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Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.1 Florianopolis Jan./June 2022  Epub May 24, 2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n1.p134-148 

Artigos

CONSELHOS IMUNIZANTES PARA O INDIVÍDUO SAUDÁVEL: O CASO DE UM NÚCLEO DE PESQUISA

IMMUNIZATION ADVICE FOR A HEALTHY INDIVIDUAL: THE CASE OF A RESEARCH GROUP

CONSEJOS INMUNIZANTES PARA EL INDIVIDUO SALUDABLE: EL CASO DE UM NÚCLEO DE INVESTIGACIÓN

Ivan Marcelo Gomes1 

1Departamento de Ginástica do Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.


Resumo:

O presente texto apresenta um núcleo de pesquisa que tem como foco o tema da atividade física relacionada à saúde, destacando suas propostas para a formação do indivíduo saudável, a partir das elaborações textuais de integrantes desse grupo de pesquisa. Para tanto, opta-se, aqui, por privilegiar as dissertações de mestrado produzidas pelos integrantes deste núcleo no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da universidade ao qual está alocado. Destacam-se, então, os conselhos - vinculados à ideia de ponderação e que serão descritos e analisados a partir de uma categoria denominada “vida equilibrada” - elaborados pelo núcleo, interpretando-os à luz da lógica imunitária desenvolvida pelo filósofo Roberto Esposito.

Palavras-chave: estilos de vida; saúde; políticas do corpo

Abstract:

This paper presents a research group that focuses on the topic of health-related physical activity, highlighting its proposals for the education of healthy individuals, based on textual elaborations of members of this group. In order to achieve this goal, we concentrate on dissertations written by members of the group within a Postgraduate Program in Physical Education of the university to which it is allocated. We focus on the pieces of advice - associated to the idea of prudence, and described and analyzed in basis of a category called “balanced life” - prepared by the research group, interpreting them in light of the immunization logic developed by the philosopher Roberto Esposito.

Keywords: lifestyles; health; policies of the body

Resumen:

El presente texto presenta un núcleo de investigación cuyo objetivo es el tema de la actividad física relacionada con la salud, destacando sus propuestas para la formación del individuo saludable a partir de las elaboraciones textuales de integrantes de ese grupo de investigación. Por tanto, optamos por destacar las monografías de maestría producidas por los integrantes de este núcleo en el Programa de Pos Graduación en Educación Física de la universidad al que está relacionado. Aquí destacamos los consejos -vinculados a la idea de ponderación y que serán descritos y analizados a partir de una categoría denominado “vida equilibrada” - elaborados por el núcleo, interpretándolos a la luz de la lógica inmunitaria desarrollada por el filósofo Roberto Esposito.

Palabras claves: estilos de vida; salud; políticas del cuerpo

Introdução

As discussões que serão tratadas neste texto abarcam a emergência de um ideal humano que, atualmente, se traduz nas propostas sobre estilos de vida ativos e saudáveis. Especificamente, serão abordadas propostas que enfatizam a qualidade de vida, o bem-estar e o estilo de vida ativo e que são divulgadas, prioritariamente, no espaço universitário. O argumento central que perpassa o texto é o de que, nessas propostas acadêmicas, existe uma intersecção entre pretensões científicas e uma cruzada em nome de um estilo de vida considerado correto.

Adentrando novamente na temática desta pesquisa, visualiza-se uma radicalização, mesmo contendo algumas nuances, de preocupações, cuidados e estratégias relacionados ao corpo saudável. Existe uma espécie de espetacularização do corpo que atrela “o amor de si”, descrito por Bauman (2001) ao se sentir apto para execução de funções nas relações sociais. Manchetes como: “Cabeça boa e corpo sarado: é verdade. Está provado pela ciência: quem malha é mais feliz”2 são rotineiras nesta exacerbação contemporânea da aparência corporal, sendo incluídas e comentadas por uma série de diagnósticos sociológicos como, por exemplo, a “estetização da vida cotidiana” (FEATHERSTONE, 1995) e as “narrativas do eu” (GIDDENS, 2002). Entende-se que estes discursos podem ser interpretados como estratégias disponibilizadas para os indivíduos e são provenientes de experts, de instituições diversificadas e, até mesmo, do Estado. Trabalha-se com a ideia de que essas propostas para o indivíduo saudável são subsidiadas por especialistas científicos com a função de realizar ações e apresentar informações e “verdades” (discursos normatizadores) e que submetem os indivíduos da atual modernidade a uma situação “desejante” e “opressora”.

Como salientado anteriormente, o objeto deste estudo são as propostas para a educação do indivíduo saudável. Neste artigo, optou-se pela análise de publicações vinculadas a um núcleo de pesquisa de uma universidade pública brasileira, que elabora e difunde propostas em torno da saúde. Esse núcleo simboliza o que se chama de conselho acadêmico - que se propõe à produção científica - e que busca ampliar seu público por meio de estratégias pedagógicas.

A opção por este campo pode ser caracterizada em virtude dele conectar aspectos que transitam nos cuidados corporais contemporâneos como a prática de atividades físicas e a alimentação considerada saudável. Na sequência, será apresentada uma breve caracterização desse núcleo de pesquisa e as estratégias metodológicas utilizadas.

Uma caracterização de um núcleo de pesquisa a partir de suas dissertações: seus objetivos e seus temas

O Núcleo de Pesquisa em questão, criado em 1991, apresenta-se como o segundo grupo de pesquisa mais antigo da área de Educação Física, vinculado à “atividade física e saúde”, além de apresentar vários pesquisadores envolvidos e uma das maiores publicações entre os grupos registrados no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPq.

O núcleo era formado por nove pesquisadores, 24 estudantes e um técnico3. As seis linhas de pesquisa desenvolvidas pelo grupo são as seguintes: “atividade física, qualidade de vida e indicadores de saúde em diferentes grupos populacionais”, “estratégias e ações para um estilo de vida ativo nos diversos campos de atuação da educação física”, “monitoramento e fatores associados à prática de atividade física e ao controle alimentar”, “monitoramento e intervenção da atividade física em grupos especiais”, “programas para mudança de comportamento relacionado à atividade física e saúde” e “teorias pedagógicas e didáticas do ensino em atividade física e saúde”.

As análises realizadas nas dissertações contribuíram para traçar-se, neste estudo, uma determinada caracterização deste núcleo de pesquisa. As dissertações analisadas foram escolhidas em virtude de suas temáticas. Desta forma, elegeram-se os trabalhos que abordavam a questão da saúde, da atividade física, da qualidade de vida e temas correlatos. Em virtude da repetição dos temas, a pesquisa ficou restrita aos textos defendidos entre os anos de 2004 e 20074. Feita esta triagem, foram analisadas 29 dissertações5.

Ao cruzar os conteúdos abordados com os sumários e as palavras-chave fornecidas nestes trabalhos, constatou-se que este núcleo focaliza um público diversificado: crianças, adolescentes, adultos, idosos, pais, mulheres, grupos étnicos, portadores de doenças, trabalhadores, estudantes, estudantes trabalhadores e dependentes químicos.

Utilizou-se, também, esse tipo de cruzamento de informações para identificar os temas que mais se repetem e a forma como são abordados. Os temas que foram mais evidenciados nos textos das dissertações referem-se a: atividade física, estilo de vida, qualidade de vida, fatores de risco (principalmente relacionados à obesidade / sobrepeso e ao sedentarismo / inatividade física), problemas de saúde ocasionados pelo avanço tecnológico, saúde (promoção, prevenção), envelhecimento, mudança de comportamento, lazer, custos econômicos decorrentes da saúde da população, educação e programas para saúde.

Outra característica deste núcleo de pesquisa refere-se à forma com que as dissertações são construídas6. Os sumários das dissertações ilustram, de maneira significativa, este aspecto, pois visualizou-se um modelo padrão, com denominações acentuadamente semelhantes, que é organizado deste modo: introdução, revisão de literatura, metodologia, resultados e discussão, conclusões e recomendações.

Essa caracterização inicial do Núcleo, a partir de publicações acadêmicas, tendo em vista ser esta uma das finalidades indicadas por este grupo de pesquisa, possibilitou uma determinada visualização do núcleo. Os referidos trabalhos acadêmicos permitiram abarcar suas preocupações centrais, que se articulam ao redor das noções de estilo de vida, prevenção/ promoção da saúde7 e qualidade de vida.

A partir destes documentos de pesquisa, construíram-se algumas categorias (“vida equilibrada”, “confiança especializada” e “reflexividade ativa”) que nortearam as análises desenvolvidas sobre o núcleo. As categorias, aqui referidas, representam ações a serem realizadas, em função dos conselhos oferecidos pelos especialistas, para que os indivíduos possam alcançar a desejada qualidade de vida. Buscou-se, por meio das referidas categorias, evidenciar as atitudes valorizadas e as rejeitadas presentes nos textos acadêmicos analisados. A categoria “vida equilibrada” estimula os indivíduos a manter o “bom senso” frente aos excessos da atual modernidade. A categoria “confiança especializada” reforça a necessidade de recorrer ao serviço dos sistemas peritos para fortalecer a segurança, perante as ações cotidianas; além disso, apresenta uma conotação que salientará a importância da conscientização da população para uma vida saudável. A categoria “reflexividade ativa” aponta para a necessidade da ação, em função do conhecimento adquirido, enfatizando também as intervenções dos especialistas e dos órgãos públicos.

Essas categorias articulam-se em campos amplamente ilustrados nas produções do núcleo, pois para a obtenção de sua qualidade de vida (saúde, bem-estar) os indivíduos devem agir em frentes assumindo suas responsabilidades. Os campos de ação, dentro do registro do núcleo, não recaem exclusivamente nos indivíduos. A obtenção da qualidade de vida (saúde, bem-estar) perpassa pelo estilo de vida, sendo este descrito como uma responsabilidade individual; mas também são focalizadas ações que extrapolam os esforços individuais e que exigem a atuação de diferentes âmbitos governamentais. Desta maneira, os focos de atuação se articularão em três frentes: o eu-corpo, o eu-casa e o nosso-ambiente. O “eu-corpo” refere-se ao campo de ação vinculado aos cuidados corporais e o “eu-casa” aos cuidados do lar. O “nosso-ambiente” é um campo que também permitirá a constituição do indivíduo saudável, por meio de ações individuais e, principalmente, governamentais e especializadas em função da elaboração e utilização de espaços considerados saudáveis.

Neste texto, serão privilegiadas as análises vinculadas à categoria “vida equilibrada”. Buscou-se, como dito anteriormente, por intermédio da referida categoria, evidenciar as atitudes valorizadas e as rejeitadas presentes nos textos acadêmicos analisados. Deste modo, o estilo de vida ativo, termo recorrente nas formulações do núcleo, será analisado pela categoria, se utilizando dos temas e proposições presentes nas dissertações, que serviram de material para este trabalho. Na sequência do texto, será apresentarda a categoria “vida equilibrada”, a base teórica do trabalho, as reflexões em torno do núcleo a partir desta categoria e, ao final, serão elencadas algumas considerações.

Atividades para uma vida equilibrada

A “vida equilibrada”, a partir deste núcleo de pesquisa, é composta por conselhos e saberes que enfatizam a necessidade de se evitar os excessos cotidianos, provenientes dos avanços técnicos elaborados na modernidade. O estilo de vida ativo aparece como um modelo ideal de conduta e enfrentamento dos transtornos causados pelo mundo moderno e que desembocam em exageros tecnológicos e nutricionais.

Os problemas causados pelos avanços tecnológicos apresentam-se de forma recorrente nas dissertações. Geralmente, aparecem na parte introdutória dos trabalhos ou no início da revisão de literatura, embora essa informação também tenha sido encontrada em outros capítulos. Os argumentos utilizados denotam uma verdade cristalizada sobre tal tema, mesclando subsídios teóricos com jargões disseminados no campo da educação física. Na maioria das vezes em que esta questão é tratada, salientam-se os malefícios conectados à modernidade, constituindo um lamento por tal situação, conforme ratifica o exemplo a seguir: “Na pré-história, os ancestrais incorporavam a atividade física no seu dia-a-dia em atividades religiosas, sociais e culturais. [...] A modernização, através da tecnologia, tem transformado cada vez mais o homem de uma vida criativa ativa para um ser sedentário [...]” (NÚCLEO 3). O lamento foca uma consequência: o sedentarismo. Dentro da perspectiva do núcleo, os avanços tecnológicos subjugam os indivíduos a levar uma vida desequilibrada, em virtude das facilidades proporcionadas e que são inibidoras das atividades físicas. Essa inibição torna os indivíduos pouco ativos em diferentes setores, como é visto adiante:

O organismo humano foi construído para ser ativo, mas a era contemporânea conspira contra a natureza, quando são construídos cada vez mais e melhores equipamentos eletrônicos que buscam o conforto das pessoas, tornando o homem mais passivo em seu lazer ou tempo livre, sem contar com a violência urbana, que amedronta as pessoas, impedindo-as de sair às ruas [...] (NÚCLEO 6).

A vida equilibrada deve ser cultivada em diferentes momentos e etapas dos indivíduos. Assim, atividades físicas são uma opção ponderada para combater estes excessos modernos, seja no lazer, no trabalho, nos estudos, na infância, na velhice ou em qualquer outra situação. A utilização em excesso de computadores, televisores e jogos eletrônicos também é criticada. Esses exageros levam a uma precariedade (a falta de atividades físicas), que causa outro excesso: a obesidade. Este excesso corporal denuncia o desequilíbrio de um indivíduo.

Por outro lado, são apontadas vantagens propiciadas pelas tecnologias. A busca pela vida equilibrada e ativa apresenta outra possibilidade, que ocorre pela utilização tecnológica para a difusão de conhecimentos para um estilo de vida saudável (NÚCLEO 2). Desta maneira, percebe-se uma relação conflituosa com a questão tecnológica na consecução da vida equilibrada e ativa. A tecnologia tanto é combatida por levar a inatividade, como também, é uma ferramenta individual para a saúde. Assim, os conselhos para uma vida equilibrada reforçam a necessidade do bom senso, pois um indivíduo ponderado saberá utilizar a tecnologia sem exageros e para um fim proveitoso em sua existência.

Se existem algumas tensões envolvendo a questão tecnológica, o mesmo não se pode dizer em relação a outro excesso. Refere-se, portanto, a um excesso corporal: a obesidade. Aliás, as tecnologias de informação disponíveis podem “se constituir numa ferramenta efetiva no controle do sedentarismo, no combate da obesidade infantil e, consequentemente, na promoção de um estilo de vida mais ativo” (NÚCLEO 2). Os especialistas do núcleo alertam sobre os riscos provenientes nos indivíduos que se encontram em tal estado. Vale ressaltar que os riscos não são poucos: doenças cardiovasculares (NÚCLEO 4), síndrome metabólica (NÚCLEO 9), diabetes, certos tipos de câncer (NÚCLEO 12), distúrbios de humor e do sono (NÚCLEO 1), entre outros.

Alertas são referendados pelos conselheiros8 do núcleo de pesquisa nos quais os termos utilizados ilustram a preocupação causada pela obesidade. Assim, encontraram-se termos e expressões como: “[...] existem razões para se preocupar com a aptidão física dos jovens. Eles estão obesos e permanecem desse jeito quando adultos [...]” (NÚCLEO 5, grifo nosso); “[...] a obesidade predominante e considerada uma das principais ameaças do mundo industrializado [...]” (NÚCLEO 1, grifo nosso).

Outros excessos também são combatidos na medida em que são apresentados de uma forma articulada dentro do processo da atividade física para uma vida equilibrada e saudável. Assim, os exageros cotidianos que geram o estresse, os alimentos demasiados e os temores estéticos são tematizados. Todos esses exageros são compreendidos dentro de uma determinada perspectiva denominada “comportamentos de risco à saúde”. Nesta visão, o indivíduo não é mais considerado como um submisso às imposições sociais. Inversamente à posição destinada aos indivíduos frente aos avanços tecnológicos, os conselhos creditam a uma capacidade individual para que mudanças sejam adotadas em prol de uma vida ativa. O trecho a seguir ilustra este aspecto: “[...] a promoção da saúde está fortemente associada com o estilo de vida pessoal e envolve dois processos: diminuição de comportamentos negativos e aumento de comportamentos positivos (engajar-se em exercícios regulares e praticar uma dieta equilibrada)” (NÚCLEO 2).

Essa perspectiva do núcleo se enquadra nas atuais exigências cotidianas, presentes nos embates contra o risco. Esta recomendação individual para uma vida equilibrada deve ser ponderada. O bom senso pode ser traduzido por bons hábitos dentro das formulações desses especialistas da saúde. Os referidos bons hábitos estão associados, como aqui se tenta apresentar, em torno da atividade física. Os ditos benefícios, mesmo sendo elencados de diferentes maneiras nas dissertações analisadas, constituem-se um aspecto aglutinador. Um conselho em que não haveria discordância entre estes especialistas do núcleo em questão é o de que “[...] qualquer tipo de atividade física é melhor do que levar uma vida sedentária” (NÚCLEO 19).

Isso desencadeia outro aspecto característico do núcleo, desta vez, vinculado a um comportamento preventivo, relacionado a projeções futuras. Nesta perspectiva, o bom senso, no presente, gerará um “envelhecimento saudável na fase futura” (NÚCLEO 3). Outras expressões contribuem para ilustrar tal característica: “envelhecer com sucesso”, “envelhecimento bem- sucedido” (NÚCLEO 6). Como visto nessa categoria, existe a necessidade de uma vida ativa para que se alcance o equilíbrio. Pode-se argumentar que, em função dos desequilíbrios causados pela modernidade, como ressaltam os especialistas aqui discutidos, há uma urgência em reequilibrar as condutas por meio de um estilo de vida ativo. Esse desequilíbrio se expressa, principalmente, na figura do obeso e na necessidade de reequilíbrio tem como foco principal aqueles indivíduos acima do peso (com sobrepeso), pois ultrapassaram a fronteira, mas podem mudar, com maior facilidade, seus comportamentos e alcançar os padrões de normalidade.

O desequilíbrio visualizado na obesidade interfere tanto no indivíduo, como relatado por estes especialistas, no que se refere aos problemas ocasionados por este estado, quanto incide sobre aspectos públicos. Nesse sentido, o desequilíbrio corporal do obeso transforma-se em custos para os cofres públicos. Combater a obesidade significa uma espécie de busca para o equilíbrio financeiro do Estado. Combater a obesidade é, nessas dissertações, estabelecer um estilo de vida ativo. Dessa maneira, obesidade/sobrepeso e sedentarismo são mesclados como metas de intervenção, pois, “a mudança no estilo de vida [... traduz-se] em benefícios à saúde das pessoas e consequente economia para a nação” (NÚCLEO 9).

Principalmente em relação ao sedentarismo, é tênue a fronteira com os padrões (peso) corporais e as consequências que eles acarretam. Assim, diversos setores são exemplificados como alvos de reequilíbrio de condutas, em função dos custos por eles gerados. Termos como “mortalidade e incapacidade no mundo” (NÚCLEO 2) e “aumento da produtividade” (NÚCLEO 12) são representativos de tal preocupação econômica.

A preocupação com os gastos públicos em virtude - também - do envelhecimento da população é enfatizada no núcleo. Nesse sentido, as boas condutas no presente - de crianças, jovens e adultos - para um envelhecimento saudável, assim como, o estilo de vida ativo dos idosos - incentivado por políticas públicas - contribui socialmente, na medida que pode reduzir os gastos previdenciários, pois como também ressaltado em uma das dissertações, “[...] um estilo de vida ativo na velhice pode reduzir os custos com cuidados com a saúde e atendimento social [...]” (NÚCLEO 6).

Como foi enfatizado nesta categoria, os conselhos que predominam para o desejado equilíbrio em função dos excessos modernos concentram-se em uma direção padrão: “O professor de Educação Física, ao orientar seu aluno para uma vida ativa, orienta-o para o caminho mais sensato para a responsabilidade individual: a prevenção da saúde” (NÚCLEO 5).

Para finalizar a descrição da categoria “vida equilibrada”, apresentaremos uma espécie de modelo a ser seguido pelos indivíduos que querem alcançar ou manter uma vida saudável:

[...] as doenças sexualmente transmissíveis e, principalmente, a violência e os acidentes, representam as principais ameaças à saúde nessa fase da vida (adulto jovem). Nessa idade, comportamentos preventivos relativamente simples podem ser a maneira mais eficaz de preservar a saúde e a própria vida. Exemplos: usar cinto de segurança, praticar sexo seguro, evitar os ambientes e grupos onde a violência física é motivo de admiração, não fumar, beber com moderação, escolher alimentos de maneira inteligente, com uma dieta rica em frutas e verduras, proteger a pele e os olhos, manter uma vida ativa, mas não exaustiva, com exercícios regulares e agradáveis e fazer exames médicos esporadicamente (NÚCLEO 5).

A vida equilibrada deve ser ativa, mas não exaustiva, ou seja, requer ponderação e esta característica necessita do auxílio dos especialistas e da confiança gerada por seus saberes.

Política Imunitária

Parece estranho que haja uma preocupação em compreender um núcleo de pesquisa que desenvolve atividades que buscam a primazia da vida. Esta característica do núcleo o reveste de uma legitimidade que encontra suporte, tanto no mundo acadêmico, como no senso comum. Defender a vida é um ímã que atrai o reconhecimento dos mais diversos setores. É uma espécie de verdade natural.

A preocupação com a vida, ao ter se tornado um discurso tão rotineiro, faz com que, em alguns momentos, não nos detenhamos em pensar sobre o empenho na defesa de tal verdade. Em outras palavras, na defesa de uma determinada forma de vida. As propostas em torno da “vida ativa” mostram-se ainda mais legítimas ao reunir, ao lado de uma verdade, outro termo pouco questionado. A necessidade de atividades ilustra outro fato naturalizado em uma sociedade que privilegia a velocidade, a agilidade e a mobilidade. É justamente a partir da força destas articulações que se procurá refletir neste tópico.

Assim, a partir da categoria privilegiada neste trabalho, serão apresentados alguns aspectos que inquietaram os pesquisadores envolvidos neste estudo e que permitirão esboçar algumas análises. As preocupações e conselhos especializados deste grupo de pesquisa trazem contribuições para situações que atormentam e estimulam os indivíduos no seu cotidiano e que se relacionam com a qualidade de vida, principalmente, no quesito referente aos cuidados corporais e com a saúde. Estas contribuições delineiam também prioridades do núcleo que merecem uma reflexão mais atenta, tendo em vista que elas desconsideram alguns aspectos e valorizam outros, gerando, assim, elementos para uma reflexão sobre a contemporaneidade.

Inicialmente, nossa reflexão está pautada na lógica imunitária presente nas elaborações deste núcleo de pesquisa. Esta lógica reduz a “linguagem da vida” ao plano biológico, procurando garantir a salvaguarda dos corpos dos indivíduos. Roberto Esposito, ao comentar sobre a difusão destas premissas por meio de manuais de imunologia, diz que:

[...] El sistema inmunitario se describe allí como un verdadero dispositivo militar defensivo y ofensivo contra todo lo que no es reconocido como ‘propio’ y que por tanto debe ser rechazado y destruido. Lo que más impresiona es el modo como se subordina una función biológica a una visión general de la realidad dominada por la exigencia violentamente defensiva con respecto a todo aquello que resulte extraño (ESPOSITO, 2005, p. 29).

A defesa da vida, por meio de estratégias políticas, busca imunizá-la dos riscos que a ameaçam de extinção. Essa afirmação apresenta o vínculo entre política e vida e permite que se aproximem às propostas do núcleo em questão, do conceito de biopoder foucaultiano. Analisando esta questão, Esposito insiste que, em nome e em função da deterioração da vida, a política torna-a reduzida ao regime do corpo e acrescenta: “Lo que parecía uma relación de dos términos - política y vida - debe interpretarse como um juego más complejo que incluye um tercer término y depende de este: sólo en la dimensión del cuerpo se presta la vida a ser conservada como tal por la inmunización política” (ESPOSITO, 2005, p. 161).

Para Esposito, o conceito de biopolítica oscila entre uma perspectiva afirmativa (produtiva) e uma perspectiva negativa (mortífera). A categoria de imunização apresenta - na perspectiva do autor - uma relação causal (mesmo que de índole negativa) que propicia a articulação entre esses dois polos. A forma paradoxal em que ocorre a conservação da vida através do poder é o que permite ao autor interpretar que a imunização “é uma proteção negativa da vida”, pois “Ella salva, asegura, preserva al organismo, individual o colectivo, al cual es inherente; pero no lo hace de manera directa, inmediata, frontal, sino, por el contrario, sometiéndolo a una condición que a la vez niega, o reduce, su potencia expansiva” (ESPOSITO, 2006, p. 74-75).

O argumento do filósofo italiano assemelha-se às passagens nas quais Hannah Arendt fala da “vida como bem supremo” da era moderna. Arendt (2007, p. 327-328) mostra que a “inviolabilidade da vida” - enfatizada pelo cristianismo - proporcionou que a “vida individual” tenha passado “[...] a ocupar a posição antes ocupada pela ‘vida’ do corpo político”. Como lembra a autora: “[...] a era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e não o mundo, é o bem supremo do homem [...]” (ARENDT, 2007, p. 332). Para tal filósofa, a supremacia da vida tem a ver com a vitória do animal laborans na qual - vinculado ao processo de secularização - “[...] o homem moderno foi arremessado para dentro de si mesmo” (ARENDT, 2007, p. 333). De acordo com a autora: “Em última análise, a vida é o critério supremo ao qual tudo o mais se subordina; e os interesses do indivíduo, bem como os interesses da humanidade, são sempre equacionados com a vida individual ou a vida da espécie, como se fosse lógico e natural considerar a vida como o mais alto bem” (ARENDT, 2007, p. 324-325).

Nesta linha argumentativa, Roberto Esposito salienta que conceitos clássicos, como os de soberania, propriedade e liberdade, tendem, no período moderno, a reduzir-se à segurança do sujeito que é seu titular, ou seja, “la consecuencia del modo de por sí inmunitario con que el Moderno piensa la figura del sujeto” (ESPOSITO, 2006, p. 90-91). Como exemplo, o autor comenta que a lógica imunitária presente na liberdade moderna consiste no direito de todo súdito individual a subordinar-se a uma ordem superior que lhe garanta a defesa dos abusos, que ameaçam sua autonomia e sua própria vida (p. 115).

Esposito argumenta, em uma espécie de aposta, que a possibilidade de reversão deste quadro na atualidade se dá através de um rompimento desta proteção negativa da vida, principalmente, ao questionar elementos colocados em prática pela tanatopolítica nazista. Para ele, a norma de vida deverá ser contraposta por uma vitalização da norma (ESPOSITO, 2006, p. 296). A partir da filosofia de Spinoza, o autor ressalta que norma e vida formam parte de uma só dimensão em contínuo devir. Nessa perspectiva, é salientado por Esposito que o autor que alavancou uma tentativa filosófica explícita de vitalização da norma foi Georges Canguilhem (idem, p. 302).

Há, segundo Roberto Esposito, um fio condutor que percorre a abordagem de Canguilhem, na qual vislumbra-se uma crítica à medicina de Estado nazista que se baseava em um modelo bioeconômico para execução de sua política da vida e da morte, o qual reduzia a vida à matéria biológica dentro de um paradigma objetivista. Na perspectiva de Canguilhem, “el ser viviente es aquel que rebasa siempre los parámetros objetivos de la vida, aquel que en cierto sentido está siempre más allá de sí mismo, de la media estadística según la cual se mide su idoneidad para vivir o morir” (ESPOSITO, 2006, p. 303). Neste viés, a “norma de vida” não reduz a vida à norma, mas “abre la norma a la infinita impredicabilidad de la vida” (idem, p. 305).

Essa ação criadora não pode permanecer circunscrita aos muros da normalização, mas percorre pelos caminhos da normativização, conforme denominação de Canguilhem, que se baseia no potencial humano para reinventar novas normas. Para Esposito, esta perspectiva desconstrói o paradigma imunitário, possibilitando um “léxico biopolítico distinto” (idem, p. 306). A aposta do autor centra-se no fato de: “Contra la normalización inmunitaria de la vida, la lógica del ser viviente puede introducir, también en la norma jurídica, un poder semántico capaz de impulsarla más allá de su definición habitual” (idem, p. 307).

Refletindo sobre o núcleo de pesquisa

Os conselhos deste núcleo primam pelo estabelecimento de condições que permitam a indivíduos conscientizados pôr em prática estratégias e dicas de saúde. Entre os aconselhamentos, podem ser destacados aqueles relacionados aos comportamentos de risco e as atitudes preventivas que estão articulados aos “sistemas imunizantes”, descritos por Roberto Espósito, que em virtude dos medos e da necessidade de segurança, geram um “impulso a proteger-se do perigo real ou aparente” (ESPÓSITO, 2003, p. 2).

Assim, a lógica imunitária presente no núcleo de pesquisa analisado tenta, através de esforços cotidianos, pequenas e sempre crescentes doses do antídoto da vida ativa, vencer uma batalha maior que, como descrevemos anteriormente, está vinculada, tanto ao encurtamento da vida individual, quanto ao endividamento estatal causado por corpos infectados pelo sedentarismo e pela obesidade. Esses conselhos para um estilo de vida saudável se ajustam a uma forma de biopoder, visto que, como argumenta Mario Goldenberg, servem para pensar na atualidade “[...] as políticas de avaliação, de regulação e sanitárias: [que] também são políticas sobre o corpo” (GOLDENBERG, 2007, p. 2).

Essa versão atualizada da relação poder/conhecimento, arrogada pelo núcleo - uma tentativa de dominação e gestão em nome da vida ativa e em nome do benefício dos praticantes - possibilita que, mesmo tendo a conscientização individual como um dos focos primordiais de ação, não obscureça a sua tentativa de promover uma vida saudável em diferentes extratos populacionais que contribuam para uma futura “sociedade saudável”. Esta sociedade almejada parece se constituir na grande missão civilizadora em que o núcleo está envolvido. Nesse caminho, esse núcleo de pesquisa se aproxima dos projetos utópicos abordados por Lucien Sfez (1996). Aproximando-se das características utópicas, as propostas do núcleo enunciam regras de vida pregadas para um mundo melhor, baseando-se em informações e na construção do conhecimento especializado. Outra característica é a de que, através da conscientização (da instrução), poderá ser reencontrado o equilíbrio necessário para romper com os malefícios encontrados na modernidade recheada de exageros e vícios. De acordo com Sfez, ao relatar um dos cinco marcadores dos relatos utópicos: “[...] o retorno à origem suposta é a destruição de um estado de origem julgado ruim e sua substituição por uma nova origem, um renascimento, construído com os elementos do presente civilizado, mas purificado dos males da civilização” (SFEZ, 1996, p. 111).

Mas, diferentemente da modernidade clássica, não existe um lugar específico - uma nação ideal -, nem mesmo um único narrador deste fenômeno. A sociedade saudável faz parte de estratégias globalizadas, as quais o núcleo de pesquisa se associa e que tem, na comunidade científica e nos organismos internacionais, a responsabilidade do relato. Já que não existem fronteiras nacionais a serem defendidas contra um invasor em nome da saúde, cabe - nesta missão civilizadora - a conscientização e o planejamento individual para a defesa do próprio corpo através da construção de um estilo de vida ativo. Paradoxalmente, o indivíduo se torna global, tornando-se simplesmente individual biologicamente.

Os inimigos públicos não estão mais localizados, nesta abordagem, em outra nação. Esta versão atualizada e privatizada do inimigo público apresenta como ameaça primordial a própria fraqueza individual, como, por exemplo, a falta de vontade para se adequar aos padrões considerados necessários para a atividade física. Ágnes Heller e Ferenc Fehér (1995) sugerem que existe uma abertura do espaço privado que incide em uma forma de vigilância pública. Essa visibilidade pública em que os indivíduos estão envolvidos gera um sentimento de culpa para aqueles que não se esforçam o suficiente em relação a estas metas saudáveis (HELLER & FEHÉR, 1995, p. 80).

O que deve ser excluído não está, prioritariamente, no outro, mas em nós mesmos. Isto não significa que não existam vilões públicos nas propostas do núcleo. Os fumantes e outros grupos, que colocam em risco a construção do estilo de vida saudável, são percebidos como ameaças que devem ser nomeadas publicamente. Conforme ilustram Heller e Fehér, o medo e o furor, provocados por não estarem imunes à deterioração causada pelos fumantes, permitem que os “fumantes passivos” se sintam no dever de exigir, no extremo, a “morte civil” destes indivíduos. Desta forma, a ciência encarrega-se para “[...] ‘demostrar’ que al entregarnos a nuestro delito concreto contra la salud ponemos en peligro a nuestros conciudadanos, contaminamos (y maltratamos por tanto) a nuestros hijos, turbamos la paz mental de nuestros vecinos, enturbiamos la atmósfera moral [...]” (HELLER & FEHÉR, 1995, p. 79). De forma semelhante, lembra Sfez:

[...] governos, comunidades científicas, ‘sábios’ reunidos em comissões de vigilância chamadas ‘bioéticas’ tomam medida sobre medida. Desdobra-se então uma espécie de atividade de controle destinada a preservar a espécie humana dos hábitos singulares dos indivíduos, culminando na introdução de uma moral sanitária ‘politicamente correta’ (1996, p. 41).

As atitudes preventivas contra comportamentos de risco enunciadas nas dissertações mesclam recomendações pretensamente científicas com conselhos moralistas, como ilustram as condutas necessárias para o indivíduo saudável. A “vida qualificada” deste núcleo de pesquisa remete através de comportamentos preventivos, entendidos aqui como ações imunizantes, à ideia de “pureza corporal” - um corpo isento de vícios.

Outro aspecto desses conselhos é de que eles não podem garantir a resolução de problemas externos aos indivíduos, como, por exemplo, aspectos vinculados à segurança urbana e ao entorno ambiental. O que os conselheiros fazem é dirigir estes conselhos para as instâncias governamentais, reconhecendo, obviamente, que eles são importantes para o desenrolar das ações individuais. Todavia, aproximando-se de fábulas morais (BAUMAN, 2007), os conselheiros apontam um antídoto individual prescrito em um receituário especializado que promete apaziguar as ameaças provenientes dos exageros modernos. Os comportamentos imunizantes difundidos pelo núcleo são uma das estratégias disponibilizadas para esse combate. Vale lembrar, que os medos e as ameaças não são fabricados exclusivamente por esse núcleo, embora ele também contribua neste processo. Daí, que este antídoto e seus ingredientes deverão ser úteis para temores presentes, ausentes, visualizados e analisados cientificamente, bem como, inimaginados. A garantia de felicidade apresentada na bula não prevê os efeitos colaterais dos riscos construídos regularmente, pois, atualmente, não existe um único momento para descansar da ameaça da morte (BAUMAN, 2007b, p. 60). Como lembra Dominique Lecourt, “A imagem midiática da medicina não pode deixar de aterrorizar no momento mesmo em que se quer tranqüilizante [...] O risco do desvio assusta [...]” (LECOURT, 2006, p. 301). Esposito reforça esta questão, ao argumentar que, nos sistemas sociais contemporâneos obcecados pelo imperativo de segurança, “es justamente la protección la que genera el riesgo del que pretende defender. El riesgo, en suma, requiere protección en una medida idéntica a aquella en que la protección produce riesgo” (ESPOSITO, 2005, p. 201). Como foi argumentado anteriormente, o antídoto do núcleo de pesquisa para que os indivíduos fiquem imunes a estes temores entra em um terreno movediço, principalmente para os praticantes da vida ativa, pois lida com a transitoriedade presente na modernidade advinda das relações entre ciência, indústria e estímulos prazerosos ligados ao consumo. Em virtude desses aspectos, a construção do estilo de vida ativo não está isenta do sentimento de incerteza (mesmo que os especialistas do núcleo reafirmem certezas) atual. Por outro lado, essa incerteza estimula que os indivíduos continuem a sua busca pela erradicação dos medos, tendo os mais diversos conselheiros como fonte de conduta. Em outras palavras, a caoticidade contemporânea coloca em xeque a certeza do núcleo de pesquisa, mas, ao mesmo tempo, a apresenta como mais uma legítima conselheira para o deleite individual.

Como desfecho desta reflexão, cabe assinalar que, em nome do estilo de vida saudável, é erigida uma guerra preventiva contra a multiplicidade da vida. Dessa forma, o estilo de vida oferecido pelos conselheiros especializados desse núcleo é apresentado como a opção correta a ser seguida. Tem-se a convicção de que a construção de um estilo de vida saudável é inquestionável9.

A primazia da necessidade de adequação aos padrões solicitados para a vida ativa caracteriza estas propostas dentro do que Dominique Lecourt chamou de uma “concepção despótica de saúde” (LECOURT, 2006, p. 298). Nessa lógica, podem até existir vários meios disponibilizados ao consumidor, mas o que interessa é que a finalidade não seja obscurecida. O caminho para a vida saudável é apresentado de maneira cristalina. As sujeiras devem ser limpas pelos governantes, mas, principalmente, a manutenção - a perpétua construção - desse caminho realizar-se-á privativamente. A garantia oferecida aos indivíduos para enfrentar as incertezas cotidianas é o padrão, mesmo que mutante, da vida ativa. Em outras palavras, mesmo que as condições sociais não sejam equivalentes na população, evoca-se um igualitarismo da vontade: a vontade de ser saudavelmente-feliz.

A liberdade e a imunização intrínseca a esse modelo resultam em uma negação da vida, mesmo que seu objetivo seja o de conservá-la (GOLDENBERG, 2007, p. 2). Essa possibilidade de destruição provocada por esse “sistema imunológico” está vinculada a “obsessão monoteísta de que a verdade é uma só” (ESPOSITO, 2007, p. 2). Dessa maneira, uma verdade normatizada, linear; mas não normativa - utilizando, aqui, a expressão de Canguilhem (ESPOSITO, 2005, p. 202; CANGUILHEM, 2006). Vale lembrar, novamente, da análise de Heller e Fehér (1995, p. 119- 120), ao mostrarem que, mesmo nas instituições liberais, existe uma tendência a uniformizar o indivíduo e uma intolerância relacionada ao insólito e ao excêntrico; uma predileção por modelar a opinião correta coletiva. Pois como afirma Espósito, a ênfase biológica predominante nos sistemas imunológicos apresenta uma exigência, violentamente defensiva, com respeito a tudo aquilo que resulta estranho (ESPOSITO, 2005, p. 29). Assim, percebe-se uma elaboração que não poupa esforços e adjetivos para desqualificar aquilo que escape aos padrões do estilo de vida ativo.

Referências

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1Esse texto foi construído com a orientação fundamental de Selvino José Assmann e Alexandre Fernandez Vaz. A colaboração de ambos foi decisiva nas problematizações e análises desenvolvidas no manuscrito. A eles meu eterno agradecimento. Essa publicação também é mais uma homenagem (im memoriam) ao grande professor e amigo Selvino José Assmann.

2Extraído do site da revista “Boa Forma”. Disponível em: http://boaforma.abril.com.br/livre/canal/fitness.shtml , acesso em 13/02/06.

3Extraído do site da revista “Boa Forma”. Disponível em: http://boaforma.abril.com.br/livre/canal/fitness.shtml , acesso em 13/02/06

4Esse intervalo da documentação analisada justifica-se em função do período em que a pesquisa foi realizada.

5Dessas, 24 dissertações foram orientadas por pesquisadores vinculados (ou que se vinculavam) ao núcleo de pesquisa. Utilizaram-se outras três dissertações vinculadas a outros grupos, mas que apresentavam um enfoque semelhante aos trabalhos ligados ao núcleo de pesquisa em questão. Por fim, as outras duas dissertações destoavam, em alguns aspectos, das demais dissertações, porém, em virtude da proximidade temática, considerou-se interessante a manutenção destes trabalhos com a intenção de enriquecer as discussões.

6Para diferenciar os autores do núcleo de pesquisa dos outros autores utilizados no referencial teórico deste capítulo, será citada a expressão Núcleo, seguida de um número que corresponderá ao texto extraído das dissertações.

7As tensões, as diferenças e as semelhanças entre os conceitos de prevenção e promoção da saúde estão bem documentadas (FARINATTI; FERREIRA, 2006; CZERESNIA, 2003).

8Aqui, utilizou-se a noção de conselheiros a partir da abordagem de Bauman (2001). Os conselheiros são especialistas que sempre dirigem seus conselhos para o domínio da vida privada.

9Aqui, vale a lembrança dos argumentos de Anthony Giddens – e suas elaborações em torno da política do estilo de vida – que contribuem para questionar essa certeza pre sente nesses conselhos acadêmicos. O autor lembra que, na modernização reflexiva, a relação causal entre conhecimento e certeza é um equívoco (GIDDENS, 1991, p. 46).

Recebido: 02 de Novembro de 2021; Aceito: 05 de Dezembro de 2021

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