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Contrapontos

versión On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.1 Florianopolis ene./jun 2022  Epub 24-Mayo-2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n1.p2-7 

Editorial

EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS DOS CORPOS: ONTOLOGIAS DO PRESENTE

EDUCATION AND TECHNOLOGIES OF THE BODIES: ONTOLOGIES OF THE

PRESENT EDUCACIÓN Y TECNOLOGÍAS DE LOS CUERPOS: ONTOLOGÍAS DEL PRESENTE

George Saliba Manske1 

Fabio Zoboli2 

Eduardo Galak3 

1Programas de Pós-graduação em Educação e Saúde e Gestão do Trabalho, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC, Brasil.

2Departamento de Educação Física e Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Sergipe, Aracaju, SE, Brasil.

3Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales, Universidad Nacional de La Plata, Buenos Aires, Argentina.


O dossiê EDUCAÇÃO E TECNOLOGIAS DOS CORPOS foi pensado a partir da parceria entre Universidades do Brasil e da Argentina. Deste modo, é fruto de um projeto arquitetado no coletivo de três grupos de pesquisa que interpelam o corpo sob a mirada da Educação: “Grupo de Estudos e Pesquisas em Estudos Culturais” (GEPEC/CNPq) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali/Brasil), “Colectivo de Estudios sobre Política, Educación y Cuerpo” (IdIHCS- UNLP/CONICET) da Universidad Nacional de La Plata (UNLP/Argentina) e “Grupo de pesquisa Corpo e política” da Universidade Federal de Sergipe (UFS/Brasil).

O coletivo de pesquisadores desse dossiê parte da premissa de que o exponencial crescimento dos usos das tecnologias nas últimas décadas a faz concebê-las como organizadoras dos modos de vida de forma geral, incluindo, aí, a produção de corpos e subjetividades. Em face das mais variadas demandas e possibilidades tecnológicas contemporâneas, novas condições sugerem um crescente entrelaçamento das subjetividades e da política com tecnologias que permitem indagar emergências de novas ontologias. Um plano ontológico que parece se estender a todos os seres informacionais. Assim, não seria demasiado distópico afirmar que se vive num mundo em que as estratégias de poder passam pelo governo algorítmico da vida, numa era em que as pessoas fabricam suas subjetividades numa mistura entre dados, máquinas, biomoléculas e objetos animados (RODRÍGUEZ, 2019).

Como pesquisadores do campo da Educação podemos refletir sobre múltiplas maneiras em que a modernidade e a pós-modernidade agenciaram práticas para atribuir sentidos aos usos políticos dos corpos via saberes tecnológicos, nas mais variadas articulações e produções com objetos e temas distintos. Nesse escopo, o campo da Educação não é apenas operado nessas mudanças como é, também, um forte operador, se constituindo como lócus de e para problematizações sobre essa temática, tanto na educação formal, como por aquelas compreensões de educação, enquanto práticas culturais mais amplas, que indicam e sugerem modos de ser e estar no mundo, de sermos sujeitos conectados.

O dossiê aqui apresentado versa, justamente, sobre essas relações e propõe problematizar perspectivas, temas e objetos, dos mais variados, que estabelecem relações entre educação, corpo e tecnologias. Tais articulações são indagadas em direções que questionam quais são e como operam formas de agenciamento, governo e produção de subjetividades que atravessam diferentes objetos temáticos.

É importante destacar que a terminologia tecnologia apresenta, não apenas múltiplos significados, mas, sobretudo, que estes são oriundos dos mais diversos modos de como é possível concebê-la. De modo mais convencional, é comum atribuir ao termo características que o conformam como aparatos e objetos de última geração, atuais e avançados, que transformam e recaem sobre a vida humana. Sem dúvida essa é uma das definições. Entrementes, se pensarmos a partir do campo da “Filosofia das Tecnologias” (CUPANI, 2016), tecnologias são, além dos imanentes objetos tecnológicos, também seus processos de fabricação e produção, e mais, são especialmente aquilo que se denomina “mentalidade tecnológica”, ou seja, modos de pensar (logos) que fabricam um saber-fazer, que resulta em materialidades que implicam formas de vida e de se viver. Essas elaborações tecnológicas produzem e se reproduzem em corporalidades.

No entanto, para além das descrições convencionais e, até mesmo, centradas no campo da Filosofia das Tecnologias, outros modos potentes de problematizar o que são tecnologias são advindos de discussões com aportes teóricos centrados na linguagem em sentido latu. Tomamos aqui as elaborações de Rose (2013, p. 32) para quem as tecnologias são “um conjunto de relações sociais e humanas dentro do qual equipamentos e técnicas são apenas um elemento”. Nesse ínterim, entendemos que problematizar tecnologias implica em compreender os “agenciamentos estruturados por racionalidades práticas, dirigidas por uma meta mais ou menos consciente” (ROSE, 2013, 32-33), que articulam modos de pensar, de construir saberes e autoridades, de estabelecer relações institucionais, de conduzir modos de conduta, especificar conselheiros com habilidades técnicas singulares, proporcionar e incentivar coletividades sociais, criar instrumentos, programas e outras facetas que, de forma hibridizada, configuram maneiras pelas quais os humanos podem se relacionar entre si e com o mundo.

Assim, as tecnologias enquanto modos de agenciar a vida, o corpo e os modos de relação destes entre os sujeitos acaba por ter relação intrínseca com a educação e práticas pedagógicas. Assumimos aqui, de forma correlata com a noção de tecnologia, uma abordagem ampliada do que vem a ser educação. Concordamos com Hall (1997, p. 40), quando problematiza “o que é educação senão o processo através do qual a sociedade incute normas, padrões e valores - em resumo, a cultura” nos sujeitos em grupos e comunidades? Na esteira desse argumento, inferimos que as produções de agenciamentos que conformam modos de significação, regulação e governo do eu são práticas educativas, agem como pedagogias culturais sobre os corpos e definem modos de ser, estar no mundo, nas relações das pessoas com elas mesmas e com as outras.

Portanto, quando referimos objetos heterogêneos sob a temática “Educação e tecnologias dos corpos” estamos indicando as práticas e os saberes que são colocados em movimento, por meio de relações saber e poder, que geram produções e composições de tipos de sujeitos. Esses processos são tecnológicos, assim como educativos. E recaem, produzem e fabricam, com muita potência, corpos-sujeitos na constituição de representações e identidades específicas.

* * *

Os textos aqui reunidos versam sobre a heterogeneidade das relações entre tecnologias dos corpos e a educação. Em diferentes linhas, direções, objetos e abordagens teórico-metodológicas, históricas e contemporâneas. E tais materialidades textuais investigativas impulsionam os argumentos até então aqui apresentados e potencializam as noções que ora apresentamos.

O texto de Danillo Mota Lima e Edvaldo Souza Couto, intitulado “Prazer e Risco: Corpos e Pedagogias Bareback no Twitter” apresenta problematizações em torno das “pedagogias de corpos e sexualidades em performances bareback de pornografias amadoras produzidas e compartilhadas por um grupo de gays no Twitter”. A partir dos campos dos Estudos Culturais em educação e dos estudos pornô, os autores discutem os modos como, na cibercultura, as performances bareback são articuladas com outros subgêneros da pornografia, sobretudo demarcando, em suas discussões, as categorias de “sexo interracial, em local público e grupal”. Indicam, ao final, que tais práticas podem ser compreendidas, enquanto pedagogias culturais que “aprisionam corpos e sexualidades gays em ambientes digitais”.

Já o artigo “Maquinaria corporal: eficiencia y estética en el deporte paralímpico” de Danielle Torri, Rodrigo Píriz e Alexandre Fernandez Vaz apresenta uma discussão e permite reflexões em torno da “fusão do corpo com a tecnologia”, a partir da modalidade paradesportiva do basquete em cadeira de rodas, com o intuito de problematizar a relação eficiência- deficiência e a possibilidade de expressão estética desses corpos. Os autores consideram a maquinaria tecnológica envolvida nessa modalidade de grande pertinência e importância para tal prática corporal, e a partir de tal incorporação reflexionam a experiência estética do paradesporto, calcada, historicamente, na deficiência que se quer eficiente. De igual modo, os autores abordam o paradoxo do binarismo “organismo x máquina” (híbrido), apresentando o corpo como uma construção constante e nunca acabada, ou seja, tensionam a sua ontologia tradicional, pautada numa ideia de natureza puramente biológica.

A questão da animalidade, enquanto uma noção que permite problematizar as formas em que humanos tratam animais, incluindo - e sobretudo - outros humanos, e as implicações destas relações em construções hierarquizadas, é o objeto de estudo de Luís Henrique Sacchi dos Santos e Dandara Rodrigues Dorneles no texto “Corpo humano - corpo animal ou “o que a importância dada aos animais nos revela sobre as pessoas?”. Como dois biólogos que se aproximam de estudos críticos e pós-críticos, acerca da constituição das relações humanas, via estudos da animalidade, sugerem possibilidades de incorporar tais reflexões na formação de professores de biologia e ciências. Abarcam, também, tais reflexões sob a ótica da biopolítica e da necropolítica, tensionando aspectos da realidade brasileira, no cenário e contexto atual, em analogias e questionamentos sobre que vidas importam e como algumas são “empacotadas”, de modo a gerar uma espécie de hierarquia, que viabiliza umas e invisibiliza outras em gradientes de importância.

No texto “Eu, humano? Pensando a constituição humana a partir da Ficção Científica com estudantes de Ensino Médio de uma Escola Estadual de tempo integral de Campinas, SP”, João Pedro de Almeida Belo e Ana de Medeiros Arnt analisam os modos como estudantes do Ensino Médio definem características humanas, a partir da construção de um conto de ficção científica futurista interativo, em que os estudantes deveriam ser personagens da história e construir um clone para falar sobre suas características e relacionar com sua noção de ser humano. As produções indicam que “apesar de a maioria dos estudantes compreender que os clones são seres humanos, não houve unanimidade acerca do que define o clone como humano”, sendo que as profusões de definições oscilavam em argumentos de ordem físico- anatômicas, cognitivas e de personalidade. Advogam, ao fim, a importância de tais atividades problematizadoras para que se questione em espaços formais educativos as noções tradicionais de compreensão do que vem a ser humano.

O texto de Eulàlia Collelldemont Pujadas e Raquel Cercós Raichs, nominado “La representación del cuerpo masculino como dispositivo de propagación de un ideal”, trata da representação e da formação do gênero masculino espanhol como estereótipo, a partir da análise de documentos e noticiários oficiais do regime franquista (1939-1975), contrastando- os com as imagens e discursos difundidos em revistas e manuais. Interpelando conteúdos escritos com visuais/imagéticos, as pesquisadoras elegem três eixos, que condicionaram a normalidade do aprender a ser masculino, nesse período histórico na Espanha: obediência vigorosa, hipermasculinidade como utopia física para alcançar e autocontrole e cuidado vigilante da parceira como único comportamento.

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia e Hamilcar Silveira Dantas Junior, no manuscrito “Educação do corpo, doping e esporte no filme ‘O programa: a verdadeira história de Armstrong’” interpelam a educação do corpo através do filme “O programa: a verdadeira história de Lance Armstrong” (2015), a fim de reflexionar os usos do corpo no esporte moderno sob a política do doping. Os autores sustentam a crítica de que a técnica é o meio pelo qual o humano reingressa no devir da própria natureza, ou seja, o humano é uma expressão da atividade desta. Diante disso, os limites do doping no âmbito esportivo não podem ficar presos a uma ontologia, na qual o corpo é dado como algo puro e que sua natureza é oposta ao que se entende por artificial. Deste modo, os autores entendem que o esporte está tão imerso a juízos preexistentes que é pouco sensível e capaz de perceber que, na prática, as performances dos corpos dos atletas, na sua estreita relação com tecnologias, expressam a natureza e sua lógica da mútua inclusão.

O artigo de Wagner Xavier de Camargo intitulado “(A)normalidades corporais e as (in) visibilidades esportivas” discorre sobre o esporte moderno, tendo como lócus os corpos, gêneros e as sexualidades de atletas. O autor trata da visibilidade desses atletas, a partir de tecnologias e políticas esportivas que procuram invisibilizar sua (a)normalidade. Para tal, traz à discussão casos históricos de atletas. Nesses casos, estrutura seu texto, salientando três inquietações:

  1. dissonâncias de gênero não visibilizadas tendem a apagar existências de registros oficiais;

  2. nas modalidades esportivas mais conhecidas e valorizadas pela cultura ocidental é onde mais se identifica tal invisibilidade em comparação com esportes desconhecidos; e 3) o nível de performance esportiva contribui para manter os “casos de exceção” escondidos: quanto melhor a performance, mais um corpo tende a ser normalizado.

Ivan Gomes, por seu turno, anuncia, de chofre, a coletividade que compõem a autoria do texto “Conselhos imunizantes para o indivíduo saudável: o caso de um núcleo de pesquisa”. Em alinhamento com a noção d“O que é um autor?”, de Michel Foucault (1992), atribui a Selvino Assman (in memorian) e a Alexandre Vaz as coautorias presentes. Traz para o debate as proposições científicas elaboradas por análises desenvolvidas em um Núcleo de Pesquisa alocado em uma universidade brasileira. Este núcleo tem como escopo de estudo as relações entre atividade física e saúde, que dissemina orientações para desenvolver indivíduos saudáveis e, por isso mesmo, são abarcados no texto pelo viés de um núcleo de “conselho”. Apresenta um recorte em torno das dissertações defendidas neste grupo de pesquisa entre 2004 e 2007, totalizando 29 dissertações como material empírico de análise, nas quais são constatados, reiteradamente, temas como atividade física, qualidade de vida, estilo de vida e fatores de risco. Destaca, ao fim, que os conselhos prescritos estão em volta a uma ideia de “vida equilibrada”, que é interpretada no texto à luz da lógica imunitária desenvolvida pelo filósofo Roberto Esposito.

Santiago Pich e George Manske no texto “A Medida Certa: Corpo, confissão e tecnologias do self em tempos de governamentalidade neoliberal” problematizam as tecnologias de confissão na construção de subjetividades neoliberais no livro “Medida Certa - como chegamos lá: com Márcio Atalla”. Tomando noções foucaultianas, desenvolvem argumentos em torno das ações e práticas descritas na obra analisada como geradoras de modos de subjetivação que atendem preceitos do neoliberalismo, colocando o corpo como objeto biopolítico contemporâneo. A partir de elementos da Análise de Discurso, buscam evidenciar os enunciados que circundam os excertos da obra analisada identificando as posições de sujeito agenciadas e que técnicas de exegese colocam em funcionamento. A espetacularização dos corpos e os processos pelos quais se incita a alcançar os arquétipos divulgados no livro são entendidas como estratégias de governo e regulação de um ‘eu’ saudável e desejável, centrada nos espectadores como novos e contemporâneos “diretores de almas”.

O texto “A internet dos corpos, as realidades emergentes e a constituição de arquiteturas digitais de interação”, de Patrícia Scherer Bassani, busca propor “metodologias e práticas pedagógicas na perspectiva de uma Educação Digital onLife” balizadas em modelo teórico que permita e potencialize análises de arquiteturas digitais de interação entre corpo e tecnologia. Desde uma revisão de literatura narrativa sobre a temática e inserida em estudos da Internet dos Corpos (IoB) destaca quatro categorias que permitem tais investimentos, a saber, “espaço- rede; actantes; processo sociocomunicacional; movimento das associações”. É partir dessas organizações conceituais e de categorias que o referido texto busca atender o objetivo proposto e desenvolver uma proposta de análise de arquiteturas digitais que considere as relações entre as tecnologias IoB e as realidades digitais emergentes.

* * *

Os objetos de estudo apresentados nos textos deste dossiê evidenciam a multiplicidade de abordagens, teorias e métodos de pesquisa e construção argumentativa em torno do tema desta compilação temática. Tais aspectos formam uma miríade, na qual podemos interpelar e problematizar os distintos modos em que tecnologias e educação (ambas em sentido latu) se entrelaçam e permitem a produção de corpos-sujeitos, sejam em ações vinculadas a objetos tecnológicos mais estritos, ou, ainda, em plataformas de comunicação, socialização e digitais mais amplas. Apesar da heterogeneidade apresentada nos objetos abarcados pelos textos deste dossiê, em suas inúmeras facetas, o que os aproxima e os faz dialogar é a compreensão de que seres humanos possuem uma ontologia que não pode ser separada das práticas sociais e culturais que lhes conformam, que são portanto históricas, e que as tecnologias são modos de produção de subjetividades e agenciamentos das relações humanas entre si e no mundo, marcadas em corporalidades, que, em finalidade última, se configura como práticas de e na educação.

REFERÊNCIAS

CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. 233 p. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja/Passagens, 1992. [ Links ]

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo. In Educação & Realidade, Porto Alegre: v.22, n.2, 1997. p. 15-46 [ Links ]

RODRÍGUEZ, Pablo Manolo. Las palabras en las cosas: saber, poder y subjetivación entre algoritmos y biomoléculas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Cactus, 2019. [ Links ]

ROSE, Nikolas. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no Século XXI. São Paulo: Paulus, 2013. [ Links ]

Recebido: 02 de Fevereiro de 2022; Aceito: 05 de Março de 2022

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