SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue1RIGTH MEASURE: BODY, CONFESSION AND TECHNOLOGIES OF THE SELF IN IN TIMES OF NEOLIBERAL GOVERNMENTALITY author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Contrapontos

On-line version ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.1 Florianopolis Jan./June 2022  Epub May 24, 2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n1.p175-187 

Artigos

A INTERNET DOS CORPOS, AS REALIDADES EMERGENTES E A CONSTITUIÇÃO DE ARQUITETURAS DIGITAIS DE INTERAÇÃO

THE INTERNET OF BODIES, EMERGENT REALITIES AND THE EMERGENCE OF DIGITAL ARCHITECTURES OF INTERACTION

LA INTERNET DE LOS CUERPOS, LAS REALIDADES EMERGENTES Y LA CONSTITUCIÓN DE ARQUITECTURAS DIGITALES DE INTERACCIÓN

Patrícia Scherer Bassani1 

1Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS, Brasil.


Resumo:

A Internet dos Corpos (IoB) é a rede que se constitui entre os diferentes dispositivos associados de forma direta ao corpo físico. Esse estudo, de natureza qualitativa e exploratória, se apoia na revisão narrativa de literatura para mapear realidades emergentes que exploram a relação corpo-tecnologia em contexto híbrido, a fim de propor um modelo teórico para analisar as arquiteturas digitais de interação que se constituem a partir dessa inter-relação, para balizar a proposição de metodologias e práticas pedagógicas na perspectiva de uma Educação Digital onLife. A partir do tensionamento entre os conceitos, destacamos quatro categorias que podem balizar a análise de arquiteturas digitais de interação considerando o entrelaçamento entre as tecnologias IoB e as realidades digitais emergentes: espaço-rede; actantes; processo sociocomunicacional; movimento das associações.

Palavras-chave: tecnologia educacional; corpo-tecnologia; novas realidades

Abstract:

The Internet of Bodies (IoB) is the network that is formed between different devices directly associated with the physical body. This study, based on a qualitative and exploratory approach comprises a narrative literature review to map emerging realities that explore the body-technology relationship in hybrid contexts. The study proposes a theoretical model to analyze the digital architectures of interaction which are constituted from this interrelationship, to guide the proposition of pedagogical methodologies and practices under the perspective of an onLife Digital Education. Taking into account the tension between the concepts, we highlighted four categories that can guide the analysis of digital architectures of interaction considering the intertwining between IoB technologies and emerging digital realities: network-space; actants; socio-communicational process; movement of associations

Keywords: educational technology, body-technology; new realities

Resumen:

La internet de los cuerpos (loB) es la red que se constituye entre los diferentes dispositivos asociados de forma directa al cuerpo físico. Este estudio, de naturaleza cualitativa y exploratoria, se apoya en la revisión narrativa de literatura para mapear realidades emergentes que exploran la reacción cuerpo-tecnología en contexto híbrido, con la finalidad de proponer un modelo teórico para analizar las arquitecturas digitales de interacción que se constituyen a partir de esta interrelación, para delimitar la proposición de metodologías y prácticas pedagógicas dentro de la perspectiva de una Educación Digital onLife. A partir del tensionamiento entre los conceptos, destacamos cuatro categorías que pueden delimitar el análisis de arquitecturas digitales de interacción, considerando el entrelazamiento de las tecnologías loB con las realidades digitales emergentes: espacio-red; actantes; proceso socio-comunicacional; movimiento de las asociaciones.

Palabras clave: tecnología educativa; cuerpo-tecnología; nuevas realidades

Introdução

O conceito de humanos aprimorados por meio de tecnologia se desenvolve no âmbito da ficção científica a partir de múltiplas abordagens, seja em filmes ou livros. No universo cyberpunk de Neuromancer, famoso livro de William Gibson, os personagens têm diferentes aprimoramentos, a partir de uma fusão entre o sintético com o orgânico, como mostram alguns pequenos textos do livro (GIBSON, 2008): “Os olhos eram transplantes Nikon verde-água cultivados em tanque” (p. 44); “Estava acompanhado por seus ajudantes, um de cada lado, jovens quase idênticos, os braços e ombros estourando com músculos enxertados” (p. 45); “Ele percebeu que as lentes eram implantadas cirurgicamente[…] as lentes de prata pareciam brotar da pele” (p. 48); “[…] você é bioquimicamente incapaz de ficar doidão com anfetaminas ou cocaína” (p. 60).

No âmbito acadêmico, o pesquisador André Lemos dedica um capítulo do livro Cibercultura à reflexão sobre corpo & tecnologia. Conforme Lemos (2007, p. 163), o corpo funde-se gradualmente com as novas tecnologias. O corpo torna-se um híbrido, campo de intervenções artificiais como a cirurgia plástica, a engenharia genética, as nanotecnologias”.

Além do conceito de corpos físicos aprimorados por meio da relação híbrida corpo-máquina, podemos destacar também o entrelaçamento entre o espaço físico e o digital. Anders (2002) apresenta o conceito de cíbrido para descrever a combinação entre material e ciberespaço. No texto Toward an architecture of mind, Anders (2002) destaca que nós estamos diretamente envolvidos na criação do espaço, nós percebemos o espaço por meio dos nossos sentidos. Nessa perspectiva, ele afirma que podemos usar dispositivos para ampliar os nossos sentidos. Isso é possível por meio de tecnologias de realidade virtual e /ou realidade aumentada, exemplos das novas realidades emergentes a partir da relação corpo-tecnologia. Experiências em realidade virtual envolvem o uso de dispositivos para “entrar” no digital (óculos, luvas, etc.). Por outro lado, experiências em realidade aumentada incorporam elementos virtuais no mundo físico (realidade aumentada por meio de aplicativos, como o jogo Pokémon Go). Em um contexto cíbrido, a distinção entre o físico e o digital fica embaçada - o cíbrido se desvela nessa mistura. Portanto, um cíbridoé mais que mistura, existe conexão e, mais do que isso, inter-relação entre os dois mundos.

Santaella (2008) aborda o conceito de espaço híbrido sob a perspectiva de espaços intersticiais, pois “referem-se às bordas entre espaços físicos e digitais, compondo espaços conectados, nos quais se rompe a distinção tradicional entre espaços físicos, de um lado, e digitais de outro” (p. 21). Nesse caso, não há mais a necessidade de sair de um espaço físico para entrar em um espaço digital, uma vez que os espaços intersticiais “têm a tendência de dissolver as fronteiras rígidas entre o físico, de um lado, e o virtual, do outro, criando um espaço próprio que não pertence nem propriamente a um nem ao outro” (SANTAELLA, 2008, p. 21).

Esse cenário fundamenta o conceito de onLife. O documento intitulado The Onlife Manifesto: being human in a hypeconnected era foi lançado em fevereiro de 2013. O texto, resultado das pesquisas e discussões desenvolvidas no âmbito do projeto Onlife Iniciative, foi elaborado por um grupo de pesquisadores liderados pelo professor Dr. Luciano Floridi. A expressão onLife, cunhada por Floridi (2015), refere-se a essa nova experiência de realidade hiperconectada na qual não faz mais sentido perguntar para determinado sujeito se ele está on-line ou off-line.

Conforme o documento, as tecnologias da informação e comunicação não são apenas ferramentas, são forças ambientais que estão afetando de modo crescente: a) quem nós somos; b) nossas interações/como socializamos; c) nossa concepção de realidade; d) nossas interações com a realidade. Além disso, os autores estão convencidos de que os impactos das tecnologias digitais na nossa vida acontecem devido a, pelo menos, quatro grandes transformações:

  1. a distinção difusa entre a realidade e a virtualidade;

  2. a distinção difusa entre humano, máquina e natureza;

  3. a mudança da informação escassa para informação abundante;

  4. a mudança da ênfase nas propriedades individuais e binárias, para a primazia das interações, processos e redes.

Concordamos, portanto, com Di Felice (2020, p. 15) quando ele afirma que “a ideia do humano, a ideia da técnica e a concepção de natureza, entendidas como realidade externa, produzidas ao longo dos últimos milênios e divulgadas e espalhadas pelo mundo inteiro, não são mais adequadas para compreender o mundo que habitamos”. Di Felice (2020) cunhou o termo infovíduo, para expressar essa nova condição do sujeito que habita esse mundo hipercomplexo e hiperconectado, composto por redes de dados biológicos e de dados digitais. O infovíduo “é um todo indissociável da pessoa física e da pessoa digital, a primeira orgânica, e a segunda composta pelo conjunto de dados on-line e pelos perfis digitais” (DI FELICE, 2020, p. 86). Assim, “os mundos que pensávamos como realidades separadas são hoje digitalmente conectados e inteligentes” (p. 27). Nesse contexto complexo e plural, agir significa conectar-se.

Portanto, as premissas válidas para a era analógica não são mais suficientes e adequadas para o cenário atual que se constitui a partir de arquiteturas digitais de interação em rede. As arquiteturas digitais em rede nos levam a experimentar novas práticas e novas formas de participação e, para isso, precisamos (entre outras coisas) de uma infoeducação (DI FELICE, 2020). Conforme o documento Manifesto pela Cidadania Digital, assinado por um grupo internacional de professores, pesquisadores e centros de pesquisa, o social não é mais composto apenas por humanos e os “infovíduos interagem a partir da conexão a dispositivos, plataformas e arquiteturas digitais que estendem a participação dos espaços físicos aos bits” (DI FELICE, 2020, p. 182). Nesse contexto, educar para a cidadania digital significa “desenvolver uma participação responsável, uma interação consciente, por meio da construção das habilidades de todos em um mundo cada vez mais conectado” (DI FELICE, 2020, p. 183).

Entretanto, como desenvolver experiências de aprendizagem na perspectiva de uma infoeducação considerando a participação dos sujeitos em espaços híbridos?

O conceito de espaço híbrido é diferente do chamado ensino híbrido. O conceito de ensino híbrido, que se desenvolve no contexto dos estudos sobre educação a distância inspirado no conceito de blended learning, é caracterizado como sendo o modelo que mistura o melhor dos dois mundos: presencial e a distância. O ensino híbrido é orientado por modelos pré-definidos, que guiam a proposição e a condução de práticas educativas, como modelo por rotação, modelo flex, e outros (BACICH et al., 2015; BACICH; MORAN, 2018). Por outro lado, chamamos de Educação Híbrida os processos de ensino e de aprendizagem que se constituem nesse acoplamento entre espaços geográficos e digitais, entre presença física e presença digital virtual, por meio da integração de tecnologias analógicas e digitais, explorando o conceito de espaço híbrido. É nesse contexto que se desenvolvem metodologias inventivas e práticas pedagógicas interativas e em rede (MOREIRA, SCHLEMMER, 2020).

Nessa perspectiva, falar em Educação Híbrida é muito mais do que pensar o uso das tecnologias de hardware e/ou software nos processos educativos. Envolve a proposição de metodologias e práticas pedagógicas inventivas, baseadas na co-construção do conhecimento em rede em contextos híbridos, na perspectiva de uma Educação Digital onLife (MOREIRA, SCHLEMMER, 2020). Nesta pesquisa, portanto, o híbrido é entendido enquanto espaço para práticas que integram experiências em contexto físico e digital, tendo como foco a relação corpo-tecnologia em realidades emergentes. Partimos da seguinte questão: quais arquiteturas digitais de interação emergem do entrelaçamento entre as tecnologias corpo-máquina e as realidades cíbridas?

Esse estudo1, de natureza qualitativa e exploratória, se apoia na revisão narrativa de literatura para mapear realidades emergentes que exploram a relação corpo-tecnologia em contexto cíbrido, a fim de propor um modelo teórico para analisar as arquiteturas digitais de interação que se constituem a partir dessa inter-relação, para balizar a proposição de metodologias e práticas pedagógicas na perspectiva de uma Educação Digital onLife. Para dar conta desse objetivo, primeiramente, apresentamos o conceito de Internet dos Corpos, destacando as diferentes possibilidades de interação corpo-tecnologia. Em seguida, introduzimos um estudo sobre os diferentes tipos de realidades que se constituem a partir da inter-relação entre espaços físicos e digitais. Por fim, apresentamos o percurso teórico que nos conduz a propor uma modelo para compreender as arquiteturas digitais de interação que emergem dessa articulação entre o físico e o digital.

A internet dos corpos (ou internet of bodies - IoB) no contexto da rede de todas as coisas (ou internet of everything)

Conforme Di Felice (2020), a internet social (web 2.0), a internet das coisas (internet of things, IoT) e a internet dos dados (big data) não são redes separadas, “de maneira análoga às arquiteturas ecossistêmicas, são partes integradas e interdependentes que compõem uma rede de redes chamada Internet of Everything, a rede de todas as coisas” (p. 33).

A arquitetura de participação da web 2.0, viabilizada por diferentes plataformas de interação (plataformas de redes sociais, ambientes de compartilhamento de conteúdo, entre outros), caracteriza a internet social.

A possibilidade de comunicação entre as coisas por meio de tecnologias digitais é o que fundamenta o conceito de internet das coisas (ou Internet of Things - IoT). Isso é possível por meio das tecnologias de computação ubíqua, que integram a mobilidade (computação móvel) com os sistemas de computação distribuídos no ambiente de forma (im)perceptível aos usuários (computação pervasiva) (BASSANI, 2019). Nesse caso, qualquer coisa (geladeira, aspirador de pó, carros, árvores, etc.) pode ser capaz de transmitir dados, de se comunicar com outras coisas e interagir conosco, criando um novo tipo de rede que integra humanos e não-humanos. Conforme Lemos (2013, p. 19), “mediadores não-humanos (objetos inteligentes, computadores, servidores, redes telemáticas, smartphones, sensores, etc.), nos fazem fazer (nós, humanos), muitas coisas, provocando mudanças em nosso comportamento no dia-a-dia”. Por outro lado, recursivamente, também mudamos os não-humanos, de acordo com a nossa necessidade.

A internet dos dados (big data) se constitui a partir da abundância de dados produzidos pelo fluxo informativo continuado nesse emaranhado de interações entre humanos-humanos, humanos e não-humanos e entre não-humanos e não-humanos. Conforme Di Felice (2020), a internet dos dados cria um terceiro tipo de rede, “composto por uma quantidade infinita de informações que, dadas as suas proporções, são gerenciadas por robôs e por sequências automatizadas” (p. 26).

Assim, a Internet of Everything, a rede de todas as coisas, altera a nossa condição habitativa produzindo um novo tipo de convivialidade conectada e ilimitada, estendida na espacialidade, criando essa condição híbrida onLife (DI FELICE, 2020).

Para além da internet social, da internet das coisas e da internet dos dados, gostaríamos de inserir uma quarta rede neste conjunto, a internet dos corpos (Internet of Bodies, IoB) (Figura 1), caracterizando a rede que se constitui entre os corpos humanos e os dados produzidos por meio de sensores.

Fonte: elaborado pela autora

Figura 1 Internet of Everything 

A IoB é composta por diferentes dispositivos associados de forma direta ao corpo físico. Esses dispositivos geram dados do corpo ao qual estão conectados e esses dados se integram ao conjunto de big data.

As tecnologias IoB incluem uma variedade de dispositivos com foco esportivo ou lifestyle usados sob a forma de vestíveis (wearables), como relógios, meias, sapatos, roupas, entre outros, que capturam diferentes dados de saúde e performance. Também existem sensores, que podem ser implantados ou, ainda, ingeridos. Todos esses dispositivos permitem o monitoramento, a análise e, inclusive, a modificação do corpo humano e do comportamento, transformando o corpo físico em uma plataforma de tecnologia (WORLD ECONOMIC FORUM, 2020, p. 7) e impulsionando a cultura biohacking, ou seja, hackear o próprio organismo, por meio de diferentes tecnologias.

Chamamos de self-tracking (auto-rastreamento) o processo de monitorar a performance individual (números de passos diários, calorias, horas de sono e muito mais!). Esses nossos dados, de natureza íntima e privada, são armazenados em bancos de dados de empresas e podem ser socializados de forma intencional, ou não (NEFF, NAFUS, 2016). Além dos dispositivos pessoais vestíveis, ainda poderíamos citar as tecnologias com base em biometria instaladas em espaços públicos e/ou privados, como reconhecimento facial, sensores para identificação de impressões digitais (fingerprints) ou ainda scanners de retina. Estes dispositivos focam na coleta e no processamento de dados de uma grande quantidade de pessoas.

As tecnologias IoB podem ser caracterizadas como invasivas ou não-invasivas/ pouco-invasivas. Tecnologias não-invasivas ou pouco-invasivas não interferem na estrutura ou em alguma função do corpo humano. Exemplos incluem os dispositivos vestíveis (wearables), que ficam na superfície do corpo e que podem ser utilizados para monitoramento médico (diabetes, temperatura, etc.), ou ainda dispositivos de uso geral, como relógios para monitoramento de atividades físicas (fitness trackers), óculos, luvas ou outros dispositivos para realidade virtual2.

Também podemos incluir nessa categoria os acessórios de moda. A Figura 2 mostra um bracelete que inibe/silencia a assistente pessoal Alexa.

Fonte: https://futurism.com/the-byte/cyberpunk-bracelet-jams-spying-microphones

Figura 2 Exemplo de tecnologia não invasiva 

Por outro lado, tecnologias invasivas envolvem sensores implantados sob a pele ou outros dispositivos que se tornam parte do corpo humano para fins médicos ou não. (WORLD ECONOMIC FORUM, 2020).

Tecnologias IoB não invasivas, como os dispositivos de realidade virtual e aumentada, podem ser utilizadas no contexto educativo para fomentar experiências imersivas em contextos cíbridos (ANDERS, 2002). A próxima seção apresenta as novas realidades potencializadas por essas tecnologias.

Mapeando realidades emergentes

A dicotomia (enganosa) entre o real e o virtual já foi abordada pelo filósofo francês Pierre Lévy no livro O que é virtual? (LEVY, 1996). Conforme Levy (1996), a palavra virtual vem do latim virtualis, que deriva de virtus e significa força, potência. Assim, virtual é o que existe em potência (não em ato).

A ideia da realidade virtual desponta “com o desenvolvimento de mundos artificiais formados por imagens de síntese” (LEMOS, 2007, p. 159). Assim, a realidade virtual potencializa vivências em realidades diferentes e alternativas, criadas artificialmente. Essas diferentes realidades podem simular o mundo físico ou criar espaços totalmente artificiais. Entretanto, a realidade virtual é apenas uma possibilidade. Existem diferentes tecnologias que simulam a realidade com possibilidades diferentes de imersão e presença.

O relatório produzido pelo FutureToday Institute 2021 - Tech Trends Volume 3 (2021) destaca várias realidades:

  1. VR - virtual reality - realidade virtual;

  2. AR - augmented reality - realidade aumentada;

  3. MR - mixed reality - realidade mista;

  4. XR - extended reality - realidade estendida;

  5. DR - diminished reality - realidade diminuída.

Experiências em realidade virtual e realidade aumentada são fundamentalmente diferentes. Na realidade virtual, o sujeito faz a imersão em um ambiente virtual, que pode emular o mundo real ou compor uma experiência gerada artificialmente. Por outro lado, a realidade aumentada faz alterações digitais ou adições de objetos no mundo físico. Nesse caso, o sujeito segue orientado/ancorado pelo/no mundo físico.

A realidade misturada ancora elementos virtuais a elementos correspondentes do mundo físico. O sujeito pode interagir com objetos ou superfícies. Nesse caso, não há uma imersão total no mundo físico nem no virtual e, por isso, cria um espaço efetivamente híbrido de imersão e interação.

A realidade estendida não é uma categoria específica, mas um termo amplo para dar conta desse continuum realidade-virtualidade.

Por fim, a realidade diminuída caracteriza-se por eliminar elementos do mundo físico, como elementos visuais (objetos), elementos sonoros (excluir algum tipo de som) ou elementos de outro tipo.

Essas diferentes realidades revelam uma nova condição habitativa, em que “toda a realidade se torna, assim, modificável, adquirindo uma pluralidade de versões que a transformam de uma forma objetiva e real em uma arquitetura possível e conectiva” (DI FELICE, 2020, p. 26).

Nessa perspectiva, quais arquiteturas digitais de interação se constituem a partir do entrelaçamento entre as tecnologias IoB e as novas realidades?

Em busca de um modelo teórico para analisar arquiteturas digitais de interação

Este estudo tem por objetivo mapear realidades emergentes que exploram a relação corpo-tecnologia em contexto cíbrido, a fim de propor um modelo teórico para analisar as arquiteturas digitais de interação que se constituem a partir dessa inter-relação, a fim de balizar a proposição de metodologias e práticas pedagógicas na perspectiva de uma Educação Digital onLife.

O percurso teórico apresentado até aqui permite delinear um possível caminho para desvelar arquiteturas que se constituem a partir do entrelaçamento entre as tecnologias IoB e as realidades digitais emergentes.

Primeiro, como a IoB se conecta com as demais redes da Internet of Everything?

As tecnologias IoB do tipo wearables (vestíveis) são caracterizadas como não-invasivas relógios. O uso desses dispositivos produz diferentes tipos de dados, que alimentam a Internet dos Dados (big data) e esses dados podem ser socializados por meio das redes (Internet Social). Além disso, os dispositivos podem se comunicar com outros dispositivos inteligentes (Internet das Coisas).

Assim, podemos entender que o uso de dispositivos IoB viabiliza processos de:

  1. aprodução de dados (big data);

  2. sociabilidade on-line (web 2.0);

  3. comunicação (IoT). e, portanto, podem ser usadas apenas para determinadas situações, como luvas, óculos ou

Considerando que o uso de dispositivos wearable conectados ao corpo físico (corpo-tecnologia) viabilizam processos de produção de dados, sociabilidade on-line e comunicação com outros dispositivos, podemos delinear uma segunda questão: Como esses processos emergem em diferentes realidades? Ou ainda, como a relação corpo-tecnologia se constitui em diferentes realidades?

Sabemos que as diferentes realidades se organizam em um continuum: de um lado, experiências ancoradas totalmente no mundo físico e, de outro, experiências totalmente ancoradas no mundo digital. Entre um e outro, diferentes níveis de imersão/mistura. Lemos (2013) apresenta o conceito espaço-rede para explicar esse novo tipo de espaço que emerge dessas experiências híbridas, um espaço que não é apenas um “reservatório onde estão as coisas” (p. 176), mas se “constitui no espaçamento (associações em movimento) entre objetos e lugares” (p. 177). Assim, o espaço se caracteriza como um espaço-rede “que se compõe pela dinâmica de circulação de ações entre lugares e coisas” (p. 177).

Essas experiências no espaço-rede podem acontecer de forma individual ou coletiva. Experiências coletivas de sociabilidade on-line podem ser classificadas/organizadas de formas diferentes, conforme o tamanho do grupo, envolvendo grupos pequenos ou grandes comunidades, como experiências compartilhadas em contexto de redes sociais. Entretanto, se tomarmos como base o conceito de actantes, termo base da Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour, a compreensão da questão individualidade-coletividade pode ser entendida de forma diferente. O conceito de actante refere-se a tudo aquilo que gera uma ação e, nesse caso, a ação pode ser gerada por humanos ou não-humanos, sem hierarquia. No contexto da TAR, não há fenômenos coletivos nem individualizados, uma vez que “a ação nunca é propriedade de um actante, mas de uma rede. A origem e a direção da ação nunca são facilmente identificadas” (LEMOS, 2013, p. 45).

Assim, o processo de comunicação não mais acontece apenas entre mediadores humanos, mas também entre não-humanos, sejam esses dispositivos inteligentes, conectados em redes ou algoritmos que processam dados de forma autônoma (IoT). Nessa perspectiva, experiências em diferentes realidades podem envolver comunicação entre o sujeito e outros sujeitos, entre o sujeito e diferentes objetos/entidades não-humanas e também entre objetos/ entidades não-humanas - todo objeto é social, uma vez que “ele comunica de alguma forma, troca e se associa (LEMOS, 2013, p. 254). A ação comunicacional deve ser analisada, colocando todos os actantes no mesmo espaço-rede (comunicação das coisas e entre as coisas). A Internet das Coisas “transformou a ecologia do social, introduzindo em seu interior entidades até então consideradas objetos inanimados e transformando-os em entidades comunicativas e interagentes” (DI FELICE, 2020, p. 25).

Por fim, nos cabe refletir sobre os dados produzidos no contexto das experiências em diferentes realidades e de que forma esses dados alteram a própria realidade (big data). Uma experiência pode ter sempre o mesmo ponto de partida e/ou chegada, mesmo que o percurso seja constituído por diferentes caminhos. Nesse caso, o sujeito transita por caminhos pré-definidos e, mesmo que cada sujeito percorra diferentes caminhos, a experiência leva sempre aos mesmos resultados pré-definidos. Por outro lado, podemos criar realidades que se modifiquem, a partir das interações/associações entre os actantes no espaço-rede. Esse movimento das associações é possível, por meio de algoritmos que aprendem, utilizando técnicas de inteligência artificial. Nesse caso, cada experiência (ou cada associação) é única!

Assim, destacamos quatro categorias que podem balizar a análise de arquiteturas digitais de interação considerando o entrelaçamento entre as tecnologias IoB e as realidades digitais emergentes: espaço-rede; actantes; processo sociocomunicacional; movimento das associações (Figura 3).

Fonte: elaborado pela autora

Figura 3 Categorias para análise de arquiteturas digitais de interação considerando o en trelaçamento corpo-tecnologia e novas realidades 

Considerações finais

O artigo partiu da seguinte questão: Quais arquiteturas digitais de interação emergem do entrelaçamento entre as tecnologias corpo-máquina e as realidades cíbridas? O percurso teórico apresentado nos levou a identificar quatro categorias inter-relacionadas que podem balizar a proposição de experiências de aprendizagem em contextos educativos, explorando o uso de dispositivos conectados ao corpo (IoB) articulados a experiências em diferentes realidades. A articulação entre as categorias (espaço-rede, actantes, processo sociocomunicacional, movimento das associações) potencializa diferentes arquiteturas digitais de interação. O espaço-rede se constitui nas associações entre objetos e lugares, que variam em um continuum realidade-virtualidade (em algumas situações podem estar mais próximos do mundo físico e, em outras, totalmente virtual). O papel dos actantes também varia conforme o contexto - toda a ação pode ser gerada por humanos ou não-humanos - e, portanto, o processo sociocomunicacional entre os actantes no espaço-rede pode gerar novas realidades, a partir do movimento dessas associações.

Sabemos que a cultura digital tem promovido mudanças sociais significativas nas sociedades contemporâneas, mas ainda enfrentamos o desafio de articular a cultura digital na escola sob a perspectiva de uma Educação Digital onLife. Assim, este estudo busca contribuir com o processo de (re)pensar as tecnologias digitais em rede na escola tendo como base um modelo teórico para orientar a proposição de experiências de aprendizagem imersivas, considerando as tecnologias IoB não invasivas que permitem vivências em múltiplas realidades, por meio da ampliação dos sentidos. Cada uma das categorias permite diferentes modulações gerando, como resultado, inúmeros cenários de imersão e conexão. Cada um dos possíveis cenários desvela diferentes formas de convivialidade entre actantes humanos e não-humanos, diferentes movimentos de associações e, portanto, diferentes condições de habitar o espaço-rede.

Habitamos, enquanto infovíduos, um mundo onde agir significa conectar e toda a realidade pode ser modificada - as nossas escolhas resultam de interações complexas entre entidades de naturezas diferentes. O mundo que habitamos é “um conjunto complexo e inseparável de mundos e combinações informativas e materiais ao mesmo tempo. Um infomundo. Uma rede de redes” (DI FELICE, 2020, p. 27).

Referências

ANDERS, Peter. Towards an architecture of mind. 2002. Disponível em:< https://www.uoc.edu/caiia-star-2001/eng/articles/anders0302/anders0302.html> [ Links ]

BACICH, Lilian; TANZI NETO, Adolfo; TREVISANI, Fernando de Mello. Ensino Híbrido: Personalização e Tecnologia na Educação. Porto Alegre: Penso, 2015. [ Links ]

BACICH, L.; MORAN, J. (ORG.). Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso , 2018. [ Links ]

BASSANI, Patrícia Scherer. Realidade aumentada na escola: experiências de aprendizagem em espaços híbridos. Revista Diálogo Educacional, v. 19, p. 1174-1198, 2019. Disponível em: < https://periodicos. pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/25419/23694> [ Links ]

DI FELICE, Massimo. A cidadania digital. São Paulo: Paulus, 2020. [ Links ]

FLORIDI, Luciano (ed.). The Onlife Manifesto: being human in a hypeconnected era. Springer Cham, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-319-04093-6 [ Links ]

FUTURE TODAY INSTITUTE 2021. Tech Trends Volume 3. Disponível em: https://www.dropbox.com/ s/3esdwureqa5458f/FTI_2021_Tech_Trends_Volume_3_NewRealities_SynthMedia.pdf?dl=0 [ Links ]

GIBSON, W. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008. [ Links ]

LEMOS, A. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2007. [ Links ]

LEMOS, André. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. SP: Annablume, 2013. [ Links ]

LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. [ Links ]

MOREIRA, J. A. ; SCHLEMMER, E. Por um novo conceito e paradigma de educação digital onlife. Revista UFG, [S. l.], v. 20, n. 26, 2020. DOI: 10.5216/revufg.v20.63438. Disponível em: https://www.revistas.ufg. br/revistaufg/article/view/63438. Acesso em: 29 ago. 2021. [ Links ]

NEFF, Gina; NAFUS, Dawn. The self-tracking. Cambridge: Mit Press, 2016. [ Links ]

SANTAELLA, L. A ecologia pluralista das mídias locativas. Revista FAMECOS. Porto Alegre, no 37. 2008. [ Links ]

WORLD ECONOMIC FORUM. Shaping the future of the Internet of Bodies: new challenges of technology governance. 2020. Disponível em: < https://www.weforum.org/reports/the-internet-of-bodies-is-here-tackling-new-challenges-of-technology-governance > [ Links ]

1Este estudo se articula ao projeto de pesquisa O museu como espaço de aprendizagem: experiências de aprendizagem inventivas, interativas e híbridas no contexto da cultura digital, desenvolvido na Universidade Feevale. Agradecemos o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS.

2Para mais exemplos sobre dispositivos de realidade aumentada e realidade virtual ver: a) https://pbassani.medium.com/e-se-a-realidade-virtual-virar-a-reali-dade-real-conceitos-b%C3%A1sicos-parte-1-3-a5a7d85d2d3f ; b) https://pbassani. medium.com/e-se-a-realidade-virtual-virar-a-realidade-real-conceitos-b%C3%A1sicos-parte-2-3-8298649acf7c; c) https://pbassani.medium.com/e-se-a-realidade-virtual-vi-rar-a-realidade-real-exemplos-do-cotidiano-parte-3-3-9ee8a45c14e

Recebido: 29 de Agosto de 2021; Aceito: 08 de Novembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons