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Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.1 Florianopolis Jan./June 2022  Epub May 24, 2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n1.p117-133 

Artigos

(A)NORMALIDADES CORPORAIS E AS (IN)VISIBILIDADES ESPORTIVAS

BODY (A)NORMALITIES AND SPORTS (IN)VISIBILITIES

(A)NORMALIDADES CORPORALES Y (IN)VISIBILIDADES DEPORTIVAS

Wagner Xavier Camargo1 

1Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.


Resumo:

O esporte moderno já tem um percurso estabelecido que permite compreender seu modus operandi, particularmente no tocante à visibilidade da normalidade, à sincronia proposital entre corpos, gêneros e sexualidades e ao estabelecimento do rendimento esportivo, por meio do emprego de técnicas 'precisas' e ‘corretas’. A proposta deste texto é trazer casos de atletas que apareceram na história do esporte durante o século XX, a fim de edificar três problematizações trazidas por tais corpos, sendo elas: a) dissonâncias de gênero não visibilizadas tendem a apagar existências de registros oficiais; b) é nas modalidades esportivas mais conhecidas e valorizadas pela cultura ocidental que mais se identifica tal invisibilidade em comparação com esportes desconhecidos; e c) o nível de performance esportiva contribui para manter os ‘casos de exceção’ escondidos: quanto melhor a performance, mais um corpo tende a ser normalizado. A partir de uma analítica das variáveis ‘gênero’, ‘visibilidade’ e ‘nível de performance’ conclui-se que o próprio sistema se encarrega de estabelecer as (a)normalidades corporais e manter as invisibilidades esportivas para a manutenção do status quo.

Palavras-chave: gênero; sexualidade; atletas LGBT

Abstract:

Modern sport has already an established path that allows us to understand its modus operandi, particularly regarding the visibility of normality, the purposeful synchrony between bodies, genders and sexualities, and the establishment of sports performance with strict and correct techniques. The aim of this paper is to bring some cases of athletes who appeared in the history of sport during the twentieth century, in order to identify three troubles brought by such bodies: a) not visible gender dissonance tends to erase the athlete’s existence from official records; b) in the most popular and valued sports by Western culture is where invisibility is more identified in comparison with unknown sports; and c) the level of sports performance contributes to keep the exceptional cases hidden, i.e, the better the performance, the more a body tends to be normalized. From the analysis of variables like gender, visibility and level of performance we conclude that the system itself is in charge of establishing body (a)normalities and maintaining sport invisibilities to keep its status quo.

Keywords: gender; sexuality; LGBT athletes

Resumen:

El deporte moderno tiene ya un recorrido establecido que permite comprender su modus operandi, especialmente en lo que respecta a la visibilidad de la normalidad, la sincronía intencionada entre cuerpos, géneros y sexualidades y el establecimiento del rendimiento deportivo mediante el uso de técnicas 'precisas' y ‘correctas’. El propósito de este texto es traer casos de atletas que aparecieron en la historia del deporte durante el siglo XX, con el fin de construir tres problematizaciones provocadas por tales cuerpos, que son: a) las disonancias de género no visibilizadas tienden a borrar las existencias de los registros oficiales; b) en los deportes más conocidos y valorados por la cultura occidental, esta invisibilidad se identifica más a menudo en comparación con los deportes desconocidos; y c) el nivel de rendimiento deportivo contribuye a mantener ocultos los ‘casos de excepción’: cuanto mejor es el rendimiento, más tiende a normalizarse un cuerpo. Del análisis de las variables ‘género’, ‘visibilidad’ y ‘nivel de rendimiento’ concluimos que el propio sistema se encarga de establecer las (a)normalidades corporales y de mantener las invisibilidades deportivas para el mantenimiento del statu quo.

Palabras clave: género; sexualidad; deporte LGBT

Introdução

As pessoas têm obsessão em enxergar as coisas como autênticas ou artificiais. Esta distinção absoluta parece originar-se de uma insegurança geral em relação ao status da natureza - não apenas a natureza como meio ambiente, mas também a natureza como uma norma para modos diferentes de vida humana. (GUMBRECHT, 1999, p. 301)

Nada é totalmente autêntico ou inteiramente artificial, já disseram inúmeros filósofos e antropólogos. Na verdade, tais cientistas já ajudaram a entender o caráter arbitrário de classificações estanques e seus equívocos. Hans Ulrich Gumbrecht, filósofo alemão contemporâneo cuja frase ilustra o introito deste texto, resgata esse embate dentro de uma obra magistral, 1926 - Vivendo no limite do tempo (GUMBRECHT, 1999). O apego à autenticidade pressupõe crença inabalável na natureza como cosmologia e, como conseguinte, um apelo sistemático e quase religioso por estruturas tradicionais, facilmente identificáveis. A artificialidade, contraponto da primeira, funciona, ao mesmo tempo, como fuga de identificações com o estabelecido como natural, mas também se edifica como nova relação buscada entre humanos e o meio em que vivem.

Nas fronteiras entre natural e artificial, estão mundos, ideias, relações, mas também corpos. Vale lembrar que o corpo, conforme é idealizado na cultura ocidental atual, não é o corpo humano desde sempre. O corpo que se conhece hoje tem uns 500 anos de idade apenas. Ele é fruto da curiosidade de Andreas Vesalius, um anatomista belga que viveu no século XVI e foi o primeiro a dissecar um cadáver humano, mostrando ao mundo suas partes e de que somos compostos. Pode ser considerado o “pai” da anatomia moderna, segundo Chassot (1994), e desde tal feito, muito se descobriu, em termos de estrutura e funcionalidade orgânicas.

Seu feito, no entanto, foi considerado tão excepcional, porque demonstrou, por meio científico e fundamentado, que as descrições realizadas pelo médico-filósofo Claudio Galeno na Antiguidade Clássica não eram, exatamente, de um corpo humano - apesar de Galeno ter tido insights importantes sobre detalhes de órgãos, fluídos e funções de órgãos internos dos humanos (LAQUEUR, 2011). Entretanto, e isso deve ser frisado, não somos mais o corpo humano descoberto e dissecado em detalhes, pelas mãos de Vesalius, no início da era moderna.

Apesar de ainda haver uma profusão de conhecimentos na área de Anatomia Humana, que trabalha com a noção de normal como o que é aceito como recorrente (comum) em termos de estatística, reconhece-se que a normalidade deve ser tomada com cautela quando diz respeito ao corpo, “pois envolve um conceito complexo e de difícil definição que é o estado de saúde, entendendo aqui como saúde um conjunto de fatores (biológicos, sociais e psíquicos) e não apenas a ausência de doença” (Dangelo; Fattini, 2011, p. 6).

Portanto, ao se considerar que até o conhecimento anatômico em medicina relativiza o que é normal - inclusive porque determinados órgãos ou sistemas internos podem responder de modo distinto, de pessoa para pessoa (apesar de, tecnicamente, terem a mesma função), de um ponto de vista a outro, a normalidade/anormalidade de um corpo também pode ser relativizada. Há grande variabilidade morfológica dentro da espécie humana e, por isso, se diz que ela é “politípica” (Dangelo; Fattini, 2011). Se, biologicamente, a variabilidade nos torna diversos, por que socialmente criamos barreiras de diferenciação de pessoas e de seus corpos? Qual é a distinção entre natural e artificial que justifica menosprezar corpos disformes, com deficiência, não normativos ou àqueles que mesclam elementos de sexualidade e gênero masculina/feminina?

Essa última questão é, por seu turno, retórica, e a intenção aqui é, justamente, explorá-la um pouco mais no que tange às problemáticas relativas a gênero e sexualidade dentro do campo esportivo. Se, atualmente, a presença da homossexualidade em quadras e gramados não é bem digerida - haja vista as manifestações homofóbicas de torcidas de futebol e mesmo reações de outros/as atletas conservadores em relação a sexualidades desviantes (ALCANTARA, 2021; FRANÇA, 2019) -, quem dirá as questões relacionadas a um corpo trans ou intersexo na disputa por medalhas ou recordes. Aí está colocado, a todo tempo e em todos os argumentos, o embate normalidade/anormalidade do sexo/gênero destes corpos, além de questões sobre presença ou ausência, direito ou não direito, justiça ou injustiça, etc. vinculados a tais corpos.

A tensão oriunda de tais questões é notória e afeta todo o sistema esportivo. Desde que corpos trans apareceram nos espaços esportivos e foram midiatizados, há um conjunto de opiniões adversas sobre eles. Refere-se, aqui, a casos amplamente divulgados, como o das corredoras de atletismo Caster Semenya e Dutte Chamd e as polêmicas acerca de seus níveis de testosterona no sangue (o que as deixaria em estado de suspeição se são, ou não, biologicamente mulheres), ou ainda o da voleibolista trans brasileira, Tifanny Abreu, que passou por tratamento hormonal e adequação química para viver como mulher e, mesmo assim, é desafiada a todo tempo a se pronunciar sobre potenciais vantagens que teria em decorrência de uma “vida inteira como homem” (LAGUNA, 2019, s/p). O questionamento sobre a possibilidade de existência desses

corpos nas modalidades esportivas mostra que o esporte é assentado numa lógica binária restritiva e circunscrita, e que as entidades de fomento e controle nesse lugar são legitimadoras desse binarismo e reforçadoras de discriminações aleatórias.

Ora, apenas porque o esporte encampa o binarismo de gênero e divide suas competições em categorias masculina e feminina, em prol da famigerada igualdade de chances, não significa que outros corpos não alinhados com esse binarismo não possam ali existir. Nesse sentido, o esporte moderno, que nasceu em fins do século XIX, conta com muitas certezas e com um inviolável “selo de autenticidade”: uma atividade de homens, para homens, por meio da qual apenas homens extrairiam prazer. Ao se aplicar a crítica feminista sobre este nascimento (CROSSET, 1990), pode-se dizer que, nesse nível das relações, o esporte moderno veio ao mundo masculinista (orientado por/para homens), machista e misógino (exclui mulheres), branco (exclui não brancos) e cristão1. Apenas homens brancos, educados na elite aristocrática europeia centro-ocidental e cristãos podiam praticá-lo2. Hoje, podem-se acrescentar duas outras características marcantes a esse nascimento, quais sejam, supunha-se tacitamente que ele era jogado por pessoas heterossexuais e cisgêneras.

Contudo, no decorrer de seu desenvolvimento e como produto das transformações que marcaram seu último século de existência, essa camada de “autenticidade” foi sendo corroída por inúmeros fatores, que atingiram a maneira como o esporte moderno é concebido. A primeira grande questão foi que, logo que Pierre de Fredy (o famoso Barão de Coubertin) idealizou os Jogos Olímpicos da era Moderna, teceu seu programa de provas e estabeleceu datas para que ocorressem em Atenas, no ano de 1896, havia mulheres corredoras planejando competir disfarçadas de homens, como Devide explanou em seus achados. Ou seja, suas prerrogativas não eram aceitas tão tranquilamente por elas. O autor explica:

Na quinta-feira, 28 de março, dia da maratona, os corredores estavam em uma pequena vila, em Maratona, quanto Stamata solicitou novamente a sua participação ao Comitê, que negou de pronto, prometendo que ela poderia correr no dia seguinte, com um grupo de mulheres americanas, fato que não ocorreu. Então, no sábado, Stamata correu a maratona sozinha, terminando o trajeto descalça, no tempo de cinco horas e meia (TARASOULEAS apudDEVIDE, 2005, p. 93).

Outra questão que atingiu o esporte, desde suas origens no século XIX, foi o advento do doping. Com a superação do amadorismo e o incentivo ao profissionalismo (GUTTMANN, 1978), competidores já começaram um processo de tentativa de melhoramento, que envolvia sensações, humores, disposição energética para práticas físicas, e os resultados de eventos em que participavam.

Mas talvez o mais pernicioso talvez tenha sido o processo de normatização instalado no percurso do esporte moderno, relativo aos corpos e a como deveriam se apresentar. E, para isso, também houve reações, vindas de dentro e a partir de alguns acontecimentos pouco (ou nada) comentados nas arenas esportivas. Citam-se duas interessantes: o caso do ginasta estadunidense George Eyser, possuidor de uma amputação unilateral de membro inferior (portador de uma prótese de madeira), que acabou competindo nos Jogos Olímpicos de Verão de Saint Louis-1904, e ganhou cinco medalhas (duas de ouro, duas de prata e uma de bronze) (DUARTE, 1996); e o enigmático caso de Stella Walsh, uma polaco-estadunidense, que competiu nas provas de velocidade dos Jogos Olímpicos de Los Angeles-1932 e Jogos Olímpicos de Berlim-1936 como mulher, porém possuía genitália ambígua, gônadas masculinas e produzia mais testosterona do que o padrão das mulheres da época (ANDERSON, 2017; CAMARGO, 2017a; PIEPER, 2016). Sobre esse episódio, o artigo se deterá mais adiante.

Tais exemplos mostram, em primeiro lugar, que o esporte já nasceu como uma invenção purista de um ideal de corpo, de modelos fixos e estáveis do que se considerava “homem” (e, por comparação, “mulher”). Aos homens, foi dada a prerrogativa do privilégio de poderem competir e se desenvolverem física e atleticamente. Às mulheres, foi negada toda e qualquer participação, restando-lhes torcer nas margens dos campos e nas nascentes arquibancadas. Fazendo um exercício de associação com o que foi dito desde o início deste artigo, homens eram “autênticos” representantes do tipo esportivo; mulheres eram a “artificialidade”, a falha, aquilo que nunca produziria gesto atléticos.

Portanto, o esporte moderno estabeleceu seu modus operandi, particularmente buscando a visibilidade da normalidade e uma sincronia proposital entre corpos (funcionais), gêneros (inteligíveis) e sexualidades (convencionais). Na divisão categorial decorrente desta proposta, homens seriam ‘viris’, ‘habilidosos’, ‘destemidos’, ‘heterossexuais’ e defenderiam a nação; mulheres seriam ‘dóceis’, ‘sensíveis’, ‘temerosas’, também ‘heterossexuais’, mas esperariam passivamente. Enquanto homens jogariam e se colocariam como heróis, mulheres torceriam e sonhariam com casamentos felizes. Qualquer tentativa de elas praticarem algum esporte era coibida com a afirmação de que não se podia afrontar suas “naturezas”, seus corpos. Como explica Goellner:

No âmbito específico das práticas corporais reafirma-se o discurso de que para conduzir uma gravidez sadia a exercitação física é fundamental porque importante para a construção de um organismo forte. No entanto, a densidade desse ser ‘forte’ é tolerada até o ponto em que não ultrapassa aqueles limites ditados por sua natureza. Forte sem deixar de ser frágil; sem invadir territórios que são construídos e vivenciados a partir de olhares e parâmetros próprios dos corpos masculinos, pois uma vez rompidas as fronteiras entre o permitido e o proibido, o próprio discurso das diferenças naturais como demarcadoras de talentos e funções pode estar sendo profundamente ameaçado (GOELLNER, 2003, p. 71-72).

Assim, a proposta deste texto é trazer casos de atletas que apareceram na trajetória esportiva do século XX, a fim de especular sobre três problematizações postadas por tais corpos, quais sejam: a) dissonâncias de gênero não visibilizadas tendem a apagar existências de registros oficiais; b) é nas modalidades esportivas mais conhecidas e valorizadas pela cultura ocidental que mais se identifica tal invisibilidade, em comparação com esportes desconhecidos e c) o nível de performance esportiva contribui para manter os ‘casos de exceção’ escondidos: quanto melhor a performance, mais um corpo tende a ser normalizado.

Usando o recurso matemático da análise combinatória, isto é, daquela que traz vários elementos na combinação com outros, considera-se propor, aqui, uma equação de variáveis interdependentes, que, em sua postulação, apresentam novas configurações na montagem de outras combinações possíveis. Na (re)combinação de seus elementos será demonstrado, no presente estudo, como normalidade e anormalidade corporais provocam/produzem visibilidades e invisibilidades esportivas. Do espectro do normal/visível ao anormal e invisível, nos próximos subtópicos serão exploradas tais considerações.

À sombra de deuses olímpicos: corpos (a)normais, sexualidades (não) normativas

Nos últimos tempos, tem havido um debate incessante, e ainda sem previsão de término, acerca de outras sexualidades e identidades de gênero no esporte. Particularmente no Brasil, homens autodeclarados gays demandam espaços em quadras de futebol society (CAMARGO, 2021; JESUS, 2018), mulheres lésbicas, em campos do futebol de grama (KESSLER, 2020) e mulheres e homens trans(gênero), a exemplo de Tifany Abreu e Marcelo Leandro, aparecem em disputa no alto rendimento com atletas cisgênero.

Nunca antes cisgeneridade e transgeneridade protagonizaram tamanha disputa em quadras, pistas, campos e tatames. E, ao passo que isso tudo se desenrola, no senso comum esportivo, há uma batalha pela definição “racional” de direitos entre quem pode e quem não pode (ou não deveria) ocupar tais lugares ao jogar e competir.

Ao passo que homens/mulheres que mantêm relações afetivas com outros/as homens/mulheres entram na chave da inteligibilidade social como “gays e lésbicas”, muitas vezes considerados “clones” indigestos de homens e mulheres heterossexuais, a experiência trans promove controvérsias infindáveis, que vão da deslegitimação de corpos a um total apagamento dos mesmos (com consequente negação de suas existências). A normalidade corporal esportiva é construída a partir de sexualidades e identidades não (cishetero)normativas; e essas acabam, por conseguinte, alocadas no campo das anormalidades.

Conforme termos de Bento (2011, p. 16):

(...) ao discutirmos masculinidade, feminilidade e sexualidade, nos embrenhamos em uma tórrida disputa sobre as expressões da existência que devem viver e as que precisam ser silenciadas sob a marca das anormalidades. Estamos no âmbito da luta pelo reconhecimento, pela disputa de poder mais fundamental: quem é humano?

Como a pesquisadora explica na sequência, as classificações de corpos sexuais normais/ anormais e outras taxonomias decorrentes dessas terão um efeito de crença “de que a espécie humana só tem inteligibilidade quando se refere ao sexo” (BENTO, 2016, p. 20). E complete dizendo que a heterossexualidade, por sua vez, “seria o referente globalizante mediante o qual as outras subespécies (quase) humanas seriam avaliadas” (idem, p. 20). Para Butler (2003), que emprestou o conceito de Adrienne Rich (1999), a heterossexualidade tem caráter obrigatório e posiciona sujeitos perante uma coerção social que os coloca como serem desejantes sempre de “sexos opostos”.

Disso decorre, portanto, que as discussões entre sexo e gênero são muito mais complexas do que se pode imaginar. Os corpos trans, por exemplo, propõem desidentificações (MUÑOZ, 1999), que no limite, são importantes para a própria contestação e reposicionamento do sujeito na estrutura social. Como Butler (2003) considera, embora os discursos mobilizem categorias identificatórias a serviço de um objetivo político ou de identificação do gênero de um corpo (como o homem, a mulher, o homem trans, a mulher trans), o gênero não é fixo e o que se coloca como “identidade” é um efeito das práticas discursivas.

Assim, identidades de gênero e de sexualidade são performativas e, segundo a autora supracitada, o gênero é sempre um feito; e mais: “(...) não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (BUTLER, 2003, p. 48).

A heterossexualização do desejo disseminada culturalmente requer e institui uma produção de oposições assimétricas entre “masculino” e “feminino”, que desembocam em atributos do “macho” e da “fêmea”. Infelizmente, o esporte pactua com isso - e não poderia ser diferente, uma vez que é um produto do social. Triste constatar que a matriz cultural, que opera via hetenormatividade (WARNER, 1991), determina quais tipos de “identidades” de gênero podem, ou não, existir. Ainda resgatando Butler (2003, p. 39), não podem existir “aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’, nem do ‘gênero’”.

O conceito de gênero funcionou, ao longo de suas transformações epistemológicas dos últimos 60 anos, como um meio de rejeitar o determinismo biológico instituído e aclamado como “verdade” (FOUCAULT, 1985), a partir do que estava implícito no que se chamava de “diferenças sexuais”. Num só golpe, permitiu problematizar uma representação naturalizada de homens e mulheres e de seus atributos de “masculinidade” e “feminilidade”. Graças a tais problematizações, hoje, considera-se que esses qualificativos podem ser atrelados a quaisquer corpos, e que gestualidades, estéticas, sexualidades, performances, etc., são enunciações discursivas produzidas socialmente.

Colar as genitálias ao corpo e presumir que existem apenas “homens com pênis” e “mulheres com vaginas” no mundo e que, no campo das práticas esportivas, competem agrupados em semelhantes e entre si é operar apenas via biologia. Mesmo no esporte de competição, que se baseia ainda na divisão por sexos (homens x homens e mulheres x mulheres) para justificar a “igualdade formal de chance”, é possível considerar que tal classificação está sendo constantemente questionada - pelo menos é algo que tenho insistido em minhas pesquisas nos últimos anos (CAMARGO; KESSLER, 2017; CAMARGO, 2016a; 2016b).

Nas raias do atletismo

Em julho de 2014, numa das salas da Universidade de Cleveland (Estados Unidos), Rob Lucas lançava um documentário para uma plateia curiosa de amantes do esporte e acadêmicos. Stella Walsh - a documentary trazia a história e a trajetória de uma importante campeã da prova feminina dos 100 metros rasos, nos longínquos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1932.

Mas não era apenas isso: seu assassinato, em 1980, promove uma reviravolta na história olímpica oficial e muda também a própria percepção dos moradores da cidade de Cleveland sobre sua honorária e famosa cidadã-atleta. O crime banal conduziu seu corpo para uma autópsia e, de lá para o questionamento sobre seus méritos esportivos - títulos, medalhas e recordes.

Stella, ainda Stanislawa, nasceu no início do século XX e emigrou criança da Polônia para os Estados Unidos com a família. Fixaram-se em Cleveland, Ohio, e tocaram a vida. A jovem polaca destacou-se logo no atletismo escolar, causando empolgação quando corria. Como a cidadania estadunidense tardava, foi inscrita pela terra natal nos X Jogos Olímpicos de Los Angeles e sua participação não garantiu apenas a medalha de ouro, como também uma quebra de recorde, fixando seus 11s9 na prova feminina3.

Enquanto na Polônia se tornou heroína, nos EUA, a União Atlética Amadora (UAA) já cogitava agregar a atleta ao seu quadro para treinamentos e competições futuras. No documentário de Lucas, ela própria narra suas conquistas, tanto na América do Norte, quanto em solo europeu, com várias premiações em múltiplos campeonatos, realizados no decorrer dos anos 1930. Ela chegou nos Jogos de Berlim-1936 como a preferida ao posto de bicampeã dos 100 metros, que seria um feito excepcional em um momento em que o esporte feminino estava em ascensão em todo o planeta (DEVIDE, 2005).

Nos jogos nazistas, no entanto, Stella competiu com Helen Stephens, uma jovem estadunidense que era considerada um raio, devido à sua velocidade impressionante. Ao ser vencida, desferiu sua mágoa dizendo que “somente um homem ganharia dela”. Rumores ecoaram e a comissão técnica da Polônia fez com que chegassem aos organizadores do torneio, o que provocou a criação de uma junta de médicos para executar exames físicos e táteis em Stephens. Helen não hesitou e se deixou inspecionar para provar que era uma “legítima mulher” (OFFUTT, 2014). Apesar da suspeita, e mediante prova irrefutável após exame, a estadunidense manteve seu resultado e suas medalhas.

Com a situação política instável na Europa e na Polônia no final dos anos 1930 e a eclosão da II Guerra Mundial logo em seguida, Stanislawa decide, então, em 1947, aceitar a cidadania americana e casa-se com o lutador de boxe Neil Olson - do qual se separa alguns anos mais tarde. Stella Walsh, como ficou conhecida nos EUA, engaja-se na carreira de técnica e ajuda, inclusive, jovens imigrantes poloneses a praticarem atletismo (CAMARGO, 2017a, s/p).

O latrocínio que vitimou Stella no estacionamento de um supermercado, em 1980, mudou seu status para cidadãos de Cleveland e ameaçou toda sua carreira esportiva. A autópsia acusara Stella de ter órgão genital masculino atrofiado (com pênis hipoplásico e testículos pouco desenvolvidos), apesar de características fisiológicas de mulher. Uma investigação bioquímica identificou o corpo dela contento pares simultâneos de cromossomos XX e XY, que definem fêmeas e machos da espécie. Stella apresentava um quadro conhecido como mosaicismo.

Os desdobramentos disso mostraram um caso insólito no esporte, de uma controvérsia sobre o sexo biológico e a expressão de gênero de uma atleta já morta. Depois de muita polêmica local/nacional e de protestos por parte de antigas atletas, que se sentiram lesadas, os órgãos de controle do esporte decidiram manter resultados e medalhas de Stella. De uma visibilidade notória, Stella passa a um estado de quase invisibilização (inclusive nos registros oficiais), devido à identificação de uma dissonância de gênero.

Stella viveu como mulher cisgênero a vida toda, para, a partir de um episódio isolado, tornar-se uma pessoa com variação intersexo4.

Nos gramados de futebol

Em fins de outubro de 2021, a imprensa esportiva mundial fez alarde, ao receber a declaração de Joshua Cavallo, jogador de futebol australiano do Adelaide United, de que ele se reconhece como homossexual (NAYA, 2021). No vídeo de 2’50”, postado em seu perfil do Instagram, disse “sempre se sentir envergonhado por ser gay”, que “está cansado de atuar segundo expectativas dos outros” e que deseja “jogar futebol profissionalmente e ser tratado igualmente perante todos”. A partir deste posicionamento, Josh, como é mais conhecido, se coloca como o primeiro futebolista de uma divisão de elite, ainda em atividade, a assumir uma orientação não heterossexual. Outros jogadores que fizeram algo semelhante, anunciaram publicamente e, imediatamente, se aposentaram, como em casos como o do alemão Thomas Hitzlsperger e o do estadunidense Robbie Rogers, procedimento muito comum, segundo literatura sobre o tema5.

Histórias de atletas homossexuais no esporte quase nunca têm desfechos felizes. Além do anúncio vir junto a uma aposentadoria obrigatória, em geral é um momento difícil para os atletas, pois já não se encontram em plena forma física, já não apresentam resultados compatíveis com seus áureos tempos ou sofrem psiquicamente há anos, devido à orientação sexual. Nesse sentido, um enredo triste é o de Justin Fashanu, inglês que, no fim dos anos 1990, se suicidou, depois de um escândalo, envolvendo sua sexualidade.

Fashanu nasceu no início dos anos 1960, na Inglaterra, filhos de imigrantes, que logo foi dado a adoção junto com o irmão. Adotados, então, por um casal branco da cidade de Norfolk, ambos cresceram como únicos negros da pacata localidade. Sua carreira futebolística foi catapultada a partir da performance espetacular no jogo entre o Norwich City (time local) e o famoso Liverpool, em 1980. No ano seguinte, Fashanu torna-se o primeiro negro da história do futebol transferido por um milhão de libras esterlinas para o Nottingham Forest.

Apesar de ter se transformado na sensação do momento, teve uma carreira curta e irregular. O único clube de futebol em que se destacou foi o Norwich, no qual jogou em 90 partidas e marcou 35 gols (dos anos de 1978 a 1981). Depois disso, passou por times na Austrália, no Canadá e mesmo nos EUA.

O turning point em sua vida profissional adveio de uma entrevista para o jornal sensacionalista The Sun, nos anos 1990, na qual assumiu ser gay e manter relações homoeróticas e afetivas com outros homens. O momento não era favorável a revelações bombásticas como essa e Fashanu viu sua vida familiar (particularmente, o relacionamento com o irmão) e profissional degringolar depois disso. O estigma da AIDS em vigor na época sobre homossexuais declarados marcou-o profundamente, o que causou um périplo por equipes pouco importantes e contratos baratos.

O viril mundo do futebol profissional não aceitou (como não aceita hoje em dia) a “saída do armário” da sexualidade de Justin Fashanu. De acordo com Pronger (1990), o medo atrelado à homossexualidade, num ambiente tão viril e machista como o esporte/futebol, não apenas produz todo tipo de julgamento e discriminação entre praticantes, como dispara ataques homofóbicos, que, em geral, se colocam como “preventivos” por parte de uma heterossexualidade temerária.

Não bastasse ter sido soterrado por uma onda de calúnias sobre sua sexualidade que o jogou para as sombras da modalidade esportiva mais praticada no planeta, Fashanu foi acusado de estrupo de menor de idade, um adolescente de 17 anos, na época em que jogou no Atlanta Ruckus, dos EUA. Por não suportar a pressão desse evento disparador, o atleta se suicidou por enforcamento.

O que Justin Fashanu teve coragem de fazer está além de uma tentativa de se colocar debaixo dos holofotes para justificar a péssima campanha. Ele assumiu uma sexualidade não heteronormativa, em um momento em que pouco se discutia isso nos espaços esportivos - poucos haviam feito isso, até então. Como explico em outro momento:

Trazer a homossexualidade para o esporte é, em primeiro lugar, colocar a dúvida sobre a hegemonia da heterossexualidade em voga no mundo esportivo, que legitima corpos, atitudes e comportamentos. Além disso, colocar-se como sujeito desejante fora da heteronorma (alinhado com quaisquer outras estéticas sexuais) ressalta que não apenas corpos como igualmente as práticas de prazer precisam ser repensados e reconsiderados para outros referenciais que não os aceitos socialmente (CAMARGO, 2017b).

Nas piscinas da natação e de saltos ornamentais

Em 2008, quando desembarquei em Pequim, China, para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos daquele ano, nos bastidores dos escândalos relacionados a atletas só se falava em Matthew Mitcham, o saltador australiano que havia assumido sua homossexualidade, publicamente, alguns meses antes, numa entrevista para o jornal The Sydney Morning Herald. Segundo o jornal, tendo sofrido estafa de treinamentos e desenvolvido uma depressão, Mitcham tinha, não apenas a coragem para pular da plataforma de dez metros numa piscina, como para declarar-se gay e enfrentar as consequências do preconceituoso mundo dos esportes (THE SUNDAY, 2008).

Mitcham era um dos favoritos para a prova de dez metros, no salto da plataforma, e conquistou a medalha de ouro. O atleta talvez tenha inaugurado uma era em que atletas ou não se submetem ao “armário da sexualidade”, ou ficam pouco tempo dentro dele, uma situação bem distinta de outro saltador, também autodeclarado gay, que se encontrava no auge esportivo quando Mitcham nascia.

O caso emblemático dos Jogos de Seul-1988 é o de Greg Louganis, saltador estadunidense de plataformas e trampolins. Ele teria sido diagnosticado com HIV poucos meses antes daquele certame olímpico e manteve tal fato em segredo. Apesar disso, teve que começar a tomar o AZT, uma droga disponível na época para combater tal enfermidade.

Durante as competições classificatórias de saltos ornamentais daqueles Jogos, Louganis bateu forte com a cabeça na borda do trampolim. Com a queda na piscina, uma mancha de sangue tingiu o azul da água e o deixou apavorado. A imagem da queda foi eternizada pelas redes televisivas de transmissão esportiva. O atleta sofreu uma concussão e, mesmo assim, se manteve na competição. Em meio a lágrimas e ao desespero, não conseguiu contar que era portador do HIV, nem para o médico que suturou o corte em sua cabeça, nem para o comitê organizador dos Jogos. O estigma relacionado à AIDS enquanto doença (chamada de “peste gay”), que pouco era conhecida naqueles tempos, aterrorizava o saltador.

Louganis possuía marcas expressivas em Jogos Olímpicos, Campeonatos Mundiais e Pan- americanos. Excetuando-se a medalha de prata que ganhou em Montreal-76 na plataforma de dez metros, seus demais resultados foram sempre medalhas de ouro, tanto no trampolim de três metros, quanto na plataforma de dez metros. Ele foi o único saltador ornamental a ganhar ouro nessas provas em dois Jogos Olímpicos consecutivos (Los Angeles - 1984 e Seul - 1988). Apesar do sucesso esportivo, o atleta vivia com uma culpa interna pela vida clandestina fora da heterossexualidade e por viver seus desejos no “armário da sexualidade”6.

O coming out (saída do armário) público veio apenas nos anos 1990. Apesar de já viver um “estilo de vida gay” (como se dizia naqueles tempos), oficialmente gravou uma mensagem para a abertura dos Gay Games, em Nova Iorque, em 1984, na qual declarou, publicamente e pela primeira vez, que mantinha relações homoeróticas e homoafetivas com outros homens. No ano seguinte, lançou sua autobiografia (LOUGANIS; MARCUS, 1995), na qual recontou todos os dramas de sua trajetória pessoal de atleta, inclusive dos abusos que sofreu, da contaminação pelo HIV e da soropositividade. Muito se debateu, na época, e particularmente nos EUA, sobre se os atletas deveriam se pronunciar sobre serem portadores do vírus ou detentores da doença, ou ainda se deveriam ser liberados para competir.

Notas conclusivas sobre visibilidades/invisibilidades esportivas

As narrativas destacadas tiveram como propósitos mostrar que há problematizações trazidas por corpos e sexualidades no campo esportivo, que, muitas vezes, ficam sobrepostas ou encobertas pela história oficial dos fatos, os quais são orientados notadamente por discursos e lógicas cis-heteronormativas. Em todos os casos mencionados, houve elementos disparadores, a partir dos quais uma dada situação pessoal apareceu, mudando o registro de determinado atleta, junto ao grande público e, até mesmo, perante as entidades de controle do esporte.

Seja por meio de uma autópsia, um suicídio ou um acidente, os acontecimentos acabam sendo marcadores de uma nova condição assumida: de mulher cisgênero, Stella Walsh se torna pessoa com variação de intersexualidade; de homem cisgênero heterossexual, Justin Fashanu passa a ser reconhecido como futebolista gay e, por isso, é perseguido; e o caso de Greg Louganis é similar ao de Fashanu, porém em sua situação, ao invés da perseguição social, houve o estigma de ser portador de HIV.

A partir de uma analítica das variáveis ‘gênero’, ‘sexualidade’ e ‘nível de performance’ conclui-se que o próprio sistema se encarrega de estabelecer as anormalidades corporais/sexuais e manter as invisibilidades esportivas para a manutenção do status quo. Se Stella Walsh era the greatest women of all time (a maior mulher de todos os tempos) em referência a seus feitos e recordes, a partir da condição adquirida da intersexualidade passa a ser the mosaism case (o caso de mosaicismo) e a ser o problema com

o qual o Comitê Olímpico dos Estados Unidos (e, por conseguinte, o Comitê Olímpico Internacional) não querem lidar - particularmente numa época em que as questões intersexo ainda estavam fortemente marcadas por indicadores de desordem mental (LEITE JR., 2011). Algo semelhante também acontece com Louganis, nos anos em que a discriminação contra portadores do vírus HIV era grande e os órgãos esportivos não queriam e não sabiam lidar com a doença e os meios de infecção.

O caso de Stella Walsh e de outros atletas que tiveram uma exposição à opinião pública sobre seus gêneros/sexos e orientações sexuais mostra que, de um lado, há uma prerrogativa instituída no esporte sobre a obrigatoriedade de uma coerência entre corpo biológico (sexo/genitália), gênero (representação social) e desejo (atração orientada ao "sexo oposto"), elementos que devem executar uma heterossexualidade compulsória (RICH, 1999). E de outro lado, tais questões sugerem acatar e exigir que modelos de masculinidade e feminilidade sejam devidamente executados e respeitados - independentemente se tais modelos funcionem como ficções inatingíveis.

O argumento baseado na “igualdade de chances” no esporte faz com que existam apenas as categorias masculina e feminina como possibilidade de encaixe de corpos. Aqueles fora do binarismo de gênero instituído são excluídos do processo. Se, na história recente do esporte, durante o século XX, vê-se todo tipo de manobra para driblar dissonâncias sexuais e de gênero (como inspeção física/genital em mulheres, testes de verificação de gênero ou de feminilidade, testes cromossômicos, antidopagem, casamentos heterossexuais arranjados, entre outros), isso fica cada dia mais difícil. Atualmente, a situação de pessoas trans (como Laurel Hubbard) e das que apresentam alguma variação intersexo (como Caster Semenya, Duty Chamd, além de outras africanas, como Christine Mboma e Beatrice Masilingi) mostram que, tanto a transgeneridade como identidade, quanto a intersexualidade (e variações) como condições irredutíveis, apesar de incomodarem bastante o sistema esportivo, se farão cada vez mais presentes num futuro próximo.

A proposta deste ensaio foi trazer casos de atletas que apareceram na história oficial do esporte no século XX, a fim de compreender problemáticas que envolvem corpos, gênero (sexualidade e orientações): no caso de Stella Walsh, a condição dissonante de gênero e, portanto, não visibilizadas durante sua trajetória esportiva, apagou a presença de um corpo intersexo nos registros oficiais do atletismo olímpico. O assassinato, por sua vez, funcionou como um marco de visibilidade que, ao deflagrar o crime contra uma mulher cisgênero, mostrou a história de uma atleta com variação intersexo. O acontecimento em si desnudou uma nova condição, que acabou mostrando um não-lugar daquele corpo, então abjeto e não classificável.

Por outro lado, a trajetória de Justin Fashanu demonstra que sexualidades dissidentes são mais invisibilizadas nas modalidades de maior apelo popular e midiático, como no futebol de campo. Aliás, não apenas Fashanu, mas em exemplos de outros atletas do futebol, assim, também, se passam. E o contrário, igualmente, é verdadeiro: ou seja, em modalidades de menor apelo popular e menos midiatizadas, dissonâncias podem aparecer, porque continuam invisíveis, como no caso do esqui estilo livre, modalidade de Gus Wentworth (modelo de beleza ímpar que faz propagandas de roupas íntimas e esportivas nas horas vagas), o qual “saiu do armário” nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pyeongchang, em 20187.

A última dimensão alcançada pelo episódio anteriormente narrado, acerca do atleta Greg Louganis, esclarece que o nível de performance esportiva contribui para manter os “casos de exceção” escondidos: isto é, quanto melhor a performance, mais um corpo tende a ser normalizado dentro dos parâmetros heteronormativos. A excepcionalidade do medalhista olímpico Louganis nas plataformas de dez metros dos saltos ornamentais jamais o colocaria como suspeito de dissidência de gênero, muito menos na condição de homossexual ou portador de HIV. Ao contrário, quanto menor a performance, mais um corpo tende a ser exposto e a ele pouca importância é dada - exemplos de atletas de divisões amadoras, inferiores, sem muita expressão apresentam maior facilidade para falarem sobre suas sexualidades não normativas, porque estão fora do spotlight midiático. Anderson (2005) conclui isso entre os atletas que pesquisou.

À semelhança do que Foucault (1985) postularia, a partir de discursos de poder (frequentemente investidos na área médica, mas não somente), o “corpo esportivo ideal” é moldado, produzido, replicado, desejado - pelas pessoas, entidades do esporte e meios de comunicação -, e as normativas são estabelecidas para determinar o que é, ou não, permitido nos espaços do esporte, legitimando ações e situações, deslegitimando outras.

A polêmica instalada sobre corpos e sexualidades não normativas no esporte tem duplo sentido: de um lado, as expectativas cis-heteronormativas da sociedade sobre tais corpos e, de outro, as demandas por uma performance de gênero. Do ponto de vista cisnormativo, a cisgeneridade figura como padrão não questionado (afinal, desde mesmo antes do nascimento de suas crianças, pais e mães já são inqueridos a dizer se o bebê vai ser do sexo masculino ou feminino) e executa a obrigatoriedade heterossexual; no lado das expectativas, todo corpo “errado” que apresenta uma dissidência do sistema sexo-gênero (Butler, 2003), ao cair no domínio público, tem sobre si uma demanda compulsória por definição ou afiliação definitiva a uma categoria de gênero, orientação ou identidade sexual.

O mais importante de toda essa discussão que envolve essa noção equivocada de oposição entre “normalidade/anormalidade” no campo esportivo (e também na vida) resume- se ao fato de que corpos trans, com variação intersexo e mesmo de homens ou mulheres homossexuais, implantam dúvidas nos sistemas, sejam relativas à afirmação de uma estética de sexualidade hegemônica (a heterossexual), sejam em relação à corponormatividade instituída. O que se apresenta como sintomático e interessante é justamente que os questionamentos e incertezas plantados por tais corpos abram uma discussão profícua e bem maior sobre gestão política e técnica do corpo e da sexualidade nos espaços sociais - e, inclusive, nos esportivos.

No entanto, a própria condição de existência desses sujeitos tem-se imposto como determinante no registro da história oficial. E é aí que mora um paradoxo a ser pensado: quanto maior é a visibilidade, mais preconceitos se revelam por parte de uma sociedade que ainda mostra, claramente, não estar preparada para aceitar tais sujeitos e suas participações no esporte. E se não são aceitos, obviamente, suas trajetórias são registradas de modo, no mínimo, equivocado, invisibilizando-os.

O gênero não é apenas uma ficção inventada em sociedade, como é uma fantasia imaginada (e desejada), que mistura elementos orgânicos e políticos (nos termos de Paul B. Preciado, 2014), que, cada vez mais, coloca em suspeição essa ideia de “corpo normal”, transformando-a em uma armadilha fatal. E, por isso, é elemento fundamental nas considerações também de corpos em movimento em arenas esportivas.

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1Faz-se referência ao Cristianismo muscular, um movimento filosófico-religioso, originado na In- glaterra vitoriana no século XIX que condensava obrigações patrióticas, disciplinares, de autope- nitência, em prol de uma condição atlética ideal. Ele estava no seio do Cristianismo e do Protes- tantismo, e cresceu também entre atletas cristãos dos Estados Unidos. MacAloon (2009) faz um balanço sobre isso. Putney (2003), por sua vez, traz um retrospecto sobre o desenvolvimento de tal movimento na América do Norte

2Aqui se poderia inserir o adjetivo “corponormativo” (MCRUER, 2006), pois o esporte nasceu para ser praticado por pessoas que não tinham qualquer deficiência. Isso vai mudar no meio do século XX, com o aparecimento do esporte paralímpico, feito por pessoas com deficiências. Sobre isso, no entanto, este artigo não se aprofundará.

3Como conta Pieper (2016) e também Anderson (2017), as especulações sobre seu sexo já apareceram durante os Jogos de 1932 e havia suspeitas de que aquele corpo com traços masculinos e poucas formas femininas poderia, talvez, não ser uma mulher de fato.

4Segundo Pires (2018, p. 557), pessoas intersexo são aquelas que apresentam “características sexuais atípicas” ou são considerados “sujeitos que destoam dos ideais sexuais e das normas generificadas”.

5Anderson (2005) traz ainda outras considerações sobre este ponto e explica que atletas ativos que saem do armário apresentam alta performance em seus esportes e detêm grande capital masculino. Caso contrário, será mais fácil achar atletas fora do closet em clubes e ligas mais amadoras.

6Uma longa discussão sobre o armário da sexualidade no campo esportivo está em Camargo (2018a). Não cabe reproduzi-la aqui, mas é importante a salvaguarda de Segdwick (2007): mais do que um fenômeno isolado, o armário é um regime de controle da sexualidade no Ocidente e participa de uma epistemologia opressora e produtora incansável da Cultura e da História

7Esse atleta foi protagonista de um beijo olímpico em seu namorado que, após as manifestações observadas nos Jogos Olímpicos do Rio-2016, foi tido como uma rara surpresa, a qual ninguém esperava, mas que logo foi esquecida – afinal, quem se lembra dos Jogos Olímpicos de Inverno? (CAMARGO, 2018b).

Recebido: 29 de Novembro de 2021; Aceito: 30 de Dezembro de 2021

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