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Contrapontos

versión On-line ISSN 1984-7114

Contrapontos vol.22 no.2 Florianopolis ago./dic 2022  Epub 12-Dic-2022

https://doi.org/10.14210/contrapontos.v22n2.p89-107 

Artigos

FORMAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA NO ENSINO FUNDAMENTAL: COMPREENSÕES E IMPLICAÇÕES AO FAZER DOCENTE

ETHICAL & AESTHETIC FORMATION IN ELEMENTARY EDUCATION: UNDERSTANDINGS AND IMPLICATIONS FOR TEACHER’S ACTIONS

LA FORMACIÓN ÉTICO-ESTÉTICA EN LA EDUCACIÓN PRIMARIA: COMPRENSIÓN E IMPLICACIONES PARA LA ENSEÑANZA

Ana Paula Oliveira da Silva1 

Cledes Antonio Casagrande2 
http://orcid.org/0000-0003-1499-1661

Clóvis Trezzi2 
http://orcid.org/0000-0002-5682-6579

1Colégio La Salle São João, Porto Alegre, RS, Brasil.

2Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil.


Resumo:

Este artigo, aborda a compreensão de um grupo de educadores sobre a formação ético-estética na escola. Seu objetivo consiste em analisar como os professores da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, de um Colégio de Porto Alegre, RS, compreendem a formação ético-estética dos seus estudantes e quais as possíveis implicações dessa compreensão para o próprio fazer docente. O referencial teórico orienta-se na discussão dos conceitos de educação, ética e estética. A interpretação dos dados seguiu a técnica da análise de conteúdo e os resultados da pesquisa foram categorizados em quatro eixos temáticos: educação como formação integral para o bem viver; formação ética e bem comum; percepção estética e imaginação criadora; práticas pedagógicas e formação ético-estética. A pesquisa evidencia que a formação ético-estética é objeto de reflexão e ação dos educadores, porém existe um hiato entre a concepção teórica, o planejamento e a prática pedagógica.

Palavras-chave: Práticas pedagógicas; Ética; Estética

Abstract:

This paper addresses the understanding of a group of educators about ethical-aesthetic formation in the school. Its objective is to analyze how early childhood and elementary school teachers of a school in Porto Alegre, in the Brazilian state of Rio Grande do Sul, understand the ethical-aesthetic education of their students, and the possible implications of this understanding. The theoretical framework was based on the concepts of education, ethics, and aesthetics. The technique of content analysis was used to interpret the data, and the research results were categorized into four thematic axes: education as integral formation for well-being; ethical formation and the common good; aesthetic perception and creative imagination; and pedagogical practices and ethical-aesthetic formation. The research shows that ethical-aesthetic formation is the subject of reflection and action by educators, but there is a gap between theoretical conception, planning and pedagogical practice.

Keywords: Pedagogical practices; Ethics; Aesthetics

Resumen:

Este artículo aborda la comprensión de un grupo de educadores acerca de la formación ético-estética en la escuela. Su objetivo es analizar cómo los docentes de Educación Infantil y Primeros Años de Educación Primaria, de un colegio de Porto Alegre, RS, entienden la formación ético-estética de los estudiantes, y cuáles son las posibles implicaciones de esta comprensión. El marco teórico se basó en la discusión de los conceptos de educación, ética y estética. La interpretación de los datos siguió la técnica del análisis de contenido, y se categorizaron en cuatro ejes temáticos: la educación como formación integral para el buen vivir; formación ética y bien común; percepción estética e imaginación creativa; prácticas pedagógicas y formación ético-estética. La investigación retrata que la formación ético-estética es objeto de reflexión y acción por parte de los educadores, pero existe una brecha entre la concepción teórica, la planificación y la práctica pedagógica.

Palabras clave: Prácticas pedagógicas; Ética; Estética

Introdução

“É pela beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER,1992, p. 39).

O presente artigo, derivado de pesquisas no campo da educação, tematiza a relação entre educação, ética e estética no cotidiano da escola. O objetivo do artigo consiste em analisar como os professores da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, de um Colégio de Porto Alegre, RS, compreendem a formação ético-estética dos seus estudantes e quais as possíveis implicações dessa compreensão para o próprio fazer docente.

A discussão que será apresentada fundamenta-se na compreensão de que a formação ético-estética dos estudantes, especialmente no período da Educação Básica, é fundamental para o desenvolvimento da empatia, da solidariedade, da liberdade e do respeito pelo outro, bem como da possibilidade de uma vida boa em sociedade. Expresso em outros termos, defende-se aqui que a escola também possui a tarefa e o desafio de proporcionar aos estudantes processos formativos que não se limitem às dimensões intelectuais e técnicas, mas incluam experiências que auxiliem na formação ético-estética, com vistas à liberdade, à autonomia e à vida digna em sociedade.

No entanto, Hermann (2020) argumenta que há uma tendência de abandono das emoções, dos sentimentos e do corpóreo na cultura e nos processos formativos. A autora reafirma a necessidade de “introduzir a estética numa relação de complementaridade com a ética” (HERMANN, 2018, p. 10), originando uma espécie de formação ético-estética, isso porque “um mero intelectualismo restrito às justificações de princípios e uma ética incorpórea e abstrata não são suficientes para compreender o agir e orientar de forma adequada nossas decisões” (HERMANN, 2018, p. 10).

Segundo Casagrande, Meurer e Casagrande (2015), o tema da formação ético-estética é, muitas vezes, esquecido no âmbito das ações pedagógicas das escolas de Educação Básica brasileiras. No entanto, considera-se, nesta pesquisa, que ele é relevante, necessário e atual porque remete a uma classe de conhecimentos e de competências necessários à formação das novas gerações, os quais dizem respeito ao viver em comunidade, ao bem viver e à capacidade de posicionar-se com autonomia diante dos desafios da vida quotidiana, do diferente, do plural e da novidade (HERMANN, 2005; 2010; 2014).

Este artigo contempla os resultados de uma pesquisa em uma instituição educacional confessional e filantrópica de Porto Alegre. Os trinta e três docentes participantes atuavam em dois níveis de ensino: Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A coleta de dados foi realizada através de aplicação de questionário, o qual foi disponibilizado aos educadores de modo online, via Google Forms. A Direção do Colégio anuiu, formalmente, com a pesquisa e todos os professores participantes assinaram o Termo de Livre Consentimento Esclarecido, conforme protocolo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa1.

A análise dos dados coletados seguiu a técnica de análise de conteúdo, como propõe Bardin (2011). A construção das categorias de análise foi consequência do processo de interpretação das respostas dos questionários, que envolveu a leitura de todo o material disponível e a análise de trechos dos questionários, os quais foram agrupados por critérios de semelhança. A leitura desses trechos, associados aos objetivos e ao referencial teórico, permitiram a elaboração de sínteses explicativas, que denominamos de categorias (MORAES; RAMOS; GALIAZZI, 2002).

Para melhor organizar a discussão aqui proposta, o artigo está dividido em três partes. A primeira apresenta o referencial teórico, que contém algumas aproximações teóricas possíveis entre educação, ética e estética, a partir da contribuição de autores de referência no tema investigado. A segunda parte é constituída pelos achados da pesquisa, sessão na qual são apresentados e discutidos os dados oriundos do questionário. A última parte apresenta, no formato de considerações finais, algumas possíveis implicações e decorrências educacionais da formação ético-estética.

Leituras e aproximações possíveis entre educação, ética e estética

“Assim, a ‘bela alma’ harmoniza eticidade e razão, obrigação e inclinação e eleva o caráter do homem” (HERMANN, 2005, p. 67).

Pensar a educação no contexto brasileiro requer reflexão ampla, tanto do ponto de vista teórico quanto das articulações práticas. Entre os aspectos a serem considerados, podem-se citar os processos de formação dos sujeitos, as modificações da vida sociocultural, o advento de novas tecnologias, os problemas sociais - como os relacionados à pandemia do Covid-19 e aos tensionamentos da democracia - bem como a efetividade dos processos de ensino-aprendizagem. Além disso, importa pensar sobre os diversos atores da educação, especialmente os educandos e os educadores. Freire (2003, p. 23) percebeu e destacou a importância das relações estabelecidas no ambiente escolar e a fundamental correlação entre educador-educando ao afirmar que “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro”.

Educar implica mais do que ensinar a ler, a escrever ou a calcular, pois “a educação éum triplo processo de humanização, socialização e entrada numa cultura, singularização-subjetivação. Educa-se um ser humano, o membro de uma sociedade e de uma cultura, um sujeito singular” (CHARLOT, 2006, p. 15). Disso decorre que a tarefa e o conceito de educar superam o de ensinar e alinham-se ao sentido histórico do conceito de formação, cujos vestígios podem ser correlacionados, por exemplo, aos da Paideia grega e da Bildung iluminista2.

De modo geral, a educação acompanha o processo civilizatório e cultural da humanidade, sendo compreendida como processo contínuo e o conjunto de ações teórico-práticas que corroboram para a formação das novas gerações. Formar as gerações mais jovens tem se mostrado uma tarefa de primeira importância para as sociedades, especialmente a partir do período do Renascimento, visto que “o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação” (KANT, 2004, p. 15).

Todo ato formativo inclui e pressupõe o exercício de esclarecer o modo como a educação se realiza nas diversas situações sócio-históricas em dois planos: o da socialização e o da subjetivação. Importa destacar que a subjetivação pressupõe a socialização (MEAD, 1967), pois “[...] a individuação só épossível pela via da socialização” (HABERMAS, 2012a, p. 672).

No primeiro plano, podemos afirmar que a educação, em seu formato escolar, sistemático e intencional - que a caracteriza desde a Modernidade - foi se tornando, com o passar do tempo, uma ação social planejada e direcionada à formação dos novos membros da sociedade, migrando do domínio exclusivamente familiar, na Antiguidade, ao do Estado, com o avanço da Modernidade. Nesse período, ela assume o caráter de uma ação executada externamente sobre um sujeito, que está em processo de desenvolvimento e de inserção social, na qualidade de um novo membro da comunidade. A educação pode, assim, ser caracterizada como uma ação intencional realizada pelos que antecedem na vida social os novos aprendizes. Por meio dela, os mais velhos demonstram o cuidado, a responsabilidade e a preocupação com os novos (ARENDT, 2005) e, ao mesmo tempo, garantem a continuidade do modo de vida, dos valores e das tradições da comunidade. Seguindo essa mesma argumentação, Durkheim (1978, p. 41) define a educação como uma

[...] ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social: tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine.

A socialização deve ser entendida, por isso, como um processo evolutivo da condição social da criança. Manifesta-se, assim, a necessidade de compreender não como a criança se socializa, mas os modos pelos quais a sociedade socializa a criança. Por isso, é necessário atenção à intencionalidade da ação educacional, especialmente ao que é estabelecido e organizado pela comunidade como referencial do processo formativo, por meio das diretrizes e políticas educacionais. Nesse cenário, a escola pode desempenhar função importante na integração social, na formação para o exercício da cidadania e na participação democrática.

A escola é o mais importante instrumento de que dispõe uma comunidade se ela realmente quiser dotar seus jovens das aptidões cognitivas e morais necessárias para o exercício esclarecido da cidadania. Um cidadão atuante é um indivíduo capaz de enfrentar com racionalidade os problemas sociais, de levar em consideração todos os valores em jogo e de ser capaz de reconstruir essa situação problemática transcendendo a ordem específica da sociedade em que vive (SILVA, 2009, p. 197).

No outro plano, o da subjetivação, o conceito de educação alinha-se aos de individuação, de humanização e de formação da identidade pessoal, visto que “mediante a educação, enquanto processo amplo de formação, o ser humano humaniza-se, constitui-se a si mesmo, ao mesmo tempo em que se socializa” (CASAGRANDE; MEURER; CASAGRANDE, 2015, p. 46). Por meio de processos formativos e aprendizagens contínuas, o sujeito se constrói e se reconstrói na relação com o outro, com a cultura, a sociedade e o mundo. O processo de subjetivação é fundamental para o desenvolvimento da identidade pessoal e para a estabilização de um saber de si mesmo. Neste sentido, Habermas compreende “a personalidade como o conjunto de competências que tornam um sujeito capaz de fala e de ação” (HABERMAS, 2012b, p. 253), habilitando-o a viver em comunidade.

A formação da personalidade somente é possível por meio da inserção dos sujeitos em uma cultura e em uma comunidade concreta. Nessa relação, se dá a apropriação do saber científico e cultural estabelecido historicamente. Ademais, no pertencimento a uma comunidade, por meio da convivência social com os outros, se viabiliza o desenvolvimento de atitudes pró-sociais, como a responsabilidade e a solidariedade, que geram coesão social (CASAGRANDE; BOUFLEUER, 2018). Consoante a Habermas (2003), podemos compreender que cultura, sociedade e personalidade são mutuamente dependentes. A subjetivação e a formação da personalidade requerem, ainda, aprendizagem contínua, descentração do eu e progressão nos estágios do desenvolvimento do julgamento moral e da capacidade de autoentendimento.

No processo formativo, a aprendizagem é uma tarefa fundamental. Marques (2000) entende a aprendizagem não como mera adaptação ao que existe ou um simples acréscimo de conhecimentos e habilidades, mas como reconstrução autotranscendente do ser humano, pois “[...] a aprendizagem é esse entrelaçamento da personalidade de cada um e do mundo sociocultural” (MARQUES, 2000, p. 29). É nisso que se funda a importância dos processos qualitativos que geram aprendizagens, especialmente aqueles relacionados ao reconhecimento do outro, à contextualização dos códigos culturais, à capacidade de entender e resolver os problemas reais da vida, de comunicar-se e compreender-se, de decidir e agir com prudência, bem como a capacidade de viver em comunidade.

Por isso, a educação, compreendida em seu sentido amplo de formação do ser humano, necessita contribuir, efetivamente, para a inserção dos novos sujeitos na sociedade. É importante destacar que o processo de complexificação das sociedades atuais, aliado aos evidentes questionamentos dos valores democráticos e liberais, os quais têm guiado a sociedade ocidental nos últimos séculos, fomenta nos indivíduos conflitos e incertezas acerca do que é bom, belo, justo e verdadeiro.

O cenário do início do atual milênio apontou para novas formas de organização social, novos modos de compreensão do humano e diferentes arranjos de vida em comunidade. Ao mesmo tempo, emerge um processo de crítica à fundamentação racional do agir, o que enseja tensionamento entre pluralidade e relativismo, especialmente no campo da moral (HERMANN, 2001). Os últimos anos do século XX marcaram, também, a emergência do processo de estetização profunda, que, aos poucos, desloca-se do mundo objetivo ao subjetivo, impactando as formas de vida e de autorrealização (WELSCH, 1995). Tensionam-se, igualmente, os arranjos identitários dos diversos sujeitos sociais, que já não mais são capazes de decidir o tipo de identidade pessoal que lhes acompanhará a vida toda (NUNNER-WINKLER, 2011), pois vivem em um cenário altamente complexo, marcado pela pluralidade cultural, relativismo prático, estetização profunda e emergência de discursos de pós-verdade (MCINTYRE, 2018), que impactam os ideais democráticos da vida em comunidade.

Por isso, entendemos que, no domínio da educação escolar, as dimensões da ética e da estética devem estar sempre presentes enquanto ideais e conteúdos formativos. Se a educação é também um processo constitutivo do ‘si mesmo’, então as dimensões e as experiências ético-estéticas desempenham papel importante na formação dos sujeitos, especialmente no confronto pessoal de cada um com a herança cultural e social que recebe. Vale também destacar que a educação envolve processo emancipatório e de construção da autonomia a partir do qual cada ser humano precisa assumir o lugar de quem se reconhece pelas experiências vivenciadas e por meio da história pessoal que construiu, sendo capaz de decidir sobre o seu próprio agir e o modo de vida que deseja levar (HABERMAS, 2002). Por isso, educar pressupõe formar os sujeitos para que estejam aptos a viver, conviver, decidir e usufruir o complexo de experiências da vida humana em sociedade. Educar, portanto, não é uma tarefa que se reduz à formação do intelecto, pressupondo e incluindo a formação ampla do indivíduo, o que necessariamente leva-nos a considerar as dimensões da ética e da estética na vida.

A dinâmica do mundo contemporâneo, no qual as mudanças e as decisões sobre o modo de vida e os valores escolhidos se tornam mais complexos quanto mais complexas são as relações, demonstra que a reflexão sobre a dimensão ética da formação é fundamental. Ademais, pensar a ética, os códigos de convivência e os modos de relacionamento interpessoal permite questionamentos sobre os princípios do sistema moral estabelecido pela sociedade e a própria ideia do que é ser um ser humano em cada contexto específico. Dada sua importância para a vida em comunidade, entendemos que essa classe de reflexão e de competência necessita ser objeto de formação escolar.

No horizonte da pesquisa que realizamos, compreendemos o conceito de ética como uma capacidade de “deliberação prudente, uma habilidade particular da razão prática que guia as ações humanas - a phronesis, a excelência da sabedoria prática” (HERMANN, 2010, p. 68). A ética relaciona-se à virtude da prática do bem, emergindo, nas relações com os outros, na forma de prudência (phronesis), uma espécie de sabedoria prática ou a capacidade de discernimento e deliberação moral ante ações e ideais conflitivos (ARISTÓTELES, 2007). Essa classe de saber prático e de boa deliberação, no viés aristotélico, é condição do bem viver e da felicidade dos seres humanos no âmbito coletivo. Desse modo, podemos dizer que no horizonte de uma ação ética está sempre o reconhecimento do outro e da comunidade, bem como a capacidade de bem deliberar.

O termo estética, derivado do grego aisthesis, refere-se à faculdade e ao ato de sentir, “aquele que nota, que percebe” (HERMANN, 2010). Esse termo, na Filosofia, está historicamente atrelado à arte e ao belo, ao conhecimento sensível e à percepção pelos sentidos (BAUMGARTEN, 1993). Por meio da dimensão estética, abre-se a possibilidade de contato com o mundo e com os outros por uma via diferente da razão, o que expande as possibilidades de (re)conhecer o outro, as diferenças e a pluralidade do mundo.

Schiller (1992) foi um dos primeiros a discutir o potencial da dimensão estética no processo formativo. Ele identificou limites na razão prática e na razão teórica, pois ambas não dão conta de unificar a natureza humana, cindida pela contraposição entre o impulso sensível e o impulso racional. Somente o impulso lúdico, advindo da estética, pode equilibrar a relação entre a razão e a sensibilidade, uma vez que “é pela beleza que se vai à liberdade” (1992, p. 39 [carta II]). Na perspectiva apontada por Schiller, o equilíbrio e a harmonia advêm da sensibilidade, ou pela via estética, não pela via racional. Seguindo essa mesma argumentação, Hermann (2005, p. 67) afirma:

A ação moral, portanto, não se orienta exclusivamente pela razão. Ao contrário, o ideal ético se realiza na ‘bela alma’ (Schöne Seele) que, incitada pelos sentimentos, a leva ao cumprimento dos mais altos deveres. Assim, a ‘bela alma’ (Schöne Seele) harmoniza eticidade e razão, obrigação e inclinação e eleva o caráter do homem”.

A experiência estética da existência humana alicerça-se, sobretudo, na sensibilidade e nos sentidos. Nesta perspectiva, a estética, valorizando o corpo, a afetividade e o prazer, estimula a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, elementos essenciais para nosso existir diante da incerteza, do imprevisível e do diferente. Auxilia os sujeitos a reconhecerem e a valorizarem a diversidade e a pluralidade. Ademais, a experiência estética aduz à vida humana elementos de inovação, da diferença e da pluralidade, os quais não podem ser desconsiderados no plano da interpretação e da problematização do agir moral, visto que o agir ético e a prudência moral somente podem ser fruto da liberdade, o que necessariamente implica considerar o plural, do diferente e o múltiplo. Sobre esse tema, Silva (2015) afirma que

A experiência estética nos arrebata do habitual, suspende as nossas certezas, retira-nos de uma normalidade que paralisa nossa capacidade de autocriação e reivindica a necessária ampliação de uma compreensão ética que não percorra uma via estritamente racional nos processos formativos, uma maneira de buscar outros caminhos de ação para o juízo moral (SILVA, 2015, p. 04).

A dimensão estética da vida auxilia-nos na percepção de novas possibilidades para compreender os modos de subjetivação, uma vez que valoriza a experiência sensível e o acesso ao ato de sentir. Ela pode oferecer um renovado sentido à existência, o que nos remete a uma experiência formativa e emancipadora que provoca a reflexão, a abertura de sentido, o acesso ao novo e o desenvolvimento da sensibilidade.

Hermann (2010) aproxima e unifica ética e estética quando compreendidas como dimensões formativas do ser humano. Para essa autora,

Uma educação ético-estética apoiada em estratégias da arte de viver, como atenção aos casos particulares, às emoções e à sabedoria prática pode [...] esclarecer a relação recíproca entre o universal e o particular; evita uma orientação puramente abstrata, sem abandonar princípios universais, pois a educação pressupõe um processo de inserção num mundo compartilhado de valores e crenças, sem o qual qualquer dialética entre individualização e socialização estaria condenada ao fracasso; e atua como limite a uma estética de si mesmo que, centrada apenas em critérios individuais, pode estimular a indiferença, o egoísmo e a frivolidade (HERMANN, 2010, p. 104).

Ao assumirmos a necessidade de compreender os processos formativos no horizonte de uma educação ético-estética, como processos inventivos de si mesmo, como arte de viver, construção da liberdade e da autonomia, sem desconsiderar as dialéticas indivíduo e sociedade, universal e particular, bem como socialização e individuação, vemos emergir uma real possibilidade de que a educação contribua efetivamente para a formação da sensibilidade, do gosto, da capacidade de julgar e da constituição de subjetividades abertas ao novo e à pluralidade do mundo atual. Desse modo, podemos aprender outros modos de existir e conviver, participar e responsabilizar-se pelo bem coletivo. Eis o desafio que se apresenta quando nos deparamos com a aprendizagem no horizonte da formação e da criação de nós mesmos, enquanto arte de viver no horizonte de uma comunidade humana.

Reflexões possíveis acerca dos resultados da pesquisa

Passamos a apresentar e discutir, agora, alguns dados já coletados na pesquisa. Ressaltamos que o objetivo, aqui, é analisar como os professores da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, de um Colégio de Porto Alegre, RS, compreendem a formação ético-estética dos seus estudantes e quais as possíveis implicações dessa compreensão para o próprio fazer docente.

As respostas dos educadores, oriundas do questionário, foram analisadas e interpretadas a partir da técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Após a leitura e análise das respostas, com atenção à compreensão que os educadores possuem do tema da formação ético-estética, agrupamos os resultados em quatro categorias, a saber: Educação como formação integral para o bem viver; Formação ética e bem comum; Percepção estética e imaginação criadora; Práticas pedagógicas e formação estética. Na sequência, vamos abordar cada uma delas, buscando interpretar os sentidos e o possível alcance delas no campo educativo. Ressaltamos que escolhemos e relatamos aqui apenas algumas frases significativas do rol de respostas recebidas, especialmente aquelas que, no nosso entender, melhor retratam a compreensão dos educadores sobre o tema abordado. Além disso, apresentaremos algumas implicações ou desafios que emergiram da pesquisa realizada.

Educação como formação integral para o bem viver

No conjunto de respostas coletadas, percebemos que os docentes enfatizaram a importância de uma visão mais diversificada e ampla sobre o conceito de educação. Educar difere de ensinar e alinha-se ao conceito de formação, um processo vital que engloba experiências, aprendizagens e criação de algo novo, um novo sujeito, uma nova cultura e uma nova sociedade (ARENDT, 2005; HERMANN, 2014; MARQUES, 2000). Este excerto retrata essa percepção:

Educar é mais do que ensinar. É possibilitar meios e experiências significativas que façam com que o educando possa apropriar-se de uma nova visão referente aos assuntos apresentados. Educar implica trazer novos conhecimentos para que o aluno tenha a possibilidade de fazer as suas escolhas para a vida (DOCENTE 02).

Por meio de processos de ensino e de aprendizagem, o educando é desafiado a desenvolver-se como pessoa, estabelecendo sentido de vida e relações de respeito com os outros. O desenvolvimento de valores e de competências como a solidariedade, o diálogo e a vida em comunidade também são conteúdos de primeira ordem para a educação. Por isso, o ensino e a aprendizagem dos conteúdos curriculares, oriundos da cultura e das diversas ciências, precisa dar-se junto com o desenvolvimento de habilidades e competências humanas.

Pensar a educação implica, também, ponderar a formação do sujeito na sua inserção no âmbito da comunidade humana, das relações sociais e culturais, o que nos leva a considerar a dinâmica intersubjetiva dos processos educacionais (CASAGRANDE; HERMANN, 2020). Nesse sentido, destacamos a seguinte afirmação:

Além de aprender conteúdos significativos para o seu crescimento cognitivo, a criança que estuda no Colégio [...] aprende valores importantes para a vida, como amizade, partilha, solidariedade... que são fundamentais para uma vida em sociedade (DOCENTE 13).

A pesquisa retrata a percepção de que, para o ato de educar, é necessário considerar a alteridade, a intersubjetividade, o espaço da convivência e a interação. Pensar em alteridade implica ser capaz de entender o outro em sua dignidade, seus direitos e, sobretudo, na sua diferença (HERMANN, 2001; 2008). A educação é sempre um empreendimento coletivo, por isso pressupõe a existência e a consideração do outro e da comunidade humana. A compreensão de que não há educação sem o outro, também está presente na fala da docente 05,

[...] educar é um ato de troca constantemente. É compartilhar conhecimentos, experiências e vivências. Fazer uma reflexão constante, ser mediadora e modelo que instiga teu aluno a querer buscar cada vez mais conteúdos e informações de maneira a dar-se conta do quanto aprender se faz necessário para o seu dia a dia. Não só nos conteúdos propriamente ditos, mas na socialização e na busca de valores (DOCENTE 05).

Um elemento presente nas falas dos educadores é a educação integral e a formação para o bem viver como relevantes para o desenvolvimento dos estudantes, especialmente quando se pressupõe que a educação precisa formar criticamente para o diálogo, a interação, a abertura ao outro e o bem viver, características essas já presentes nos escritos pedagógicos de João Batista de La Salle (LA SALLE, 2012), que inspiram o ideal educativo presente no colégio, lócus da pesquisa.

De modo geral, os excertos apresentados remetem a uma concepção de educação como formação integral para um bem viver, como um contínuo processo de inserção das novas gerações na cultura, na sociedade e no mundo. Para isso, na educação das crianças, aos conteúdos curriculares devem somar-se o desenvolvimento de um rol de capacidades, especialmente aquelas relacionadas à sociabilidade, à ética, ao respeito à diferença e à convivência em comunidade.

Formação ética e o bem comum

Uma das questões tinha como foco a compreensão dos educadores acerca do papel da formação ética na escola. A análise das respostas mostra que a maioria dos docentes reconhece a sua importância relacionando-a à busca do bem viver, à pactuação de regras para a convivência social e à possibilidade de que os alunos aprendam a realizar escolhas adequadas em suas vidas.

Os educadores entendem que também é papel da escola a formação de competências relacionadas à convivência, à interação e ao seguimento de códigos de conduta. Neste sentido, nas contribuições dos professores, dois elementos emergiram interconectados: por um lado, a necessidade de ensinar e de aprender códigos de comportamentos, formas de estar e viver em sociedade; por outro, a concepção de ética como um modo de cada um estar no mundo, de constituição de si mesmo e de ser e conviver com os demais, visando alcançar um ideal de vida boa. Como exemplo, citamos a resposta do Docente 03: “[..] a ética faz parte de uma educação que nos orienta para o bem viver e nos guia para uma identidade pessoal sendo fundamental para a formação integral da pessoa”.

Outra afirmação ajuda a compreender melhor essa compreensão: “[...] a formação ética se relaciona aos limites morais de forma que possibilite uma convivência desejável e equilibrada socialmente” (DOCENTE 22). Embora essa afirmação se refira à ética numa perspectiva de conhecer os limites socialmente aceitos do comportamento humano, a segunda parte da resposta remete a um ‘saber viver’, que pode ser relacionado à pluralidade, enquanto escolhas, decisões, modos de vida e encontro como outro (HERMANN, 2017).

Neste grupo de respostas, transparece a ideia de que a formação ética correlaciona-se com a educação para o ‘bem viver’ em uma comunidade humana concreta. Há referências à formação para valores desejáveis socialmente e para habilitar o educando a realizar escolhas de vida, como afirma o Docente 04: “A ética está ligada à humanização nas relações, um aluno com cognição/emoções e desejos, alguém capaz de se relacionar com a sociedade de forma responsável e amorosa, comprometida”.

Os excertos de respostas dos docentes aqui apresentados corroboram com a noção de que a educação escolar implica aprender, além dos conteúdos cognitivos, habilidades e competências interativas e sociais, como as ético-estéticas, que auxiliam as crianças a desenvolver a capacidade de melhor viver e conviver em comunidade. Por isso, as práticas pedagógicas escolares não podem se furtar à tarefa de tematizar as questões morais que atravessam a vida da sociedade, especialmente ao possibilitar que as crianças vivenciem um ambiente de pluralidade de ideias, de acolhida do diferente e de conciliação acerca do melhor modo de viver em conjunto.

Percepção estética e imaginação criadora

Em relação à formação estética na escola, os educadores associaram sua importância à necessária formação da imaginação, da liberdade, da sensibilidade e da percepção do belo, como podemos constatar na seguinte afirmação:

Já o conhecimento estético aguça a imaginação, por uma estética que não exclua, que não discrimine e não oprima, que estimule a crítica e a mudança; que permita aos sujeitos expressarem, com liberdade, os pensamentos, os anseios, os desejos e os medos que são, também, condições para uma vida com alegria e beleza (DOCENTE 09).

A imaginação, a liberdade de criar e o belo são elementos centrais da formação escolar, especialmente quando consideramos a Educação Infantil e as etapas iniciais do Ensino Fundamental, nas quais o lúdico, a sensibilidade e a interação são as bases para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças. Seguindo o pensamento de Schiller (1992), em algumas respostas se percebe a importância da estética na formação de uma visão renovada do mundo. Nesse sentido, podemos afirmar, consoante a Hermann (2017, p. 69), que

[...] a estética assume papel significativo em nossa via ética. Uma sensibilidade refinada é mais atenta e capaz de perceber a trama de elementos que envolvem a decisão moral. Amplia nossa imaginação e rompe certos enclausuramentos.

É possível constatar, nas respostas analisadas, que os educadores entendem que a formação estética é fundamental à educação contemporânea, embora eles tenham dúvidas acerca dos processos e ações pedagógicas necessárias a essa classe de formação. Em outros termos, pode-se dizer que existe uma intencionalidade formativa implícita no discurso dos educadores, a qual muitas vezes não se efetiva na prática pedagógica. Além disso, com exceção do excerto já apresentado, não foram encontradas de modo claro, referências às relações possíveis entre ética e estética tal qual argumentado no decorrer deste texto, especialmente com as contribuições de Hermann (2005; 2010; 2017). Isso remete à consideração que a percepção da maioria dos educadores participantes da pesquisa em relação à estética permanece ainda ligada ao processo de estetização superficial, como descrito por Welsch (1995), uma vez que concebem a estética somente pelo aspecto da forma exterior, e não em seu potencial pedagógico e criativo, correlacionada à formação ética e à possibilidade de um ‘bem viver’.

Consoante a Hermann (2017), argumentou-se que a formação estética poderia assumir um papel significativo em nossas vidas, contribuindo com a capacidade de julgamento moral e com o bem viver em comunidade, visto que “a experiência estética possibilita o confronto de nossas crenças, o ‘irreal da realidade’, articula-se com as emoções, desvela o estranho e possibilita que o outro aconteça” (p. 69). Ao mesmo tempo, é importante destacar que não se trata de uma determinação da ação moral via estética, mas um sentido de colaboração na formação humana, pois “o que assume relevância é aquilo que a experiência estética instaura como pergunta, o que pode mobilizar em nossas convicções e emoções” (HERMANN, 2017, p. 70).

Práticas pedagógicas e formação ético-estética

No decorrer da pesquisa, os educadores também foram questionados sobre dois aspectos da ação pedagógica: a) o tipo de ação pedagógica que promoveria a formação ético-estética; b) exemplos de práticas pedagógicas que eles realizaram, com seus educandos, cuja meta era propiciar formação ético-estética.

Em relação ao primeiro aspecto, constatou-se que, para os educadores, a formação ético-estética pode ser promovida por meio de um posicionamento crítico e consciente de educadores e educandos em relação à realidade vivida. Trata-se de uma forma de posicionamento pessoal do educador, um modo de ser e de interagir com os educandos, que personifica as dimensões ético-estéticas, como pode ser observado na seguinte afirmação:

A formação ética e estética acontece na educação, mais precisamente na sala de aula, quando a escola, o professor e o aluno lutam por uma educação transformadora, dialógica e conscientizadora. Quando estão engajados numa dimensão crítica e criativa no processo da construção do conhecimento, onde todos ensinam e todos aprendem, um processo criador e recriador ligado às próprias experiências existenciais e origens culturais. Tanto professor quanto alunos percebem suas realidades criticamente e criam conhecimento dentro e por intermédio do diálogo. (DOCENTE 04).

O excerto anterior remete à compreensão de que a escola é um espaço inserido na sociedade, na qual se entrecruzam elementos da cultura, da dinâmica social, da política e do quotidiano dos sujeitos que conformam a comunidade escolar. Nesse sentido, ela é espaço de socialização, de humanização, de formação cultural e de desenvolvimento da personalidade (CHARLOT, 2006), um mundo de sentido, um espaço dinâmico e vital (HABERMAS, 2012a; 2012b).

Existe, por parte dos educadores entrevistados, uma percepção de educação ético-estética que se expressa por meio do diálogo e do exemplo (LA SALLE, 2012), quase um testemunho de vida, efetivados diariamente, quando a ‘oportunidade pedagógica’ surgir, tal qual relata o Docente 26:

Em sala de aula, com os pequenos, os conflitos surgem por disputa de brinquedos, pelo espaço, pelo lugar na fila. Nessas situações conversamos e discutimos os fatos, refletindo que é necessário usar as palavras mágicas, sendo cordiais e solidários uns com os outros.

Aparece aqui retratada a função socializadora da escola, já referendada por Mead (1967), bem como o papel e a responsabilidade das gerações adultas na educação dos novos (ARENDT, 2005). Fica clara a importância da função mediadora e do olhar atento do educador em relação ao ambiente da sala de aula e à organização e condução das experiências e práticas pedagógicas.

As respostas do questionário também revelaram a pesquisa e a abertura ao novo como estratégias pedagógicas possíveis à formação ético-estética: “Acredito que através de atividades que estimulem a pesquisa, o gosto e interesse pelas diferentes culturas, a prática cotidiana de ouvir e expressar opiniões sempre com respeito” (DOCENTE 06). A formação ético-estética pode ser realizada mediante a introdução de um conteúdo ou estratégia intencional por parte do educador, visto que o recurso à pesquisa e à pluralidade inerentes às diversas culturas e modos de ser consistem em conteúdos de primeira grandeza. Além disso, de modo intencional, os professores podem introduzir atividades artísticas, musicais, diálogos e reflexões sobre situações quotidianas que se apresentam.

Um segundo elemento retratado, como já mencionado, foi a busca por evidências da formação ético-estética. O foco era, portanto, a descrição e a análise de práticas pedagógicas desenvolvidas na escola, especificamente nas salas de aula, realizadas pelo coletivo de educadores, ou por um docente específico, por meio das quais fosse oportunizada aos educandos alguma experiência de formação ético-estética. Os educadores citaram, como exemplos de estratégias pedagógicas, a utilização de jogos, atividades lúdicas, o uso de literatura e de filmes e a construção coletiva de regras de convivência. Além disso, apontaram o valor do diálogo, da escuta e da interação entre os estudantes, especialmente na busca por uma melhor compreensão dos sentimentos e das emoções expressas pelos outros. Destacaram, também, a sensibilidade e a capacidade do docente de orientar a própria ação pedagógica de modo que todos possam participar e expressar elementos da própria subjetividade. Esse processo pode ser compreendido através da narrativa de um dos docentes sobre uma experiência formativa com foco na empatia, na expressão dos afetos e das emoções:

Atualmente os terceiros anos estão desenvolvendo um projeto chamado Carrossel das Emoções, onde trabalhamos diversas situações que envolvem respeito ao outro, aceitação, amizade, partilha...; as crianças são levadas a refletir sobre suas atitudes e devem se colocar no lugar dos colegas refletindo sobre os diversos sentimentos que aparecem (DOCENTE 14).

As práticas pedagógicas remetem à necessária valorização do corpo, dos afetos e da presença do outro no processo formativo (HERMANN, 2018). Foram reveladas, pelas respostas dos docentes, atividades e projetos que visam justamente à valorização do outro e do diferente:

Atualmente, o 5º ano está desenvolvendo o projeto “Ancestralidade”. Esse projeto possibilita um maior contato com os povos ancestrais que formaram o RS, principalmente com os povos indígenas que têm esse conceito bem desenvolvido. Aqui aspectos éticos e estéticos são utilizados através de atividades que visam ao autoconhecimento, à empatia, ao conhecimento e ao respeito pela sua cultura e pela cultura do outro (DOCENTE 21).

Esse tipo de projeto pedagógico possui potencial para gerar ações pedagógicas e experiências ético-estéticas inclusivas e plurais, visto que aborda a temática indígena e a multiculturalidade presente em nossa sociedade desde a perspectiva da pluralidade, da acolhida e do respeito às diferenças.

Foi possível constatar, a partir das manifestações escritas dos educadores, práticas pedagógicas com o viés da formação ético-estética. As práticas descritas possuem potencial para colaborar com a formação ético-estética dos estudantes, gerando experiências formativas e proporcionando o desenvolvimento de novas competências para a vida em comunidade.

Entretanto, em sua maioria, as situações retratadas consistem em práticas isoladas e não sistemáticas, não estando integradas no planejamento da escola e nas rotinas da sala de aula. Parece existir um hiato entre a percepção dos educadores sobre a importância da formação ético-estética e o planejamento sistemático das ações pedagógicas, tanto dos professores quanto da instituição. O questionário indicou que existem, desde a perspectiva da organização didático-pedagógica, demandas de planejamento e de formação continuada que implicam e impactam os educadores, sujeitos participantes da pesquisa, e a instituição, lócus da investigação.

Uma hipótese explicativa desse hiato talvez consista no ideal escolar de “considerar que a aprendizagem ética deveria dialogar apenas com o intelecto, sem se deixar influenciar pelas emoções, pelos sentimentos e pelas respostas sensíveis” (HERMANN, 2008, p. 17). Entretanto, a vida é recheada de situações e experiências que conformam “uma riqueza de elementos e sutilezas que escapam ao cognitivo” (HERMANN, 2018, p. 10), sendo somente acessíveis pela via estética dos sentidos e do corpo. E isso não pode ser desconsiderado pela educação, especialmente no Ensino Fundamental, sob pena de embrutecimento, barbárie e pseudoformação das novas gerações.

Implicações e desafios emergentes

Em termos de implicações educacionais advindas da pesquisa realizada, pontuam-se três desafios aos educadores: o planejamento sistemático, a formação continuada e a pesquisa. No primeiro desafio, o do planejamento sistemático, que implica gestores e educadores, observou-se a necessidade de uma revisão do planejamento escolar, de modo que sejam previstas ações concretas, projetos e espaços-tempos formativos com vistas à formação ético-estética, tanto dos educandos quanto dos educadores e da equipe de gestão. Além disso, com o objetivo de maior sistematicidade das ações pedagógicas, seria importante que o planejamento de cada docente da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental previsse, explicitamente, ações pedagógicas e projetos com o foco na formação ético-estética.

O desafio da formação continuada emerge desta pesquisa como opção para diminuir as lacunas entre a teoria e a prática, bem como entre o legislado e o que efetivamente ocorre em sala de aula. É importante ressaltar que a demanda formativa pode incluir, além dos educadores, os gestores e o pessoal técnico-administrativo, de modo que seja possível vivenciar a dinâmica ação-reflexão-ação em toda a escola.

Finalmente, o desafio da pesquisa busca saídas para a lacuna existente entre a academia e a escola. Parece haver um hiato intransponível entre o discurso teórico acerca da formação ético-estética e as reais práticas e ações pedagógicas efetivadas nas escolas brasileiras, como no caso da escola pesquisada. Importa notar que o discurso teórico-acadêmico prescritivo, da ordem do ‘dever-ser’, é insuficiente, pois não chega à sala de aula e não modifica as práticas pedagógicas. Neste sentido, será necessário criar espaços e oportunidades para que os pesquisadores adentrem nas salas de aula do Ensino Fundamental e, ao mesmo tempo, para que os docentes das escolas participem da vida da Universidade e da pesquisa. Trata-se, pois, de aproximar teoria e prática, escolas e universidades.

Ao refletir sobre esse desafio, entende-se que a dicotomia entre teoria e prática é um problema a ser superado. Embora o tema da formação ético-estética seja relativamente corrente em produções teóricas no país, especialmente em círculos de autores ligados à Filosofia da Educação, temos como hipótese a existência de uma dissociação entre o discurso acadêmico sobre este tema e a percepção e a prática dos educadores do Ensino Fundamental. Esta é uma dificuldade já amplamente conhecida e discutida na pesquisa educacional brasileira, de difícil solução, especialmente quando analisada desde a perspectiva das ações concretas de ensino e de aprendizagem que são vivenciadas nos ambientes escolares.

Considerações finais

Este artigo, derivado de pesquisas no campo educacional, buscou analisar como os professores da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, de um Colégio de Porto Alegre, RS, compreendem a formação ético-estética dos seus estudantes e quais as possíveis implicações dessa compreensão para o próprio fazer docente. Os resultados da pesquisa demonstram que a formação ético-estética é objeto de reflexão dos docentes participantes, uma vez que eles apontaram concepções teóricas alinhadas ao tema e ações concretas que realizam em suas aulas, com seus estudantes. Os docentes identificaram, entre suas práticas cotidianas, atividades, projetos pedagógicos desenvolvidos e momentos formativos com foco em experiências ético-estéticas.

Entretanto, também foi possível observar um hiato entre a concepção teórica, o planejamento sistemático da ação educacional e a prática pedagógica. Esse hiato consiste na dificuldade de planejar e executar ações pedagógicas intencionais com foco na formação ético-estética de modo sistemático e no decorrer de todo o ano letivo. As ações pedagógicas e os projetos mencionados pelos professores participantes da pesquisa possuíam caráter temporário, carecendo de melhor planejamento e sistematicidade. Identificou-se, assim, a necessidade de uma melhor articulação da formação ético-estética com os planos de ensino e com a proposta educativa da escola. Além disso, os resultados indicam que pode haver uma lacuna formativa nos conhecimentos pedagógicos dos educadores, o que torna mais difícil a incorporação de atividades focadas na interculturalidade, na pluralidade social e nas artes, o que possibilitaria diferentes e inéditas experiências estéticas em suas vidas e na de seus educandos. Por isso, em termos de implicações educacionais advindas da pesquisa realizada, emergiram três desafios aos educadores: o planejamento sistemático, a formação continuada e a pesquisa.

A pesquisa realizada aponta possibilidades concretas para que os processos de formação ético-estéticos sejam planejados e vivenciados na realidade concreta da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Merece destaque a compreensão geral dos educadores participantes sobre a importância da formação ético-estética dos seus estudantes. Isso nos possibilita reafirmar a convicção de que é fundamental considerar a estética numa relação de complementaridade com a ética, ou uma educação ético-estética, pois o agir ético, a boa capacidade de deliberação, a construção da autonomia e da liberdade e a vida em comunidade requerem sujeitos capazes de compreender o mundo e a sociedade na qual vivem desde a perspectiva da pluralidade, da diferença e do outro, o que não é possível somente pela via da razão abstrata.

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1A mencionada pesquisa, da qual este artigo é derivado, tem como objetivo analisar as práticas pedagógicas de educadores de uma rede de escolas particulares da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Ele possui aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa.

2Para aprofundar o assunto, sugere-se a consulta à recente obra intitulada “Educação como processo de formação humana” (ZATTI; PAGOTTO-EUZEBIO, 2022), que recolhe uma extensa produção de autores brasileiros sobre o tema.

Recebido: 27 de Julho de 2022; Aceito: 04 de Novembro de 2022

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