontecimentos em seus corpos, que não deixam para fora da escola suas cicatrizes, como se suas identidades fossem proibidas de cruzar, inteiras, certas fronteiras institucionais.

O corpo é ao mesmo tempo instrumento de ser no mundo e sujeito social e histórico; é o próprio indivíduo em seus aspectos temporal, espacial, energético, emocional, cultural e político. Os sujeitos são olhados e escutados na sala de aula do curso de Pedagogia com objetivo de construirmos uma prática educativa contextualizada, que extrapole as insuficiências de conteúdos já cristalizados pela tradição, que se faça humanizada, curiosa e aberta ao que traz a juventude contemporânea. Isto porque, conforme afirmou Edina Castro de Oliveira no prefácio à obra “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa” de Paulo Freire (1996), “de nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável a mudanças”.

Parto do princípio de que pesquisar é conhecer melhor para transformar a realidade. É sair do modo automático e ativar a “curiosidade epistemológica” que nos foi ensinada por Paulo Freire (1996), a qual exige coragem de arriscar-se, de aventurar-se, de fazer emergir a dúvida rebelde, a força criadora do aprender, atitudes que podem nos imunizar contra o poder apassivador da educação bancária. Pesquisar sobre a prática educativa é uma ação à qual venho me dedicando desde 2002, quando iniciei a pesquisa de mestrado (LOMBARDI, 2005) e na qual persevero, dada a relevância do ato educativo como ação especificamente humana, que solicita profissionais críticos. Daí nasceu o objeto da pesquisa, que são os temas emergentes nos estudos do e no corpo no curso de Pedagogia, tendo como questão-problema: quais são atualmente as principais demandas de conhecimento de futuras pedagogas no campo dos estudos do corpo? Seus objetivos foram: conhecer os temas emergentes sobre corpo considerados relevantes pela juventude que está em processo de formação inicial no curso de Pedagogia; propiciar um processo de formação das estudantes que partisse de suas próprias vozes e, também, aprender com suas perspectivas e necessidades, acolhendo suas vivências, subjetividades e diferentes culturas. Este último se justifica pelo princípio de tê-las como principais sujeitos da prática educativa, bem como pelo desejo de descobrir modos interativos e dialógicos de recriação e expansão do currículo.

Todo trabalho de educação em corpo e movimento deve ter uma metodologia que sustente os caminhos teóricos e práticos trilhados, em função dos objetivos estabelecidos e dos fins almejados. O artigo apresenta reflexões relativas à parte deste processo, que é o momento inicial da disciplina: a avaliação diagnóstica. A coleta de dados compreendeu a obtenção de narrativas orais e escritas durante a avaliação diagnóstica da disciplina “Educação, Corpo e Movimento” do curso de Pedagogia no período de 2014 a 2020. Foram analisadas 645 respostas para a pergunta: “Qual seu maior encantamento e sua maior decepção em relação à questão do corpo e do movimento ao longo de sua vida escolar?”.

Adoto a pesquisa narrativa no contexto da formação docente (JOSSO, 2004; NUNES; ARAÚJO, 2015) atrelada à pesquisa pedagógica (LANKSHEAR; NOBEL, 2008). A metodologia é enriquecida por outras duas inspirações relacionadas à reflexão crítica sobre a prática, Zenita Cunha Guenther (1997) e Paulo Freire (1996).

Metodologia: pesquisa na prática e sobre a prática.

Se estudar sobre corpo na educação é um fenômeno que solicita atitude interdisciplinar, a construção metodológica de pesquisas sobre este tema não poderia ser diferente. Com base nos procedimentos utilizados, esta pesquisa se caracteriza como uma pesquisa narrativa (JOSSO, 2004; NUNES; ARAÚJO, 2015) atrelada à pesquisa pedagógica (LANKSHEAR; NOBEL, 2008), sendo enriquecida por outras duas inspirações relacionadas à reflexão crítica sobre a prática: Guenther (1997) e Freire (1996). Realizo pesquisas com base na prática pedagógica e sobre a prática há alguns anos, por acreditar que ela seja o momento de maior valor no trabalho docente.

Os dados da presente pesquisa são narrativas que foram feitas no âmbito da avaliação diagnóstica da disciplina “Educação, Corpo e Movimento” do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. A avaliação diagnóstica é, em primeiro lugar, momento de acolher, escutar, incluir e conhecer os saberes das estudantes. É instrumento de ensino que representa o ponto de partida para o redirecionar e o aprofundamento dos estudos ao longo do semestre letivo. Entretanto, além de ser uma ação de escuta das estudantes - feita com objetivo de fortalecer suas falas e estimular seu protagonismo −, como tem sido proposta, ela é também modo de reflexão sobre a prática docente e processo formativo.

Os resultados aqui apresentados compreendem a categorização e a interpretação de narrativas de 241 estudantes, obtidas em processo de avaliação diagnóstica realizadas nos anos de 2014, 2015, 2017, 2018, 2019 e 2020, quando as estudantes responderam à seguinte questão: “Qual seu maior encantamento e sua maior decepção em relação à questão do corpo e do movimento ao longo de sua vida escolar?1. Foram obtidas 645 respostas, considerando a quantidade real de respostas escritas, já que cada pessoa não se limitava a apenas um registro por coluna, sendo 39 em 2014; 44 em 2015; 44 em 2017; 37 em 2018; 43 em 2019 e 34 em 2020.

Formamos um círculo de discussão. Sendo uma ação pedagógica que serve não apenas como escuta e planejamento, mas também como processo investigativo e formativo, dou início explicando à turma o propósito, a natureza, os objetivos e os potenciais benefícios da ação e a atitude de respeito pela liberdade de escolha em participar.

Na roda a pergunta é discutida em conjunto. É distribuída uma ficha contendo a questão formulada e uma tabela com duas colunas, sendo solicitado que em uma das colunas se escreva uma memória considerada boa das circunstâncias, experiências ou fatos relacionados a corpo e movimento ao longo da sua própria vida escolar − um encantamento − e, na segunda coluna, uma memória de algo ruim, prejudicial ou considerado inadequado pela estudante - uma decepção.

As estudantes escolhem se desejam preencher a ficha por escrito e a entregar, ou não. Da mesma forma, escolhem se desejam falar na roda de conversa ou estar em silêncio, escutando as falas de suas colegas. Isto porque se considera que a avaliação deva ser conduzida por uma ética de convívio social que respeite o valor da liberdade individual, conscientes de que no debate coletivo está acontecendo também a avaliação por colegas. Tão autoritário quanto impor o silêncio na sala de aula, pode ser o ato de impor que alguém exponha suas memórias e seus pontos de vista.

Os achados da pesquisa, isto é, as interpretações que aqui estão sendo consideradas de relevância para as pessoas participantes e/ou para a comunidade acadêmica, são apresentados e comunicados, sendo asseguradas a confidencialidade e a privacidade, a proteção da identidade de cada sujeito, buscando a não estigmatização das participantes e cuidando de sua autoestima. Todas as falas dos sujeitos da pesquisa aparecem no artigo identificadas pela letra “S” seguida do número marcado em sua ficha, preservando o anonimato.

Benigna Villas Boas afirma que o estudante se expõe muito ao manifestar suas fragilidades e seus sentimentos. De acordo com ela, cabe à avaliação ajudá-lo a se desenvolver, a avançar, sem expô-lo a situações embaraçosas ou constrangedoras, a fim de que a avaliação sirva para encorajar e não para desencorajar o estudante (VILLAS BOAS, 2014). Da mesma forma, Cipriano Carlos Luckesi (2014) ressalta que os instrumentos de avaliação solicitam ao educando que manifeste sua intimidade - modos de raciocinar, poetizar, criar, entender e viver - e que devemos respeitar essa intimidade como “suporte de diagnóstico, da troca dialógica e da possível reorientação da aprendizagem tendo em vista o desenvolvimento do educando” (LUCKESI, 2014, p. 177). Sendo assim, apesar de as turmas de “Educação, Corpo e Movimento” sempre terem tido participação de 60 a 75 estudantes a cada oferta, a quantidade de fichas recebidas foi em torno de 40.

A pesquisa narrativa consiste na coleta de relatos sobre determinado tema, nos quais o investigador encontra informações para entender um fenômeno (MALHEIROS, 2011). Conforme esclarecem Freitas e Ghedin (2015), existe uma variedade de terminologias que demonstram a heterogeneidade de abordagens, correlacionadas com as influências e os percursos dos diferentes campos disciplinares em que foram constituídas. Os termos “história de vida”, “narrativas de formação”, “pesquisa narrativa”, “biografias” e “autobiografias” por vezes são utilizados como próximos ou sinônimos.

Neste caso específico, a narrativa é entendida como algo contado em forma de relatos sobre acontecimentos reais da vida escolar pregressa das estudantes, e a pesquisa narrativa é tomada como uma das formas de compreender a história social da juventude que cursa Pedagogia, a partir da escuta das histórias a respeito de suas vivências escolares. Em concordância com Josso (2004) e Araújo (2015), a narrativa é caracterizada como uma descrição de fatos que atuam na mediação do conhecimento de si e que oportunizam a reflexão da narradora sobre as dimensões que a formam como sujeito, constroem representações de si, da sociedade e do contexto no qual está inserida. A pesquisa narrativa é definida como um tipo de pesquisa que enfatiza os sujeitos e suas representações, dando destaque à sua experiência direta nas suas relações com o contexto social, na busca por construção de sentidos para a realidade vivida. Nesta opção, compreendemos nossos sujeitos e suas vivências como textos vivos, atribuindo-lhes sentido e significado (ARAÚJO, 2015). À medida em que o trabalho com as narrativas é uma forma de conhecimento de si, dos outros e de determinados fatos, levando em conta a multiplicidade de dimensões envolvidas, ele é tido como formativo, construindo conhecimentos a partir da voz de seus principais atores.

A pesquisa pedagógica, por sua vez, é a que envolve profissionais que pesquisam suas próprias salas de aula, seja na pré-escola, no ensino fundamental e médio ou no ensino superior. Em conformidade com as ideias de Lankshear e Knobel (2008), procuro não me limitar a seguir prescrições e fórmulas mas, ao contrário, acionar os conhecimentos especializados e a experiência acumulada para pesquisar as situações específicas vividas pela juventude, compartilhando saberes e me colocando, em primeiro lugar, como ouvinte, no papel de aprendiz. Com isto, imagino ser possível colaborar com a tarefa de repensar os currículos padronizados e conservadores dos cursos de formação de pedagogas, vislumbrando aberturas para olharmos para as necessidades negligenciadas dessas profissionais (LOMBARDI, 2011).

Mantenho o princípio humanista de Guenther (1997) que embasou a pesquisa de mestrado (LOMBARDI, 2005), o qual valoriza o encontro educativo e processos educacionais contextualizados que possibilitem a emergência da multidimensionalidade do ser humano e façam figurar a relação do sujeito consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Guenther considera o ser humano como ponto central da educação, valoriza a aula, “momento concepcional” em que o educador e o educando encontram-se com a intenção expressa e aceita de fazer acontecer a educação, sem o qual “pouco teríamos a estudar sobre o assunto”. Guenther (1997, p. 40) afirma que “precisamos urgentemente aprender a investigar o momento do encontro educacional entre o professor e os seus alunos em toda a sua complexidade e simplicidade e em sua pequenez, que é, de fato, a sua maior grandeza.”

O princípio de Paulo Freire sobre a intervenção socioeducativa como sendo a matriz do conhecimento também se soma à metodologia como um valor, visto que este autor nos entusiasma a sermos tanto professoras como pesquisadoras reflexivas sobre nossas práticas, a fim de que saibamos percebê-las não como mero espaço de atuação rotineira − de práticas espontâneas ou quase espontâneas −, mas como lugar de curiosidade epistemológica.

Ao tratar da reflexão crítica sobre a prática como uma exigência da relação Teoria/ Prática sem a qual a prática se torna ativismo, Paulo Freire (1996, p. 26) afirma:

Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dignidade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanente sobre minha prática através da qual vou fazendo a avaliação do meu próprio fazer com os educandos. O ideal é que, cedo ou tarde, se invente uma forma pela qual os educandos possam participar da avaliação. É que o trabalho do professor é o trabalho do professor com os alunos e não do professor consigo mesmo.

A pesquisa da própria prática é tida como uma atitude de aprender com as estudantes tendo disponibilidade para o diálogo com elas, respeitando seus saberes, tendo consciência a respeito de meu inacabamento em relação ao conhecimento das identidades culturais. Nas palavras de Freire (1996, p. 26):

Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam em consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se reconhece a importância dos “conhecimentos de experiência feitos” com que chegam à escola. O respeito devido à dignidade do educando não me permite subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para a escola.

Por isso é aberto o círculo de discussão, um dos momentos de fala das estudantes e da minha escuta, que contribui em grande medida para reavivar memórias, levantar provocações e inquietações. As narrativas orais, as escritas e minhas notas de campo foram reconhecidas como meios reveladores da dinâmica de raciocínio e dos sentimentos das pessoas. Entretanto, as interpretações foram feitas principalmente com base nos depoimentos escritos. Dialogando com eles, verificando os temas que traziam, foram categorizados e interpretados, evidenciando os aspectos que seguem.

Temas emergentes: demandas de conhecimento de futuras pedagogas no campo dos estudos do e no corpo.

As demandas de conhecimento presentes no curso de Pedagogia têm estreita relação com as especificidades da formação de professoras para a Educação Básica, principalmente na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Assim sendo, as disputas pela política curricular no que tange aos estudos do corpo neste curso devem questionar: quais conhecimentos sobre corpo e movimento devem ser priorizados no curso de Pedagogia, a partir do reconhecimento e do respeito às instituições de Educação Básica como parceiras imprescindíveis à formação de professores, em especial às das redes públicas de ensino?2

A docência é uma profissão complexa, constituída desde nossas primeiras experiências como estudantes na escola, as quais se tornam heranças culturais que nos contam uma história, nos permeiam as crenças e os valores relacionados ao que acreditamos que seja ‘ser professora’. Visto que a disciplina “Educação, Corpo e Movimento” acontece no quinto semestre do curso de Pedagogia, quando muitas estudantes já trabalham em escolas pertencentes à região na qual a Universidade está localizada, suas experiências pessoais e profissionais são objeto de atenção no processo de formação corporal, no trânsito entre o caráter individual e coletivo de nossa profissão.

Levando isto em conta, a categorização e a interpretação dos dados escritos apresentaram a seguinte distribuição.

Tabela 1: Quantidade de fichas e de respostas escritas no total. 

Ano Fichas Encantamentos Decepções Total Respostas
2014 39 48 50 98
2015 44 55 60 115
2017 44 50 49 99
2018 37 42 61 103
2019 43 63 67 130
2020 34 57 43 100
Total 241 315 (49%) 330 (51%) 645

Tabela 2: Categorização das respostas escritas sobre “Encantamentos em relação à questão do corpo e do movimento ao longo da vida escolar” 

Encantamentos de 2014 a 2020
Categoria 2014 2015 2017 2018 2019 2020 Total
Fazer/produzir ações culturais e artísticas 17 24 20 16 28 18 123 (39%)
Corpos-brincantes 22 22 18 9 15 11 97 (31%)
Educação Física e culturas corporais 6 5 12 13 15 14 65 (21%)
Gestos docentes de respeito 3 4 0 4 5 14 30 (9%)
Total de Respostas sobre encantamentos do corpo na escola 315

A categoria “Fazer/produzir ações culturais e artísticas” reúne as narrativas que mencionaram ter memórias de encantamento relacionadas a: fazer arte com liberdade para fazer escolhas; danças; teatro; aulas práticas de experimentos variados; contação de histórias; exposições de arte; aulas de Arte (Dança, Teatro, Música e Artes Visuais); festas/gincanas/saraus.

A categoria denominada “Corpos-brincantes” congrega as narrativas de memórias das estudantes em relação a: ter espaços e tempos de brincar com liberdade para fazer escolhas; permissão para explorações lúdicas e movimento; construção de brinquedos; interação entre pares; interação com professores/as; existência de bons espaços internos ou externos na escola para brincar; objetos utilizados: brincadeiras com brinquedos, com materiais de arte e materiais não estruturados; brincadeiras de dançar e de dramatizar.

A categoria “Educação Física e culturas corporais” reúne todas as boas lembranças relacionadas a: jogos e brincadeiras; práticas de esporte; yoga e capoeira na escola; ter liberdade de escolhas nas aulas de Educação Física; participação em gincanas.

A categoria “Gestos docentes de respeito” se refere a lembranças sobre ações e atitudes de professoras/es que eram tranquilizadoras, de afeto, respeito e cuidado, dentre as quais, de compreensão e respeito em relação à necessidade das crianças de ter tempo de ócio.

Tabela 3: Respostas sobre decepções em relação à questão do corpo e do movimento ao longo da vida escolar” 

Decepções de 2014 a 2020
Categoria 2014 2015 2017 2018 2019 2020 Total
Problemas com próprio corpo 4 7 4 6 10 3 34 (10%)
Disciplinamento do corpo na escola 28 17 19 20 22 12 118 (36%)
Violência 10 11 10 9 9 7 56 (17%)
Educação Física 6 21 14 17 10 7 75 (23%)
Preconceitos 2 4 2 9 16 14 47(14%)
Total de respostas sobre decepções do corpo na escola 330

Da categoria “Problemas com próprio corpo” constam todas as narrativas que mencionaram dificuldades relacionadas a: padrões estéticos impostos pela sociedade; magreza; obesidade; altura; “estado”/condições/aparência física de pobreza; juízos sobre falta de habilidade pessoal da criança para a prática de esportes.

A categoria “Disciplinamento do corpo na escola” reúne as falas sobre: obrigatoriedade de participar de atividades da escola em geral; obrigatoriedade de dormir na “hora da soneca”; obrigatoriedade de permanecer em silêncio e imobilizadas por muito tempo; proibição de se movimentar e de brincar; enfileiramentos na sala de aula e fora dela; atos de opressão e repressão da criança; pouco tempo de intervalo; regras sobre vestimenta e postura física; proibição de ir ao banheiro; recebimento de castigos e advertências; problemas com datas comemorativas (não poder escolher par na quadrilha; obrigatoriedade de participar de desfile cívico).

A categoria “Violência” precisou ser criada para conter narrativas relacionadas a: castigos variados recebidos na escola e em casa (estes últimos, em decorrência de acontecimentos na escola), tais como: ter que prender os cabelos; ter que ficar de pé de costas na parede; serem privadas de participar de aulas consideradas “legais”/bacanas, como Arte e Educação Física; apanhar dos pais; atos de recusa de atendimento/socorro; brigas entre pares; ameaças e agressões verbais recebidas de professores e gestores; palmatória.

A categoria “Educação Física”, que aparece tanto trazendo boas memórias (Tabela 2) como lembranças ruins, neste caso se refere a: aulas de Educação Física “mal ministradas” e/ou feitas com desleixo; obrigatoriedade de participar de atividades; proibição de realizar por não ser “adequada”, veloz o suficiente, magra; receber punições do professor por “fazer errado”.

A categoria denominada “Preconceitos” agrupa memórias de sofrimento na escola devido a: episódios de racismo; gordofobia; discriminação de gênero/homofobia: proibição de atividades/esportes de meninos ou de meninas, exigências de ter comportamentos esperados de menino ou de menina.

Ao responderem à pergunta formulada, as estudantes fizeram emergir temas que, por vezes, permanecem submersos no currículo, como o do disciplinamento, da opressão, do racismo, dos preconceitos, da ausência de agência infantil na escola, da carência de tempos e espaços de brincar, de equívocos na configuração de práticas pedagógicas, compondo um cenário revelador de tensões contemporâneas que precisam ser estudadas no processo de formação corporal. Assim, após a categorização, me dedico a dialogar com os temas emergentes das memórias escolares, em interlocução com referências interdisciplinares. Considerando o escopo do artigo, não se faz possível analisar as categorias e, por isso, algumas delas foram agrupadas no momento da interpretação. O que aqui apresento é uma primeira conversa que estabeleço com os dados. O trabalho tem continuidade junto às estudantes nas aulas práticas e teóricas, percorrendo o semestre letivo.

Corpos-brincantes em luta contra as salas de decepção infantil.

A fase de categorização das falas das estudantes revelou que 123 narrativas (39%) citam memórias de encantamento relacionadas a fazer arte na escola e 97 (31%) boas memórias estão ligadas a ter espaços e tempos de brincar na escola, com liberdade para fazer escolhas. Dentro das decepções, a menção ao brincar também apareceu amiúde na categoria “Disciplinamento do corpo na escola”, entretanto em forma de reclamação quanto à proibição de brincar, de se movimentar e de ter acesso na escola a espaços propícios às brincadeiras, como o parque.

Considerando as questões de Tomaz Tadeu da Silva (2010, p. 14, 15) sobre a constituição do currículo − “o que eles ou elas devem saber? Qual conhecimento ou saber é considerado importante ou válido ou essencial para merecer ser considerado parte do currículo?” -, tornou-se possível verificar, a partir das vozes das estudantes, que as linguagens artísticas e o brincar são importantes na escola, sendo um saber essencial à formação de pedagogas.

S031 afirma que gostava das aulas de Arte no 4º ano, quando a professora dividia a sala em grupos para fazerem teatro ou dança. S044 considera que ter tido a possibilidade de apresentar duas peças de teatro na escola tenha sido encantador. S046 menciona a alegria de fazer teatro e dança na escola, apesar de, em meio à sua narrativa, revelar o quanto a escola pode ser um lugar de reprodução da gordofobia ao escrever:

Adorava balé quando era criança pequena e estava acima do peso, MUITO acima, mas a professora me amava! (S046)

As falas foram recorrentes ao mencionar participações em grupos de teatro, coral, aulas de dança e de música, ou em situações de experiência com os fazeres artísticos em meio à rotina escolar, como, por exemplo, poder cantar, fazer escultura de argila, rodas de danças, contação de histórias, criação de cordel e dançar com as músicas da rádio da escola no intervalo. As falas indicam a necessidade de compromisso da escola com a valorização das linguagens expressivas, no sentido de ter profissionais que dominam os saberes das artes em colaboração com a educação, no sentido de questionar como aprendemos, criamos e recriamos, como interagimos com o mundo, como a criança se desenvolve:

Aulas de música eram tranquilas, o professor nos dava liberdade para podermos nos expressar. Nos ensinava que a música se ouve com o coração e só assim se aprende a cantar e tocar algum instrumento (S052)

Eu gostava da aula de Expressão Corporal, na qual podíamos nos expressar sem medo nem vergonha (S054)

Estar livre para brincar nas aulas de Arte em que eu pude atuar, escrever peças, dançar e fazer intervenções musicais. (S063)

Uma das aulas mais legais eram as de respiração e quando tinha “Agita Galera”, que era quando os professores do coral levavam todos a uma praça para dançarmos. (S077)

Havia espaços em que alguns professores propunham como atividade ou projeto de trabalho a estruturação de peças de teatro, que podiam, inclusive, ser gravadas e editadas em forma de filmes e comerciais. Eu me divertia com meus amigos nessas atividades. Era prazeroso passar as tardes ensaiando e rindo com eles, além de no final ver o resultado. (S141)

Eu gostava da interação das crianças umas com as outras durante o teatro e da dança. (S241)

Nas narrativas de encantamentos nestas categorias emergiram, repetidas vezes, memórias de momentos em que ficavam “livres” para brincar com as outras crianças, sendo que as dramatizações e as danças são mencionadas como sendo jogo infantil também. Narram sobre diversos tipos de brincadeiras e sobre como se sentiam enquanto brincavam. As expressões relativas à liberdade, tais como “ficar livre”, “poder fazer” brincadeiras, “ter a possibilidade de”, “ter permissão para” e “ter liberdade para brincar” aparecem com grande frequência como sendo agradáveis e relevantes. O recreio foi mencionado frequentemente como um momento em que as estudantes, quando crianças, se sentiam no controle de suas atitudes, podendo escolher com quem conversar, sobre o que, com quem brincar e do que, inclusive tendo “liberdade de se expressar pelo movimento, de conhecer o próprio corpo.” (S222)

A sensação de ausência de tensão promovida pela liberdade de brincar acontece porque a criança experimenta autonomia e protagonismo nesta situação. Gilles Brougère (1998, p. 191) explica que, para que a situação do jogo seja criada, há uma decisão da parte dos jogadores: decisão de entrar no jogo, mas também de organizá-lo de acordo com modalidades particulares. “Sem livre escolha, isto é, possibilidade real de decidir, não há mais jogo e sim sucessão de comportamentos que têm sua origem fora do jogador”. O mesmo autor menciona que o brincar é marcado pelo signo da frivolidade e, por isso, nele relaxamos. Para ele, não há contradição ou oposição entre esta característica e seu valor educativo, já que a frivolidade, a qual minimiza as consequências da ação permitindo à criança tentar, seria justamente o que faz do brincar um lugar de experiência original. Daí, aprende-se jogando. Tizuko Morchida Kishimoto (1998, p. 140) esclarece:

O jogo, ao ocorrer em situações sem pressão, em atmosfera de familiaridade, segurança emocional e ausência de tensão ou perigo, proporciona condições para aprendizagem das normas sociais em situações de menor risco. A conduta lúdica oferece oportunidades para experimentar comportamentos que, em situações normais, jamais seriam tentados por medo do erro e punição.

Das narrativas das estudantes constavam memórias sobre a importância dos espaços para brincar. Com grande frequência foram feitas falas sobre a proibição de usar parques, jardins ou pátios das escolas. S229 recorda como seu maior encantamento em relação a corpo e a movimento na escola foi o “Subir na árvore para pegar amoras”. Estar perto de árvores e “Poder pegar frutas no pé” aparecem como encantadores para diversas pessoas, como S083, S140 e S026. A estudante S184 recorda, como melhor lembrança relativa a movimento na escola, “as subidas clandestinas nas árvores”. S050 recorda que a “professora da 4ª série levava muito a gente para brincar no gramado e debaixo das árvores da escola”. “Na 2ª série mudei de escola, onde tinha parquinho para brincar e espaço para dançar!” E S055 afirmou: “A professora deixava a gente brincar debaixo das carteiras na sala de aula.”

Jader Janer Moreira Lopes (2007, p. 52) afirma que “os espaços são formadores de nossa subjetividade” desde nossa entrada no mundo, quando nos colocamos nos diferentes colos, no seio da mãe, quando engatinhamos pela casa, quando exploramos os espaços da escola, da rua. De acordo com este autor, vamos nos geografizando, prenhe de lugares que nos formam e que carregamos para o resto da vida. Ele afirma ainda o quanto não é possível falar de infância sem articulá-la com a questão dos espaços pensados para ela. Isto nos leva a desejar romper com as “visões reducionistas e adultocêntricas que marcaram (e marcam) nosso olhar sobre as crianças e suas interações com o mundo” (LOPES, 2007, p. 54).

Ao serem perguntadas sobre seu maior encantamento com o corpo e o movimento na escola, futuras pedagogas, hoje adultas, tiveram como memória imediata as subidas clandestinas nas árvores - ilegal; feitas às escondidas; sem ninguém saber; ocultas − e a permissão para brincar debaixo da carteira. O que pensar da escola que não tem espaços para a criança brincar, onde é preciso brincar debaixo de uma carteira, caso uma professora permita? É um espaço que não tem foco na criança, colonizado por adultos que pensam as salas de aula não como lugar de encontro e troca, mas como “celas de aula” que reproduzem uma visão de educação opressora e disciplinadora do indivíduo desde tenra idade. Heranças transmitidas desde o início da República, nos anos 1930 a 1940, como afirma Kishimoto (2018), quando crianças pré-escolares eram “concebidas como tábula rasa, sentadas em cadeiras enfileiradas e imobilizadas em salas dos grupos escolares, com mobiliário e cadeiras inadequadas [...] recebendo a pecha de ‘salas de decepção infantil’” (KISHIMOTO, 2018, p. 34).

Percebe-se nas narrativas diversos aspectos importantes para repensarmos o currículo, dentre eles, a relação entre o brincar e a cultura. Alguns dos encantamentos do corpo na escola em se tratando das brincadeiras foram manifestados assim:

Brincar de pega-pega, polícia e ladrão e garrafão depois da aula sem ninguém reclamar de barulho ou de qualquer outra coisa! (S14)

Jogar yô-yô e bater figurinha. (S015)

Brincar no parque da Educação Infantil e de pular elástico. (S038)

Meu maior encantamento era a hora do recreio, quando as crianças brincavam de queimada, roda, amarelinha. (S30)

Meu maior encantamento era a liberdade de poder brincar, correr e me sujar no parque, na areia e brincar em outras atividades da Educação Infantil. (S32)

Era quando eu estava na pré-escola e a rotina era pesada, mas uma vez por semana podíamos levar um brinquedo. Era uma alegria enorme. (S34)

Meu maior encantamento era brincar de corre-cotia e coelhinho sai da toca. (S16)

Bambolê, bola, pular corda e outros brinquedos. (S152)

Brincar de roda! (S18) Brincadeiras de roda durante o recreio. (S156)

Brincadeiras de roda que não faziam diferenciação entre meninas e meninos. (S20)

Eu adorava a brincadeira da história da serpente que desceu do morro para procurar um pedaço do seu rabo. (S134)

Meu maior encantamento no Ensino Fundamental era ficar me empoleirando no trepa-trepa que tinha na escola. (S22)

A ida ao parque! Lembro que era um momento em que me sentia livre, virando de ponta cabeça no trepa-trepa. (S146)

O repertório de brincadeiras das comunidades contribui para a compreensão dos espaços educativos das crianças como lugar de confronto e diversidade. O brincar é cultura por ser resultado de relações, por ser contextualizado e por pressupor a exploração pelas crianças, que imitam, reinventam e criam movimentos em diálogo com seu grupo. Marcos Garcia Neira (2009) observa que, apesar de o discurso pedagógico contemporâneo ter assimilado o jogar como atividade relevante para o desenvolvimento e supostamente ter lhe criado um espaço na escola, as crianças não reconhecem a escola como espaço dos seus jogos. Este autor chama atenção para a importância da escola perceber a diversidade cultural como uma riqueza e compreender a cultura lúdica infantil − brincadeiras, danças, cantigas de roda − como fator identitário e muito importante quando se objetiva a construção de um currículo multicultural (NEIRA, 2008).

Um aspecto digno de nota está relacionado à menção feita frequentemente às memórias de interação entre adulto e crianças. A estudante S065 afirmou que o seu maior encantamento em relação ao corpo e ao movimento na escola acontecia no parque, quando as crianças podiam “explorar muito o lúdico na hora do lazer nos brinquedos. Brincávamos muito em um cantinho e os professores eram sempre muito carinhosos conosco”. Assim afirmaram outras estudantes:

Minha memória de encantamento é ter uma professora de Educação Física que mesmo estando próxima do momento de se aposentar e dando aula em uma pequena escola de um bairro rural onde eu estudava na 2ª série, participava com a gente de todas as nossas brincadeiras. (S158)

Na época de CEI (Centro de Educação Infantil), como a escola possuía apenas duas salas de aula, passávamos a maior parte do tempo brincando no parque e a professora fazia brincadeiras com a gente. (S13)

Na segunda série eu tive aula com um professor que se chamava Luiz Carlos. Era uma escola rural, tinha um quintal enorme, um pé de goiaba e ao redor da escola tinha muitas árvores. Sempre o professor ia brincar com a gente no quintal, eu subia no pé de goiaba (pegar goiaba para o professor). A gente brincava de bola, corria. Foi um ano muito divertido. (S017)

Esses breves excertos reforçam o entendimento de que a formação corporal de pedagogas está ligada à constituição da “atitude lúdica docente”3 e à necessidade desta profissional conhecer a importância do brincar para a criança, o repertório de suas experiências brincantes e os significados da cultura lúdica infantil. O papel da educadora de brincar junto com as crianças já foi abordado anteriormente como uma cooperação complexa que deve ser tema de estudos no processo de formação de professoras de Educação Infantil, a fim de que esta profissional esteja preparada para trabalhar com a criança, que tem no brincar sua forma de conhecer o mundo (LOMBARDI, 2005).

Durante a inserção em campo na pesquisa de Mestrado, registrei as orientações da Prof.ª Dra. Tizuko Morchida Kishimoto a este respeito, ressaltando o pensamento de Vigotski de que uma prática pedagógica adequada não passa apenas por “deixar a criança brincar”, mas sim pela parceria com os mediadores, ou seja, os adultos. Isto porque as informações nunca são absorvidas diretamente do meio, são sempre intermediadas explícita ou implicitamente, pelas pessoas que rodeiam a criança e carregam significados sociais e históricos. O conhecimento é construído não por uma pessoa sozinha, mas em parceria com outras pessoas. Por isso, a professora deve atuar em cooperação, não visando às funções maduras, mas aquelas funções em vias de maturação. Deve criar facilitadores para a criança, estruturas desafiadoras para que, por meio da ação lúdica, ela possa aprender (LOMBARDI, 2005).

O brincar é uma ação espontânea das crianças, mas a professora exerce papel pedagógico relevante no seu planejamento, com a preparação do ambiente e dos materiais, com a observação atenta e a possibilidade de brincar junto, aspectos que permitem conhecer mais sobre cada criança. Suas possibilidades de atuação envolvem: dar apoio, ideias, estimular e divertir-se; providenciar um ambiente adequado para o jogo infantil; selecionar materiais adequados; participar com as crianças como parceira; alternar o controle com as crianças; observar as brincadeiras de modo a saber quando distanciar-se, quando dar alguma ajuda ou estímulo; valorizar as iniciativas das crianças; permitir o protagonismo da criança, dando liberdade para que mudem as regras e a proposta inicial; não reforçando papéis sexistas (LOMBARDI, 2005).

Educação Física.

A categorização das narrativas revelou que 65 enunciados (21% dos encantamentos) pinçam boas recordações das aulas de Educação Física e 75 (23% das decepções) se referem a marcas negativas. Os sujeitos da pesquisa atrelam às aulas de Educação Física significados bastante variados ao longo de suas vidas escolares. Parte das estudantes relata que as boas lembranças estão ligadas a todas as vezes que professores respeitavam os ritmos de cada criança e davam opções de atividades, sem obrigar a uma única proposta de esporte e a sempre que foram respeitadas por estarem com dores ou machucadas. Em uma situação particular, a estudante S197 menciona que considerou muito bom quando professores de Arte e de Educação Física fizeram projetos conjuntos para estudar músicas e danças de diferentes culturas.

Entretanto, outras estudantes guardam recordações ruins, tais como S053, que escreveu que nas aulas de Educação Física as atividades solicitadas eram “uma tortura”. Outras narrativas rememoram:

A professora de Educação Física da 6ª série me deu nota vermelha porque eu errei os passos do basquete e não acertava a bola no cesto. (S050)

As aulas de Educação Física eram vazias, não havia troca de conhecimento. A professora deixava a quadra para os meninos jogarem bola, enquanto as meninas ficavam “à toa”. Quando queríamos jogar, tínhamos que insistir muito para ela liberar e sempre que o fazia, deixava por um tempo menor de uso da quadra para as meninas. Acredito que a Educação Física deveria cumprir o papel de que o educando conhecesse seu corpo, o espaço e suas capacidades. (S058)

Nas aulas de Educação Física nunca houve a escolha pela criança porque éramos obrigadas a praticar os esportes que o professor escolhia para a aula. (S071)

Eu não gostava das aulas de Educação Física porque de educação física não tinha nada. Quem já sabia jogar queimada ou vôlei se saía bem. Quem não sabia jogar, além de não aprender porque não era ensinado, ainda se sentia excluído, sendo o último ou penúltimo a ser escolhido para participar dos jogos. Como tudo valia nota, não havia como não participar das “aulas”. Mas eu, particularmente, só ia por obrigação, não por prazer. (S156)

Fazendo a crítica a este tipo de prática, Marcos Garcia Neira afirma que em tempos em que “democracia, justiça social, diálogo e inclusão são princípios basilares das políticas públicas em educação, é inconcebível a permanência de currículos que segregam, excluem e estigmatizam” (NEIRA, 2018, p. 7). Este autor afirma que as atividades realizadas durante as aulas de Educação Física não podem ser esvaziadas ou fragmentadas a ponto de perder seu significado pessoal, social e cultural. Numa perspectiva cultural deverão, prioritariamente, partir de práticas sociais lúdicas, atrelando às manifestações da cultura corporal debates que remetam a um posicionamento crítico e reflexivo dos estudantes (NEIRA, 2008). Ele sugere que os conteúdos curriculares da Educação Física proporcionem melhor condição para os alunos compreenderem o mundo em que vivem e a discriminação e exclusão de que são vítimas. Em oposição às atitudes rememoradas nas narrativas, Neira (2009, p. 38) afirma sobre a atitude docente desejada:

Incorporando o universo lúdico vivencial das crianças ao currículo da Educação Física, o professor também aprenderá, atualizando seus próprios conhecimentos, aprendidos em seu curso de formação, onde lhe foram apresentadas como universais. Se o professor for capaz de mudar e aprender, transformará a aula de Educação Física num espaço de co-construção de conhecimentos, em que todas as crianças, e o próprio professor estarão envolvidos num processo de troca e de confronto de conhecimentos, ajudando-se uns aos outros. Será o envolvimento das crianças em relatos e trocas de experiências vividas por elas em sua comunidade. Uns aprenderão com os outros, e os que num dado momento revelam saber menos do que outros serão ajudados, pelo professor ou pelos que já sabem.

Na contramão de fazer atividades com base nas perspectivas desenvolvimentista, psicomotora, esportivista, higienista, militarista, sem lastro cultural e sem conexão com as realidades locais, na Educação Física hoje figuram como princípios, o reconhecimento da cultura corporal da comunidade, a descolonização do currículo e a ancoragem social dos conhecimentos (NEVES; NEIRA, 2019). Neira (2009) critica o caráter monocultural arraigado na Educação Física e aponta para o fato de as práticas culturais de significação, dentre elas, o jogo, estarem sendo alçadas a uma posição de destaque na Educação Física que hoje se pratica.

Violência e preconceitos.

Outro aspecto que emergiu das narrativas como tendo marcado as memórias das estudantes em relação à questão do corpo e do movimento ao longo da vida escolar está ligado a alguns tipos de violência e a preconceitos, ambos significando registros de sofrimento na escola devido a episódios de: racismo; gordofobia; discriminação de gênero e homofobia; castigos variados recebidos na escola e em casa (estes últimos, em decorrência de acontecimentos na escola); atos de recusa de atendimento/socorro; brigas entre pares; ameaças e agressões verbais recebidas de professores e gestores. Os atos de violência apareceram em 56 falas (17% das decepções) em contraposição à categoria denominada “Gestos docentes de respeito”, que teve 30 relatos (9% dos encantamentos).

Por que indagar às estudantes sobre suas vivências em relação a corpo e movimento na escola? Uma das razões está no fato de entender que elas são coetâneas aos problemas sociais contemporâneos e trazem em seus corpos certas demandas que ainda não fazem parte do currículo - cujos conteúdos por vezes se mantêm obsoletos −, mas precisam fazer. A sala de aula é um universo repleto de pessoas tanto diferentes como caracterizadas por vivências escolares comuns, as quais precisam ser problematizadas. Dentre estas, foram mencionados tipos de violência que compõem o cotidiano da instituição educativa.

As estudantes relataram ser comum sofrer “violência verbal e física” por parte de professoras/es. Muitas lembram do “primeiro castigo” ou do castigo do qual tinham mais medo. S139 escreveu que tinha uma professora que agredia fisicamente as crianças, com vários “castigos físicos”, incluindo puxões de orelha. Alguns outros exemplos de suas falas:

A professora me humilhava quando fazia a turma rir de meus desenhos, os exibindo publicamente e dizendo que eram muito feios. (S055)

Tenho uma crítica em relação à palmatória que levei da minha professora da 4ª série quando criança na frente de toda a classe, assim como acontecia com os demais que erravam. (S056)

Guardo marcas por ter sido intimidada por professor que se sente superior ao aluno e os expõem, anunciando as notas publicamente para humilhar alguns. (S061)

Acho que era violenta a obrigatoriedade de ficar em pé na sala para ter que rezar no início das aulas, ser impedida de ir ao banheiro e ser vigiada por câmeras dentro das salas e ambientes da escola ao longo dos anos. Por ser mais alta, eu era colocada a sentar no fundo da sala de ala, porém não enxergava muito bem e meu rendimento caiu. Eu não prestava tanta atenção à aula, não me concentrava. (S181)

Um castigo que recebia com frequência era ficar sentado na sala de aula durante o intervalo escrevendo em uma folha de papel almaço: ‘Não vou mais conversar durante a aula’. (S062)

Cenas que foram categorizadas como sendo da ordem do “Disciplinamento do corpo na escola”, que somaram 118 relatos (36% das narrativas) e de “Problemas com o próprio corpo” (34 narrativas, representando 10% das decepções), podem ser compreendidas em grande medida como ligadas ou como fruto de certos tipos de violência. Venho investigando essa temática em diferentes realidades escolares e percebendo suas consequências nocivas (LOMBARDI, 2011). Diversas estudantes indicam que ser vigiadas o tempo todo na escola, inclusive por câmeras, era bastante opressor. Algumas apontaram para a vigilância na Educação Infantil como algo muito presente, até ao serem obrigadas a comer o que não queriam ou dormir sem estar com sono, o que consideram como forte agressão. As estudantes S016, S031, S050, S131, S139, S181 foram algumas, dentre muitas, que narraram cenas de controle do corpo da criança as quais representam, ao mesmo tempo, atos de disciplinamento e de violência, como a proibição de ir ao banheiro e suas consequências, que foi relatada com grande frequência como memória de violência física e psicológica. Foram muito recorrentes narrativas de disciplinamento e controle, como os breves excertos a seguir:

Uma professora da Educação Infantil, quando eu tinha 4 anos, não me deixou ir ao banheiro e eu fiz cocô na calça. Nunca senti tanta vergonha como naquele dia. (S050).

Uma decepção era ser controlada até nos momentos livres, de intervalo no parque, que o professor impunha regras nas brincadeiras durante o recreio, exigindo que as crianças fizessem competições e exercícios, como cambalhotas. (S051)

Diversas narrativas que compõem a categoria “Preconceitos” foram feitas, somando 47 relatos (14% das decepções), envolvendo principalmente racismo, gordofobia, discriminação de gênero e homofobia. Relatos de racismo foram feitos como tendo lugar desde a Educação Infantil, por parte de professores/as e de colegas.

Sobre o racismo, considero relevante mencionar um fato que tenho observado desde 2007, quando iniciei a docência na disciplina de Corpo e Movimento em cursos de Pedagogia, mesmo que a observação exceda o objetivo da presente análise, que é o de levantamento de demandas. Enunciados sobre cenas de racismo tendem a surgir somente no decorrer do semestre letivo. É comum que estudantes negras não realizem relatos no momento da avaliação diagnóstica sobre preconceito racial sofrido, mas, sim, o façam após iniciarmos os estudos sobre a corporeidade negra e a presença dos corpos negros na escola. Tenho refletido sobre a lógica que sustenta o preconceito racial e observado que, apesar da existência do racismo na cotidianidade, muitas pessoas pensam que vivemos em uma democracia racial. Tal problemática tem sido verificada pelo fato de que, após fazermos leituras sobre o tema do corpo negro e as debatermos, estudantes negras costumam surgir com percepções e memórias.

Por vezes, diferentes tipos de discriminação surgem juntos, como foi o caso de S159, que relata: “Eu não pude ser a gatinha dos Saltimbancos na 4ª série por ser gorda e preta, mesmo dançando e atuando melhor do que a menina ‘favorita da professora’.” (S159)

A discriminação de gênero e a homofobia se apresentaram como muito frequentes nas aulas de Educação Física a partir da “norma” de que meninas jogam vôlei e meninos jogam futebol ou em situações da rotina escolar, tal como acontecia com S190, que ouvia no dia a dia: “Se comporte como uma menina!!!” e com S073, que tinha uma professora de Educação Física que se incomodava muito com seu jeito, ordenava que ele se portasse “como homem” e o obrigava a jogar futebol, justificando que homens têm que saber fazer isso. Outras recordações similares foram:

Eu queria fazer capoeira, mas era obrigada a fazer ballet. (S129)

Algumas vezes eu gostava de dançar, porém essa era uma atividade que participavam, em sua maioria, as meninas. Eu sofria bastante insultos quando me arriscava a participar. Tais insultos me acompanharam para além daqueles momentos. Eu me sentia pequeno e desprotegido e não havia espaço na escola para manifestar minha angústia. (S141)

A movimentação de meu corpo sempre foi socialmente reprovada e na escola ele ouvia frases tais como: “Aja como homem!”; “Homem joga futebol”; “Não desmunheque!!!”; “Não seja afeminado!” (S162)

Nas aulas de Educação Física, durante o Ensino Fundamental, eu era obrigado a jogar futebol com os meninos, sem gostar, e proibido de jogar vôlei com as meninas, que era o que eu mais gostava. Também nessas aulas, mas durante o Ensino Médio, o professor obrigava os meninos a pagarem flexões. (S188)

As narrativas revelam necessidade de maior compreensão sobre a produção de feminilidades e masculinidades de crianças e adolescentes na escola, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. Luiz Ramires Neto (2006) verificou que a escola é um lugar de diversas contradições a este respeito, de um lado, como um lugar ainda permeado pela homofobia, marcado pela violência física e verbal, pelas pressões que reiteram o padrão heterossexual e pela constante referência à homossexualidade como um não lugar; de outro, como espaço onde também se observam o revide às agressões, as situações de acolhimento e a aceitação pelos colegas, bem como o empoderamento resultante da transgressão das normas de gênero. Este tema pode ser estudado em outros vieses produzidos por outras áreas de conhecimento. Devido aos objetivos da disciplina de “Educação, Corpo, Movimento”, o suporte teórico que tem norteado os estudos é aquele que enfatiza o ambiente escolar e as relações entre seus agentes, de preferência no sentido de refletir sobre valores e exercitar práticas docentes voltadas à equidade de gênero. Conforme relembra Sefton (2013), isto se faz em prol da convivência com as diferenças, mas sem desconsiderar a imersão dos sujeitos e da escola em uma sociedade sexista.

Da mesma forma, em relação à questão da negritude, o enfoque do debate está no corpo e nas culturas que ele acumula, tendo por objetivo, conforme menciona Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, construir possibilidades para pessoas negras “se fortalecerem para entrar em diálogo com pessoas de outras raízes étnico-raciais e, com essas, construir uma sociedade definitivamente democrática” (SILVA, 2015, p. 16)

Os campos de conhecimento que se dedicam ao estudo do corpo são diversos, sendo que as perspectivas a partir das quais cada área o analisa possibilitam múltiplas abordagens (LOMBARDI, 2014). Assim, os estudos do corpo se encontram em um território de pesquisas interdisciplinares que fazem parte de um campo múltiplo, polissêmico e complexo das ciências humanas e da educação, que possibilita trazer para o centro do debate educacional distintas dimensões da vida em sociedade (AYOUB; SOARES, 2019).

Inserida neste terreno, compreendo o papel da disciplina “Educação, Corpo e Movimento” de desconstruir preconceitos que tomam lugar nos corpos por meio de ações pedagógicas constantes e não como questão pontual. Em outras palavras, os tempos e os espaços de combate aos preconceitos deve romper com a lógica de atividades isoladas ou fragmentadas e adquirir característica processual. Além disso, por meio dessa disciplina, venho combatendo algumas tentativas de tornar esses temas irrelevantes, desqualificando a abordagem do assunto. Neste sentido, o debate visa não somente denunciar os preconceitos, mas problematizá-los.

Considerações

Retomando a questão-problema da pesquisa, “quais são atualmente as principais demandas de conhecimento de futuras pedagogas no campo dos estudos do corpo?”, observamos que o levantamento de dados, sua categorização e interpretação emergiram com temas relevantes a serem levados em conta no currículo do curso de Pedagogia. No que diz respeito aos encantamentos, as demandas revelam aquilo que nos é solicitado enfatizar no processo da disciplina de estudos do e no corpo na escola. Em termos de decepções, a questão aduz, ainda, a um olhar sobre determinadas práticas pedagógicas tradicionalistas que, não servindo mais à realidade atual das crianças e jovens, rogam ultrapassagem, abandono, renúncia.

Recolho narrativas em sala de aula na graduação e utilizo a avaliação diagnóstica para conhecer os temas de interesse da juventude porque a avaliação é um processo feito com rigor científico e sistemático que permite alguma precisão na coleta de dados e o desenho de um mapa que guie leituras, descrições e reformulações para a aprendizagem das estudantes. Esse instrumento também tem uma compatibilidade com os conteúdos da área. A coleta de dados por meio desse instrumento tem dimensão pedagógica e política. Pedagogicamente a avaliação diagnóstica é inclusiva, permite conhecer e planejar. Politicamente, é um recurso que democratiza aquilo que precisa ser ensinado, discutido. Consciente de que os resultados da avaliação diagnóstica e da escuta das narrativas devam servir de roteiro para a trajetória da disciplina, eles são articulados com os outros níveis que compõem o processo didático, que são as práticas corporais, os estudos teóricos e as reflexões.

Adotando a concepção de currículo apresentada por Silva (2010), para quem o currículo compreende tudo o que é aprendido na escola, a pesquisa defende o acolhimento das subjetividades e das diferentes culturas para responder à questão central das teorias do currículo, que é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. Isto porque, “além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade” (SILVA, 2010, p. 16), bem como de poder. Ora, acrescentando a este ponto de vista a noção de curadoria educativa4, a qual trago do terreno das ações culturais em arte contemporânea para o campo dos estudos do corpo, esta pesquisa indaga: escutar as expressões das estudantes do curso de Pedagogia sobre suas vivências com o corpo e o movimento ao longo da vida escolar pode ser uma forma de partilhar o poder na constituição do currículo?

Cunhada por Luiz Guilherme Vergara (1996, 2018) e investigada por Mirian Celeste Martins (2006), a noção de curadoria educativa significa selecionar e escolher temas, tópicos, assuntos que provoquem experiências, refletindo sobre este ato - com base em quais critérios fazemos as escolhas? Como propomos os encontros? Quais fontes e referências utilizamos? - e atuando como professoras-curadoras, mediadoras do encontro das estudantes com os temas de estudo que ampliem seus horizontes e repertórios. O curador é aquele que primeiro seleciona. Para Martins (2006), nas salas de aula, assim como no espaço expositivo, os educadores são também curadores. Diante disto, esta autora afirma que ser uma professora-curadora significa “estar entre muitos”, aceitando o desafio de não desconhecer cada um dos interlocutores do processo. E se a avaliação diagnóstica feita em nossas aulas puder ser um modo de partilhar o poder com as estudantes na curadoria da disciplina? Poderíamos, por meio desta estratégia, desvelar dinâmicas de dominação curriculares de saber e poder?

A meu ver, em nossa tarefa mediadora realizada “entre muitos”, em atenção “às falas, aos silêncios, às trocas de olhares, ao que é desvelado e velado” (MARTINS, 2006, p. 11), podemos tanto ampliar nossas escolhas como professoras-curadoras como interferir nas disputas pelo currículo, saindo do papel de quem tudo sabe e vivendo a experiência (MARTINS, 2006).

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1No ano de 2016, a avaliação diagnóstica não foi realizada utilizando-se deste instrumento, devido à necessidade observada naquele momento de experimentar outra forma de interação.

2Em consonância com o Art. 7º, inciso IX, do Capítulo III “Da organização curricular dos cursos superiores para a formação docente”, da Resolução CNE/CP n º 2, de 20/12/2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação).

3A noção de atitude lúdica encontra-se nos escritos de Henriot (1989), que propõe a distinção entre situação lúdica e atitude lúdica, e é retomada por Brougère (1998, p. 194), que confirma: “uma pessoa pode dar mostras... de uma atitude lúdica, sem que por isso haja jogo”. Ver Lombardi (2005).

4Curadoria educativa é um termo cunhado por Luiz Guilherme Vergara em um artigo publicado nos Anais do 8° Encontro Nacional da ANPAP, como: VERGARA, Luiz Guilherme. Curadorias Educativas. Rio de Janeiro, Anais ANPAP, 1996. Este texto foi republicado com outro título em: CERVETTO, Renata; LÓPEZ, Miguel A. (Orgs.) Agite antes de usar. Deslocamentos educativos, sociais e artísticos na América Latina. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2018. (referências completas ao final do artigo).

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 04 de Novembro de 2020

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