Considerando a epistemologia genética de Piaget e sua aplicação ao campo do desenvolvimento psicológico da criança, tomamos como base para a elaboração do programa de intervenção em pauta, os seguintes conceitos: equilibração; tomada de consciência; fazer e compreender. Estes conceitos permitem uma abordagem mais detalhada da interação entre criança e situações-problema em termos das regulações e compensações efetuadas para enfrentar os desequilíbrios causados pelas perturbações que as situações provocam no sistema cognitivo e afetivo. A compreensão das interações entre sujeito e objeto quanto a estes aspectos inserem-nas, como bem afirmou Piaget (1976), no âmbito das relações entre os observáveis e as coordenações (do sujeito e do objeto), não se restringindo a um ou outro nível de desenvolvimento, mas focalizando nas interações propriamente ditas entre o que o indivíduo constata ou crê constatar (observáveis) e as relações que estabelece entre o que observa e o que pensa, a partir de suas ações (coordenações). Esses termos compõem a Teoria da Equilibração (1976), base para a elaboração dos estudos sobre a tomada de consciência e o fazer e compreender, culminando com o enfoque dialético (interdependência), ponto de partida para os estudos de Inhelder e Cellérier (1992/1996), bem como para investigações pós-piagetianas sobre as relações entre procedimentos e estruturas e o sujeito psicológico.
Em poucas palavras, o que significa tomar consciência? Para Piaget (1974/1977), elevar ao plano do pensamento o que, no plano das ações, já está estabelecido; isto é, partindo da periferia da interação com o objeto, poder compreender tanto as propriedades das ações quanto do objeto, o que o autor apresentou como ir da periferia da interação para os centros do objeto e do sujeito. Tomar consciência requer, então, reconstruir no plano mental as ações realizadas para analisá-las e também alterá-las em função dos seus resultados, antecipando modificações necessárias para um melhor desfecho. Não se trata de subitamente saber o que deve ser feito, numa espécie de iluminação ou revelação mental, mas, ao contrário, construir num outro plano o que está estabelecido para analisar os mecanismos e os detalhes. Tomar consciência é, portanto, custoso e exige trabalho mental, um processo de ir e vir dos resultados das ações ao seu planejamento e vice-versa; dos observáveis às coordenações, sendo que o novo nível (de compreensão) será sempre melhor que o anterior. O autor apresentou essa teorização inicialmente a partir de experimentos em que o êxito no plano da ação ocorria mesmo que o sujeito não tivesse consciência dos mecanismos que o produziram e, posteriormente, na obra Fazer e Compreender (1978), a partir de situações em que para ocorrer o êxito prático era necessário tomar consciência. Assim, afirmou que fazer é compreender na ação, enquanto que compreender é fazer no pensamento.
Desde a apresentação da Teoria da Equilibração (1976) e, em seguida, com as obras Tomada de Consciência (1974/1977) e Fazer e Compreender (1978), Piaget oferece a oportunidade para que pesquisadores interessados no desenvolvimento cognitivo possam construir situações-problema e desafios, que visem a proporcionar tomada de consciência das ações a indivíduos que enfrentam dificuldades escolares. A visão de interdependência entre sujeito e objeto, denominada de dialética pelo autor, decorre necessariamente da teoria da equilibração e fundamenta o programa de intervenção que será apresentado, pois compreende as interações entre as crianças e os desafios propostos num sistema mais amplo de relações. Acrescenta-se a isso a abordagem de aspectos afetivos e sociais que favorecem a observação do planejamento tanto das ações das crianças para jogar, como também do planejamento das propostas, buscando suscitar interesse, envolvimento nas atividades e autonomia. Para Piaget (1954/2014), a afetividade é um fator que, ao lado da inteligência, está sempre envolvido em qualquer conduta e, por consequência, também na elaboração de procedimentos e estratégias, visto que é o componente energético da ação e, assim, não pode ser excluído de qualquer trabalho de intervenção. O mesmo pode ser dito do fator social (relacionado às informações transmitidas pelos outros, especialmente os adultos), apresentado como fundamental para o desenvolvimento mental. Esse fator está contemplado nas oficinas de jogos, pois as atividades são realizadas em grupo, o qual atua como um regulador externo relevante para o bom andamento do trabalho (Petty & De Souza, 2014).
Outro elemento importante no trabalho de intervenção com jogos é a autonomia, que se refere, no âmbito do desenvolvimento moral, segundo Piaget (1932), à capacidade para pensar e agir considerando regras, assim como diferentes possibilidades e pontos de vista, buscando atingir um consenso. Isto é, agir e julgar autonomamente implica necessariamente tornar-se legislador, em se responsabilizar pela aplicação das regras e suas consequências. Ser autônomo é, então, compreender as regras como reguladoras das ações e relações entre indivíduos e inseri-las num sistema interdependente em que diferentes indivíduos cooperam para atingir objetivos em comum. Autonomia e cooperação estão, portanto, juntas e são objetivos do trabalho com jogos realizado no programa de intervenções aqui apresentado.
No campo das intervenções com jogos de cunho piagetiano, diversos estudos contemporâneos ressaltam a importância dessa perspectiva teórica ainda hoje. Os trabalhos de Macedo, Petty e Passos (2005) até Macedo, Petty, Carvalho e De Souza (2015) sobre os jogos e o lúdico na aprendizagem escolar ilustram tal relevância. Os autores ressaltam o lúdico como meio de expressão e acesso ao dinamismo infantil e também como mediação entre o sujeito e seu universo de conhecimento, considerando o papel preponderante das intervenções com jogos para a avaliação de crianças com dificuldades de aprendizagem, assim como para a formação de professores capazes de observar as diferentes linguagens da criança. Há uma retomada das relações entre desenvolvimento e aprendizagem, bem como das dimensões funcionais e simbólicas das relações das crianças com as situações dos jogos, explicando-se como as intervenções que os utilizam podem oferecer dados relevantes tanto para a pesquisa como para a atuação psicopedagógica. O importante aqui é a ênfase na relação entre o jogador e o jogo e não neste último propriamente dito em seu conteúdo, coerentemente com a perspectiva de Piaget, para quem é na interação sujeito-objeto que se dá a dupla construção do conhecimento e da inteligência. Assim, este programa de intervenções com jogos pretende abordar estas relações e permitir que o jogador tome consciência de suas ações e seus resultados, modificando aquilo que considera insuficiente, na medida em que tem maior clareza de sua abrangência para resolver as situações-problema.
Em consonância com o trabalho anterior, Dell’Agli e Brennelli (2007) estudaram como jogos de regras poderiam contribuir para o diagnóstico psicopedagógico da noção de classificação, considerando que estes seriam uma alternativa importante para auxiliar também na intervenção com crianças e adolescentes.
Petty e De Souza (2012), por sua vez, demonstraram como um programa de intervenção usando jogos e situações-problema promove a melhoria das funções executivas. Ao jogar, os participantes são estimulados a desenvolver a capacidade de observar, ficar atentos, memorizar, controlar a impulsividade e tomar decisões, ampliando a consciência de suas ações e estratégias em função dos resultados obtidos.
De Souza, Petty, Folquitto, Garbarino e Monteiro (2014) defendem que as atividades com jogos em contexto de intervenção promovem melhores atitudes em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem. Para isso, apresentam resultados da aplicação de um questionário a respeito de quatro dimensões atitudinais relacionadas ao modo como as crianças lidam com tempo, espaço, objetos e pessoas. A pesquisa revelou que organizações relacionadas aos objetos e, em seguida, para as dimensões de tempo e espaço melhoraram primeiro que as relacionadas à interação social, em consonância com o que ocorre na trajetória global de desenvolvimento (das coordenações motoras iniciais às operatórias).
Rossetti, De Souza, Rohrig, Guimarães, Pylro e Bahiense (2014) estudaram dois jogos para computador com estruturas semelhantes a provas operatórias piagetianas e aplicaram em crianças com diagnóstico de Transtorno de Atenção e Hiperatividade (TDAH), verificando seus procedimentos para resolverem situações-problema. Concluíram que os jogos de regras eletrônicos são bons instrumentos para a avaliação das noções operatórias de lógica combinatória e raciocínio espacial em crianças que apresentam indícios de TDAH.
Em texto de síntese, Rossetti e De Souza (2016) destacaram o valor das atividades com jogos concretos ou virtuais em intervenções desafiadoras, para crianças e adolescentes, pois ensejam a possibilidade para a tomada de consciência das ações a partir dos êxitos e fracassos, bem como da análise dos processos e encaminhamentos para a solução de problemas. O contexto atual dos jogos multimídia permitiria comparar a natureza dos desafios destes últimos em relação aos jogos concretos: diante de ambas as tarefas, o sujeito deve enfrentar problemas e observar suas ações, avaliando erros e acertos num sistema único de possibilidades. Segundo as autoras, a epistemologia genética permite, ainda hoje, a formulação de boas perguntas sobre o funcionamento psicológico e a tomada de consciência como um motor para o desenvolvimento e a aprendizagem. Afirmam assim que: " seu caráter universalista busca regularidades e permite retirar o homem de seu tempo histórico particular, e, ao mesmo tempo, considerar a(s) influência do(s) contexto(s), entendendo-o em seu percurso autorregulado rumo a um equilíbrio melhor (majorante), de um ponto de vista cognitivo, afetivo e social" (Rossetti De Souza, 2016, p. 56).
Em suma, pode-se dizer que a teoria de Piaget, ao embasar o Programa de Intervenção com jogos, oferece condições para o estudo das relações entre regulações externas e internas (autorregulação), visando promover melhores condições para mudanças atitudinais ligadas à aprendizagem e ao desenvolvimento de crianças que apresentam dificuldades escolares em diferentes graus e de diversas qualidades.
MÉTODO
Os objetivos deste estudo foram: 1- Analisar a relevância de um protocolo de registro para informar sobre atitudes de crianças diante da apresentação de situações de jogos e da avaliação do resultado das ações ao jogar; e 2- Verificar com esse protocolo mudanças atitudinais a partir de 2 indicadores: interesse e autonomia.
Participantes
Os oitenta protocolos analisados referiram-se a oito participantes que fizeram parte do Programa de Intervenção oferecido no Laboratório de Estudos sobre Desenvolvimento e Aprendizagem (LEDA), com atendimento em grupo realizado uma vez por semana. As crianças tinham entre 7 e 11 anos, sendo alunos do Ensino Fundamental I de escolas públicas e/ou Fundações. Todas apresentavam como queixa problemas oriundos de diversas naturezas, expressas em dificuldades para aprender conteúdos escolares e em atitudes desfavoráveis ao desenvolvimento e à aprendizagem de modo geral. Esse programa é realizado em três semestres e consiste em propor atividades com jogos e situações-problema que instigam as crianças a enfrentar e resolver desafios. Como consequência, por terem interesse em participar das atividades, tornam-se gradualmente capazes de construir recursos para modificarem procedimentos inadequados e ampliarem sua autonomia.
Instrumentos e procedimentos
Um Protocolo de Observação foi elaborado para registrar atitudes e procedimentos das crianças que participam das atividades, sendo composto por quatro questões sobre o contexto do jogo, a saber:
1 - Na apresentação da situação de jogo, que atitudes e procedimentos o aluno manifestou? Estes deveriam referir-se a pelo menos um dentre os itens: coragem, medo, receio, rapidez para começar, demora para começar, iniciativa, passividade, interesse, desinteresse, planejamento de ações, impulsividade.
2 - Na realização do jogo propriamente dito, que atitudes e procedimentos o aluno demonstrou? Estes deveriam referir-se a pelo menos um dentre os itens: autonomia, dependência, interesse, desinteresse, segurança, insegurança, análise dos meios empregados, estratégias aleatórias, envolvimento, fuga ou dispersão.
3 - No enfrentamento de uma situação de conflito (cognitivo ou social), que atitudes e procedimentos predominaram? Estes deveriam referir-se a pelo menos um dentre os itens: persistência, desistência, compromisso, falta de comprometimento, autocontrole, raiva, desconforto, enfrentamento do desafio, não enfrentamento do desafio, uso de diferentes estratégias, repetição de estratégias.
4 - Na avaliação do resultado das ações ao jogar, que atitudes e procedimentos o aluno demonstrou (isto é, manifestou ou conseguiu avaliar)? Estes deveriam referir-se a pelo menos um dentre os itens: satisfação com o resultado, insatisfação com o resultado, se sentir competente, se sentir incompetente, confiança em si mesmo, dependência em relação ao outro, corrigir os procedimentos, repetir os mesmos erros, interesse em discutir resultados, desinteresse sobre os resultados.
As questões acima foram elaboradas a partir da observação de regularidades no contexto do jogar, o que implicou considerar tanto a organização temporal das atividades, quanto uma sequência lógica da ordem dos acontecimentos. Deste modo, há três questões relativas às ações e procedimentos propriamente ditos, relacionados às atividades com jogos, e uma quarta questão, elaborada com o propósito de aferir o modo como as crianças avaliam suas ações e respectivas consequências, ou seja, uma questão de ordem mais reflexiva do que procedimental.
Os dados brutos que constavam nos protocolos foram analisados e possibilitaram a construção de indicadores empíricos, em duas direções: (1) em torno do interesse e (2) relativos à autonomia.
Para o presente estudo, foram analisadas as respostas relativas às questões 1 e 4, agora nomeados itens I e IV, isto é, sobre o modo como as crianças expressavam atitudes e procedimentos diante da apresentação da tarefa com jogos e sobre sua avaliação a respeito dos resultados de suas ações no momento em que haviam terminado.
Critérios para Seleção de Protocolos
No total dos 80 protocolos, foram selecionados dez por criança. O critério de seleção foi organizado da seguinte maneira: 3 protocolos do primeiro semestre, 4 do segundo e 3 do terceiro. Optou-se por analisar um número maior de protocolos do segundo semestre, devido ao fato de se ter constatado que esse é o momento do Programa de Intervenção em que ocorrem mais conflitos e desequilíbrios cognitivos, afetivos e sociais, quando três semestres são estudados.
É importante ressaltar que em cada semestre também houve uma organização para a seleção dos protocolos, tendo sido realizada da seguinte maneira: 1 protocolo do início do semestre, 2 do meio e 1 do final.
Sobre os Indicadores
A partir dos registros efetuados, bem como da análise das respostas registradas nos protocolos, foram elaborados indicadores empíricos. Estes foram agrupados quanto às diferentes associações em dois grupos gerais de indicadores; o primeiro referente à dimensão do interesse (incluindo interesse com impulsividade e dependência) versus desinteresse e o segundo quanto à autonomia versus não autonomia. Essas dimensões foram escolhidas em função dos objetivos do trabalho realizado com as crianças, o qual visa desenvolver a autonomia para enfrentar situações-problema e dificuldades a partir da tomada de consciência das estratégias e também do interesse definido como predisposição para a ação de jogar. Estes indicadores estão apresentados na Figura 1.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados e suas análises estão apresentados nas Tabelas 1 e 2. A Tabela 1 refere-se à distribuição percentual dos indicadores para o item I nos três semestres das oficinas. A Tabela 2, por sua vez, informa sobre a distribuição percentual dos indicadores para o item IV, nesse mesmo período.
1º semestre | 2º semestre | 3º semestre | Total | |
---|---|---|---|---|
Interesse | 21,2% | 25% | 23,8% | 70% |
Desinteresse | 8,8% | 15% | 6,2% | 30% |
Como podemos observar na Tabela 1, reunindo-se os itens relativos ao indicador "interesse" e suas associações no total dos semestres, há 70% de menções, se comparadas ao indicador desinteresse. Cumpre ressaltar que "interesse", mesmo que acompanhado de outras características, tais como dependência e impulsividade, é uma manifestação atitudinal frequentemente observada nas oficinas. Isto significa que o trabalho de intervenção mobiliza até mesmo este público de crianças com problemas escolares. Em outras palavras, parece que elas se interessam por enfrentar desafios com jogos e situações-problema, independente de apresentarem dificuldades.
Tendo em consideração esse público ao qual as Oficinas de Jogos se destinam, uma referência importante é conhecer certas características que levam as crianças a serem indicadas para o atendimento. Neste caso, sabe-se que o interesse (ou sua falta) está inteiramente relacionado à tarefa a ser executada e, por esse motivo, os jogos e desafios lógicos são cuidadosamente selecionados desde o planejamento. Há sempre um direcionamento para se organizar as propostas de acordo com as necessidades do grupo com o qual o trabalho será desenvolvido, incluindo idade e série, habilidade provável e dificuldade predominante. Como o Programa de Intervenção já ocorre há anos, as propostas são orientadas por regularidades, o que possibilita prever alguns problemas, bem como supor que ocorrerão expressões de entusiasmo e motivação diante de certas atividades, mesmo para crianças com dificuldades (De Souza, Petty et al., 2014, Folquitto, 2013, Petty & De Souza, 2012). Assim sendo, a alta porcentagem relativa ao indicador "interesse" sugere que o planejamento mobiliza os participantes, gerando disposição imediata para a tarefa. Tal fato pode ser observado quando atentamos para a diferença de porcentagem entre o indicador "interesse" (70%) em oposição à 30% de "desinteresse".
No que se refere ainda ao indicador "interesse", de modo geral pode-se observar ainda na Tabela 1 que este se mantém estável ao longo dos 3 semestres de intervenção, o que é uma base relevante para o trabalho, uma vez que significa a conexão com as atividades.
Quanto ao indicador "desinteresse", é importante observar que diminui do segundo para o terceiro semestre de trabalho, o que está em consonância com o anteriormente afirmado, ou seja, estando os participantes mais conscientes de seus procedimentos, a conexão com a tarefa aumenta, assim como a disposição para refletir sobre a mesma e realizá-la de novas maneiras.
A Tabela 2 apresenta dados sobre a distribuição percentual dos protocolos de três semestres das oficinas para os indicadores autonomia e não autonomia relativos ao item IV. A conquista dessa dimensão é um dos objetivos do programa de intervenção e está relacionada à conscientização das ações.
1º semestre | 2º semestre | 3º semestre | Total | |
---|---|---|---|---|
Autonomia | 18,8% | 17,5% | 21,4% | 57,7% |
Não autonomia | 11,2% | 22,5% | 8,6% | 42,3% |
Pode-se notar que ao longo dos 3 semestres a autonomia se manifestou de modo semelhante, sendo que as diferenças entre autonomia e não-autonomia aparentemente não foram significativas, exceto no terceiro semestre, quando essa diferença salta aos olhos (21,4% x 8,6%), o que pode estar associado exatamente à conquista atitudinal desse momento em termos de tomada de consciência dos procedimentos que permitem acertar e também levar a erros, num sistema interdependente de ações.
No primeiro semestre, as crianças têm pouco conhecimento sobre o que levou à sua participação no Programa de Intervenção, não sabem ao certo qual a queixa, nem têm clareza de suas dificuldades. Além disso, desconhecem o funcionamento das oficinas e o propósito das atividades com jogos. Ao longo do segundo semestre, ocorrem muitos desequilíbrios, geralmente relativos aos aspectos cognitivo, afetivo e social, o que gera menor autonomia em relação ao adulto e a não autonomia se evidencia (22,5%). Em consequência, a conscientização se amplia e as crianças passam a perceber que precisam de ajuda para conseguir realizar as mudanças necessárias. Assim, solicitam e se apoiam nos adultos e, de certa forma, transferem momentaneamente a eles a possibilidade de favorecer sua melhora. Esse tipo de auxílio solicitado faz parte do conjunto de intervenções que são propostas e raramente implica uma relação de dependência permanente. Ao contrário, ao longo do processo "devolve-se" às crianças a capacidade de agir com autonomia e protagonismo, uma vez que são estimuladas a utilizar seus próprios recursos em um contexto que respeita suas dificuldades e valoriza as iniciativas, ao mesmo tempo em que se almeja a ampliação do potencial cognitivo, afetivo e social para conseguirem enfrentar e solucionar os desafios propostos. Como observado na Tabela 2, há uma diminuição visível da não autonomia no 3º semestre, indicando que a tomada de consciência permitiu a consolidação de novos procedimentos diante dos desafios, em sistemas mais amplos, expressando maior autonomia.
Analisando estatisticamente as diferenças apresentadas nas Tabelas 1 e 2, por meio do Teste de Qui-quadrado, p>= 0,005, verificou-se que aquelas que se mostraram significativas foram as referentes ao 3º semestre, tanto na comparação entre interesse e desinteresse (p=0,0024), quanto entre autonomia e não-autonomia (p=0,0312). Em ambos os casos, p-valor é menor que 0,05, indicando que há diferenças significativas entre os dados. Assim, pode-se concluir que ocorre, de fato, um aumento do interesse e da autonomia em detrimento do desinteresse e da não-autonomia ao final do programa de intervenção.
Esta análise legitima a relevância do programa com jogos em prol de atitudes mais favoráveis ao desenvolvimento e à aprendizagem no contexto escolar, com possibilidade de expansão para outros âmbitos da vida infantil. O jogar é, então, uma ferramenta eficiente para desencadear processos de tomada de consciência que, por sua vez, levam a novos patamares de equilíbrio; estes incluem ampliação e compreensão das ações em sistemas interdependentes, como bem postulou Piaget em seus estudos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar é importante salientar que o protocolo de observação elaborado para registrar atitudes e procedimentos das crianças atendidas se mostrou eficaz, fornecendo dados relevantes para a presente análise, o que proporcionou o uso produtivo dos resultados. Além disso, permitiu uma observação objetiva da realidade e, portanto, favoreceu o planejamento de novas propostas e estratégias para o programa de intervenção do laboratório.
Em segundo lugar, como consequência de tal eficácia, foi possível criar indicadores empíricos para identificar alguns aspectos relativos ao interesse e à autonomia, enaltecendo a contribuição da intervenção com jogos e situações-problema em processos de desenvolvimento e aprendizagem. Notou-se que as propostas puderam suscitar participação e envolvimento, bem como contribuíram para estimular interações sujeito-objeto e interações sociais.
Com relação ao interesse, ao propor atividades com jogos, em que as crianças se sentiram motivadas a participar genuinamente, trabalhou-se com um componente muito relevante, uma vez que no contexto das dificuldades escolares, o desinteresse é bastante frequente. Por meio das propostas, notou-se a possibilidade de contribuir para recuperarem a vontade de aprender num processo de conscientização de suas ações. Foi fundamental constatar que ficaram estimuladas a perceber e entrar em contato com seus erros ou incompletudes, bem como observarem o que as levou a fracassar e as impediu de atingir os objetivos do jogo, mobilizando recursos e construindo novos procedimentos em favor de produzir melhores resultados.
No que tange à autonomia, observou-se claramente que há uma interdependência entre a ação de jogar e o protagonismo infantil, visto que este último decorre da anterior e passa a ser uma meta intencional. Neste sentido, várias crianças se expressaram como sujeitos ativos e criativos; demonstraram mudanças de comportamento, fazendo um percurso cujo início indicava não autonomia, apresentando um gradativo crescimento de atitudes mais autônomas ao longo dos semestres. Quando solicitadas a avaliar o resultado do processo, todas tiveram que expressar seus pensamentos, analisar suas ações, agindo de modo mais reflexivo e analítico, cada uma com seus recursos. Por esse motivo, o contexto do jogar pode ser considerado como um espaço de criação com oportunidade para o exercício do protagonismo e ampliação da autonomia.
As atividades com jogos mediadas por intervenções e as propostas de avaliação (itens I e IV) serviram de estímulo para cada sujeito mudar as manifestações de desinteresse e de não autonomia: tentavam, persistiam, pediam ajuda e mantinham-se na tarefa, construindo atitudes favoráveis à aprendizagem escolar e ao desenvolvimento. Em síntese, num contexto de prática e reflexão, puderam discriminar, dentre suas ações, aquelas que deveriam manter e as que precisariam modificar, sempre analisando o que percebiam como sendo benéfico ao seu desempenho.
Cumpre lembrar que aprendizagem e desenvolvimento não são inerentes ao jogo propriamente dito, mas se situam na relação que cada jogador estabelece com os materiais e objetivos. Ao proporcionar atividades em que o sujeito precisa organizar procedimentos, coordenar informações, considerar o outro e se orientar em um contexto regrado, pode-se intervir em favor de mudanças. Muitas indagações regem este momento; dentre elas destacam-se: (a) se alguns sujeitos demonstram desinteresse, o que deveria ser proposto em termos de intervenção, visando mobilizarem novos recursos e implicando-se mais nas propostas? (b) Como desencadear situações de desequilíbrio que pudessem constituir perturbações para o sistema cognitivo ser ativado em prol de soluções? (c) Com os sujeitos pouco autônomos, o que poderia ser proposto para conhecerem melhor os recursos que utilizam, ampliando sua auto-observação e sua capacidade para ação efetiva? Por meio destes questionamentos o programa de intervenção está sempre atualizando o planejamento das atividades, o que oportuniza obter informações sobre os desafios que persistem. Com isso, novas estratégias são elaboradas e orientam os futuros atendimentos.
Em suma, a análise dos protocolos de observação e dos indicadores desta pesquisa demonstrou que é possível organizar um programa de intervenção fundamentado na ótica piagetiana, considerando equilibração, tomada de consciência, fazer e compreender, dentre outros conceitos fundamentais. Neste contexto, cada participante das oficinas experiencia desequilíbrios e reequilíbrios, perturbações e superações, confusão e discriminação, ou seja, vivencia situações possíveis e necessárias para se desenvolver e aprender, em um processo constante de autorregulação. E mais: o ambiente, as propostas e os adultos levam em consideração o momento de cada um. Por consequência, é possível viabilizar a recuperação em si mesmo do desejo de aprender, com interesse e autonomia crescentes para seguir enfrentando os múltiplos desafios na escola e na vida.