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Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.1 Florianopolis Jan./June 2022  Epub May 24, 2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n1.p149-174 

Artigos

A MEDIDA CERTA: CORPO, CONFISSÃO E TECNOLOGIAS DO SELF EM TEMPOS DE GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL

RIGTH MEASURE: BODY, CONFESSION AND TECHNOLOGIES OF THE SELF IN IN TIMES OF NEOLIBERAL GOVERNMENTALITY

LA MEDIDA CORRECTA: CUERPO, CONFESIÓN Y TECNOLOGÍAS DEL SELF EN TIEMPOS DE GUBERNAMENTALIDAD NEOLIBERAL

Santiago Pich1 

George Saliba Manske2 

1Departamento de Estudos Especializados em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

2Programas de Pós-graduação em Educação e Saúde e Gestão do Trabalho, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC, Brasil.


Resumo:

No presente artigo, tem-se como objetivo problematizar as formas de constituição do eu contemporâneo por meio de práticas de confissão e modos de espetacularização do corpo e da saúde, apresentados no livro “Medida Certa - como chegamos lá: com Márcio Atalla”. Para tanto, leituras e ferramentas conceituais foucaultianas foram válidas para este fim. Num primeiro momento, registrou-se a inspiração analítica, baseada na análise do discurso. Em seguida, utilizaram-se as análises realizadas por Foucault sobre práticas de confissão e de direção do eu para discutir os elementos presentes na obra analisada, em especial, aquelas tocantes às práticas de saúde e emagrecimento. Entende-se, neste artigo, que as formas de publicização do eu privado se valem de tecnologias de confissão não mais baseadas em um confessionário privado para um único diretor de almas, mas sim, na contemporaneidade, se apoiam de espetacularizações públicas e coletivas que têm os espectadores como aqueles a quem se dirige e se deve satisfação. Tais processos compõem um emaranhado discursivo que valora as práticas de si e as transforma em bens de consumo, dirigindo, concomitantemente, tanto aqueles que se expõem, como aqueles que observam e participam ativamente da direção do outro. Essas ações são, aqui, consideradas como modos de regulação e governo do eu contemporâneo.

Palavras-chave: saúde; confissão; corpo; tecnologias do self; espetacularização

Abstract:

In this article, we aim to discuss the forms of constitution of the self through confession practices and ways of spectacularization of the body and health presented in the book “Rigth mesure - how we got there: with Márcio Atalla”. For that, we made use of Foucault’s conceptual tools. At first, we point out the analytical inspiration based on discourse analysis. Then, we use the analyzes carried out by Foucault on confession and self-direction practices to discuss the elements present in the analyzed book, in particular those concerning health and weight loss practices. We understand that the forms of publicizing the private self make use of confession technologies no longer based on a private confessional for a single director of souls, but, nowadays, these are supported by public and collective spectacularizations that have spectators like those a who directs and owes satisfaction. Such processes compose a discursive tangle that values the practices of the self and transforms them into consumer goods, concurrently directing both those who expose themselves and those who actively observe and participate in the direction of the other. These actions are considered here as ways of regulating and governing the contemporary self.

Keywords: health; confession; body; technologies of the self; spectacularization

Resumen:

En el presente artículo tenemos como objetivo problematizar las formas de constitución del yo a través de prácticas de confesión y modos de espectacularización del cuerpo y de la salud presentados en el libro “Medida Correcta - como llegamos allá: con Marcio Atalla”. Para esa finalidad, nos valemos de lecturas y herramientas conceptuales foucaultianas. En un primer momento, registramos la inspiración analítica basada en el análisis del discurso. En seguida, utilizamos los análisis realizados por Foucault sobre las prácticas de confesión y de dirección del yo para discutir los elementos presentes en la obra analizada, en especial, aquellas relacionadas a las prácticas de la salud y del adelgazamiento. Entendemos que las formas de publicitación del yo privado utilizan de tecnologías de confesión que no están más basadas en un confesionario privado para un único director de almas, sino que, en la contemporaneidad, ellas se utilizan de espectacularizaciones públicas y colectivas que tienen a los espectadores como aquellos a quien se dirige y se le debe rendir cuentas. Tales procesos componen un enmarañado discursivo que valoriza las prácticas de sí y las transforma en bienes de consumo, dirigiendo concomitantemente tanto aquellos que se exponen como aquellos que observan y participan activamente de la dirección del otro. Esas acciones son consideradas aquí como modos de regulación y gobierno del yo contemporáneo.

Palabras-clave: salud; confesión; cuerpo; tecnologías del self; espectacularización

Introdução

A vida tem sido, na modernidade, e continua a ser, um objeto privilegiado de investimento político. O controle, a captura e a tutela, em suma, o governo da vida na lógica do assujeitamento é uma marca desse nosso tempo histórico, daquilo que Foucault denominou, em algum momento, de era do biopoder (FOUCAULT, 1985). Processo pautado pelo liberalismo e seu par, o capitalismo, que se desdobra na atualidade em neoliberalismo e capitalismo avançado. Certamente, o tempo presente da maior pandemia vivida no capitalismo, a do SARS-Cov-2, revela o quanto as novas tecnologias de informação e seus dispositivos são centrais no investimento do poder sobre a vida; vide uso de técnicas de geoprocessamento, desenvolvimento de apps, controle da circulação por meio de câmeras públicas, até cenas bizarras de prefeitos falando aos cidadãos que passeavam com seus cachorros através de drones, isso tudo, pari passu, amparado em um policiamento ostensivo, pautado, não mais, em normas jurídico-morais, mas em parâmetros sanitários.

Mesmo em tempos de confinamento, o problema da visibilidade do corpo nas redes sociais e sua exposição ao olhar julgador do outro não cessou, continua a se fazer presente com força. Esse movimento está pautado, progressivamente, pelo desenvolvimento de tecnologias cada vez mais sofisticadas de comunicação e extração da verdade dos corpos e dos sujeitos. O gerenciamento do corpo pelo self passa a ser, na atualidade, um modo de dar visibilidade ao sucesso ou insucesso no controle individual sobre a vida. O corpo parece ter se tornado a primeira instância do empresariamento de si mesmo, que se impõe como o novo dever de ser do capitalismo avançado, pautado na lógica do neoliberalismo. Suspeit-se que é no corpo e pelo corpo que se revela e deve-se dar visibilidade à possibilidade de se ter alcançado uma “medida certa” com a vida. Diríamos, parafraseando a Max Weber n´A Ética protestante e o espírito do capitalismo, que: nós devemos ser empresários de nós mesmos, até quanto durar o último dispositivo eletrônico e o último app de controle do corpo.

Na atualidade, vive-se um tempo no qual a necessidade de dizer a verdade de si publicamente é demandada a todo instante. As diferentes esferas nas quais somos incitados a nos mostrar - e que nos premiam, de alguma maneira, a cada intento bem-sucedido - são das mais diversas, tais como as populares redes de interação social, mesmo que não se restrinjam a apenas estas, mas abarcam, de modo amplo, a uma variada gama de avalanches de meios de interação da vida como objeto virtual (SIBILIA, 2016). Dentre esses tantos, aqueles referentes aos processos e práticas da assim denominada saúde, assumem um protagonismo cada vez maior.

Os modos de subjetivação que nos atravessam e nos produzem como corpos normais se fundam, mormente, no domínio da biomedicina e, cada vez mais, no entrecruzamento desta com a economia. Assumir como própria essa verdade é um movimento das técnicas de si que proliferam na contemporaneidade. Incorporar como verdade de si os princípios da ‘vida saudável’ propagada pelos profetas da saúde hodiernos, e expor essa verdade publicamente, revelada no próprio corpo, é uma marca fundamental e fundante do tempo presente. Acompanhando a leitura de Fraga (2005), no sentido de mostrar como é importante para o governo dos corpos, na atualidade, a disseminação da informação sobre princípios para orientar o exercício físico. Ampliando essa discussão, pode-se compreender que a prática confessional tem proliferado de forma frenética no tempo presente, sendo que as diversas redes sociais e blogs operam muito no sentido de apresentar publicamente o modo como os sujeitos confessam o domínio sobre si (ou revelam a sua carência de vontade). Os consultórios dos profissionais da biomedicina e as academias de ginástica e musculação também são confessionários muito importantes na atualidade. Em outro momento, propôs-se que dispositivos como o Apple Watch operam nesse sentido (STASSUN; PICH, 2019).

Importa lembrar que, para Foucault (1984), nós, sujeitos ocidentais, somos “animais que se confessam”. A tecnologia de poder do pastorado cristão institui um modo de subjetivação que implica assumir como própria uma verdade externa, realizar uma prática constante de exame de consciência, com base nessa verdade, confessar permanentemente a verdade de si para o diretor de consciência, que será aquele qualificado para poder interpretar adequadamente os elementos presentes na alma do sujeito, para, com base nessa informação, poder conduzir a conduta conforme o bem. (FOUCAULT, 2008). Essa tecnologia de si foi secularizada e incorporada, fundamentalmente, pela biomedicina na modernidade.

Programas televisivos têm sido produzidos com o intuito de formar sujeitos com base nas normas do “estilo de vida saudável”, fundados no saber biomédico, tornado princípio moral. Não obstante, é preciso destacar que o saber biomédico tem referido e orientado as perspectivas sobre o ser saudável - e os modos como se educa para tal - desde tempos anteriores. Como já descrito, Foucault (1985) organiza análises sobre esses eixos a partir do conceito de biopoder. No entanto, desde avanços em investimentos científicos-tecnológicos sobre o ‘interior mesmo’ do que é um corpo e um sujeito, por vieses biotecnológicos e genômicos, cada vez mais, minuciosos do ínfimo da natureza humana, há um deslocamento e um fortalecimento discursivo do outrora saber biomédico relegado a molaridade dos corpos para uma concepção molecular dos mesmos, o que implica em novos e validados saberes sobre saúde (ROSE, 2007). Tais argumentos reforçam o forte caráter discursivo biomédico que orienta as práticas de saúde contemporâneas, assim como, legitima que programas de televisão, apps, softwares, redes sociais virtuais, entre outros, que ‘cuidam’ da saúde, venham a se proliferar. É no cruzamento das necessidades da confissão contemporânea via mídias e as tecnologias de si centradas em discursos biomédicos sobre saúde que se insere este estudo, configurando o objeto que se apresenta a seguir.

Entre abril e junho de 2011, a Rede Globo exibiu, pela primeira vez, o quadro “Medida Certa”, que viria se repetir em mais três edições (2012, 2013 e 2015). A repercussão do quadro foi muito importante, superando a expectativa dos protagonistas e da própria rede de televisão, o que denota a importância em termos macro-sociais do objeto em questão. Dois apresentadores da emissora, Zeca Camargo e Renata Ceribelli, viveram um reality show que duraria 90 dias para a “reprogramação do corpo”. Durante esse período, foram acompanhados por três profissionais da biomedicina, um profissional de educação física, uma nutricionista e um médico, sendo que o primeiro, o personal trainer Márcio Atalla, era o mentor e principal orientador do processo. Além de ter sido acompanhados por uma equipe de reportagem ao longo do período, após algumas semanas do término do quadro, os protagonistas escreveram algo como um diário, que fora publicado, posteriormente, no formato de livro, intitulado Medida Certa - como chegamos lá: com Márcio Atalla. Neste artigo, tomou-se como fonte esse livro, que é lido e interpretado como um espaço de confissão sobre os avatares para lidar com o “movimento salvífico” de adotar como forma de vida a verdade da biomedicina para chegar a ter a “Medida Certa”.

Cabe destacar, já de início, o estudo realizado por Cândido, Palma e Assis (2016) em que avaliaram o programa Medida Certa, veiculado pela Rede Globo, conforme aludido acima. Nesse estudo, os autores tomam como objeto o programa televisivo, e não o livro, como aqui proposto, e se valem de uma Análise de Discurso numa perspectiva proposta por Orlandi (2007 apudCÂNDIDO, PALMA e ASSIS, 2016) para as análises. A investigação indica que um forte viés biologicista e de culpabilização dos indivíduos pela lógica do risco na composição do programa, das ações e do papel da Educação Física. Neste estudo, propomos alguns deslocamentos em relação à investigação realizada pelos autores supracitados, não apenas em torno do objeto - que, para nós, é o livro -, mas, sobretudo, pelos conceitos mobilizadores, a saber, as tecnologias do eu e as confissões do corpo, desde preceitos neoliberais, assim como a proposta metodológica, que se baseia em Análise de Discurso de Foucault (2001, 2017).

Na esteira das discussões que seguem, optamos ter por ferramenta analítica alguns princípios da análise do discurso proposta por Foucault (2001; 2017). Por discurso, Foucault (2001) refere-se a um conjunto de condições que possibilitam a existência de umas coisas e não outras; a um regime de práticas que definem objetos e que produzem “posições vazias” a serem ocupadas por sujeitos; a um conjunto de possibilidades do que pode ser dito num determinado tempo e lugar (FISCHER, 2001; FOUCAULT, 2001; 2017). Ademais, um discurso é constituído por um conjunto limitado e específico de enunciados, que têm função de existência e produzem verdades, saberes e posições de sujeitos. Assim, uma análise de discurso procuraria buscar enunciados sobre algo, em seus jogos de verdade e construção, e possibilidades de lugares de sujeitos, nesse caso, o que permite a elaboração de verdades acerca das prescrições presentes no livro “Medida Certa”, naquilo que eles produzem como verdades, em seu conjunto e em relação a outros enunciados, e que sujeitos se destinam, assim como, que posições de sujeito são ocupadas e por quem, para que tais discursos sejam efetivados. Ainda na esteira dessas análises, em especial na proposta aqui elaborada, como que as tecnologias do eu se ancoram em tais discursos - biomédicos - na conversão de um tipo de sujeito em outro, mediante enunciados constitutivos de determinados discursos.

De todo modo, esse é um conjunto metodológico bastante potente e abrangente. Entrementes, nos interessa aqui, de modo especial, as elaborações referentes discursivas e enunciativas relativas a: a) que enunciados são postos em funcionamento; b) que posições de sujeito são ocupadas, por quem e em que momentos; e c) quais os regimes de verdade que são mobilizados para a efetiva conversão de indivíduos em sujeitos mediante técnicas de exegese de si.

Entre a confissão da alma pela palavra à confissão do corpo pelo exame: notas foucaultianas

Michel Foucault demonstrou um grande interesse no cristianismo ao longo da sua obra, embora ele fique um tanto disperso (CHEVALIER, 2012). Contudo, podemos afirmar que é a partir da segunda metade dos anos 70 do século XX que essa disposição ganha uma clara sistematicidade, e vai culminar nos anos 1980, com a elaboração do último volume da série História da sexualidade - As confissões da carne. A motivação da atenção dada por Michel Foucault ao cristianismo se funda, não no fato dele ter qualquer tipo de interesse na história das religiões, mas, pelo modo de conduzir sua analítica do poder nos anos 70 do século XX (conhecida como genealogia do poder), que o levou a encontrar no cristianismo cenobítico a matriz de uma tecnologia de poder, que será considerada o fundamento sobre o qual se constrói a governamentalidade ocidental: o poder pastoral, a base da arte da condução das condutas, da ars artium.

No cristianismo, produz-se um modo de subjetivação que tem como pilares o reconhecimento da Verdade Divina como Verdade revelada, com a qual o sujeito é levado a se identificar plenamente, sem fissuras, que é acoplada, pari passu, à manifestação da verdade de si, realizada no ato da confissão. Desse modo, para Foucault, para tornar-se cristão o sujeito tem que renunciar a si mesmo (FOUCAULT, 2008). Na lógica da subjetivação cristã, o sujeito deve estar em relação permanente de análise de si mesmo, a partir do exame de consciência, para poder exprimir todos os movimentos presentes na sua alma, pensamentos e representações, para poder dizê-los ao seu diretor de consciência que poderá realizar uma justa e adequada hermenêutica do sujeito, para identificar a presença da tentação demoníaca.

No processo de desenvolvimento da confissão cristã, a analítica foucaultiana assinala como relevante a mudança da forma da exomologesis, que pressupõe a declaração pública dos pecados, mediante atos ostensivos, como o gritar e a autoflagelação, declarando-se culpado, para a forma da exagoreusis, desenvolvida no âmbito do monaquismo cristão, e que implica o permanente discurso de si mesmo. Já não se trata mais de rituais públicos, mas de um ato privado de dizer a verdade de si a um outro, de dizer tudo de si, de forma minuciosa, detalhada e exaustiva, implicando-se na verdade dita (FOUCAULT, 2014).

Importa destacar, também, que o ato da confissão não é uma mera descrição que o sujeito realiza dos movimentos da sua alma, ao modo do espectador, mas se constituem, segundo Foucault (2018), em speech acts, nos quais o sujeito se produz. Ainda, esse movimento é infindável, porque, na leitura foucaultiana, o par confissão/direção da consciência são coextensivos à vida, porque o cristianismo parte da premissa da salvação da imperfeição, isto é, a possibilidade do sujeito, mesmo após o batismo, ter a possibilidade da recaída, de voltar ao pecado. Essa condição o coloca diante da sempre renovada necessidade de salvação. Segundo Chevalier (2012, p. 53), é característico da pastoral cristã que: “(...) ela [a verdade] é o que não cesso de perder a despeito do fato que ela me é dada e dada de novo sem cessar”.

Outro aspecto que merece ser destacado é o caráter constitutivo da confissão, não somente na esfera institucional da religião, e, particularmente, no subcampo do cristianismo católico, mas como um marcador do sujeito e das sociedades ocidentais. No primeiro volume da História da sexualidade - A vontade de saber se afirma que, posteriormente ao Concílio de Latrão (1215), com a regulamentação do sacramento da penitência, e o consequente desenvolvimento das técnicas da confissão, a confissão da verdade se tornou um elemento central nos “(...) procedimentos de individualização pelo poder” (FOUCAULT, 1985, p. 58). Ainda, se afirma que a sociedade ocidental, desde esse momento em diante, se tornou uma “sociedade singularmente confessanda” (ibid., p. 59), sendo que esse caráter confessional se estende a todos os domínios da vida social, desde a medicina até a educação, passando pelas relações amorosas. Desse modo, sustenta o autor: “O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente” (ibid., p. 59).

Pelo que foi dito acima, a confissão, como parte da tecnologia de poder pastoral, tornou-se uma técnica importante nas tecnologias do eu que vai constituir os modos mais relevantes de governo dos corpos e das almas no ocidente, levar o sujeito a estabelecer uma relação para consigo, pautado por uma verdade que é externa, e que atua como referência normativa. Isso se faz presente, de modo secularizado, na modernidade, em diversas instâncias, como o domínio da biomedicina. Em um escrito tardio de Foucault, datado de 1982, “O sujeito e o poder”, o problema da secularização do poder pastoral é retomado e se consideram três mudanças: 1) com relação ao objetivo, pois não se trata mais de guiar o povo na direção da salvação celeste, mas de assegurar a salvação neste mundo, se trata de salvar a vida biológica; 2) A administração do poder pastoral foi reforçada, porque é exercida tanto pelo Estado e suas respectivas instituições, bem como por instituições privadas, como as organizações de caráter filantrópico, outras tradicionais, como a família, e outras complexas, como a medicina; 3) Diante da multiplicação dos agentes e dos objetivos do poder pastoral, este se exerce sobre dois polos, que caracterizam o biopoder: um pautado por ter como objeto o corpo da população e seu caráter quantitativo (biopolítica) e outro, de caráter individualizante, de caráter analítico (as disciplinas) (FOUCAULT, 2010, p. 281-282).

Esse movimento de secularização do poder pastoral, em particular para o domínio da biomedicina nos interessa em especial, com ênfase para o processo de individuação no estágio atual do capitalismo, regido pela ideologia neoliberal. A saúde, como um espaço de salvação terrena tem sido um objeto privilegiado de investimento do poder na lógica do governo dos corpos. Encontram-se, na elaboração de Nikolas Rose, importantes pistas para pensar esse problema. Ao considerar, na esteira foucaultiana, o governo como “(...) a diversidade de tentativas de diferentes tipos de autoridades para agir sobre as ações dos outros (...) (ROSE, 2011, p. 49), o autor nos convida a pensar esse processo no contexto dos mecanismos de autodirecionamento, as tecnologias do self. Nesse sentido entende que:

As tecnologias do self assumem a forma de uma elaboração de técnicas para condução da relação de cada um consigo mesmo, por exemplo, ao exigir que cada um se relacione consigo mesmo de maneira epistemológica (conheça a si mesmo), despótica (controle a si mesmo), ou de outras maneiras (cuide de si mesmo). Elas são sempre incorporadas em práticas técnicas específicas (confissão, escrita de diários, grupos de discussão, o programa doze passos dos alcoólicos anônimos). E são sempre praticadas sob a autoridade, real ou imaginária, tanto de algum sistema de verdade quanto de algum indivíduo autoritário, seja ele teológico e pastoral, psicológico e terapêutico, ou disciplinar e tutelar (ROSE, 2011, p. 50).

Entende-se que, seguindo a leitura de Rose, o momento atual do capitalismo neoliberal tem, nas tecnologias do self, o seu modo hegemônico de subjetivação. Em particular, o domínio da biomedicina erigiu-se como uma instância que se apresenta como sendo necessária na produção de estilos de vida, que se tornam imperativos. Nesse domínio, circulam discursos que têm nos enunciados: “seja responsável pela sua própria saúde” e “você pode ter o corpo que você quiser”, balizas da maior relevância, que indicam a constituição de subjetividades neoliberais, baseadas no empreendedorismo de si. Além disso, nesses discursos são depositadas, conforme já assinalamos, seguindo Foucault, a verdade do sujeito na contemporaneidade. Se, na lógica do cristianismo, tornar-se cristão pressupunha renunciar a si mesmo, para aceitar a Verdade Revelada e realizar uma análise da consciência minuciosa, exaustiva e permanente, na contemporaneidade, o discurso do “estilo de vida ativo” tem se tornado um dos mais relevantes saberes como referência de Verdade para a produção da subjetividade. Se, antes, havia um curvar-se ao saber das Escrituras, na atualidade, o saber é de ordem científica, e tem como alvo a vida biológica do corpo individual e da população.

Cabe problematizarmos, neste momento, a relação entre o sujeito e a verdade. Afirmamos que, na lógica da confissão cristã, o sujeito deveria verbalizar suas faltas, fruto da permanente análise da consciência. Perguntamo-nos, então: como podemos situar esse problema da confissão na esteira das práticas da biomedicina contemporânea? Em um trabalho anterior (STASSUN; PICH, 2019), sugerimos que dispositivos tecnológicos operam como extratoras da verdade biológica do indivíduo, que alimentam os novos bancos mundiais de dados biológicos da população planetária. Neste caso, e tendo como terreno de investigação outra fonte, a saber, um livro escrito como um diário semanal de um processo de “reprogramação do corpo”, ressituamos esse problema, porque a palavra emerge como um elemento central. Nesse caso, o sujeito se conecta consigo mesmo, a partir da verdade transmitida por um especialista detentor legítimo da verdade sobre o corpo, que passa a ser a referência, a partir da qual o sujeito se examina permanentemente. Contudo, o saber ao qual o sujeito é capaz de aceder sempre se encontra aquém do saber essencial sobre si mesmo, cuja apreensão só é possível, mediante aparelhos específicos, e feita por sujeitos que detêm o saber (quase-hermético) que os qualifica a interpretar os dados revelados pelo exame do corpo. Nesse movimento, o corpo ganha centralidade como a instância que revela a verdade do sujeito, o sujeito é o que o corpo diz. E a relação estabelecida com ele, se situa como um modo de confrontar-se com a verdade de si, que, a tudo custo, tenta se esconder, e que, somente quando se consegue desnudar, ver sem véus, é que o sujeito pode ser salvo no plano imanente dos dados biológicos.

Reprogramar o corpo para entrar na Medida Certa: verdade, normalização e tecnologias do eu

A análise que faremos a seguir, da primeira edição do livro produzido com base na experiência na participação no programa “Medida Certa” está pautada pela questão sobre como as tecnologias do eu contemporâneas capturam e conduzem a conduta dos indivíduos para se reconhecerem como sujeitos que devem adotar um estilo de vida saudável. Nesse movimento, o nosso interesse está centrado na compreensão da relação dos participantes com aqueles que oficiam como especialistas da saúde, com destaque para o personal trainer Márcio Attala, e o modo como os enunciados sobre os critérios de normalização da vida são incorporados pelos protagonistas, de modo a conduzir o seu processo de ‘reprogramação do corpo’, e, com isso, a dar passo à emergência de um novo eu. Entendemos que no livro “Medida Certa - como chegamos lá!”, encontramos uma referência importante para problematizarmos um dos modos de subjetivação do capitalismo neoliberal. Em particular, no que diz respeito ao ideal de sujeito saudável, que é levado a se conceber como responsável por administrar, de forma eficiente e rentável, o seu próprio corpo.

O livro

Em 2011, a rede Globo de Televisão levou ao ar, no programa Fantástico, veiculado aos domingos à noite, um quadro intitulado “Medida Certa”. Foi idealizado e proposto ao diretor do programa pelo midiático personal trainer Marcio Atalla, que já havia feito algo semelhante no canal por assinatura GNT, também pertencente à rede Globo. Ao longo de três meses, entre 3 de abril e 26 de junho (totalizando 12 semanas), o quadro foi levado ao ar todos os domingos, retratando, nos moldes de um reality show, o processo de “reprogramação corporal” protagonizado por dois destacados e experientes repórteres e apresentadores da rede, Renata Ceribelli e Zeca Camargo, sob a orientação do já nominado profissional de educação física, Marcio Atalla. Ambos os protagonistas foram acompanhados, diariamente, por uma equipe de câmeras, inclusive no tempo de férias, já que tudo tinha de ser filmado. A verdade do processo devia aparecer sem véus. O corpo estava para ser mostrado em rede nacional como o objeto a partir do qual o sujeito se produz. Com base nessa experiência, foi produzido o livro que aqui analisamos, e que foi elaborado a posteriori da conclusão do programa, embora seja apresentado como um semanário do processo vivenciado. Cada um dos protagonistas escreve um texto introdutório e mais 12 textos, correspondendo a cada uma das semanas em que o programa foi ao ar. O texto introdutório é uma breve resenha do modo em que cada um dos personagens apresenta o cuidado, ou melhor, a falta de cuidado que teve ao longo da sua vida com o corpo, e a ‘falsa consciência’ de ser uma pessoa com um estilo de vida ativo. Falsa consciência provocada pela carência de uma orientação adequada, porque era pautada no saber biomédico. Cada um desses textos é aqui interpretado como uma “extração da verdade de si” (FOUCAULT, 2008a STP; 2008b T Eu; 2014 GV). Nesses breves escritos são narrados, a modo de confissão, os objetivos, a relação com a verdade, as expectativas, as angústias, os medos, as vicissitudes enfrentadas, os momentos de fraqueza, de acalento e de acolhimento, a relação com o personal trainer, que age nos moldes de “diretor de consciência”. O estilo da escrita é sempre de caráter subjetivo, demostrando procurar apresentar os sujeitos da forma mais intimista possível, ao longo do processo, procurando aproximar a vida do protagonista à vida do leitor, promovendo, assim, a sua identificação. Logo depois do semanário dos protagonistas, é apresentado um breve documento do profissional de educação física, que apresenta um princípio normativo para a vida saudável, reiteradamente amparado no saber científico, fonte de validação para o argumento apresentado.

A Equipe

A equipe que acompanha o processo é composta de um profissional de educação física, Marcio Atalla, amplamente conhecido pela sua presença em diversos meios de comunicação em massa, nos quais sempre se desempenha como ‘conselheiro midiático’ (GOMES; VAZ; ASSMANN, 2010). Ele é o coordenador da equipe e quem prescreve o treino dos participantes, assim como quem está em contato direto com eles, tanto para dizer o que devem fazer, para cobrar a realização das tarefas programadas, escutar as confissões dos conversos, e, eventualmente, intervir para corrigir desvios do processo. Ele assume o lugar daquele que, por ser detentor e representante legítimo do saber científico, sabe como conduzir adequadamente o processo de reprogramação/conversão1 do corpo. Outra função de destaque que assume Atalla é a de acompanhar os testes realizados periodicamente pelos participantes, nos quais se revela a eficácia/verdade do trabalho empreendido. Também compõem a equipe uma nutricionista e um médico. A primeira tem um lugar de destaque no processo de ‘reprogramar’ a alimentação, sendo esta considerada um domínio central da vida, para poder estabelecer uma relação adequada com o corpo, além de ser um espaço importante de tentação, com relação ao qual o sujeito deve estar sempre realizando um exame de consciência, a partir dos princípios normativos apresentados pela nutricionista. Ainda, esta é a encarregada de realizar os rituais de medição corporal, em diferentes momentos das 12 semanas, que emulam uma confissão pública da verdade do sujeito e confirmam, ou não, o compromisso do converso. O terceiro componente da equipe é o médico, que ocupa um lugar menos destacado em comparação com os anteriores, porém importante, porque realiza a leitura de exames de parâmetros biomédicos, considerados importantes para validar o processo. Ambos, nutricionista e médico, embora com mais destaque para a primeira, são aqueles que, junto com o profissional de educação física, detêm a verdade necessária, aquela do saber biomédico sobre o corpo, para poder realizar uma adequada hermenêutica dos dados apresentados extraídos do corpo, que, por sua vez, revela a verdade dos sujeitos.

Participantes

Os dois participantes da primeira edição eram profissionais da televisão de longa e consolidada trajetória na Rede Globo de Televisão, atuando, ambos, no programa Fantástico, como apresentador, Zeca Camargo, e como repórter, Renata Ceribelli. Eles estavam com sobrepeso ou algum grau de obesidade e não tinham cuidados com o corpo pautados pelas regras do saber biomédico, o que justificou sua escolha para o programa. Além disso, ambos, porém principalmente Zeca Camargo, se reconhece, e era reconhecido pela sua colega, como sendo uma pessoa que gostava de desfrutar dos prazeres da vida, em particular da gastronomia, um hedonista. Já Renata é apresentada como sendo uma pessoa disciplinada, marcada por uma lógica ascética de vida, fruto de uma ética do trabalho. Mas que, por esse motivo, não destinava tempo para cuidar da sua saúde, e, eventualmente, cometia excessos, em particular com os doces. Outro aspecto a ser destacado, no modo como no livro se marcam diferenças entre os personagens, é a questão de gênero, na medida em que, como veremos de forma mais ampla adiante, se marcam as diferenças claramente do que é, principalmente, o lugar do corpo da mulher na sociedade contemporânea. A fala de Renata se dirige, especialmente, ao público feminino, partindo de uma lógica homogeneizante da ideia de feminilidade, sempre se referindo a “nós, mulheres”, ou ao “lugar da mulher”. Interessa destacar esse acento no lugar da mulher, e dos imperativos estéticos, com relação ao corpo, que o texto reproduz.

Vale evidenciar, por fim, que os textos escritos por cada um são apresentados como constituindo uma narrativa subjetiva com certo grau de autonomia, com relação a do colega, mas que, paradoxalmente, só encontra inteligibilidade se situada em relação e tensão com a narrativa do outro participante.

O saber biomédico e a culpabilização do sujeito

O texto, ao ser escrito, mormente, na perspectiva dos participantes, permite compreender o modo como eles se apropriaram do discurso do estilo de vida saudável, que responde a um campo disciplinar, o da biomedicina, e os três subcampos aqui tratados, da teoria do treinamento esportivo, da nutrição e da medicina. Vale, neste momento, lembrar as palavras de Foucault (2001) sobre as disciplinas. Uma disciplina, para o pensador francês, se estrutura a partir da definição de um conjunto de objetos, de métodos investigativos específicos e de proposições consideradas verdadeiras, bem como de técnicas e instrumentos. Esses elementos conformam um “(...) sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu seu inventor” (FOUCAULT, 2001, p. 30). Assim, a disciplina se diferencia do autor. A disciplina deve permitir a formulação sempre renovada e indefinida de proposições, bem como referir-se a um plano de objetos determinado (ibid., p. 32). O jogo de verdade no qual se funda, além de permitir diferenciar as proposições verdadeiras das falsas, deve possibilitar evitar e expulsar toda uma “teratologia do saber” (ibid., p. 34). Esse quadro de coisas implica que:

É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma “polícia” discursiva que devemos reativar em cada um dos nossos discursos (ibid., p. 35).

Os relatos do programa revelam que a equipe profissional, quais sejam, o trio profissional de educação física, nutricionista e médico, é a representante privilegiada do saber biomédico, e que atua movida e produzida por esse discurso, bem como quem é o responsável de esquadrinhar a vida dos seus dirigidos com base nesse saber, de modo que esse saber passe também a constituí-los. Assim, fazendo eles, mas principalmente, o personal trainer, oficiam como os sujeitos que orientam suas ações a partir das regras legítimas do saber disciplinar, às quais eles têm acesso privilegiado, correspondendo ao princípio de rarefação do discurso, que pressupõe que “(...) ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2001, p. 37).

Um momento marcante da relação dos novatos/conversos com esse saber e a sua verdade emerge com força no momento da revelação dos seus parâmetros biomédicos iniciais, e a revolta que provoca pelo peso incontestável da verdade que eles carregam. O primeiro semanário de Zeca Camargo tem um título muito provocativo: “Atirando no mensageiro”, e como subtítulo: “fiz cara feia para o médico que me trazia más notícias, mas elas eram apenas um reflexo do que acontecia dentro de mim” (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 31 - o grifo é nosso). Esses enunciados são relevantes porque já indicam o modo em que o sujeito é levado a se reconhecer a partir da sua relação com o saber biomédico. Revela indignação contra o ‘mensageiro’ (o médico), que, simplesmente, era o responsável por transmitir a verdade de si para o paciente, o médico dizia o que acontecia “dentro de si” (ou dentro do si), o sujeito é tornado equivalente a uma condição de corpo biológico, cuja verdade é extraída a partir de exames, que somente podem ser acessados por quem detém os códigos para decifrar essa mensagem: os representantes do saber biomédico. Na sequência lê-se, no texto:

Eu não tinha ideia da cara que havia feito. Quando o Dr. Alexandre Carvalho me mostrou os resultados dos meus exames - e todos eles eram assustadores -, a expressão do meu rosto tornou-se um misto de decepção e braveza. E o culpado só podia ser um: aquele médico que estava sentado à minha frente (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 31).

E, na sequência, continua:

Como qualquer pessoa que já enfrentou um diagnóstico em um consultório sabe bem, eu não podia estar mais errado. Se alguém era responsável por aqueles índices preocupantes - colesterol ruim, alto; colesterol bom, baixo; e assim por diante -, esse alguém era eu. (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 31 - o grifo é nosso)

Do que lemos acima, destacam-se dois aspectos, o valor de verdade do discurso biomédico se revela consistente, pelos dois elementos apresentados acima. Por um lado, por seu veredito ser incontestável, o sujeito ao receber o diagnóstico se revolta, revolta essa que confirma o valor de verdade desse saber na constituição desse sujeito. Por outro lado, depois do movimento catárquico inicial, o sujeito reconhece a sua falta, assume o seu lugar de pecador e diz: o responsável pela condição desviante, era EU. E assim fazendo, se produz no enunciado como um sujeito anormal, que precisa passar por um processo de reprogramação corporal, na expectativa que o que venha a ocorrer “dentro de si”, se revele cada vez mais adequado ao ideal de normalidade, fazendo coincidir a verdade (biológica) de si com esse ideal normativo. O reconhecimento do valor de verdade do saber da biomedicina é necessário para, com base nele, poder se reconhecer como sujeito em falta, e que deve reorientar a sua vida para buscar a sua salvação, se observa presente desde o início do processo que ora analisamos.

No primeiro semanário de Renata, dois elementos se somam ao que antes dizíamos. Por um lado, nesse texto encontra-se um conjunto de critérios (seis, ao todo), a partir dos quais o sujeito é levado a se examinar para saber se o que o acomete é fome ou sede; ao que se segue um decálogo (e o número 10 parece não ser aleatório, uma vez que sabemos a importância dos 10 mandamentos na tradição judaico-cristã), com base nos quais deve-se pautar uma “alimentação saudável”. Isto é, vemos um par de elementos que operam como as referências necessárias para o “bem viver”. Além disso, no caso da repórter, um elemento chama a atenção, no que diz respeito às medidas, particularmente, do peso: a condição de mulher. Ela diz: “Nem meu marido sabe quanto eu peso” (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 43), para revelar a seguir que ele (o marido) soube o seu peso em rede nacional, juntamente com todos os telespectadores. Tem mais uma passagem que queremos destacar e que demonstra a filiação ‘religiosa’ que Renata assume com os condutores de consciência:

Vou seguir tudo o que vocês me disserem religiosamente, com a responsabilidade de uma repórter que está se comprometendo com o público. Sempre segui tudo o que as nutricionistas e os professores de ginástica que já passaram pela minha vida, disseram, mas jamais consegui efetivamente emagrecer. Eles sempre duvidaram de mim, achavam que eu não seguia à risca suas recomendações. Agora é diferente. As câmeras vão mostrar se estou fazendo certo ou não. O Marcio vai me acompanhar (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 43 - o grifo é nosso).

Nessa passagem, emergem enunciados que são fundamentais para a nossa análise. Em primeiro lugar, o caráter ‘religioso’ do trabalho. Embora possa ser dito que se trata de um uso coloquial da linguagem, o significante não se instala no enunciado de forma aleatória, mas por compor uma rede simbólica, na qual o sujeito é instituído, e se reconhece. Portanto, em perspectiva foucaultiana se trata de dar visibilidade ao que se vê (FISCHER, 2001). Portanto, o enunciado que sinaliza que o sujeito irá seguir religiosamente uma orientação dada por um profissional da área da saúde, precisa ser compreendido como um compromisso moral assumido pelo enunciador, no qual ele, ao firma-lo, se produz. Um segundo elemento que importa destacar é o fato de que o compromisso de seguir fielmente a orientação dada é também com o público, isto é, os telespectadores oficiam como vigilantes permanentes, e como fiadores do processo a ser desenvolvido. A produção de uma miríade de olhares perscrutadores do fazer cotidiano é possibilitada pelo caráter midiático do evento. Uma vez que, pelo programa ser realizado nos moldes do reality show, no qual a vida cotidiana é alçada ao plano do espetáculo permanente, as câmeras irão mostrar tudo, nos seus mínimos detalhes, irão mostrar ‘Verdadeiramente’ as práticas realizadas, sem ser possível qualquer engano. A espetacularização da vida como critério de verdade do modo em que se vive a própria vida. Nova versão do panóptico, em tempos de sociedades de controle, ou ainda, em termos de capitalismo de vigilância como veremos mais adiante. Diante do que estamos expondo, vemos que a noção de Foucault de obrigação pela verdade, neste caso, diante da lógica e da evidência científica, no processo de subjetivação é uma ferramenta analítica importante. Ele nos diz:

O que me constrange na busca e na manifestação da verdade, o que determina meu papel, o que me assinala a fazer isto ou aquilo, o que me obriga no procedimento de manifestação da verdade é a estrutura do próprio verdadeiro. (...) É essa a evidência, e o caráter fundamental e fundador da evidência nos procedimentos de manifestação da verdade é que, na evidência, a manifestação do verdadeiro e a obrigação na qual eu me encontro de reconhecê-lo e de colocá-lo como verdadeiro coincidem exatamente. (...) É verdade, e eu me inclino. E me inclino porque é verdadeiro, e me inclino na medida em que é verdadeiro (FOUCAULT, 2014, p. 87).

O reconhecimento da condição de culpado é o ponto inicial para dar início ao processo de reconversão. Importa, no entanto, sublinhar o que isso implica. O reconhecimento da culpa está pautado no pressuposto de ter tido acesso a uma verdade que passa a operar como a baliza necessária para fazer o exame de consciência. Verdade essa que emana do saber biomédico, é transmitida e operada por seus representantes legítimos. Só por causa de se pôr e ser posto em relação com essa verdade, que o sujeito é capaz de reconhecer a sua culpa. Ainda, pelo caráter necessário e universal dessa verdade, que permite a salvação da vida, definida e instituída a partir do seu caráter biológico, o sujeito duvida, entra em conflito, e, no limite, tenta rejeitá-la, mas isso acontece somente por causa da revelação da própria culpa, que tal verdade implica.

O confessionário, ou do dizer a si mesmo

Uma técnica usada no programa, que, de resto, é largamente utilizada nos realities shows, é o confessionário. Trata-se de uma câmera à qual o sujeito tem acesso individual, e com a qual registra depoimentos íntimos, nos quais se conecta, de modo direto, com o público, sem a mediação da captação profissional de imagens. É o indivíduo dizendo a sua verdade para todos, desvelando algum elemento central, profundo do seu ser. E que, neste caso, tem relação com o problema das expectativas, frustrações e fraquezas. Resgatamos dois episódios em que se fez uso dessa técnica, que correspondem a dois momentos distintos do programa, um no início, na segunda semana, e um no final, na undécima semana. Na segunda semana, Zeca Camargo aciona o confessionário para dizer do seu desânimo e sua contrariedade por ter aceitado o convite para participar. Ainda, no subtítulo da seção em que discute o uso da técnica do confessionário afirma: “Confessionário funciona”. Ele declara que o fato de dizer algo do foro íntimo, implica uma certa dose de coragem, e tem como efeito sentir alívio desse elemento limitador, que é a confissão da culpa e da dúvida, que configuram parte da própria finitude da condição humana. Vejamos:

E quando falei que estava irritado, desanimado e com certo arrependimento de ter aceitado o desafio, no instante em que desliguei a câmera comecei a me sentir melhor. Já não pensava em largar tudo, mas em encarar a rotina do fim de semana, que, no meu caso, é de muito trabalho e não de lazer (CAMARGO; CERIBELLI, 2011, p. 59).

O efeito liberador da confissão permite ao sujeito dizer-se, e com isso, reconhecer o elemento perturbador no processo de aperfeiçoamento que está desenvolvendo. Além disso, é possível observar que esse dizer se coloca como um movimento quase necessário, confessar não é uma opção, na subjetivação ocidental, tributária da tradição cristã, confessar é um dever, e um dever permanente. O elemento obscuro de si mesmo precisa ser sempre dito, sempre de novo, a cada vez, para todos e para si mesmo.

O segundo momento diz respeito a uma situação vivenciada por Renata Ceribelli na 11ª semana. Nesse momento, diante da angústia vivida pela proximidade do fim do programa e do acometimento da dúvida, quanto a alcançar, ou não, o sucesso esperado, e exaustivamente prometido ao público, ela cai na tentação de comer bombons. Ela usa a palavra “recaída” para nomear a situação, bem como se culpa por ter deixado algum doce à mão. Antes de comer, no entanto, ela reflete sobre a conveniência e a permissão, ou não, para comer, mas, “cai em tentação”. Depois de ter comido os três bombons, e duvidar de como iria lidar com a culpa, faz um exame de consciência e decide expor ao público diante da câmera do confessionário. Ela diz:

Depois liguei a câmera que ficava em casa como um SOS, ou seja, quando eu caísse em tentação ou tivesse alguma dificuldade que seria jornalisticamente correto dividir com o telespectador, ela deveria ser ligada. Liguei a câmera e comecei a falar: “Bateu um cansaço! Cheguei em casa e fiz uma coisa que não posso esconder do público, porque estaria sendo desonesta com o projeto. Comi três bombons escondido. Escondido de quem não sei, porque não tem ninguém em casa. Acho que foram os hormônios femininos” (CAMARGO; CERIBELLI, 2011, p. 230).

Renata afirma sua culpa diante do público, porque é seu dever para com eles. Ela deve isso a eles, e deve fazer isso no local adequado, no confessionário, por isso, o fato de ligar a câmera se apresenta como um imperativo. Destacamos, novamente, a presença da nomeação de origem cristã, que, secularizada, perpassa o nosso modo de dar nome às coisas na modernidade, ela declara ter caído em tentação, e que, para dar cabo à tentação, à fraqueza da carne, se escondeu, mas não sabe de quem. Certamente, de todos aqueles a quem ela revela a falta, em rede nacional, mas também, e, talvez, principalmente, de si mesma. Além disso, ela localiza a origem da culpa, que não é a vontade (ou sua falta), mas “os hormônios femininos”, ou seja, é no corpo, e no corpo generificado como feminino, a partir do recurso à substancialização biologizante do feminino, que reside uma natureza oculta, que, sempre à espreita, está a levar o sujeito pelo caminho da falta. Tudo isso deve ser dito. O si tem que se dizer permanentemente, na lógica da confissão.

Nesse sentido, consideramos oportuna uma ferramenta analítica foucaultiana, oriunda da interpretação que o pensador francês faz do monaquismo cristão, a noção de perpétua discursivização de si mesmo. Foucault (2014, p. 278) - nos diz:

É uma relação de si consigo tão continuada, tão permanente, tão analítica, tão detalhada quanto possível, relação que só pode ser feita e só é eficaz na medida em que é, de ponta a ponta, sustentada por uma atividade de discurso, por uma atividade discursiva que faz que eu mesmo é que me ponho em discurso à medida que sou, à medida que penso, à medida que o fluxo dos pensamentos se apresenta em mim e que devo fazer sua triagem, fazer sua triagem para saber finalmente de onde vem o que penso, para decifrar enfim o poder da ilusão e do engano que para de me habitar de ponta a ponta da minha existência.

Entendemos que o princípio acima conceituado, opera como uma baliza fundamental nos processos de subjetivação no ocidente moderno, e que, secularizado, nos impõe a incessante tarefa de dizer de nós mesmos, de forma exaustiva e minuciosa, sempre a partir da posição de culpado, de vencido, de quem duvida do verdadeiro caminho. Como entende Foucault (ibid., p. 282) “(...) essa obrigação de dizer a verdade sobre si mesmo nunca cessou na cultura cristã e, verossimilmente, nas sociedades ocidentais”. Sabe-se que as passagens antes transcritas de Camargo e Ceribelli revelam o efeito que esse princípio tem hodiernamente no modo em que lidamos com a nossa saúde. Considera-se válido para eles o que o nosso autor diz sobre a relação entre subjetividade e verdade no cristianismo: “(...) a obrigação de dizer a verdade a si mesmo, e isso na forma do reconhecimento das faltas (...)” (ibid., p. 279).

A relação com o corpo e sua(s) verdade(s)

Um elemento singular do processo que analisamos diz respeito ao modo de relação entre o corpo e o sujeito. Nota-se, que no movimento nominado de “reprogramação corporal”, vale a pena nos determos nessa nomeação, uma vez que ela revela o objeto que leva o sujeito a uma outra condição: o corpo. Cabe, ainda, perscrutar o que pode ser entendido como o resultado da tal reprogramação. Aqui, a ideia de uma vida moralmente qualificada parece despontar, embora não como o resultado da salvação da alma na perspectiva da transcendência, mas de uma vida qualificada no plano imanente, qualificada aqui e entendida como adequada aos parâmetros de saúde biomédicos. Se é no corpo que reside o objeto sobre o qual o sujeito deve incidir, é também porque nele reside a possibilidade da queda. Nos relatos dos protagonistas, fica evidente que a relação com o corpo precisa ser alterada, porque eles viviam, embora de modos diferentes, uma relação de aceitação, e, inclusive, de positivação de um estilo de vida hedonista, e a falsa ideia de levar um estilo de vida ativo, que levava a aceitar a condição corporal dada, no caso de Zeca Camargo, e de desatenção e secundarização do corpo, e de falta de vontade de investir no sua modificação, diante das frustrações vivenciadas nas diversas tentativas de emagrecer e treinar o corpo, em academias de ginástica e musculação, no caso de Renata Ceribelli. No entanto, ambos reconhecem ser, essa normalização do estado em que se encontravam, uma falta, devido à carência de atenção para com o corpo, pautado em um saber legítimo e válido.

Conforme Foucault (2014, p. 268), o cristianismo institui a noção de que o mal se instala tanto no corpo, como na alma. Bem como que o corpo será quem sedia a ambos, o mal e alma. Por esse motivo,

(...) o modo de ação do espírito do mal, por sua copresença no corpo, por sua analogia e semelhança com a própria alma, esse modo de ação vai ser tal, que produzirá na alma a ilusão ou, em todo caso, a não distinção entre o bem e o mal, a não distinção entre Satanás e Deus, a não distinção entre Satanás e o próprio sujeito (ibid., p. 268-269).

De modo tal, que é necessária uma permanente vigilância e exame do corpo para poder realizar o movimento de conversão, de acordo com a Verdade Divina. Uma passagem relevante, mas em termos da nova religião do estilo de vida saudável, que nos parece pertinente discutir com base na ferramenta analítica acima mencionada, é o momento intermediário, que aconteceu na sétima semana. No momento de revelar novamente as medidas, o personal trainer, para poder mostrar aos participantes o que haviam conseguido até então, providenciou a elaboração de uma peça de resina, para materializar a quantidade de gordura corporal que haviam diminuído, 2,5 quilogramas.

Na apresentação do semanário da sétima semana, Camargo diz: ‘AQUILO’ estava dentro de mim? Era de ‘mentira’, de resina amarelada, mas a peça que o Atalla mostrou imitava 2,5 kg de gordura. Olhar para ela foi impactante, diria até que senti nojo. [...] A visão ‘daquilo’ era aterrorizante. Ou melhor, era nojenta! Uma espécie de gosma amarelada, repugnante, mas que, segundo o Atalla, não era muito diferente da gordura (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 141, p. 148).

Na sequência, aparece um texto que finaliza a questão sobre o que havia no corpo, e sobre o que passa a haver em substituição, massa muscular:

Junto com essa peça, ele levou uma que representava o mesmo peso - 2,5 quilos, só de músculos. Essa, sim, era uma maravilha. O que estava acontecendo, explicou o Atalla, é que estávamos substituindo uma coisa pela outra. E o corpo não tinha outra coisa a fazer, a não ser agradecer muito (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 148).

Importa destacar, pelo menos, três aspectos das passagens que transcrevemos acima. Primeiro, o modo de nomear a gordura: “aquilo”. A gordura não pode ser chamada pelo seu nome, mas deve ser dita por um pronome demonstrativo, que não compromete o sujeito com o mal que implicaria nomeá-lo. Evocar “o inominável”, o “demoníaco”, que habita o corpo, como víamos com Foucault, parece ser um elemento importante nesse processo. Além disso, o “inominável” ganha adjetivações que, claramente, o situam do lado do mal, tais como “repugnante”, e que provoca “nojo”. Por outro lado, é o profissional de educação física, quem, de forma legítima, mostra o “mal”, materializado na forma de gordura. O diretor de consciência é quem tem acesso a desvendar o mal que habita no corpo, daquele que é por ele conduzido. Por fim, o par que é constituído pela gordura-musculatura, que remete à relação entre o bem e o mal, é significativo para situar a relação de conquista do corpo pelo bem, que se realiza na “reprogramação do corpo”. Afirmar que a resina que representava a massa muscular, era “sim, uma maravilha”, situa a musculatura, o lugar da potência do corpo, da produtividade, como o bem que pode ser, literalmente, incorporado (feito corpo), por um processo bem conduzido, com base no saber necessário.

Conforme observou-se com o exposto, a vigilância individual, a autovigilância, não é suficiente para trilhar o caminho da cristandade, mas, esse caminhar só é possibilitado pela correta condução de consciência. Seguindo a orientação foucaultiana, o monaquismo cristão instituiu uma economia da relação entre sujeito e verdade, pautada por três elementos: 1) a relação de implicação entre obediência ao outro, e sua escuta atenta, porque dele emana a palavra adequada e necessária, e exame de si mesmo, de forma especular, isto é, ao se examinar o sujeito deve fazê-lo com base na Verdade revelada, e tendo como horizonte a completa submissão ao Outro; 2) Olhar para si mesmo e enxergar tudo o que seja possível; 3) para dizê-lo, na medida em que se enxerga. “Um triângulo: ouvir o outro, olhar para si mesmo, falta para o outro de si mesmo” (FOUCAULT, 2014, p. 262).

Se pensarmos com base nesse princípio, verifica-se uma analogia interessante com o que Rose (2011) refere sobre a expertise. Para ele, nas sociedades do liberalismo avançado, o governo se exerce pela expertise, que tem três características: 1) fundar a autoridade, reivindicando a legitimidade do saber científico, que diferencia e caracteriza os sistemas de autorregulação; 2) implica a mobilização do saber nas formas contemporâneas de governo, como é o caso do governo pelo discurso biomédico; e 3) ela se realiza com base na capacidade de autorregulação dos sujeitos. Nessas duas formulações, nota-se como os sujeitos são levados a se reconhecerem, enquanto instituídos e conduzidos por um saber, do qual um outro é o detentor legítimo, e a partir do qual administra adequadamente a conduta do sujeito. Além disso, Rose (2011) entende que a expertise opera com base na instituição da esfera do trabalho como um domínio fundamental da vida para a realização do sujeito. Para ele: “(...) o trabalho, tornou-se um elemento essencial no caminho para a autorrealização e os desejos do self autônomo tornaram-se aliados essenciais no caminho para o sucesso econômico” (ibid., p. 224).

As balizas teóricas que apresentamos nos permitem avançar analiticamente na discussão da empiria. Em primeiro lugar, destacamos a fala sobre o caráter ‘exato’ (e, portanto, inquestionável, certeiro e necessariamente verdadeiro) do saber do qual Marcio Atalla era detentor. Além de profundo conhecedor, um “expert” no seu métier, o profissional de educação física é relatado como sendo afável, sempre disponível para orientar, é chamado de guru (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 145), aquele que conduz sabiamente o processo, sem elogios demais, incentivando, de modo permanente, e lembrando aos envolvidos da importância de se exercitar diariamente, mesmo diante do cansaço e do desânimo, e adequando os exercícios às condições em que se encontram os protagonistas, como um bom pastor que zela pelo seu rebanho.

O caráter de ‘diretor de consciência’, de guia inquestionável do processo, porque detentor de um saber certeiro, se revela de diversas formas. Mas, duas são notórias, porque nelas se expressa a autoridade por ele exercida, em virtude do saber que detém. Durante a 8ª semana do programa, Zeca resolve retomar aulas de ioga que ele costumava fazer. Mas, deve fazer isso “escondido do Atalla”. (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 160). Motivo? “Quando falei ao nosso instrutor que queria fazer a tal aula, ele foi categórico: ioga não queima gordura” (ibid.). O critério real para incluir uma prática corporal era a calculabilidade do gasto calórico, deslegitimando, com isso, quaisquer outros critérios de verdade. Isto é, vemos que Atalla se vale do jogo de verdade da ciência, neste caso da ciência do treinamento esportivo, para dirimir o jogo entre o verdadeiro e o falso. Outro aspecto marcante do papel de Atalla nesse jogo de verdade, se revela quando Renata, na 9ª semana, por se sentir bem, resolveu pedalar com um grupo de ciclistas, e, mesmo que não fosse essa a ideia inicial, o exercício se estendeu por cinco horas, completando a distância de 50 quilometros, por um percurso de montanhas. No dia seguinte, ela estava exausta, e sem condições de treinar. Ao relatar para Atalla, “com certo orgulho, a façanha do dia anterior” (CERIBELLI; CAMARGO, 2011p. 190), a resposta foi a seguinte:

Ao invés de ser orgulhar de mim, o Atalla ficou uma fera, muito bravo mesmo. Só faltou rosnar. Foi a única vez que vi o Atalla realmente perto de perder a paciência comigo. “O Medida Certa é contra exageros”, dizia ele. “Isso não faz parte do programa! Está errado! Você exagerou! [...] Ele foi claro e objetivo: ‘Sou o preparador físico da série, e o que eu digo precisa ser cumprido’ (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 190).

E Renata mostra sua relação de obediência e reconhecimento da autoridade: “Ele estava certo” (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 190). Vemos, nesta nova passagem, como a possibilidade de fazer algo por conta própria, sem uma relação de obediência irrestrita às ordens emanadas pela autoridade legítima, por aquele que de forma qualificada detém o saber que deve pautar o modo de vida do dirigido, é uma afronta imperdoável, porque o que é por ele dito “precisa ser cumprido”. Novamente, a ideia de uma medida errada estava em jogo, o cálculo da medida não pode ser feito pelo dirigido, mas, sempre, pelo diretor. Essa relação apresentada nas duas cenas anteriores remete claramente à relação de direção da consciência cristã, que deve ser pautada, conforme Foucault (2014), pela humilitas, pelo princípio que noviço deve aceitar, conforme segue: “Minha vontade não tem o direito de querer nada, pois eu não valho nada, porque eu não sou nada, porque sou pecador (p. 248).

Continuando com a análise do lugar de Atalla como o detentor legítimo do saber sobre o corpo, destaca-se que este se apresenta como um saber exato, que lembra a ideia de infalibilidade, no modo como é percebido pelos participantes. Vejamos, nas palavras de Renata Ceribelli, o modo de se referir ao saber mobilizado no processo, no momento em que ela começa a sentir os efeitos do treino (4ª semana), da reprogramação do corpo:

Tudo exatamente como o Marcio disse que aconteceria, com a lógica de uma fórmula matemática. (...) Como uma fórmula “matemática” era isso que estava acontecendo na minha vida: MAIS EXERCÍCIO = MENOS ANSIEDADE = MENOS VONTADE DE COMER DOCE E UM SONO MELHOR = UM CORPO MAIS DESCANSADO E DISPOSTO PARA O EXERCÍCIO (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 98).

Nas palavras de Renata, o saber do qual o personal trainer era detentor não estava sujeito ao erro, embora ela tivesse dúvidas no início, e confiou nele por ser uma pessoa que segue o que é ordenado, conforme vimos antes. Porém, nesse momento, depois de transcorridas quatro semanas, e os resultados começando a aparecer, a obediência se afirmou a partir da solidez do saber materializado no corpo. Importa também destacar que os critérios de validação do saber são todos elementos vinculados a um corpo produtivo (disposto para o exercício - e para o trabalho), o que implica, de forma especular, um corpo menos afeito aos deleites (aos doces). O saber que está em jogo se revela infalível, porque matematizado. E por ser matemático, exato e isento de erro, pode matematizar o corpo, e assim fazendo, o institui como um objeto da calculabilidade, e, portanto, programável.

Os momentos culminantes do saber do corpo, e da confissão, são os rituais de mensuração do corpo, como já vimos no início. Neste caso, o que nos interessa é o modo como a relação com os parâmetros revelados pelos exames, fazem do corpo a instância que exprime a verdade do sujeito. Vejamos dois momentos, um intermediário, e o momento final. Depois da sétima semana, foi feita uma nova mensuração da composição corporal, que, em ambos os casos, tinham experienciado uma sensível melhora. No caso de Zeca Camargo, ele diz:

A nova medida (da circunferência abdominal), certificada pelo Atalla, era de 104 centímetros - ou seja, eu havia perdido nada menos que seis centímetros! Uma ótima notícia. Para fechar comemorando, só faltava a balança. Que, diga-se de passagem, também foi generosa comigo. Dos meus 111,4 quilos iniciais, agora estava com 107,4 quilos. Tinha perdido quadro quilos, redondinho! O único detalhe que ainda estava incomodando era o tal IMC - o Índice de Massa Corporal, que tinha baixado relativamente pouco: era de 31,5 e agora estava em 30. Sim, aquela categoria tão temida, que fizera que a própria Laura tivesse dificuldade de falar comigo na primeira consulta, ainda me assombrava. (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 147).

As vitórias do eu são reveladas pelas medidas corporais. Assim como também, as angústias e os fantasmas, tem no corpo a sua morada. Ao final do processo, vemos, novamente afirmada, essa relação pautada entre a verdade do corpo e a verdade do eu.

No domingo (final do programa)... Bem, você deve ter visto: foi aquela explosão! E não poderia ser diferente. Nada menos que doze quilos haviam saído do meu corpo. Doze quilos! Com os exercícios, acabei ganhando cinco quilos de massa muscular - uma consequência que já era esperada pelo Atalla, claro. Eu não estava me sentindo melhor à toa. (Os números “oficiais” são os seguintes eu pesava 111,4 kg e passei a pesar 104 kg; perdi 12,29 kg de gordura e ganhei 4,9 kg de massa muscular) (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 243).

O processo, ao final, deixa claro como a adequação aos parâmetros de saúde biomédica, torna-se um modo de ser, que subjetiva e demonstra o valor moral do sujeito a ser sempre reconquistado. A referência aos “números oficiais”, validados e esperados pelo personal trainer, mostram como esse saber subjetiva, torna-se o modo em que o eu avalia o modo que vive. Camargo, novamente, comemora a vitória da massa muscular que in-corporou, e sobre a gordura que perdeu, expulsando, com ela, o mal que o habitava. O eu vitorioso é o eu da conquista de uma nova composição corporal, na qual a gordura deve habitar o menos possível, e no qual a musculatura, a produtividade e o ‘bem-estar’, que ela representa, deve ganhar terreno, sempre mais.

O corpo espetacularizado: o eu e o nós, vigilância e panoptismo contemporâneo

A emergência e o desenvolvimento das redes de interação social por diferentes recursos midiáticos e de comunicação encontram, no século XXI, uma consolidação sem precedentes. Não apenas pela ampla gama de recursos de comunicação, mas, sobretudo, pelos meios em que indivíduos podem se comunicar e colocar a si mesmos como objetos de consumo. Inclusive, e de modo bastante especial, são fomentados, induzidos e incitados a desenvolverem-se como objetos de espetáculo, construindo capacidades - e sendo premiados por tal - de se gestarem na busca desse intento. É nas linhas da argumentação da espetacularização de si que algumas reflexões encontram ecos nos excertos do material aqui analisado. Ainda, destacamos que a análise reflete o modo como a espetacularização do eu, leva o sujeito a se confrontar com os princípios de verdade do “estilo de vida saudável” como o qual passa a se comprometer, e, com base neles, se confessa diante da miríade de olhares julgadores que o público passa a compor. Se, na lógica da confissão cristã, o ato confessional era um ato privado entre o diretor de consciência/confessor e o noviço, na era da vida espetacularizada, a confissão deve ser tão ampla, quanto o for o público que assiste ao show, que é composto pelos novos confessores midiáticos.

Dentre os participantes do reality show aqui mencionado, Zeca Camargo ocupa papel ativo nessas ações. Acerca da introdução da obra aqui referida, Zeca assim descreve impressões após ter aceito o convite para participação. Primeiramente, sobre o que lhe foi dito: “O Brasil inteiro vai saber suas medidas”, ele disse (Luizinho, Diretor do Fantástico). E os resultados dos seus exames de sangue, seu colesterol, seu ácido úrico, nível de glicose, tudo”.

Em seguida, o protagonista estabelece a seguinte reflexão, com certa perplexidade:

E mais, as câmeras iriam me acompanhar na minha casa, nas minhas atividades, em boa parte do meu lazer - e eu ganharia até mesmo uma só para mim, para gravar declarações do tipo “confessionário” para os momentos de desabafo. Não teria uma meta, um número definido de quilos a emagrecer, mas com um objetivo: mudar os hábitos para ter uma vida mais saudável (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 9).

Diante do exposto, inferimos que a exposição a que Zeca Camargo iria se submeter está diretamente relacionada à organização de um espetáculo de uma ‘nudez’ de sua vida, inclusive, desde seu interior mais secreto, daquilo que lhe compõem em sua mais íntima e privada constituição, do que é feito mesmo o corpo, a saber, o sangue, os fluídos, as métricas internas, as partículas, as células traduzidas em linguagem científica acessível, aquilo mesmo em que residem as informações mais singulares do ser. Ao se expor, ele apresenta suas cavilações sobre o que implicaria assumir essa condição confessional diante de uma plateia virtual de milhões de espectadores, aos quais a verdade do eu seria revelada, sem véus. Esta exposição do eu interior, transformada num espetáculo para consumo, inclusive como referido acima com a aquisição de uma câmera particular para tais ações, compõem os cenários da vida cotidiana naquilo que Sibilia nominou com “Show do eu” (SIBILIA, 2016). E Zeca segue descrevendo o desafio da assunção de tal empreendimento em meio a ‘despir-se’ diante de tantas e tantas pessoas, referindo que “foi assim que, meio dividido, pouco menos de um mês depois de a proposta ter sido feita, eu assumia, diante de milhões de brasileiros, o compromisso de mudar meu estilo de vida em nome da saúde” (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 11).

Não obstante, Renata Ceribelli relata as inúmeras situações que a publicização de si acabou gerando, inclusive descrevendo algumas que remetem a situações de atores/as de grandes e difundidos espetáculos, que possuem milhões de espectadores. Nessa linha de argumentação, em uma viagem à cidade de Gramado/RS, na época da Páscoa e Festa do Chocolate, comenta:

Era tanto o assédio das pessoas me dizendo que estavam torcendo por mim que a vontade de comer chocolate foi totalmente desviada. Perguntei a um grupo de senhoras que me cercou: ‘Vocês acham que devo comer chocolate?’ Todas elas, muitas com um chocolate na mão, disseram em coro: ‘NÃO!’ Parecia que queriam que eu tivesse uma força de vontade que faltava a ela (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 118)

Esses apontamentos, acerca da publicização do eu privado como objeto público, encontra apoio em interpretações do assim chamado “Capitalismo de Vigilância”. Por este termo, Zuboff (2021) refere-se a uma serie de arranjos assimétricos de modelação de comportamentos em consumo do eu, tomados enquanto objetos de valor, como ganchos de especulação de experiências transformadas em bens de consumo para mercados de comportamento futuro. É nesse ínterim que os trechos aqui apresentados se relacionam com a proposta interpretativa, na medida em que se compõem como experiências individuais que passam a ser modeladoras/modelares de outros comportamentos individuais e coletivos, transformando-se em produtos com valor agregado. Importa sublinhar, ainda, que o movimento realizado por Renata indica o modo como a participação no programa a leva a situar o outro, neste caso o telespectador, como aquele que deve balizar a norma do comportamento que ela deve seguir, nos moldes do diretor de consciência. Ela busca e afirma o outro como aquele que pode e deve julgá-la. Solicitação essa que é confirmada “em coro” pelo outro: “Não!” (comerás).

Assim, não são apenas nas espetacularizações do eu pelas mídias impressas ou televisivas, neste caso, ou outras quaisquer, de forma geral, que se manifestam os mecanismos de vigilância, mas, de forma mais radical, as espetacularizações do eu ‘são elas próprias’ os mecanismos de vigilância, na medida em que atuam ‘enquanto’ tecnologias e não apenas para ‘pôr em funcionamento mecanismos de vigilância. Portanto, a suposta lacuna entre a vigilância e meios de divulgação que ocorreria por intermédio da publicicização de si se esvai, conforme ela própria é objeto e meio.

Estas incursões conceituais podem também ser aludidas e problematizadas nos excertos a seguir:

7ª Semana - Renata Intervenção do público. “Quanto você já perdeu? Está conseguindo perder? A dieta está funcionando?” Na sétima semana do Medida Certa, eu respondia a essas perguntas vinte vezes por dia. Ao mesmo tempo que a torcida do público me incentivava, também me desesperava. E se eu não perdesse a quantidade de quilos que todas aquelas pessoas estavam esperando? (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 152).

E ainda, neste recorte mais longo:

8ª semana - Renata Nessa semana Renata foi a uma festa de casamento, na qual era madrinha.

Passei fome por conta da patrulha - Eu estava regradíssima; afinal, era o último mês do desafio. Antes de ir para a igreja, comi minha barra de proteína, já pensando em não passar pela situação de estar com fome sem nada que pudesse comer por perto. Calculei que dali a três ou quatro horas eu estaria na festa e jantaria e jantaria com todo o meu direito de convidada. (...)

Sob olhares atentos, lá fui eu para a mesa do bufê. Eu poderia jantar normalmente, comer um pedaço do frango, tirando um pouco do molho, arroz, salada e, se quisesse, poderia ainda trocar aquilo tudo por um prato de massa. Mas foi só eu pegar o prato para me servir que a fila aumentou incrivelmente atrás de mim e comecei a ouvir risadas. As pessoas pararam de se servir para ver o que eu colocaria no prato. “Estamos de olho, hein!!! Queremos ver o que você vai comer!!”, avisavam. Fiquei passada. O nível de vigilância sobre a minha pessoa estava extrapolando os limites da boa educação! Mas eu havia permitido isso, de certa forma, quando aceitei me expor em um reality show (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 174, grifo nosso)

As possibilidades da espectacularização do eu, conforme as acima destacadas, ganham contornos cada vez maiores com os meios de divulgação e alcance cotidianos. Ainda mais se tratando de duas celebridades. Entrementes, o que se quer destacar é que tal publicização do eu e de suas práticas de saúde são per si as próprias práticas de vigilância, em âmbito cultural. Sublinhamos, ainda, que a passagem acima demonstra que o modo como o público se relaciona com Renata, como aquele que assume de forma legítima o papel de vigilante e juiz implacável, que a leva a aumentar o próprio controle, faz parte da lógica do reality show, o que é corroborado por ela. Ao confessar essa condição, ela legitima essa relação de poder, pautada pelo panoptismo e referenciada no ideal de vida saudável. Como refere Zuboff (2021), a vigilância existente nessas práticas expostas do eu acabam por transformar a experiência humana em matéria-prima de consumo, traduzida em modulações comportamentais enquanto objetos e bens de valor para exigências de públicos diversos. Aqui, a relação dicotômica sujeito-objeto fica borrada, assim como, o binômio privado-público. Há, nessa nova forma, uma espécie de panóptico da vida espetacularizada, não mais como outrora enquanto uma vigilância exercida por outrem em níveis diferentes de hierarquia de forma molar, celular, esquadrinhada, física, de controle do tempo e do espaço, mas sim, em planos sobrepostos, rarefeitos, em que sujeitos (eu/nós), tempo e espaço, público-privado, se com-fundem.

É nessa direção que podemos dialogar com a ideia de simulacro de Baudrillard (1991). O simulacro se refere a sobreposição dos elementos do real e seus representativos, entre aquilo que é e o que se pretende designar do que é, em suma, o simulacro não apenas é a representação do real, o simulacro passa a ser o próprio real, naquilo que Baudrillard (1991) vem a sugerir como hiper-realidade. Nos parece que a diferença entre os personagens Renata e Zeca do reality show e seus eus cotidianos ‘verdadeiros’ acabam por ser suprimidos num ente só, assim como ocorrera entre público e privado, entre eu/nós e objeto de intervenção. Em outras palavras, o reality show acabou por fundir, em planos sobrepostos, essas diferenças, a partir da espetacularização do eu, mesclando as dimensões que outrora poderiam e eram compreendidas como separadas, distintas. É nesse ínterim que a vigilância ocorre com mais afinco, pois tal processo torna-se o próprio mecanismo de vigilância, através de confissões, por exemplo, que incidem em modos de governo e sujeição contemporâneos, vinculados a práticas de saúde.

Por fim, registramos ainda alguns trechos que remetem a essas reflexões:

12ª semana - Zeca Se encontra um “bilhete” com as frases que Zeca recebeu ao longo do processo, relatadas nas semanas anteriores: A força - lembranças do apoio popular Um ônibus de estudantes gritando “corre Zeca” em plena Lagoa (Rodrigo de Freitas - RJ) A caixa do supermercado que pergunta: “Vai levar requeijão seu Zeca?” O ciclista que passou por mim e disse: “Você é a inspiração dos gordinhos” Um bilhete que recebi de duas irmãs num restaurante “E aí Zeca a gente está torcendo por você!”, e em baixo da frase se encontram dois olhos bem abertos, um coração, e um beijo (CERIBELLI; CAMARGO, 2011, p. 243).

A vida de Zeca e Renata passa a ser objeto de intervenção e mediação pública, inclusive, transformando-os em personagens a quem se deve torcer positivamente, incentivar, agradecer, como que em tom heroico. Tal como bem refere Foucault, o poder positivo. O poder constrói, gratifica, premia, incentiva, produz. Nesses excertos, vemos o quão são produtivos, em termos de construção de signos e de práticas simbólicas, os sacrifícios empreendidos pelos protagonistas. Há o agradecimento para esses esforços. E o prêmio são esses reconhecimentos. Uma espécie de likes não digitais, que acabam compondo um produto e conformando seu valor em termos de bem de consumo. É a transformação mesma da experiência em projetos futuros de outros eus, de nós, neste caso, vinculados a práticas de saúde.

Considerações Finais

Olhar para os modos de subjetivação neste nosso presente nos permite sondar os meandros nos quais o sujeito é assujeitado. Para tanto, é importante confrontar com objetos para os quais as ferramentas teóricas das quais dispomos nem sempre se revelam suficientes. No entanto, é para situar os limites daquilo que nos acontece hoje, nesse presente ao qual pertencemos, que esse movimento precisa ser realizado. Olhar para o modo como o corpo se torna uma instância fundamental de constituição do eu, amparado nos parâmetros da biomedicina, e alicerçado na lógica da espetacularização do eu, se apresenta como um campo de enorme potência para poder fazer um diagnóstico do presente, de uma das suas facetas. Esse foi o intento que nos moveu para desandar o caminho que aqui apresentamos.

Entendemos que, longe de superar uma lógica biologizante da produção do eu, na atualidade esse saber é cada vez mais reforçado, como uma referência necessária para a constituição da subjetividade. Os diferentes sacerdotes da vida saudável operam como aqueles diretores de consciência que regem a conduta dos indivíduos rumo à salvação imanente que deve ser alcançada no sempre de novo, de novo a cada dia, e que é revelada, extraída dos dados biológicos resultantes do exame. O sujeito é levado a se reconhecer como um sujeito em falta, e que deve aceitar o credo e a norma da vida saudável, processo esse que é potencializado pela difusão dos limites entre a vida pública e a vida privada, que resulta da espetacularização do eu. Assim, o sujeito deve confessar, permanentemente, a verdade de si, revelar essa verdade nas mídias sociais, e esperar o aval dos inúmeros olhares vigilantes e julgadores sempre (oni)presentes nesses ambientes. Esse processo de ‘confissão da carne’ assume um protagonismo em tempos que a publicização de si acaba por ser central. As práticas de confissões públicas, tais como as aqui apresentadas, acabam por não apenas multiplicar os confessionários, mas também monetizar em termos de bens de consumo as experiências vividas pelos protagonistas- celebridades, promovendo modos de regulação e governo. Assim, as experiências de si tornadas públicas viram projetos de sujeito, mediados pelos telespectadores e julgados de forma coletiva.

Esse movimento, de questionar o nosso presente, não tem qualquer intenção de adequação, mas, como nos pautamos nas palavras de Michel Foucault, para quem: “(...) o trabalho do intelectual é certamente, em certo sentido, dizer o que existe, fazendo-o aparecer como podendo não ser, ou podendo não ser como ele é” (FOUCAULT, 2005, p. 325). Talvez um corpo sem medidas, ou um corpo enquanto potência não mensurável, pode ser esse vir-a-ser, enquanto um horizonte para que o nosso presente não seja o que ele é.

Referências

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Recebido: 25 de Outubro de 2021; Aceito: 05 de Novembro de 2021

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