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Contrapontos

versão On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.21 no.1 Florianopolis jan./dez 2021  Epub 20-Maio-2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v21n1.p68-78 

Artigos

O ENSINO REMOTO NA REDE MUNICIPAL DE SANTO ANDRÉ: ENTRE INTENÇÕES E A REALIDADE

REMOTE TEACHING IN THE MUNICIPAL NETWORK OF SANTO ANDRÉ: BETWEEN INTENTIONS AND REALITY

LA ENSEÑANZA A DISTANCIA EN LA RED MUNICIPAL DE SANTO ANDRÉ: ENTRE INTENCIONES Y REALIDAD

Maria Gabriela Mills Cammarano1 

Sanny Silva da Rosa1 

1Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, SP, Brasil.


Resumo:

E

ste artigo descreve e discute as estratégias adotadas pela rede municipal de Santo André durante a pandemia de Covid-19 no ano de 2020. Analisa as normativas exaradas pela Secretaria Municipal de Educação e problematiza as orientações pedagógicas para o ensino remoto frente às reais condições das unidades escolares para garantir o direito de acesso à escola e a uma educação de qualidade. Evidencia as contradições entre os propósitos declarados no discurso oficial e a real preocupação dos órgãos centrais com as políticas de resultados que concorreram para a intensificação do trabalho dos profissionais de educação sem, contudo, lograr mitigar o aprofundamento das desigualdades educacionais em meio ao contexto emergencial em decorrência da pandemia.

Palavras-chave: Ensino Remoto; Pandemia; Covid-19; Práticas Docentes; Políticas Educacionais

Abstract:

This article describes and discusses the strategies adopted by the municipal network of Santo André during the Covid-19 pandemic in the year 2020. It analyzes the regulations issued by the Municipal Department of Education and problematizes the pedagogical guidelines for remote teaching in the face of real conditions of school units to guarantee the right of access to school and quality education. It highlights the contradictions between the stated purposes in the official discourse and the real concern of Organs central bodies with the policies of results that contributed to the intensification of the work of education professionals without, however, managing to mitigate the deepening of educational inequalities in the midst of the emergency context in which as a result of the pandemic.

Keywords: Remote Teaching; Pandemic; Covid-19; Teaching Practices; Educational Policies

Resumen:

Este artículo describe y discute las estrategias adoptadas por la red municipal de Santo André durante la pandemia de Covid-19 en el año 2020. Analiza las normas emitidas por la Secretaría Municipal de Educación y problematiza las orientaciones pedagógicas para la enseñanza a distancia en la cara de las condiciones reales de las unidades escolares para garantizar el derecho de acceso a la escuela ya una educación de calidad. Destaca las contradicciones entre los propósitos declarados en el discurso oficial y la preocupación real de los órganos centrales de los órganos con las políticas de resultados que contribuyeron a la intensificación del trabajo de los profesionales de la educación sin, sin embargo, lograr mitigar la profundización de las desigualdades educativas en el en medio del contexto de emergencia en el que se encuentra a raíz de la pandemia.

Palabras Clave: Enseñanza a Distancia; Pandemia; COVID-19; Prácticas de Enseñanza; Políticas Educativas

INTRODUÇÃO

Tão logo o ano de 2020 iniciou, o mundo todo foi impactado por notícias acerca de uma nova doença causada pelo vírus SARS-CoV2. As atenções, então, se voltaram para este cenário que, rapidamente, mudaria a rotina da vida das pessoas. No campo da ciência, pouco se sabia sobre este vírus, que atingiu não apenas a saúde, mas também a economia, a política e a educação. Em meados do mês de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu o surto causado pelo novo Coronavírus como uma pandemia. Poucos dias depois, em São Paulo, foi confirmada a primeira morte em decorrência do vírus. Diante desta conjuntura, no Brasil, estados e munícipios decretaram quarentena, com o fechamento do comércio não essencial, instituições religiosas, repartições públicas e privadas. Com as escolas fechadas, professores, estudantes e gestores tiveram que aprender a viver e a trabalhar em meio a uma situação atípica e sem precedentes: o ensino remoto emergencial.

Já que, em situações “normais”, se sabe que o abismo social existente entre ricos e pobres, no Brasil, é fator determinante para o acesso à educação, a situação imposta pela pandemia, certamente, colaborou para o aprofundamento das desigualdades. Em meio à crise econômica vivida no país desde 2015, a pandemia produziu ainda mais fome, desemprego e insegurança, agravando a condição de desalento da população mais vulnerável.

A polarização política, que já vinha sendo observada desde os protestos de 2013 e que culminou com o impeachment da presidente Dilma, em 2016, desta vez, dividiu a sociedade entre os que valorizam a ciência e os que aderiram às atitudes negacionistas e irracionais, incentivadas por líderes populistas mundiais, como o então presidente norte-americano, Donald John Trump, e o presidente brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.

A desarticulação política e a falta de coordenação entre as três esferas de governo (União, Estados e Municípios) deixou estes últimos com a responsabilidade de decidir o que fazer diante de situação tão inusitada. O Ministério da Educação que, na atual gestão, tem se caracterizado pela negligência em relação ao compromisso constitucional de garantir o direito de todos de acesso à escola, manifestou-se somente um mês e meio depois da decretação da pandemia, com a aprovação do Parecer 5/2020, do Conselho Nacional de Educação que dispôs sobre a reorganização do calendário escolar e das atividades pedagógicas não presenciais na educação básica, enquanto perdurasse a pandemia.

Vale registrar que as orientações do referido parecer foram tomadas à revelia da sociedade e das entidades representativas, bem como dos pesquisadores e profissionais de educação, o que motivou reação de entidades como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED, 2020) e a União Nacional de Conselhos Municipais de Educação (UNCME, 2020). Nesse cenário, este artigo tem como objetivo descrever as estratégias adotadas pela rede pública municipal de Santo André, para a viabilização do ensino remoto emergencial no ano de 2020. Cientes da importância do acesso à educação para crianças, jovens e adultos, a intenção, aqui, é problematizar as medidas implementadas pelos órgãos centrais dessa rede, em contraste com as reais condições vividas nas unidades escolares e que impactaram a vida escolar de mais de 37 mil alunos.

Santo André no contexto do ensino remoto

A cidade de Santo André faz parte do ABC Paulista, juntamente com as cidades de São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul que, posteriormente, passou a ser conhecida pela sigla ABCDMRR, com a inclusão dos municípios de Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Essa sub-região metropolitana de São Paulo possui 2.690.590 habitantes, de acordo com a Fundação Seade (2020). Segundo o último censo escolar antes da pandemia (MEC/INEP, 2019), a rede de Santo André possuía 37.089 alunos, da creche ao 5º ano do ensino fundamental, incluindo as modalidades de Educação Inclusiva e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em relação a outras regiões do país, a cidade apresenta índices sociais, econômicos e educacionais considerados elevados: 95.9% dos domicílios possuem esgotamento sanitário adequado; 82.2% se localizam em áreas urbanas arborizadas; 43.7%, em vias públicas com urbanização adequada, entendendo-se por “adequado” a presença de bueiros, calçadas, pavimentação e meio-fio. (IBGE, 2020). Tomando-se por referência o índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), a cidade ocupava, em 2010, o 4º lugar no Estado de São Paulo e o 14º, entre os 5.565 municípios brasileiros (SANTOS, 2020, p. 77). Apesar dos números aparentemente promissores, a cidade apresenta significativas desigualdades no que tange ao acesso a bens e serviços das parcelas mais pobres da população, principalmente, das mulheres, jovens e das pessoas negras (SANTO ANDRÉ, 2015) que vivem nas regiões periféricas da cidade. Tais desigualdades se agravaram em decorrência da pandemia e tiveram reflexos, ainda não devidamente dimensionados, na vida escolar das crianças devido ao longo período de fechamento das escolas.

Na semana que se iniciou em 16 de março, as atividades escolares foram parcialmente interrompidas na rede municipal, quando os profissionais pertencentes aos grupos de risco foram afastados do trabalho. Diante do agravamento da crise sanitária, duas semanas depois, a prefeitura anunciou recesso escolar para todos os docentes e profissionais de educação da rede, medida tomada em meio a muitas incertezas, como evidencia o próprio texto dessa normativa municipal:

Considerando a necessidade de avaliação constante da situação de saúde pública que temos vivenciado, bem como de ponderar pontualmente as medidas cabíveis para adaptação do calendário escolar de maneira a atender o disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, garantindo o desenvolvimento essencial do conteúdo estabelecido nos Projetos Políticos Pedagógicos de cada Unidade Escolar no decorrer do ano letivo, informamos que a Secretaria de Educação publicará Resolução Complementar de Calendário Escolar para o ano de 2020, estabelecendo recesso escolar para os docentes e profissionais da educação no período de 01 a 15 de abril. (SANTO ANDRÉ, 2020, p. 1)

Valendo-se das prerrogativas decorrentes da autonomia administrativa dos entes federados - reforçada oportunamente pelo Parecer CNE/ CP n. 5/2020, de 28 de abril de 2020, Santo André resolveu disponibilizar “atividades socioeducativas” que poderiam ser acessadas pelos alunos, por meio de ferramentas digitais durante o período de recesso escolar.

Essa ação - cujo foco principal era o cumprimento do calendário escolar de 2020 - foi assim anunciada na “Carta aos Munícipes”, publicada em 30 de março, no site da prefeitura.

Com a suspensão das aulas regulares, a equipe da Secretaria de Educação Municipal entendeu que seria necessária uma ação voltada à manutenção de seu compromisso socioeducativo com as/os estudantes atendidas/os em nossas Escolas, bem como às suas famílias. Por isso, neste momento, mediante a impossibilidade de mantermos o contexto presencial, mas pensando no bem-estar físico, emocional, cognitivo e social de crianças, jovens e adultos que compõem esse público atendido, foi pensada uma organização, pela qual fosse possível a oferta de algumas propostas de atividades complementares, no período em que as aulas estiverem suspensas. (SANTO ANDRÉ, 2020, p. 1).

Em 1º de abril de 2020, o governo federal estabeleceu normas excepcionais para o cumprimento do ano letivo nas instituições de educação básica e superior, por meio da Medida Provisória n. 934/2020. Em caráter excepcional, a MP dispensou as escolas de observarem os 200 dias letivos previstos em lei, mas manteve a obrigatoriedade de cumprimento da carga horária mínima de 800 horas, cujos critérios e normas deveriam ser definidos pelos respectivos sistemas de ensino. Somente no final daquele mesmo mês, o Parecer CNE/CP n.5/2020, de 28 de abril de 2020 ofereceria as bases legais para que as redes públicasrealizassem as atividades curriculares previstas no calendário escolar de forma remota:

Em virtude da situação de calamidade pública decorrente da pandemia da COVID-19, a Medida Provisória nº 934/2020 flexibilizou excepcionalmente a exigência do cumprimento do calendário escolar ao dispensar os estabelecimentos de ensino da obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual estabelecida nos referidos dispositivos, observadas as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino. (BRASIL, 2020).

A primeira grande preocupação dos legisladores educacionais, como se vê, era não comprometer o ano letivo. Em contraste, a preocupação central das equipes escolares era encontrar formas de manter o vínculo com as famílias e, por meio delas, oferecer apoio e acolhimento aos alunos, de forma a dar continuidade aos processos de aprendizagem. Findo o período de recesso escolar, a Secretaria de Educação orientou os servidores para que permanecessem à disposição do serviço público de forma remota.

Assim, esclarecemos que a partir de amanhã, 16/04/2020, quinta-feira, todos os servidores permanecerão em home office, à disposição das necessidades do serviço público, enquanto perdurar o período de quarentena e suspensão das atividades escolares presenciais. (SANTO ANDRÉ, 2020, p. 1, grifos do original).

Passados exatos 30 dias da semana que mudaria a rotina das escolas de forma radical, as unidades escolares já haviam se mobilizado para acessar os alunos das mais diversas maneiras e orientar as famílias sobre como dar continuidade às atividades escolares em casa. Para tanto, professores e gestores criaram grupos de WhatsApp em seus aparelhos celulares pessoais, criaram páginas eletrônicas da escola e/ou das salas de aula no Facebook, e dedicaram-se a elaborar atividades impressas, reproduzidas e entregues diretamente aos pais nos dias em que estes buscavam orientações e/ou kits de alimentação nos portões das escolas.

Com os sucessivos decretos estaduais e municipais prolongando o período de quarentena, as estratégias para viabilização do ensino remoto foram sendo repensadas e adequadas ao longo do tempo: entrega de livros didáticos, utilização de aulas gravadas (assíncronas), entre outras, foram mais ou menos empregadas a depender das características e condições de cada comunidade escolar.

Um estudo realizado com profissionais de educação dos sistemas municipais de ensino do ABC Paulista (ROSA, PEREIRA et al., 2020; ROSA; MARTINS, 2021) evidenciou que, na prática, as unidades escolares cumpriram o papel de organizar o trabalho pedagógico das redes, pois, com a dispersão dos alunos, os órgãos centrais perderam temporariamente o controle sobre os sistemas de ensino.

Em vista disso, entre os dias 23 e 27 de abril, professores e gestores responderam a um questionário da Secretaria de Educação (SE) cuja finalidade era fazer um levantamento das ações realizadas até então, considerando as características de cada comunidade. O intuito da SE era reunir subsídios para definir estratégias comuns para o ensino remoto. Com base nos resultados, a SE retomou, em parte, a capacidade de direcionar as ações das escolas, o que foi feito por meio da “Orientação Normativa - DEIF/SE - Ensino Remoto”, que continha indicações para retomada das aulas a partir do dia 4 de maio de 2020, agora, oficialmente, de forma remota.

No que se refere ao planejamento docente, o documento frisava que as atividades produzidas pelos docentes e enviadas aos alunos deveriam seguir alguns critérios “estabelecidos pela SE”, tais como “colocar a criança na centralidade do processo”, garantir o planejamento em consonância ao projeto político-pedagógico (PPP) da unidade escolar (UE), garantia de adaptação pedagógica às crianças com deficiência, entre outros.

Com efeito, a despeito da tentativa de escuta dos anseios e necessidades dos profissionais que atuam na linha de frente nas escolas, havia intencionalidades implícitas nas orientações emanadas pela SE que contradiziam, frontalmente, o que o descrito nos documentos oficiais. Tomemos como exemplo o quadro extraído da orientação normativa contendo as estratégias que deveriam ser adotadas para o Ensino Fundamental:

Fonte: Orientação Normativa - DEIEF / SE - Ensino Remoto. (SANTO ANDRÉ, 2020, p. 4)

Quadro 1 Ensino Remoto - Estratégias para o Ensino Fundamental 

A normativa trazia uma lista de opções “permitidas” no contexto do ensino remoto, o que, aparentemente, evidenciaria o caráter “democrático” das orientações, na medida em que facultava que cada unidade definisse os caminhos mais viáveis, considerando as suas possibilidades, mas também as especificidades da comunidade escolar por elas atendidas. Entretanto, o documento era omisso e obscuro com relação ao “como” e aos recursos para colocar em prática as estratégias elencadas. Em outras palavras, a maneira de viabilizar o “ensino remoto” ficou a cargo das equipes gestoras de cada unidade escolar e, no limite, de cada professor(a) junto ao seu grupo de alunos.

Nesse sentido, a lógica das normativas dos sistemas de ensino para ensino remoto se assemelha a que rege os documentos curriculares prescritivos, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo. O caráter mandatório e tecnicista de ambos não é acompanhado de propostas compatíveis à realidade dos alunos e dos professores e, tampouco, dos recursos necessários à sua operacionalização.

No livro Janelas para o Mundo: olhares para o currículo em Tempos de Pandemia,Souza (2020) relata a ausência de escuta por parte da SE do município de Santo André, sobre os caminhos que foram adotados pelos professores e gestores para a concretização do ensino remoto emergencial:

Da minha janela, pude observar que a Secretaria da Educação da cidade não realizou uma consulta pública para conhecer as principais aspirações da população quanto aos rumos da Educação a ser desenvolvida com as crianças, sequer se as famílias tinham condições de conectar-se remotamente com a escola. Não possibilitou canais de escuta oficiais para conhecer se a forma como a educação remota seria estruturada atenderia aos anseios da comunidade escolar. (SOUZA, 2020, p. 280).

Corroborando o sentimento da autora, com a prática da presente pesquisa, foi possível observar que, tão logo a SE retomou o controle sobre a rede, as medidas e estratégias adotadas não consideraram as necessidades e limitações, tanto das escolas, como das famílias dos alunos no que se refere, por exemplo, à falta de equipamentos e/ou às dificuldades de conexão com a internet, às limitações dos pais ou responsáveis para darem atenção e orientarem as crianças nas tarefas em casa, à intensificação do trabalho, principalmente das mulheres (mães e professoras), entre outras inúmeras dificuldades que impossibilitaram que o “ensino remoto” ocorresse em igualdade de condições para todos.

Em agosto de 2020, quando o retorno parcial às atividades presenciais já se encontrava na pauta de discussões do governo do estado de São Paulo, a SE de Santo André solicitou às escolas que fizessem a “Caracterização do Ensino Remoto” em cada unidade. A planilha contemplava questões em torno de dois eixos de diagnóstico: o primeiro sobre as formas de acesso dos alunos ao ensino remoto, bem como a participação e o envolvimento das famílias nas atividades escolares de seus filhos; o segundo se referia ao tipo de retorno recebido pelos professores das atividades enviadas aos alunos por meios remotos.

Vale ressaltar que, após essa consulta, os docentes não receberam nenhum retorno dos resultados obtidos no levantamento, tampouco notícias sobre o uso desses dados como subsídios para a implementação de políticas voltadas às necessidades da população e da rede de ensino. Já no ano de 2021, os professores receberam uma nova ficha de “Caracterização Complementar” (Fig. 1), desta vez com questões sobre os recursos, equipamentos e condições (das escolas e das famílias) para o desenvolvimento do ensino remoto.

Fonte: Ficha de caracterização complementar - DEIEF / SE (Santo André / 2021)

Fig. 1 Ficha de Caracterização Complementar 

Entre uma consulta e outra, professores e gestores seguiram utilizando seus próprios recursos (materiais e tecnológicos) e criatividade para conseguir dar continuidade ao trabalho pedagógico, inclusive por meio do uso de plataformas gratuitas para aulas síncronas. A entrega de um chip de dados móveis para alunos e professores, em meados do mês de outubro de 2020, não alterou significativamente a condição de precariedade do acesso às ferramentas digitais por parte significativa dos alunos.

Diante de tantas limitações, as escolas pouco puderam fazer para mitigar as desigualdades educacionais que a pandemia visivelmente aprofundou.

A mecânica da exclusão entra na escola, reforçando as desigualdades sociais, revelada nesse momento não pela ausência dos corpos regulados pela instituição - apontada como um dos dispositivos de controle social por Foucault (2013) -, na desocupação de suas cadeiras escolares, mas nas salas virtuais esvaziadas, nos números de acessos e visualizações das postagens nas plataformas digitais e no retorno das atividades encaminhadas pelos alunos, que alertam, sem o risco de leviandade, que essa metodologia não abrange a totalidade dos estudantes. Esses dados podem ser facilmente confirmados nas pesquisas que já circulam nos fóruns de debate educacional promovidos por entidades públicas. (SOUZA, 2020, p. 27).

Souza assinala, ainda, algumas das dificuldades e dilemas vividos pelos professores para ensinar em condições tão adversas:

No entanto, para a viabilidade desse modelo de ensino imprevisto, possível para o momento, ao professor cabe lançar mão de recursos e meios próprios para efetivar sua comunicação e trabalho. Em nome dos diversos vínculos que nos unem aos coletivos de trabalho, alunos, familiares, e do nosso compromisso com a Educação, vamos reproduzindo essa lógica, alimentando esse sistema. Dessa forma, deixamos que mecanismos de controle estatal ditem o que, onde e como devemos fazer, sem que a voz docente seja considerada na concepção dessa política. (SOUZA, 2020, p. 27, grifos nossos).

Dessa maneira, o sentimento dos profissionais da rede foi o de que a retomada do controle da SE sobre a rede passou a se dar pela exigência constante de prestação de contas (accountability1) das ações realizadas na escola. À carga de trabalho de professores e gestores, já bastante intensificada durante a pandemia, somou-se a obrigatoriedade de elaborar relatórios e preencher planilhas por demanda dos órgãos centrais, cujos propósitos eram pouco compreendidos e pouco atinentes à prioridade de oferecer atendimento e/ou trabalhar na busca ativa dos alunos que não conseguiam participar das atividades remotas.

A partir desse momento, insegurança, exaustão e a sensação de voltarem a ser constantemente avaliados contrastaram com a experiência de autonomia que muitos tiveram, nos primeiros meses da pandemia, de assumirem a autoria sobre o seu próprio trabalho e sobre os processos formativos organizados pelas assistentes pedagógicas no âmbito das escolas (MANCILHA et al., 2021).

Ball (2005, p. 549) observa que as expectativas de desempenho nos tornam “ontologicamente inseguros: sem saber se estamos fazendo o suficiente, fazendo a coisa certa, fazendo tanto quanto os outros, fazendo tão bem quanto os outros (...). Tais sentimentos se aproximam do conceito de “precariedade subjetiva”, proposto por Linhart (2014), ao referir-se à necessidade dos profissionais de esforçarem-se permanentemente para se adaptar, de corresponder às exigências externas, o que de acordo com ela, é comodamente chamada de “estresse”.

Na semana de 24 a 28 de agosto de 2020, a SE organizou grupos de trabalho com o objetivo de fazer uma reorganização curricular e redefinir as habilidades essenciais a serem trabalhadas, a partir do segundo semestre. Esses estudos deram origem a uma nova matriz de referência para cada ano dos dois ciclos do Ensino Fundamental. No mês de setembro, a SE desenvolveu uma plataforma denominada “Santo André Virtual”, que foi apresentada aos alunos e aos professores no mês de outubro, mas que só seria efetivamente implementada e operacionalizada no ano seguinte. Contudo, com a troca de gestão municipal, a SE optou pela utilização de outra ferramenta, resultante do contrato firmado com a Microsoft Brasil, a partir do ano de 2021.

Cumpre salientar que esse ativismo da SE não foi acompanhado de iniciativas indispensáveis para o alinhamento das políticas e estratégias da rede para o enfrentamento dos desafios impostos pelas situações inéditas vividas durante a pandemia. Como exemplo, pode-se citar a consulta e o levantamento das reais necessidades das escolas, dos professores e das famílias, com relação ao acesso aos recursos e ao domínio das ferramentas tecnológicas necessárias ao ensino remoto. O cruzamento desses dados teria sido essencial para a definição de um plano estratégico coerente com reais necessidades da rede e para a formulação de políticas públicas efetivamente comprometidas com o direito de todos à educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os fatos narrados e registrados neste artigo corroboram a ausência de ações articuladas dos sistemas públicos de ensino que, diante de situação tão inusitada e da perda (ao menos temporária) do controle sobre as redes de escolas, acabaram por agir na base do ensaio e erro na condução das políticas públicas durante a prolongada crise sanitária de 2020 e 2021.

Não por outra razão, gestores e professores, especialmente, das redes municipais de ensino (OLIVEIRA, JÚNIOR, 2021), sentiram-se desamparados e praticamente sem nenhum suporte para levar à cabo ações engendradas, em geral, por iniciativas individuais e com recursos próprios. Nesse contexto, muitas das resistências observadas até então entre docentes, quanto ao uso de tecnologias nos processos de ensino, foram quebradas quando elas se tornaram, se não a única, certamente, a principal forma de contato com os alunos durante o fechamento das escolas.

Com efeito, o outro lado dessa mesma moeda é que “diante da dispersão de iniciativas das secretarias municipais de educação, as escolas foram chamadas a exercer a autonomia prevista no escopo legal, mas que, em situação de normalidade, nem sempre era efetivada” (ROSA, MARTINS, 2021, p. 91). Paradoxalmente, foi nesse espaço de autonomia que, mesmo isolados, muitos educadores assumiram a responsabilidade pela organização de propostas de intervenção e de formação que viabilizassem o ensino remoto, sem perder de vista os compromissos do projeto político-pedagógico de suas unidades escolares (MANCILHA et al., 2021). Diante de tais constatações, resta dizer que as situações experimentadas durante a pandemia expuseram e potencializaram as contradições e tensões vividas historicamente nas esferas das macro e micropolíticas de educação no Brasil. Nessa direção, Pellanda (2020) observa que:

Esse cenário teve dois agravantes fundamentais: a falta de participação e gestão democrática das políticas públicas emergenciais e a falta de financiamento adequado às áreas sociais. Apesar das recomendações e dos esforços de especialistas de todas as áreas, em âmbito nacional e internacional, as políticas de austeridade, sob a Emenda Constitucional 95, do Teto de Gastos, seguiram vigentes e ceifando vidas e direitos de toda a população, impactando especialmente as populações em maior situação de vulnerabilidade. (PELLANDA, 2020, p. 5-6).

Na retomada das aulas, a escola encontrou, de um lado, crianças enlutadas, marcadas por histórias de violência, ávidas de afeto e do convívio social interrompido pela pandemia; de outro, professores e gestores exauridos pela intensificação do trabalho nos últimos dois anos, amedrontados pela presença do vírus que ainda circula na sociedade como um espectro que ameaça toda a população.

O retorno 100% presencial, em outubro de 2021, abriu um novo capítulo na história da rede deste município, muito diferente daquela que, a partir do final da década de 1980, foi protagonista e ajudou a construir a trajetória de avanços das políticas públicas educacionais no Brasil das últimas três décadas, mas que hoje estão sendo deliberadamente desmontadas pelo projeto ultraconservador instalado no país desde o golpe parlamentar de 2016.

Esse novo capítulo contém todos os ingredientes das políticas neoliberais que prometem, por meio de iniciativas privatizantes (AVELAR, 2020), compensar os prejuízos e retomar a “normalidade” desejada para a efetivação de suas reais intencionalidades. Terão, contudo, que enfrentar a resistência que sobrevive na memória de grande parte dos educadores, que seguem fiéis ao projeto democrático que ajudaram a construir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1O termo accountability pode ser traduzido como controle, fiscalização, responsabilização, ou ainda prestação de contas, trazendo um caráter empresarial para as relações bem como elaboração e implantação de Políticas Públicas.

Recebido: 22 de Junho de 2021; Aceito: 15 de Novembro de 2021

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