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Psicologia da Educação

versión impresa ISSN 1414-6975versión On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.54 São Paulo ene./jun 2022  Epub 30-Abr-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i54espp24-32 

Artigos

PESQUISA-TRANS-FORMAÇÃO E A CRÍTICA MARXISTA NA PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO

Trans-Formation Research and marxist critical in information and knowledge production

Investigación-Trans-Formación y la crítica marxista em la producción de información y conocimiento

Luciana de Oliveira Rocha Magalhães1 
http://orcid.org/0000-0002-7677-6337

Wanda Maria Junqueira de Aguiar2 
http://orcid.org/0000-0003-0265-9354

1 Universidade de Taubaté – Taubaté – SP – Brasil; lucianam11@hotmail.com

2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – São Paulo – SP – Brasil; iajunqueira@uol.com.br


RESUMO

Este artigo, de caráter metodológico, pretende expor a perspectiva que deu base à pesquisa desenvolvida na tese “Dimensão subjetiva dos processos de inclusão escolar no movimento da Pesquisa-Trans-Formação”, que compõe o rol de pesquisas críticas que têm sido realizadas pelo GADS (Grupo Atividade Docente e Subjetividade) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e busca enfatizar a crítica marxista como princípio necessário à pesquisa que se propõe transformadora e crítica. Descreve-se o caminho da Pesquisa-Trans-Formação, que se fundamenta no método materialista histórico-dialético e na abordagem categorial, considerando que a presença da crítica, em especial a crítica de base marxista, é imprescindível à criação de estratégias de produção de informação e de conhecimento da pesquisa. Destacou-se, neste artigo, a categoria Dimensão Subjetiva da Realidade e a perspectiva da Incompletude Crítica no movimento da Pesquisa-Trans-Formação, assim como as estratégias criadas no processo da pesquisa que mais tiveram impacto para o movimento crítico de pesquisar-formar-transformar.

Palavras-chave: Pesquisa-Trans-Formação; Crítica marxista; Dimensão subjetiva da realidade; Materialismo histórico-dialético; Psicologia sócio-histórica

ABSTRACT

This article, of a methodological nature, intends to expose the methodological perspective of the research developed in the thesis "Subjective dimension of school inclusion processes in the Trans-Formation Research movement", which composes the list of critical research that has been carried out by GADS (Group Teaching Activity and Subjectivity) of the Pontifical Catholic University of São Paulo and seeks to emphasize Marxist criticism as a necessary principle to any research that proposes transformative and critical. The path of Trans-Formation Research is described, which is based on the historical-dialectical materialist method and category approach, considering that the presence of criticism, especially marxist-based criticism, is essential to creation of strategies for the research information and knowledge production. This article highlighted the category Subjective Dimension of Reality and the perspective of Critical Incompleteness in the Trans-Formation Research movement, as well as the strategies created in the research process that most impacted the critical movement of research-form-transform.

Keywords: Trans-Formation Research; Marxist Criticism; Subjective Dimension of Reality; Historical-dialectical Materialism; Socio-historical Psychology

RESUMEN

Este artículo, de naturaleza metodológica, pretende exponer la perspectiva que dio base a la investigación desarrollada en la tesis "Dimensión subjetiva de los procesos de inclusión escolar en el movimiento de Investigación- Trans-Formación" que compone la lista de investigaciones críticas que ha sido realizadas por GADS (Grupo de Actividad Docente y Subjetividad) de la Pontificia Universidad Católica de São Paulo y busca enfatizar la crítica marxista como principio necesario para cualquier investigación que se propone transformadora y crítica. Considera, describiendo el camino de la Investigación-Trans-Formación que tiene lugar con el método materialista histórico-dialéctico y con el enfoque de categorías, considerando que la presencia de la crítica, especialmente la crítica marxista, es esencial para la creación de estrategias para la producción de información y conocimiento de la investigación. Este artículo destacó la categoría Dimensión Subjetiva de la Realidad y la perspectiva de la Incompletitud Crítica en el movimiento de Investigación Trans-Formación, así como las estrategias creadas en el proceso de investigación que más tuvieron un impacto en el movimiento crítico de investigación-forma-transformación.

Palabras clave: Investigación-Trans-Formación; Crítica Marxista; Dimensión Subjetiva de la Realidad; Materialismo Histórico-dialéctico; Psicología Socio-histórica

O processo autogestionário de conscientização

Como resultado de um processo histórico de autocriação, o homem se apresenta como uma totalidade de disponibilidades.

(Manacorda)

Este artigo tem como referência a pesquisa crítica marxista desenvolvida na tese “Dimensão subjetiva dos processos de inclusão escolar no movimento da Pesquisa-Trans-Formação”, que compõe o rol de pesquisas críticas que têm sido realizadas pelo GADS (Grupo Atividade Docente e Subjetividade) da PUC-SP e tem a intenção de enfatizar a crítica marxista como princípio necessário à pesquisa que se propõe transformadora e crítica. Consideramos que a presença de uma abordagem categorial de base marxista e das perspectivas críticas, do planejamento da pesquisa às considerações finais, é necessária para a consecução deste intento. Diante disso, destacaremos a categoria Dimensão Subjetiva da Realidade e a perspectiva da Incompletude Crítica no movimento da Pesquisa-Trans-Formação e, em seguida, as estratégias didático-pedagógicas criadas no processo da pesquisa para a produção de informações e de conhecimento.

Quando nos referimos à pesquisa crítica marxista é necessário que fique explícito que esta necessariamente se desenvolve sob múltiplas perspectivas categoriais que lhe conferem movimento e coerência frente à materialidade pesquisada. Totalidade, contradição, luta de classes e emancipação política e humana, dentre muitas outras, são categorias teórico-metodológicas consoantes ao método materialista histórico-dialético, que possibilitam que se trabalhe, em todas as instâncias que a realidade da pesquisa exigir, sob a perspectiva autogestionária, sempre considerando as determinações que a constituem. O que isso quer dizer?

Perspectiva autogestionária é uma perspectiva revolucionária marxista que nasce da perspectiva de Karl Marx (1871/2011) de que a humanidade irá superar autogestionariamente a sociedade capitalista e o seu modo de produção, desenvolvendo o autogoverno dos produtores, uma sociedade gerida por conselhos de trabalhadores em todos os níveis.

Criando instituições autogeridas por meio de sua práxis, a classe operária abre espaços onde as novas formas econômicas podem se realizar. Nesse sentido é inegável a contribuição de Marx para uma maior conscientização da importância da auto-organização dos trabalhadores como meio e fim, visando um projeto socialista (Tragtenberg, 1986/1991, p. 10).

Ainda que a escola seja um espaço da burocracia estatal reprodutora da sociedade capitalista, os trabalhadores, em geral, e os da educação, em particular, têm plenas condições de desenvolver em seu próprio local de trabalho, no movimento do seu labor, um processo diferente de reorganização do seu próprio trabalho, que rompa “o isolamento e crie uma forma coletiva de expressão” (Tragtenberg, 1986/1991, p. 18), possibilitando o desenvolvimento do processo de consciência de classe para si na perspectiva autogestionária marxista. Daí também, mas não somente, o marxismo ser compreendido como “a expressão teórica do movimento revolucionário dos trabalhadores” (Korsch, 1923/2008).

Contudo, isto não significa dizer que no processo de pesquisa crítica marxista se constituirá uma ilha autogestionária que se encarregará da produção da pesquisa em todos os seus meandros, alheia às situações, espaços, posicionamentos que a circundam. Muito pelo contrário: a pesquisa se desenvolverá compartilhando os espaços necessários ao seu desenvolvimento, face às situações e aos posicionamentos presentes na realidade, sejam quais forem, mas sempre na perspectiva autogestionária marxista. Isto significa ter mirantes e horizontes que permitam tensionar a realidade estudada como forma de prospectar informações e produzir conhecimentos que estejam enovelados pelas ideologias dominantes gerais e específicas. Em suma, esta é uma condição explicitada no arcabouço teórico-metodológico para se chegar à verdade, à realidade concreta, em meio às estruturas e conjunturas conspurcadas pelas narrativas engendradas pelo mundo capitalista dominante, com seus múltiplos aparelhos ideológicos que formatam toda a sociedade nos moldes que lhe convém. Viana (2018, s/p), ao mesmo tempo nos alerta e nos instiga à luta autogestionária quando diz que é necessário compreender “os limites e as dificuldades de uma autogestão pedagógica” em construção no seio deste universo capitalista opressor. Contudo, não devemos desistir diante dessa realidade “e deixar o campo livre para a pedagogia burocrática, mas avançar e fazer dela um projeto, uma busca constante, teórica e prática”.

Nessa medida, quando há a compreensão de que a gênese da pesquisa crítica marxista submerge inexoravelmente nestas perspectivas marxistas, entendemos que ela é parceira dos processos de transformação social, dos processos que têm como missão desenvolver a consciência crítica, necessária para o desejado desvelamento da realidade, para a rigorosa cientificidade em que as informações e os conhecimentos vão tomando corpo, revelando sentidos, significados, produzindo significações. Quando é realizado um processo de pesquisa crítica marxista, a Pesquisa-Trans-Formação, por exemplo, não é mantido um “distanciamento epistemológico” da realidade, procedimento cultivado no racionalismo descartiano, no positivismo comtista, no mecanicismo, no atomismo, no quantitativismo e outras correntes científicas (e/ou pseudo-científicas) afins que mantêm os pés (e o cérebro) cravados nos horizontes limitados do século XIX : ao contrário, procura-se provocar, isto sim, um choque, um confronto com a realidade e experimenta-se, mediante um conjunto de estratégias, situações em que as nuances da realidade vão sendo reveladas: às vezes uma a uma, às vezes aos borbotões. Muitas dessas estratégias são utilizadas na Pesquisa-Trans-Formação com o objetivo de instigar os grupos em formação a experimentarem reflexões além das aparências, diferentes do que está impregnado no senso comum, reflexões críticas ao status quo que permitam explorar outros mirantes sob diferentes perspectivas, descobrindo e redescobrindo práticas educativas interessantes, apropriadas e factíveis que não estavam tão longe de serem operacionalizadas. Nessa medida, a investigação estará sempre operando a “crítica da Crítica crítica” , expondo ao dessecamento a estrutura, a conjuntura e a cotidianidade escolar e tudo aquilo que estas instâncias carregam. Adiante será explicada mais amiúde a Pesquisa-Trans-Formação, sua estrutura e resultados.

A necessária abordagem categorial

A construção do pensamento ocorre, pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto. Isto é: a passagem do empírico ao concreto se dá pela mediação do abstrato. [...] Pode-se dizer que o concreto - ponto de partida é o concreto real e o concreto - ponto de chegada é o concreto pensado, ou seja, a apropriação pelo pensamento do real concreto.

(Dermeval Saviani)

Muitas categorias teórico-metodológicas são fundamentais quando intencionamos desenvolver uma pesquisa crítica marxista. A Pesquisa-Trans-Formação considera que algumas categorias são:

[...] mais centrais, pois utilizadas amiúde, recorrentemente em quase todo o trabalho. São elas: contradição, dimensão subjetiva da realidade, emancipação política e emancipação humana, historicidade, materialidade, mediação, luta de classes, pensamento-palavra, práxis, significações, singularidade-particularidade-universalidade, subjetivação-objetivação, totalidade, trabalho, transformação e zona de desenvolvimento iminente (Magalhães, 2021, p. 163).

Algumas destas categorias podem não ser utilizadas substantivamente em algumas pesquisas do tipo pesquisa-trans-formação, ao passo que outras tantas não listadas podem vir a se incorporar a este rol. Isto será determinado no próprio transcorrer de cada pesquisa e na forma como o pesquisador tratará o fenômeno estudado. Mas o que são, afinal, estas categorias e como utilizá-las?

Podemos entender “categorias” como:

[...] formas advindas da realidade que elaboramos no pensamento para que conheçamos a própria realidade na qual as mesmas categorias estão contidas. Diferem, portanto, dos conceitos, pois, enquanto estes são uma generalização construída socialmente a partir da realidade concreta, as categorias definem as formas de ser da realidade concreta em seu movimento histórico-dialético, ou seja, o ser-no-mundo desta realidade. Dessa forma as categorias nos ajudam a conhecer melhor as características dos próprios conceitos que existem na realidade. Conceitos contêm o social e a história, mas explicam a realidade até certo ponto, pois são generalizações estáticas. Conceitos contêm a história do fenômeno, mas não a historicidade, o movimento! Daí nossa necessidade de abordagens categoriais, as quais, para além de explicações advindas do significado, possam abarcar o movimento e a contradição, as transições históricas pelas quais passam o fenômeno (Magalhães, 2021, pp. 163-164).

A Pesquisa-Trans-Formação, ao orientar-se pelo método materialista histórico-dialético, concebe as categorias dentro do espectro teórico-metodológico, ou seja, utiliza-se das categorias desde o planejamento até as conclusões finais. A função atribuída às categorias, grosso modo, a de superar a superficialidade imediata dos fenômenos e ir para além da aparência, origina-se da concepção metodológica marxista. Muitas das categorias listadas acima vêm sendo desenvolvidas desde Karl Marx (algumas, inclusive, incorporadas e superadas por ele de estudiosos anteriores, como Hegel e Feuerbach, e até da Grécia antiga); outras vão sendo apropriadas e criadas de acordo com os estudos feitos: zona de desenvolvimento iminente, com Vigotski, por exemplo; dimensão subjetiva da realidade, no âmbito da Psicologia Sócio-histórica etc. Não é escopo deste artigo falar de cada uma destas categorias, mas de uma delas, a dimensão subjetiva da realidade, que é central para a Pesquisa-Trans-Formação, pois, da leitura e das lentes desta “dimensão”, ressurtiram todas as informações e os conhecimentos que estruturaram todo o trabalho, do início ao fim.

A dimensão subjetiva da realidade objetiva

[...] uma unidade de contrários que implica movimento e superação; e o que resulta é algo objetivo e subjetivo, ao mesmo tempo. Ou seja, uma realidade na qual a subjetividade ganha objetividade e a objetividade se subjetiva.

(Graça Gonçalves e Odair Furtado)

Pode causar estranheza o fato de, nesta seção, utilizarmos a nomenclatura “dimensão subjetiva da realidade objetiva” em vez de “dimensão subjetiva da realidade” ou, simplesmente, “dimensão subjetiva”. Esta forma, até mesmo redundante, vem justamente para reforçar que esta categoria teórico-metodológica da psicologia sócio-histórica, em desenvolvimento já há quase quatro décadas a partir dos estudos da professora Silvia Lane , ressurtida do materialismo histórico-dialético, é fundamental no processo de pesquisa crítica marxista da Pesquisa-Trans-Formação e refere-se à expressão teórica da realidade e que, de forma alguma, pode ser associada a variegadas construções procedimentais e/ou metodológicas de cunho idealista e/ou dicotômico e/ou positivista ou subjetivista que observamos no meio acadêmico. A dimensão subjetiva da realidade objetiva, como categoria e também como fenômeno da realidade objetiva, se constrói a partir da materialidade da totalidade, no pensamento e na ação das pessoas em face da realidade. E aqui é importante lembrar que, para Marx, a realidade concreta é o que existe, e o que existe é a verdade, e a expressão desta verdade é a teoria. Assim, o que existe é apreendido pela crítica radical da realidade e expresso pela teoria. Este é o trabalho do pesquisador crítico marxista: produzir teoria a partir da crítica da realidade estudada.

Na Pesquisa-Trans-Formação, com efeito, as informações e o conhecimento expressos na teoria surgem da realidade, atuam no movimento mesmo de produção continuada de significações. Daí a importância fundamental da categoria dimensão subjetiva da realidade objetiva para a consecução dos objetivos da pesquisa crítica marxista na sua inexorável missão de desvelamento da realidade, na impoluta compreensão das questões a que se propôs investigar. A pesquisa crítica marxista contém em sua gênese e em seu processo de constituição de saberes, estratégias de desvelamento da névoa insalubre e capciosa produzida pela ideologia interesseira das classes dominantes - ideologia cavilosa que a tudo distorce e ardilosamente é reproduzida por meio dos aparelhos ideológicos do Estado títere do capitalismo - diuturnamente, incansavelmente, notadamente nas escolas públicas orquestradas pela burocracia estatal (Tragtenberg, 1986/1991).

Para Karl Marx, essa realidade desvelada, experimentada, é expressa no pensamento; para Lev Vigotski, consoante a Marx, este pensamento, construído pela articulação de sentidos e significados frutos da realidade social, se realiza por meio da fala. Embasada em Marx e Vigotski, a dimensão subjetiva da realidade, como fenômeno social, expõe em si este movimento. E como categoria teórico-metodológica nos dá suporte permanente durante todo o processo de prospecção de informações e produção de conhecimentos para a compreensão desta realidade, processo este instigado pelas estratégias estruturadas da/na pesquisa.

Assim, diferentemente das pesquisas realizadas sob a episteme burguesa (Viana, 2018), que necessitam do acobertamento do todo ou de parte da realidade para favorecer seus projetos de manutenção do status quo, impedir o processo de conscientização para si, negar a luta de classes, negar o capital (como relação e contradição), negar a presença manipuladora do Estado (como aparelho burocrático-ideológico a serviço do modo de produção capitalista) etc., a Pesquisa-Trans-Formação, como pesquisa crítica marxista, acontece sob a episteme marxista e seu modus operandi se sustenta inteiramente no processo de desnudamento da realidade concreta. Há que se ter uma dedicação constante para manter durante o processo de produção de saberes da pesquisa o rigor necessário a radicalidade revolucionária que a perspectiva marxista exige.

Em épocas não-revolucionárias, torna-se difícil a manutenção de uma teoria que propõe, do início ao fim, um projeto radical e revolucionário. Daí a marginalização do marxismo, que só pode ser uma expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. (Teles, 2021, s/p)

Destarte, não há como ter como proposição uma pesquisa crítica marxista sem propor o desvelamento da realidade, com o absoluto rigor que a “crítica desapiedada do existente” demanda (Marx, 1844/2010): ir a fundo na descascadura da cebola, camada a camada, apesar das queimantes lágrimas que teimarão em ofuscar sua visão e o impelir para caminhos fáceis, para certezas que aliviarão o medo da realidade desconhecida , mas concretamente distantes do timão da totalidade, das contradições que lhe dão movimento, da miríade multiarticulada de mediações e suas múltiplas determinações, do movimento da práxis científica e sob a perspectiva da luta de classes que lhe orienta. A dimensão subjetiva da realidade é a categoria que possibilita a apreensão dessa realidade manifesta nas significações produzidas, a partir desta mesma realidade histórica e dialeticamente confrontada com as subjetividades forjadas até então. De outra forma, ou seja, “na falta de percepção da realidade concreta, a imaginação assume o lugar do concreto e assim se produz uma visão da sociedade comandada mais pela arbitrariedade da concepção pessoal dos pensadores do que pela pesquisa dessa mesma realidade” (Viana, 2007, p. 23): só a pesquisa crítica marxista e as categorias teórico-metodológicas que a iluminam possibilitam o afastamento dessas “arbitrariedades” de idealismos e podem permitir a “percepção da realidade concreta”. Nessa medida, da mesma forma que Lukács (1923/2003, p. 66) define marxismo como “a expressão pensada do próprio processo revolucionário”, a categoria teórico-metodológica dimensão subjetiva da realidade revela a “expressão pensada” de aspectos da realidade que, na perspectiva da pesquisa crítica marxista autogestionária, refere-se também a aspectos do processo revolucionário em movimento na sociedade.

A perspectiva da incompletude crítica

[...] o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente.

(Paulo Freire)

Toda pesquisa crítica marxista - e aqui afirmamos com segurança - tem que assumir o compromisso de desenvolver nas/os pesquisadoras/es e nos sujeitos da pesquisa, com o maior rigor possível, a perspectiva da incompletude crítica de si e dos outros. O que vem a ser esta perspectiva? A perspectiva da incompletude crítica é o processo de conscientização de que nossa colcha de retalhos dos saberes tem mais buracos do que tecido, ou seja, por mais que estudemos um assunto por anos a fio ou tenhamos uma vasta experiência numa atividade ou área do conhecimento, ou até quando tratamos obstinadamente de um caso objetivo ocorrido na escola, por exemplo, desconhecemos muito mais do assunto ou da área ou do caso específico sobre os quais nos debruçamos, do que conhecemos: colocando de outra maneira, nunca nos aproximaremos do conhecimento pleno sobre algo e, para passarmos menos frio nos períodos outonais e invernais das experiências científicas, temos necessariamente que intencionar a atitude da assunção perene da nossa incompletude e da do outro, que não é a mesma da nossa.

Com a consciência que a incompletude do ser e, portanto, de nós todos, é crônica, perene, a perspectiva da “incompletude crítica” nos garante uma situação profícua de aprendizagem e desenvolvimento porque assumidos de nossa incompletude, nos postamos criticamente diante dela e dos saberes que buscamos, independentemente do nível de aprendizado consistente que apreendamos sobre um determinado assunto (Magalhães, 2021, p. 294).

Lançamos mão, então, a todo o momento, da busca por conhecimentos e dos saberes e experiências da coletividade para dirimir nosso inacabamento intelectual e possamos alçar além da nossa própria capacidade original, enriquecendo a pesquisa com proposições muitas vezes fundamentais, mas que estavam, até então, fora do nosso arcabouço teórico-metodológico. Ao mesmo tempo, enriquecemos o grupo em formação, os sujeitos da pesquisa, os membros das redes de apoio, enfim, toda a coletividade, com os novos elementos e reflexões que deles mesmos advirão. A perspectiva da incompletude crítica, como categoria teórico-metodológica, tem esse papel de estar sempre presente para que possamos buscar de todas as formas o que está insuficiente em nós: nossa ação aqui é mantermos esta perspectiva em alerta o tempo todo; nossa reação é acionarmos o outro, os outros e o pesquisar sempre que uma lacuna se abrir, sempre que alguma incompletude ou inacabamento forem identificados. “Este é o ciclo gnosiológico”, que faz com que o grupo transite da “ingenuidade” para a “curiosidade epistemológica” (Freire, 1996/2000, p. 32). Esta ação continuada e esta reação oportuna rápida mudam o rumo da pesquisa. A realidade se modifica para os que reagem (Jesus, 1986) e, muitas vezes, se modifica radicalmente, promovem-se transformações profundas, desvelam-se fetichismos arraigados há muito nas mentes e nos corações. Por isso, a exigência científica da assunção da perspectiva da incompletude crítica durante o desenvolvimento da pesquisa crítica marxista: temos de nos postar o tempo todo críticos ao nosso saber e ao saber do outro, abertos à mudança.

Estratégias críticas como princípio metodológico na Pesquisa-Trans-Formação

O liberalismo privilegia a imediaticidade por meio de estratégias que enaltecem o subjetivismo, singularizando as relações e responsabilizando cada indivíduo por fracassos ou sucessos. O mito da meritocracia sedimenta ideologicamente as relações próprias do capitalismo, fortalecendo as condições de existência desse modo de produção sustentado pela exploração da classe trabalhadora assalariada. Compreendendo a materialidade do cenário dessa forma social capitalista periférica em que vivemos, que determina e forja subjetividades, as estratégias na Pesquisa-Trans-Formação pretendem intencionalmente contribuir para a constituição de mediações por meio de ações formativas, fazendo com que cada grupo trabalhado produza conhecimento revolucionário relevante para a construção de uma sociedade diferente desta. Porque, como nos diz Marx, seria puro idealismo ou utopismo falar de uma sociedade emancipada, quando não a conhecemos ainda. O que temos que fazer é criar as condições para que ela se desenvolva!

Por isso TRANSFORMAÇÃO nesta pesquisa não se resume a algo pontual, individualista: compõe a perspectiva da utopia concreta nos processos de transformação social. Precisamos para este intento de estratégias de formação que contemplem essa perspectiva, metodologias avessas a formatos de ciência neutra e objetiva (como se neutralidade fosse possível!).

O método da Pesquisa-Trans-Formação, no campo da crítica marxista, pretende a produção de uma práxis científica, que se faz ao longo da pesquisa nos processos de produção de informação e conhecimento, possibilitando uma práxis revolucionária e militante, no sentido de criar possibilidades para a conscientização crítica para si. Uma filosofia da práxis, que não se resume a contemplar, a descrever ou idealizar a realidade, mas a conhecer e transformar, implicando-se na dialética teoria-prática-crítica-reflexão. Assim, a própria pesquisa é instrumento e resultado. Imbricando teoria-prática-método-técnica-análise, realizam-se nesse caminho sínteses provisórias das ações formativas, que possibilitam reflexões sobre os próximos passos desse processo.

Cada materialidade estudada é o que dará os subsídios para o desenvolvimento do complexo pesquisar-formar-transformar; assim, especificamente para a realidade pesquisada na tese aqui usada como base - professores de uma escola municipal da zona leste da cidade de São Paulo - os instrumentos criados para a prospecção de dados na pesquisa são ao mesmo tempo estratégias didático-pedagógicas, cumprindo a função formativa da pesquisa. Alguns pontos sobre a proposta metodológica desta pesquisa devem ser destacados:

  • As estratégias foram discutidas e elaboradas coletivamente: tanto junto ao grupo de pesquisa, quanto junto ao grupo de professoras participantes da pesquisa na escola estudada. Forma e conteúdo eram a todo momento discutidos. Casos de ensino com as vivências escolares das participantes deram ensejo à escrita compartilhada de partes de um capítulo da tese, assim como um capítulo de livro. Claro que, mesmo priorizando a coletividade, a experiência da pesquisadora é algo que deve ser levado em consideração, assim como os objetivos estabelecidos para a pesquisa.

  • Os encontros eram semanais e presenciais, e, durante a pandemia passaram a ser on-line. Nessa toada, é premente a variabilidade de formatos das formações. Exposições de conteúdos, slides, discussão de textos, estudos de caso foram estratégias usadas, mas sempre agregados à intenção de trazer à tona a tensão dialética da temática inclusão escolar, provocações necessárias para que todas saíssem de suas zonas de conforto e materializassem as contradições da práxis inclusiva. A autoconfrontação das falas por elas proferidas em encontros anteriores foi uma forma de provocar e instigar o debate.

  • Para ampliar as discussões e trazer esclarecimentos e conhecimentos específicos, diferentes profissionais da área da educação especial-inclusiva foram chamados para alguns encontros. Foram denominados coparticipantes da pesquisa, pois desempenharam importante papel na formação e do grupo, incrementando o debate.

  • Não deixar muito espaçamento de tempo entre os encontros foi uma alternativa para não se perder o interesse. E, mesmo assim, entre um encontro e outro, também era estabelecida comunicação via e-mail, WhatsApp, quando eram feitas perguntas para aprofundamento de assuntos que não foram bem explicados nos encontros.

  • O clima era sempre de uma boa convivência, sempre provocando a curiosidade e a vontade de participar dos próximos encontros - com isso, foram quase 18 meses de duração! Uma dialogicidade dialética se constituiu em todos os momentos, priorizando o diálogo, a abertura para participar, mas sempre de forma dialética, ou seja, nada confortável, e sim provocativa, tensionando o debate.

Considerações finais

Ao passo que a dominação do capitalismo se funda na ignorância das grandes massas, a construção do socialismo pressupõe maior iniciativa, liberdade de pensamento e ação dessas massas, pois é o caminho para a elevação do seu nível de consciência política.

(Rosa Luxemburgo)

Pesquisar, principalmente em tempos de desmonte de conquistas, em tempos enviesados de valorações que vão na contramão de mediações que apontem para a emancipação humana, pressupõe um engajamento radical à realidade estudada e luta por espaços de possibilidades de conscientização para si. Precisamos constantemente nos lembrar e fazer valer nosso papel de pesquisar-formar-transformar e, para isso, a perspectiva da crítica marxista deve estar a todo momento presente. Parafraseando Marx (1875/2012, p. 43), que afirma que “não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema”, assim o é com as estratégias metodológicas da Pesquisa-Trans-Formação: associar de mil maneiras diferentes palavras como transformação e crítica a toda e qualquer pesquisa não garante a criticidade. Para superarmos superficialismos e idealismos há que se compreender e praticar a crítica marxista, necessariamente na perspectiva da emancipação humana.

Referências

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Recebido: 06 de Fevereiro de 2022; Aceito: 30 de Abril de 2023

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