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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.53 São Paulo July/Dec 2021  Epub June 24, 2022

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2021i53p1-12 

Editorial

O COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO COM OS IMPACTOS DA PANDEMIA

Mitsuko Aparecida Makino Antunes1 
http://orcid.org/0000-0003-2793-7410

Ruzia Chaouchar dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-3441-782X

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; miantunes@pucsp.br

2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; ruziachauchar@hotmail.com


Mais de dois anos se passaram desde que chegaram os primeiros alertas de uma grave epidemia que, logo depois, passaria à categoria de pandemia. Os impactos foram (e continuam sendo) incomensuráveis. Seus efeitos deletérios certamente impõem muitas tarefas para a área da psicologia da educação: a produção de conhecimento científico para identificar e qualificar esses impactos como contribuição para as ações que deverão ser implementadas na tentativa de superação dessas consequências para o processo ensino-aprendizagem, em especial para os educandos das escolas públicas, que foram profundamente afetados e que vivenciaram e continuam experienciando as mais diversas formas de dificuldades de acesso aos direitos educacionais e sociais, que se revelam nas condições materiais postas pelas desigualdades sociais consubstanciadas pelas condições de classe, raça e gênero, entre outras. Tais desafios e tensionamentos requerem a apreensão do movimento em sua concretude, com vistas a ir além da aparência fenomênica forjada por expressões de “soluções” imediatas que favorecem a perpetuação de práticas individualizantes no campo educacional, entre outras esferas da vida social, como tendência a responder a processos complexos e contraditórios. Esses fenômenos sociais, por sua vez, exigem lentes analíticas rigorosas que não percam de vista a materialidade do real, de modo que “[...] as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (Marx & Engels, [1845] 2007, p. 43), o que envolve, entre outras mediações, a apreensão das determinações da realidade social balizadas por mecanismos de fortalecimento das estratégias coletivas de luta e resistência orientadas por responsabilidade social conjunta em face do acirramento da ofensiva neoliberal.

As desigualdades sociais, que são históricas e crônicas em nosso país, manifestam-se perversamente na educação; embora haja uma substantiva e contínua elaboração de conhecimento crítico que mostra suas muitas faces e consequências, assim como apontam para possibilidades de superação, muitos problemas persistem invisíveis e/ou mascarados por preceitos ideológicos imanentes ao movimento da sociabilidade capitalista. Uma distância significativa permanece entre o conhecimento disponível e a realidade cotidiana das escolas. Mais ainda, há uma certa naturalização desse processo, de um lado pelas ideias veiculadas principalmente pela grande mídia, que tende a apontar para as defasagens dos educandos brasileiros nos resultados das avaliações de sistema e suas consequências para o desenvolvimento econômico do país e, de outro lado, para a invisibilidade da realidade vivida por milhões de crianças e jovens em seu processo de escolarização alicerçado no antagonismo dos interesses de classe.

Algumas tentativas de ocultação e silenciamento das desigualdades sociais, porém, foram escancaradas durante a pandemia. As possibilidades de escolarização para as crianças das classes populares mostrou, durante e depois das restrições à circulação de pessoas (que se reitere: foram absolutamente necessárias e, inclusive, ficaram muito aquém do que seria o ideal), não apenas as condições de precariedade de acesso ao processo ensino-aprendizagem, mas às condições de moradia, saneamento básico, (in)segurança alimentar, além da violência doméstica, desemprego e, entre muitas outras formas de sofrimento, o medo, a doença, a morte e o luto. Sabe-se que os índices de contágio, morbidade e mortalidade foram também desiguais, atingindo muito mais as populações mais pauperizadas.

Os efeitos desumanizantes do acirramento da crise estrutural do capital (Mészáros, 2002) se manifestam nos movimentos de negação, desprezo e deslegitimação da ciência, ancorado na tendência de fortalecimento de premissas irracionalistas que se revelam, entre outros elementos, na assertiva difundida corriqueiramente de que “todos estamos no mesmo barco”, como uma das tentativas de forjar um sentimento de pertencimento coletivo harmônico, com intento de camuflar as reais determinações concretas de afirmação do neoconservadorismo edificado por princípios do irracionalismo. Nesse sentido, consideramos as proposições de Lukács (2020) acerca de elementos fundantes da ideologia irracionalista:

“O aguçamento da crise científica, a necessidade de optar entre continuar o caminho da dialética ou se refugiar no campo do irracionalismo costuma coincidir - não por acaso - com grandes crises sociais, pois, assim como o desenvolvimento das ciências da natureza é determinado, sobretudo, pela produção material, assim também as consequências filosóficas, que surgem de novas questões e respostas, de seus problemas e tentativas de solução, dependem das lutas de classes do período considerado. (Lukács, 2020, p.99)

Salienta-se que a determinação basilar do irracionalismo é promovida pela burguesia reacionária mediante a imputação aos sujeitos de um certo alento no terreno de visão de mundo, ilusão de um suposto ideário de liberdade e independência pessoal, de superioridade moral e intelectual (Lukács, 2020). Essa dimensão político-ideológica se manifesta na realidade social, entre outros aspectos, nos ataques aos direitos sociais conquistados arduamente pela classe trabalhadora no âmbito do processo educacional entre outras dimensões da vida social orientados pelos ditames do capital, tal como se expressam os tensionamentos contrários à gratuidade do ensino público, conforme os princípios constitucionais do Art. 206 inciso IV que pressupõe a “[...] gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; [...]” (Brasil, 1988, p. 109), camuflada por proposições pretensamente modernizantes alinhadas aos interesses da classe dominante edificada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de n°206/2019 em tramitação, que propõe em seu bojo o caráter de custeio de mensalidades em universidades públicas à população.

Na atual conjuntura, de pandemia e de adoção de narrativas que potencializam o contágio, a morbidade e a mortalidade, as pesquisas que estavam em fase inicial ou de produção de dados tiveram que ser revistas para se adaptarem às novas condições, o que permitiu acompanhar as múltiplas faces da escolarização na pandemia ou, mais especificamente, a imensa e profunda desigualdade educacional e social que assola a sociedade brasileira. As investigações então realizadas, especialmente aquelas que acompanharam as aulas ou encontros remotos e híbridos, constituem-se em registro histórico de alta relevância, cujos dados poderão e deverão ser revisitados no futuro. Dificuldade ou impossibilidade de acesso às plataformas digitais por não terem equipamentos mínimos e sinal de internet, por terem que dividir um aparelho precário com toda a família, pela falta da alimentação escolar, pelo material que não chegou aos estudantes, pelo espaço exíguo para uma família numerosa, pelas paredes finas que não filtravam os barulhos da vida cotidiana da vizinhança, pelo desemprego, pela peste que espreitava, pela morte tão próxima, que levou parentes e vizinhos... foram os cenários dramáticos vividos por escolares e testemunhados por inúmeros pesquisadores ao longo desses dois anos. Mas foram também motivos para frustração de professoras e gestoras, muitas das quais também desempenharam atividades laborais sem equipamentos, espaços adequados e tempo disponível para preparar e gravar videoaulas imbricadas por afetações de desamparo, desalento e silenciamento vivido no processo de produção e reprodução da força de trabalho, estruturado pela divisão de classe, sexual e racial forjada pela intensificação de expropriações de condições dignas de existência, implicando especialmente a camada populacional feminina e negra (Gonzales, 2020). Tais profissionais, paradoxalmente, faces das contradições presentes, buscaram se engajar no fortalecimento de caminhos alternativos coletivos orientados ao compromisso ético-político com os educandos mediante a organização coletiva voltada às estruturações de condições de ensino que oportunizassem possibilidades de apropriação do saber sistematizado, mas que também tiveram que cuidar de casa, filhos, parentes, mulheres que são em sua maioria. Não foi diferente com as mães de estudantes. Não foi diferente com a maioria da população brasileira, força de trabalho produtora de riqueza, mas que a ela não tem acesso, nem sequer ao mínimo necessário para a sobrevivência.

Os prejuízos são muitos e extrapolam as questões escolares, que estão diretamente relacionadas à saúde e, em especial, à saúde mental que foram fortemente afetadas. Sentimentos em profusão: medo, insegurança, frustração e ansiedade tornaram-se crônicos e deixarão marcas em todos.

As tarefas para a área da psicologia da educação são muitas. Em meio às drásticas medidas contra a ciência e a pesquisa em geral, que incluem não só o corte de verbas, mas também a contrapropaganda ao conhecimento por ela produzido, a resistência permanece e se fortalece para que sua função social seja cumprida e uma resposta histórica possa ser dada. Produzir conhecimento sobre a realidade da pandemia e suas consequências para milhões de educandos, professoras, gestoras, mães e comunidade é uma das condições para a concretização de ações efetivas para sua superação. Há que se destacar que esse movimento não pode ser imediatista e nem fruto de ações individuais, mas que deve começar com a pressão para que políticas públicas consequentes e comprometidas socialmente sejam adotadas. Essa empreitada é coletiva e deve pautar-se num projeto ético-político de compromisso com a democracia, a justiça e a igualdade.

Quanto a esta Revista, esperamos que ela seja um dos veículos de difusão desse conhecimento que denuncia, mas que também anuncia, tal como propõe Freire (1983, p.101): “ai daqueles e daquelas, entre nós, que pararem com a sua capacidade de sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e anunciar”. Que possamos trazer para compartilhar com todos os interessados as intervenções que poderão levar à superação desses problemas tão complexos e a um salto de qualidade da educação em geral, mas em especial da escola pública.

Neste número publicamos quatro artigos que têm como foco o ensino superior relacionado às condições de exclusão e à adoção de práticas inclusivas; são eles: Preconceito e prounistas: “seu lugar não é aqui”, Políticas Públicas e Mobilidade Social: Egressos do Programa Universidade para Todos (PROUNI) e Apoio Psicológico ao Universitário: a expressão do sofrimento em oficinas virtuais e, como contribuição metodológica, Métodos de estudo no Ensino Superior: construção e validação de um questionário. Concepções de desenvolvimento infantil: um estudo com educadoras de creches públicas é um artigo que aborda uma vertente relevante desse segmento da educação, pois as concepções das educadoras são definidoras de suas práticas e têm um impacto profundo no desenvolvimento de crianças pequenas. Vários artigos apresentam estudos de revisão, proporcionando uma visão geral sobre temas de interesse para a área, como a recorrente questão da indisciplina, no artigo Indisciplina e ação democrática na escola: uma revisão sistemática; a intervenção sobre a violência na escola e sobre as questões de gênero, com os artigos O enfrentamento da violência na escola: o que as produções científicas apontam como medidas? e Intervenções Educativas para aprendizagem acerca de Sexualidade e Gênero no Brasil: uma Revisão de Escopo; um estudo sobre superdotação e altas habilidades, no artigo Autoconsciência em Talentosos: Análise da Produção Científica (de 1995 a 2015) e, completando, um trabalho sobre Análise do Comportamento: Equivalência de estímulos e ensino de leitura: características dos participantes de estudos empíricos brasileiros de 2008 a 2017. De particular relevância, na seção Compartilhando, uma contribuição teórica ímpar: A revolução de Vigotski.

Mais uma vez temos que dizer que nós, autores, pareceristas e membros do corpo editorial, também enfrentamos muitas dificuldades nesse período. Não seria possível dar cabo dessa tarefa sem a imensa colaboração das nossas mestrandas, mestras e doutorandas que não medem esforços para que esta Revista venha a público. Reafirmamos o nosso profundo agradecimento a todas e todos cujo trabalho concretiza este número de nosso periódico: Jaqueline Lima da Silva Nery, Jessica Silva, Priscila da Costa, Regina Prandini, Ruzia Chaouchar e nossa mais nova e super competente Carolina Telis Garcia, assim como ao Waldir Alves, da EDUC. Reiteramos nossos agradecimentos ao Portal de Revistas da PUC-SP e, em especial, ao PIPEq, cujos recursos têm permitido que nossa Revista continue sua missão de acolher e difundir o conhecimento produzido pela área da Psicologia da Educação.

Convidamos a todas, todos e todes a uma leitura instigante que enseje perguntas (Freire & Faundez, 1985) sobre a realidade educacional, entre outras dimensões da vida social, que se configura como um elemento fundante na possibilidade de fomentar a capacidade crítica diante do real, orientados por valores e princípios que compõem um projeto societário para além do capital.

Referências

Brasil. (2020). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional N° 105/2019. - Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas. [ Links ]

Freire, P. (1983). Educação: o sonho possível. In: Brandão, Carlos Rodrigues (Org.).O Educador: vida e morte. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. [ Links ]

Freire, P. Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]

Gonzalez, L. (2020). Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: Rios, F.; Lima, M. (Org.). Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]

Lukács, G. (2020). Destruição da razão. Trad. Rainer Patriota. Alagoas: Instituto Lukács. [ Links ]

Marx, K.; Engels, F. (2007). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo. [ Links ]

Mészáros, Í. (2002). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Trad. Paulo Cezar Castanheda e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo . [ Links ]

Recebido: 22 de Maio de 2022; Aceito: 22 de Maio de 2022

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