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Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.20 no.2 Florianopolis  2020  Epub Feb 01, 2021

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v20n2.p341-356 

Artigos

PROVOCAÇÕES E PRÁTICAS DE UM CORPO NO ENCONTRO DE CRIANÇAS COM KANDINSKY

PROVOCATIONS AND PRACTICES OF A BODY IN CHILDREN’S ENCOUNTER WITH KANDINSKY

PROVOCACIONES Y PRÁCTICAS DE UN CUERPO EN EL ENCUENTRO DE NIÑOS CON KANDINSKY

João Carlos Pereira de Moraes1 

1Universidade Federal do Pampa, Jaguarão, RS, Brasil.


Resumo:

O presente artigo visa analisar, a partir da problematização dos estudos de Kandinsky, modos de pensar o corpo por alunos do quinto ano do Ensino Fundamental do Colégio Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Para tanto, utilizou-se da cartografia como método de pesquisa-intervenção, mais especificamente uma oficina dispositivo a partir dos estudos do pintor dos movimentos corporais da bailarina expressionista Gret Palucca. Da experiência, considerou-se que alguns saberes em relação ao corpo entraram em evidência, tais como a proporção e o debate sobre o que constitui um corpo.

Palavras-chave: Corpo; Kandinsky; Arte

Abstract:

This article aims to analyze, based on an investigation of Kandinsky, how students in the fifth year of Elementary School, the Colégio de Aplicação of the Federal University of Santa Catarina (UFSC) think about the body. For this, cartography was used as a research-intervention method, more specifically, a device workshop based on the studies of body movements of the expressionist dancer Gret Palucca. Based on this experience, some knowledge about the body came into evidence, such as proportion, and the debate about what constitutes a body.

Keywords: Body; Kandinsky; Art

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo analizar, a partir de la problematización de los estudios de Kandinsky, las formas de pensar sobre el cuerpo por parte de los estudiantes en el quinto año de la Escuela Primaria del Colegio de Aplicación en la Universidad Federal de Santa Catarina - UFSC. Para este propósito, la cartografía se usó como un método de investigación-intervención, más específicamente un taller de dispositivos basado en los estudios de los movimientos corporales de la bailarina expresionista Gret Palucca. Por experiencia consideramos que algunos conocimientos en relación con el cuerpo se hicieron evidentes, como la proporción y el debate sobre lo que constituye un cuerpo.

Palabras clave: Cuerpo; Kandinsky; Art

Introdução

Para além de uma construção biológica, o corpo se constitui quanto produção histórica e cultural. Nesse sentido, ao longo da história da civilização e em diversos campos do conhecimento, tentou-se abarcá-lo e descrevê-lo como conceito. Para tais elaborações, diferentes formas de saberes entraram em funcionamento. Entre eles, podemos apontar o campo da Arte e da Matemática.

Especificamente nas artes plásticas, esse artigo apoia-se em Wassily Kandinsky para elaborar construções sobre a temática. Junto a isso, aproxima-se ainda de crianças com dez anos de idade para compor narrativas sobre o corpo. Perante isso, esse artigo procura analisar, a partir da problematização dos estudos de Kandinsky, modos de pensar o corpo por alunos do quinto ano do Ensino Fundamental do Colégio Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

Para compor o artigo, nós o dividimos nas seguintes etapas: (1) Relato sobre a vida e o pensamento de Kandinsky; (2) O estudo do artista sobre movimento e espaço do corpo de Grett Palucca; (3) Aspectos metodológicos da pesquisa; (4) Alguns resultados e suas discussões; e, por fim, (5) as nossas considerações finais.

Wassily Kandinsky: aspectos históricos e filosóficos

No dia 4 de dezembro de 1866, nasce um novo integrante da burguesia moscovita, Wassily Kandinsky. Filho de Vasili Silverstrovich e de Lydia Tikheeva, Kandinsky não recebeu uma educação diretamente de seus pais. Após a separação do casal, o artista ficou sobre a responsabilidade de sua tia Elisaveta Tikheeva, a quem denota o “amor pela música, pelo conto e, mais tarde, pela literatura russa e pela natureza profunda do povo russo” (KANDINSKY, 1991, p. 71).

Além dos itens anteriores, Kandinsky possuía paixão pela cor, não reduzindo-a à exposição do que é visto. Em sua obra, a cor recebe contornos pelo olfato, no perfume da umidade, ou pela tentação que produz no paladar (KANDINSKY, 1991). Embora, desde a infância, fosse apaixonado pela cor, Kandinsky formou-se em direito, acessando e passando a pertencer ao universo dos intelectuais europeus.

Na Universidade de Moscou conheceu, além dos movimentos políticos, a etnografia. A partir de 1889, passou a se dedicar mais intensamente a esse campo de estudo, o que lhe permitiu, segundo ele, ver a essência dos povos. Num dos seus estudos etnográficos, a pedido da Sociedade das Ciências Naturais, Etnografia e Antropologia, Kandinsky viajou para a região Vologda, ao norte da Rússia, fazendo registros sistemáticos dos costumes religiosos dos camponeses da região. Em Vologda, ele uniu dois elementos que o haviam motivado desde a infância: a cultura russa e a cor.

Além dos estudos etnográficos, outros dois encontros marcaram uma renovação nos interesses do pintor. O primeiro deles ocorreu quando ele se deparou com o Impressionismo. Nos dizeres de Murguia (1999), esse movimento congregava artistas que lutavam por uma pintura que se distanciasse da tradição perspectivada do Renascimento, contrariando o seu “repertório vazio e oco de preceitos rígidos que, longe de representar as coisas tal como eram, representava meras idealizações” (p. 40).

Os impressionistas buscavam representar a luz natural e os objetos em sua efemeridade e movimento, objetivando uma arte mais solta e livre, diferente daquela produzida sobre a base da perspectiva. Kandinsky teve acesso a essas ideias quando, ao final do século XIX, se deparou com uma série de obras do movimento, como “Medas de Feno”, do francês Claude Monet (1840-1926).

Ainda que Kandinsky demonstrasse certa inquietude por seus estudos etnográficos, e também pelo movimento impressionista, nada, em seus escritos, superou o papel dado à música, sobretudo à ópera de Lohengrin, de Richard Wagner (1813-1883). Esta, mesmo finalizada em 1848, teria imposto algo que soava novo a Kandinsky. Os relatos de Kandinsky sobre seu encontro com a ópera de Wagner nos fazem pensar sobre a relevância que, provavelmente, essa obra teve na criação de sua arte. Em Lohengrin:

(..) os violinos, os baixos profundos e, mais particularmente, os instrumentos de sopro personificavam, então, para mim toda a força das horas do crepúsculo. Via mentalmente todas as minhas cores, elas estavam diante dos meus olhos. Linhas selvagens, quase loucas, desenhavam-se ante mim. (KANDINSKY, 1991, p. 78).

Frente a essas provocações, a profissão de advogado tornara-se insatisfação, conduzindo-o a “uma repulsa insuperável” (KANDINSKY, 1991, p. 77). Aos 30 anos, Kandinsky inicia a carreira de pintor, pois “só a arte tinha o poder de transportá-lo fora do tempo e do espaço” (KANDINSKY, 1991, p. 61).

Nas primeiras obras, em que eram necessárias produções próximas das leis da natureza, Kandinsky considerava que os corpos produziam “um efeito repugnante e era necessário impor-se uma forte coação para reproduzi-los” (KANDINSKY, 1991, p. 95). Uma imagem corporal só deixava de ser enfadonha quando era possível associá-la a questões pertinentes ao interior do corpo, ou seja, a aspectos subjetivos e morais:

As leis da construção da natureza se revelavam em cada uma [representação da face] de maneira tão completa, tão irrepreensível, que lhes conferiam a cor da beleza. Muitas vezes, diante de um modelo ―feio, eu me dizia: ―Como é inteligente!‖ E é, efetivamente, uma inteligência infinita que se manifesta em cada detalhe: qualquer narina, por exemplo, desperta em mim o mesmo sentimento de admiração que o vôo de um pato selvagem, a ligação da folha ao ramo, o nado da rã, o bico do pelicano, etc. (KANDINSKY, 1991, p. 96).

A partir desse momento, o artista decidiu estudar as sensações que as formas e as cores podem suscitar no interior dos sujeitos. Para ele, a Arte deveria se engajar na tentativa de “romper com fórmulas consideradas índices de uma civilização materialista decadente” (MENON, 2014, p. 124), o que o fez buscar diversas maneiras de pensar uma arte que substituísse o modelo da técnica da perspectiva, que remetia ao materialismo da sociedade ocidental. A pintura almejada deveria ser regida pela essência da “vida moral e espiritual, característica das relações sociais nas sociedades não contaminadas pela ‘filosofia materialista’” (MENON, 2014, p. 127).

Além dos aspectos citados, o pintor se aprofundou nas concepções místicas exotéricas provenientes de suas leituras de Madame Blavatsky. No início do século XX, o pensamento teosófico de Blavatsky emergia como um Evangelho Universal, combatendo a tendência materialista da sociedade e as histórias irracionais das instituições religiosas, que só culminavam na perda de fé generalizada (BIRCHAL, 2006). A teosofia proclamada por Madame Blavatsky não era considerada uma religião em si como muitos afirmavam, mas “o substrato e a base de todas as religiões e filosofias do mundo, ensinada e praticada por uns poucos eleitos. Considerada do ponto de vista prático, é puramente ética divina” (BLAVATSKY, 1973, p. 8). Para essa “ética divina”, a perfeição seria possível somente nas raízes do saber, naquilo que este conservasse como essência. Ao transpor tais princípios para a pintura, Kandinsky compreendeu que a produção de uma arte verdadeira só aconteceria se ela retornasse aos seus elementos primitivos, ou seja, aos

(...) símbolos de forças inconscientes originárias, das quais testemunham os mitos, e que são, por sua vez, entendidas como forças da natureza. Estas forças seriam aquelas que determinam a essência comum entre indivíduo, comunidade e a natureza. São forças centrípetas e centrífugas que habitam todos os homens, à medida que são seres sociais e biológicos, e das quais alguns estariam separados desde há muito tempo pela domesticação que operou o processo civilizatório. Ainda que esta separação seja um produto da cultura, é por intermédio de uma prática cultural, a arte, que se pode aceder a esta ordem primordial. (MENON, 2014, p. 127).

A partir da teosofia, Kandinsky percebeu que nem todas as suas obras eram de natureza igual, acabando por conceber às suas produções três categorias. As primeiras, definidas como impressões, são aquelas elaboradas a partir da temática paisagem; as demais, composições, são pinturas criadas por meio de uma ponderada ação construtiva dos elementos do quadro; e as improvisações, as mais imediatas e quase inconscientes, com imagens que derivam de eventos de caráter emotivo e interior. Estas últimas carregam o caráter primitivo imaginado pelo artista, por serem obras não contaminadas pela civilização nos aspectos técnico, econômico e social.

Na compreensão de Kandinsky, a criação de categorias para as próprias pinturas e o esforço para acessar o espírito humano não configuravam, por si só, o seu dever de pintor. O verdadeiro artista carregaria consigo a responsabilidade de elevar a alma do observador a um patamar semelhante ao seu, algo possível somente por uma educação do olhar. Em 1909, para criar observadores aptos, o pintor iniciou a escrita de Über das Geistige in der Kunst (Do Espiritual na Arte), configurando uma tentativa de explicar os pressupostos da arte como elemento condutor da humanidade e suas relações com o princípio da necessidade interior, produzindo o abstracionismo.

Após o contato com movimentos, como o suprematismo e o construtivismo, o estilo abstracionista de Kandinsky se transformou, revelando uma crescente ênfase pelas formas geométricas puras, desligadas do pressuposto naturalístico. O artista deu início à sua busca por uma teoria que evidenciasse as formas primitivas condizentes com a alma do sujeito. A partir disso, estudos mais sistematizados sobre os conceitos de ponto, linha e plano começaram a se delinear em seus trabalhos, colocando em prática seus escritos ‘Do Espiritual na Arte’.

Diante desse primeiro estudo sobre a história de Kandinsky é que seu estudo do movimento e do espaço de Gret Palucca por ele desenvolvido tomou relevo em nossas discussões. É sobre essa questão que a próxima seção será pautada.

Uma breve análise do corpo em Kandinsky: movimento e espaço de Gret Palucca

O domínio completo [do corpo] é impossível sem precisão. Precisão é o resultado de um extenso trabalho. Mas a aptidão para o exato é inata e uma condição extremamente importante de grande talento. A dança de Palucca é multifacetada e pode ser examinada a partir de diferentes pontos de vista, mas o que eu gostaria de enfatizar aqui é a rara construção exata, não só da dança em seu desenvolvimento temporal, mas, principalmente, a construção exata dos momentos isolados, o que são definidas por meio de fotos instantâneas. Alguns exemplos fornecem duas características importantes dessa construção: 1) A simplicidade de toda a forma. 2) O elevar-se para a grande forma. Ao leigo pode parecer fácil, porém a artista sabe como valorizar essas qualidades. A forma simples e grande é aos poucos concedida. Nada demonstra mais minha afirmação que a tradução das fotos [de Rudolph] em esquemas gráficos. A precisão também rasga as dobras e extremos do vestido. Além disso, a “matéria morta” é subordinada à grande construção. As fotos fornecem formas rígidas desmontadas, que são, em alguns momentos, o princípio do desenvolvimento e, outras, o seu ponto culminante. O surgimento orgânico e lento da forma, bem como seus períodos de transição, não são perceptíveis, só podendo ser alcançado através de um retardador que amplie surpreendentemente o campo de observação. A dança de Palucca deveria ser fotografada com um desses retardadores, através do qual se torna possível a comprovação exata desta dança rigorosa. Eu não quero ser mal interpretado: Eu apenas examinei aqui um aspecto da arte de Palucca. Mas este lado é, especificamente hoje, de uma importância especial: estamos sob o signo de uma ciência nascente das artes [abstracionismo]. Espero que Palucca faça contribuições valiosas neste campo. (KANDINSKY, 1926, p. 1).

Eis a descrição feita por Kandinsky sobre os movimentos e a exploração do espaço presentes na dança de Gret Palucca1. A narrativa pertence à “Tanzkurven Zu den Tänzen der Palucca” (1926), um estudo do corpo da bailarina realizado pelo pintor. Composto de cinco páginas, o pequeno ensaio contém quatro imagens abstratas em que o artista relaciona as fotos produzidas por Charlotte Rudolph2 com corpos desenhados através dos elementos: ponto, linha e plano, elaborados em sua teoria.

No ano de 1926, tal estudo tornou-se uma das mais divulgadas manifestações artísticas na Alemanha. Além de ter sido publicado pelo próprio artista, o estudo compôs, na íntegra, uma edição da aclamada revista cultural Das Kunstblatt (O Livro de Arte), sendo também anexado ao livro Ponto e Linha sobre o Plano e se tornado a propaganda da escola de dança de Palucca.

Nesta seção, propomos acompanhar o pensamento do artista ao construir seu estudo e as ressonâncias interiores que ele objetivava atingir no público que, por sua vez, observaria seus desenhos. Assim, nos próximos parágrafos, apresentamos as quatro imagens, relatando nossas considerações e relações produzidas a partir do estudo realizado neste capítulo.

Fonte: Kandinsky (1926)

Figura 1 Imagem Abstrata Corporal I 

Na Figura 1, percebemos a busca por um corpo vertical, uma vez que a imagem é composta por linhas diagonais que tendem a essa direção. No pensamento de Kandinsky (2005), essa posição da reta representa a trilha deixada pelo ponto em movimento rumo ao infinito. Algo que não cessa, procurando sempre o novo. Sendo assim, a figura ressoa o dinamismo e a expressividade do corpo que investiga o espaço no qual trabalha: o plano da composição artística (dança e pintura). Há, igualmente, uma mínima força que puxa a linha para a horizontalidade, produzindo um corpo que domina o ambiente. O espaço inferior é totalmente ocupado pelas linhas diagonais que se associam às pernas da bailarina. Os pés fixos no chão e as pernas separadas nos conduzem para uma preparação do agir. Enquanto a parte superior traz a leveza necessária para o corpo na dança, a inferior sustenta e transmite a segurança do corpo estável e potente, mas que nunca estará imóvel.

Fonte: Kandinsky (1926).

Figura 2 Imagem Abstrata Corporal II 

Na Figura 2, existe um domínio de linhas curvas, caracterizado como um processo de repetição de arcos. Para Kandinsky (2005), um arco remonta à noção de perfeição fundamentada na consciência e na maturidade humana. No desenho, as linhas curvas apontam para a flexibilidade extrema e perfeita do corpo de Palucca, proveniente de sua maturidade e consciência artística. Enquanto o corpo isento de trabalho prescreve uma linha reta no espaço, a curva aponta para o limite da máxima maleabilidade do movimento. Além da repetição de arcos, Kandinsky utiliza uma linha angular que tende ao ângulo reto, ou seja, para contrastar com a maleabilidade, utiliza a precisão que uma linha angular reta ressona no interior do observador, o que acarreta o pleno equilíbrio para o plano da obra. Por fim, a composição como um todo é orientada para o lado esquerdo e superior do plano, o que nos remonta à leveza, à emancipação e à liberdade do corpo representado.

Fonte: Kandinsky (1926)

Figura 3 Imagem Abstrata Corporal 

Na Figura 3, o olhar se direciona às linhas inferiores do desenho. São duas diferentes tipologias de linhas que constroem as pernas da bailarina, uma linha angular reta e uma linha reta. A primeira sustenta o corpo, fixando-o ao chão, enquanto a outra direciona nosso olhar para o canto superior esquerdo. Nessa relação entre as linhas, encontramos um misto de precisão e exatidão dado pelo ângulo reto que, fugindo da rigidez, utiliza-se da linha reta para acrescentar calor e sutileza ao corpo representado. Entretanto, para não deixar que a leveza da parte superior do plano prescreva uma desordenação ao desenho, juntamente com a tendência ao infinito da linha reta, Kandinsky insere a presença de outra linha reta (o braço), que impulsiona novamente as forças corporais para o campo inferior do plano. Essas forças são dispersadas na abertura final dos dedos da bailarina.

Fonte: Kandinsky (1926)

Figura 4 Imagem Abstrata Corporal 

Na Figura 4, existe a presença dominante de um corpo que tende ao vertical, cujo equilíbrio de forças se situa no encontro da linha horizontal, que representa os pés da bailarina, com as angulares complicadas (quase verticais), que correspondem ao corpo. Isoladas, essas linhas denotariam uma desestruturação da obra; juntas, se anulariam no ponto de encontro. Este ponto, embora imperceptível na visão do todo, elabora uma seção de pausa e devir movimento, podendo ser tanto o frio (horizontal) ou o quente (vertical). O infinito potencializado pela verticalidade é contido pela pequena linha de calmaria da horizontalidade. Embora exista esse balanceamento, isso não significa a estagnação total. Há uma tensão linear angular que ora traz o temor pelos braços em ângulo agudo, ora a ansiedade pelos joelhos em ângulo obtuso. Na maior parte, o corpo é produzido por linhas zigue-zagues que, ao irem para a parte superior do plano, se distanciam, como se a força do instável exercida sobre elas fosse se dissipando.

Questões Metodológicas... Cartografia e Dispositivo

Ao considerar que a pesquisa visa analisar, a partir da problematização dos estudos de Kandinsky, modos de pensar o corpo por alunos do quinto ano do Ensino Fundamental do Colégio Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, delineamos como método de estudo a cartografia. A cartografia é um método formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2000) que visa mais acompanhar processos do que representar resultados. Nele, não existem regras rígidas e, muito menos, a intenção de criar um estudo homogeneizante dos acontecimentos dados no campo. A partir deste pressuposto, nós construímos uma oficina problematizadora sobre as construções corporais em Kandinsky com a intenção de potencializar nos estudantes discussões acerca de discursos que compõem a imagem do corpo humano.

Na oficina, a finalidade primeira não era ensinar algo para os alunos do quinto ano do Ensino Fundamental, mas produzir com eles um mapa3 dos dizeres que contornam a imagem do corpo naquela sala de aula. O papel do pesquisador era, então, criar ambientes favoráveis de debate, cultivar uma atenção suspensa e dar ênfase aos pontos discutidos que, possivelmente, tragam sentidos referentes ao tema de pesquisa.

Entretanto, Kastrup e Barros (2009) relatam que toda pesquisa pautada na prática cartográfica requer procedimentos concretos para desembaraçar as linhas que compõem o campo. Para tal, embasadas nos estudos de Deleuze (1990) e Foucault (2007), as autoras apropriam-se e colocam em funcionamento nas pesquisas cartográficas o conceito-ferramenta de dispositivo. Na definição de Deleuze (1990), os dispositivos são considerados como “máquinas que fazem ver e falar” (DELEUZE, 1990, p. 155), isto é, são elementos capazes de potencializar discussão, pensamentos e efeitos nos modos de ser e realidade de dizer do grupo em que ele é posto em ação.

Nesta pesquisa, o dispositivo utilizado foi construído mediante a oficina CorpoFantasia, em que são feitos desenhos de corpos a partir da ópera Lohengrin e do vídeo de dança de Gret Palucca e discussão sobre os corpos produzidos por Kandinsky. Com o dispositivo mencionado, a pretensão era dar a ver os saberes que entraram em processualidade no campo de pesquisa e condizem com a geração de modos de ver o corpo.

Resultados e discussões... A oficina

Ingressamos nas atividades da oficina. Ela começará em um lugar diferente.

Deslocamo-nos para uma casa de bonecas, já diria uma das estudantes. Estamos na sala do 1º ano do Ensino Fundamental. Um espaço composto por objetos pequenos: cadeirinhas, mesinhas, livrinhos, desenhinhos... Tudo muito organizado. As crianças se acomodam, como se o gigante de João e o Pé de Feijão fizesse uma visita à casa dos sete anões da Branca de Neve. Enfim, eu posso começar a oficina. (DB 03/09)

Fonte: Paulthomasonwriter.com.

Figura 5: Lohengrin 

Eu: Vou apresentar uma música e quero que vocês digam no que ela pode se relacionar com o corpo.

A ópera de Lohengrin de Richard Wagner se inicia. Risadas curtas acontecem de início. Já durante a música, alguns estudantes fazem cara de sono e outros dublam o “exagero” operístico... Sinto que no espaço corpos incomodados começam a aparecer. A música chega ao fim e as palmas vêm logo em seguida.

Eu: O que vocês acharam da música?

Sala em coro: Legallllllllllll!

Antônio: É legal... Ela é feita por uma orquestra, um corpo musical...

Júlia: Sim... Um corpo não precisa ser necessariamente um corpo humano, mas pode ser o corpo de uma orquestra... Um corpo de música... (...)

Eu: Agora, eu vou passar um vídeo e quero que vocês pensem o que ele tem a ver com o corpo.

Inicio o vídeo da dança de Gret Palucca. As reações são as mesmas da ópera de Richard Wagner, sonolência e imitação. Termina a apresentação e, novamente, as crianças batem palma.

Eu: O que vocês acharam?

Antônio: Ixe! Não gosto desse tipo de dança.

Eu: Aé! Por quê?

Felipe: É porque... Sei lá... O tipo da dança a gente não gosta. O jeito da movimentação e a música no fundo, eu não gosto muito.

Eu: Alguém tem outra opinião?

Lorena: Eu não gostei porque achei muito simples. E parece que a música falava uma coisa e ela fazia outra. Ela tinha um movimento lento e o figurino era estranho... Ai!... E está tudo preto e branco.

Eu: Hum! E o que vocês acharam dos movimentos dela?

Manuela: Eu achei que acompanhou a música... E pra mim não importa o figurino. (TP 03/09)

(...) No caminho de volta para a sala do 5º ano, diversos barulhos se instauram. Naquela pequena distância entre uma sala e outra, estudantes dançam pelo corredor e dublam óperas. Paródias construídas na linha tênue entre o zombar e o expressar-se. Novamente na sala da turma, todos se acomodam (...).

Eu decido apresentar mais formalmente a ópera de Richard Wagner e a dança expressionista de Gret Palucca. Descrevo para a sala a relação de Kandinsky com tais manifestações artísticas, contando que o pintor sentiu-se mobilizado a tal ponto por elas que produziu quatro representações corporais na época. A primeira imagem é posta na lousa.

Fonte: A pesquisa

Figura 6 Corpo em Kandinsky (Reprodução) 

Logo de imediato, eu ouço conversas miúdas e diversas frases soltas no ar:

- Que estranho...

- Parece uma árvore caindo...

- Isso é de um artista?

- É corpo mesmo? (DB 03/09)

Para alguns alunos, as obras não parecem corpos. Quem sabe linhas atravessadas ou rabiscos.

(Lorena - 03/09)

(Andréia - 03/09)

Se não são corpos, o que são as imagens? A primeira imagem...

Fonte: A pesquisa

Figura 7 Corpo em Kandinsky I (Reprodução de Manuela) 

(César - 03/09)

(Vinícius - 03/09)

A segunda...

Fonte: A pesquisa

Figura 8 Corpo em Kandinsky II (Reprodução de Manuela) 

(Gisele - 03/09)

(Andressa - 03/09)

Para outros alunos, as imagens remetem a detalhes do corpo... Corpos incompletos...

(Vitor - 03/09)

A terceira imagem...

Fonte: A pesquisa

Figura 9 Corpo em Kandinsky III (Reprodução de Manuela) 

(Antônio - 03/09)

(Andressa - 03/09)

E a quarta imagem...

Fonte: A pesquisa

Figura 10 Corpo em Kandinsky IV (Reprodução de Manuela) 

(Antônio - 03/09)

(Gisele - 03/09)

Mas por que não corpo? Por que um corpo incompleto? O que falta?

Após os alunos olharem para os quatro desenhos de Kandinsky, eu inicio a discussão:

Eu: O que vocês acham dos corpos que Kandinsky fez?

Giovane: É estranho. Parece que ele não sabe desenhar, falta largura.

Manuela: Eu achei legal, pra mim não tem sentido, mas pra ele tem...

Iago: Pra mim é só rabisco.

Eu: Por quê?

Iago: Porque faltaf orma... Tipo assim (com as duas mãos abertas, Iago faz como que um contorno de cilindro) (TP0 3/09 )

Falta lar gura, fa ltafor ma. ..Porém, parecequeI agore lem braalgoma is eumco ntornocilíndr icoéfeitonoespaçova zioems ua frente. Talve z ele este jaserefe rindo aovol ume eaprove itandopar a englobar a forma, a largura e o contorno em uma grandeza só.

Acreditoqu easituaçã ore monte aomesmoconceitou tilizadopel aprof essorada sal a. Nu maf rasesemelhan tea e ssa, elam edisse:“ Pod e ser in teressant eutilizarm ose stescorpos eu mlápisque faça sombreado para criar volume... Uma boa ideia para trabalhar o conceito”.

Considerações finais

Para mim, de alguns saberes que entraram em movimento nas observações, discussões e oficina, ressalto as ideias de proporção e completude do corpo, bem como as expectativas da sua produção. Estes saberes emergiram nos contatos entre nosso grupo, os quais considero que compõem o mapa da experiência que vivemos.

Na oficina em questão, nota-se a emergência do volume. Ele se torna parâmetro para definir se algo é, ou não, corpo. Sua falta nas composições com linhas e pontos remete a uma impossibilidade de tais elementos constituírem um corpo, no máximo, algo que se assemelha a ele. O volume adquire, também, o papel da medida capaz de fornecer corpos em terceira dimensão e que sejam detentores de massa.

Referências

BIRCHAL, F. F. S. Nova Era: uma manifestação de fé da contemporaneidade. HORIZONTE, v. 5, n. 9, p. 97-105, 2006. [ Links ]

BLAVATSKY, H. P. A Chave para a teosofia. Brasília: Ed. Teosófica, 1973. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia - Vol. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000 [ Links ]

DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: DELEUZE, G. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. [ Links ]

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. 24. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007. [ Links ]

KANDINSKY, W. Ponto e Linha sobre o Plano. Tradução de José Eduardo Rodil. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]

______. Olhar no Passado. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1991. [ Links ]

______. Tanzkurven Zu den Tänzen der Palucca. 1926. [ Links ]

KASTRUP, V; BARROS, R. B. Movimentos-funções no dispositivo na prática da cartografia. In: PASSOS, E; KASTRUP, V; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 76-91. [ Links ]

MENON JR, W. R. Espiritual na Arte e Magia. A Noção de Gênio na obra de Kandinsky. Dois Pontos, v.11, n. 1, 2014 . [ Links ]

MURGUIA, E. I. Cenário histórico do movimento impressionista. Revista Impulso (Piracicaba), Piracicaba, v. 11, 1999. [ Links ]

1Gret Palucca (1902-1993), bailarina expressionista alemã que entre 1920 e 1924 integrou a escola de Mary Wigman. Em 1924, ela criou sua própria escola em Dresden (Alemanha).

2Fotógrafo e professor da Bauhaus.

3Utiliza-se mapa mediante a compreensão de Deleuze, em que um mapa “é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantes. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 22).

Recebido: 19 de Março de 2020; Aceito: 03 de Novembro de 2020

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