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Psicologia da Educação

versión impresa ISSN 1414-6975versión On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.54 São Paulo ene./jun 2022  Epub 30-Abr-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i54espp43-50 

Artigos

POR UM EXERCÍCIO COLETIVO DE APRENDIZAGEM CRÍTICA E COLABORATIVA NA PÓS-GRADUAÇÃO:PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS NACIONAIS E EPISTEMOLÓGICAS

Towards a collective exercise of critical and collaborative learning in graduate studies:beyond national and epistemological borders

Por un ejercicio colectivo de aprendizaje crítico y colaborativo en los estudios de posgrado:más allá de las fronteras nacionales y epistemológicas

Gabriel Silva Xavier Nascimento1 
http://orcid.org/0000-0001-9308-7296

Rubens Lacerda de Sá2 
http://orcid.org/0000-0003-2555-0079

1 Instituto Federal de São Paulo – Registro – SP – Brasil; tilgabriel@gmail.com

2 Universidade Federal de São Paulo – Guarulhos – SP – Brasil; rubens.sa@unifesp.br


RESUMO

No contexto da pós-graduação, as inúmeras demandas e pressões que recaem sobre professores e alunos em termos de produtividade e o direcionamento metodológico das pesquisas incitam cada vez mais à criação de redes de colaboração que permitam não somente a troca de conhecimentos como também integram o percurso formativo dos pesquisadores no âmbito do mestrado e doutorado. Neste contexto, apresentamos aqui um relato que parte da experiência vivenciada no curso "Critical Research Methodologies: (Some) Cultural-Historical Perspectives”. O curso, base para esta edição especial, resulta da confluência de três Metodologias de Pesquisa Crítica , com vistas a contribuir para a formação de pesquisadores, pautando-se em uma perspectiva dialógica e colaborativa de aprendizagem que possibilite a transformação social. O ferramental teórico abordado, bem como as atividades propostas no percurso formativo mostram-se essenciais e urgentes para um pensar metodológico mais abrangente e crítico ao promover a interação entre alunos e docentes de diferentes países e articular experiências sobre o fazer pesquisa.

Palavras-chave: Metodologias críticas; Psicologia histórico-cultural; Formação de pesquisadores

ABSTRACT

In the context of graduate studies, the numerous demands and pressures that fall on teachers and students in terms of productivity and the methodological direction of research increasingly encourage the creation of collaborative networks that allow not only the exchange of knowledge but also integrate the formative journey of researchers in the context of master's and doctoral degrees. In this context, we present here a report based on the experience of the course "Critical Research Methodologies. The course results from the confluence of three strands of the so-called Critical Research Methodologies, aiming to contribute to researcher’s education through a dialogical and collaborative learning perspective that enables social transformation. The theoretical approach, as well as the activities applied along course proved essential and demanding to achieve a more comprehensive and critical methodological thinking by promoting the interaction between students and teachers from different countries and articulating research experiences.

Keywords: Critical methodologies; Cultural-Historical Psychology; Researcher’s education

RESUMEN

En el contexto de los estudios de postgrado, las numerosas exigencias y presiones que recaen sobre profesores y estudiantes en términos de productividad y de orientación metodológica de la investigación, fomentan cada vez más la creación de redes de colaboración que permitan no sólo el intercambio de conocimientos sino también integrar el recorrido formativo de los investigadores en el contexto de los estudios de máster y doctorado. En este contexto, presentamos aquí un informe basado en la experiencia del curso "Metodologías críticas de investigación: (algunas) perspectivas histórico-culturales". El curso resulta de la confluencia de tres Metodologías de Investigación Crítica, con el fin de contribuir a la formación de investigadores basada en una perspectiva de aprendizaje dialógico y colaborativo que permita la transformación social. El instrumental teórico abordado, así como las actividades propuestas en el trayecto formativo, son esenciales y urgentes para un pensamiento metodológico más amplio y crítico que promueva la interacción entre estudiantes y profesores de diferentes países y articule experiencias sobre el hacer investigación.

Palabras clave: Metodologías críticas; Psicología histórico-cultural; Formación de investigadores

Tensões iniciais

O ingresso na pós-graduação é marcado por uma série de expectativas que vão desde o interesse específico na pesquisa e o aprofundamento de conhecimentos na respectiva área de atuação à perspectiva de ascensão na carreira profissional. Uma vez que se passe pela seleção, no entanto, o cenário adiante mostra-se marcado por tensões e incertezas sobre como proceder em relação à pesquisa, delimitação teórica e metodológica.

Pode-se dizer que as incertezas precedem ainda a própria seleção nos programas e são marcadas por questões comuns entre estudantes, como: “O que pesquisar?”, “Como construir um projeto de pesquisa?”, “qual referencial teórico poderia contribuir com as discussões que pretendo realizar”?, “Quais critérios poderiam qualificar ou desqualificar o meu projeto na seleção e durante a pesquisa?”.

Como percurso formativo, é também comum requerer que alunos se matriculem em um dado número de disciplinas obrigatórias e optativas as quais quando concluídas funcionam como requisitos obrigatórios para progressão e continuidade das demais tarefas de pesquisa. Além disso, essas disciplinas integram os currículos de formação nos programas-hora centradas nas linhas de pesquisa=hora complementares e epistemologicamente mais abrangentes.

Espera-se que as disciplinas não somente forneçam um panorama geral das áreas de pesquisa e produção de conhecimento, mas contribuam nas decisões metodológicas e análises críticas que o pós-graduando pretende realizar sob a orientação de um professor-pesquisador experiente, tudo isso sobre a pressão constante do tempo e da exigência de publicações em eventos, periódicos, livros e outros que, por sua vez, integram os processos de avaliação dos programas de pós-graduação brasileiros.

Neste contexto, as queixas sobre as dificuldades em produzir e a sobrecarga com atividades aliadas ao pouco preparo para lidar com pesquisas ao longo da graduação frequentemente situam a pesquisa como “um ato solitário”, parte disso em função do foco exigido pelos pós-graduandos que resulta em uma alta carga de estresse e tensão.

Para além dessas questões, é preciso se considerar ainda os desafios que perpassam as questões de linguagem, isto é, o domínio tanto da leitura quanto da escrita e estilo acadêmico, com os quais muitos não estão familiarizados na própria língua materna, e que agora passam a ser cobrados também em línguas estrangeiras, visto que parte das bibliografias que norteiam tanto as disciplinas quanto as pesquisas não são publicadas na língua nacional.

Esse emaranhado de questões força a criação de grupos de apoios entre alunos e também entre os docentes, estes últimos principalmente quando se veem cada vez mais pressionados a articularem redes de colaboração (Hoff, 2007), buscando alternativas para uma construção crítica e profícua do fazer-pesquisa, pautadas no debate e na reflexão coletiva. Essas redes articuladas podem se configurar tanto institucionalmente quanto interinstitucionalmente, podendo ainda se estender internacionalmente, catalisando a criação de espaços de produção de conhecimento marcados tanto pelo contraste quanto pela confluência epistemológica.

É justamente a partir de um desses espaços que o presente relato toma forma, mais especificamente a partir do curso intitulado “Critical Research Methodologies: (Some) Cultural-Historical Perspectives”, criado por meio de uma rede de pesquisadores de duas universidades brasileiras: Pontifícia Universidade Católica (doravante PUC-SP), Universidade Federal de São Paulo (doravante Unifesp); e por uma universidade suíça: a Université de Neuchâtel (doravante UN).

Como objetivo, pretendemos ao longo desse relato discorrer sobre as especificidades da organização deste curso, sua dinâmica de interação proposta na modalidade remota, em virtude da pandemia do novo coronavírus, e as bases teóricas apresentadas nele para, por fim, refletirmos acerca das contribuições que um curso pensado desta forma e ofertado em língua estrangeira pode oferecer para a formação dos pós-graduandos e para o desenho metodológico de suas respectivas pesquisas.

Assim, dividimos este relato em três seções, a saber: organização e oferta do curso - em que apresentamos as especificidades da proposta e organização do curso na pós-graduação; nuances teórico-epistemológicas apresentadas - em que elencamos alguns dos pressupostos teóricos e conceitos abordados no curso; contribuições de um curso pautado na reflexão e crítica entre os pares - em que discorremos sobre as interações e desdobramentos nas pesquisas dos alunos a partir do curso.

Esperamos que o relato possa contribuir para o (re)pensar de novas propostas didáticas que potencializem o percurso dos alunos da pós-graduação e oferecem mais subsídios para a consolidação do fazer-ciência com responsabilidade e criticidade.

Organização e oferta do curso

O curso “Critical Research Methodologies: (Some) Cultural-Historical Perspectives” partiu de uma ação integrada envolvendo docentes da PUC-SP, Unifesp e UN com foco nos alunos de mestrado e doutorado, se configurando em uma disciplina optativa para os respectivos programas dessas universidades.

Dado o contexto da pandemia do novo coronavírus e a necessidade de implementação de práticas de distanciamento social, a disciplina foi pensada inteiramente de forma remota, com um cronograma de leituras e atividades pré-definidas a serem realizadas de modo assíncrono e previamente compartilhadas por meio do Google Drive e encontros síncronos via plataforma Google Meet .

O uso de ambas as plataformas como recurso de viabilização da oferta remota do curso pode ser compreendido como uma estratégia coerente com os protocolos de biossegurança no contexto da pandemia com vistas à proteção e sobrevivência de todos. Para além desse contexto é importante frisar que a oferta remota se mostra um mecanismo interessante de democratização do acesso, isto porque o espaço virtual permitiu o agrupamento de alunos de diferentes localidades e de forma gratuita sem a necessidade de deslocamentos (o que poderia ser inviável tanto para alunos e docentes brasileiros quanto de outros países).

No total, ocorreram 10 encontros síncronos de três horas cada distribuídos entre os meses de março, abril e maio. Os encontros foram sistematizados em ciclos nos quais diferentes pesquisadores associados às três universidades apresentavam tópicos específicos envolvendo metodologias e ferramentas teóricas por eles empregados e, a partir daí, promoviam discussões e análises reflexivo-comparativas sobre diferentes possibilidades de aportes teóricos e delimitações de objetos de estudo.

Em termos de avaliação, foram propostas três estratégias: 1) apresentação oral das pesquisas dos alunos matriculados - as apresentações definidas em cronograma prévio foram pensadas de modo que após exposição da pesquisa de cada um, houvesse um momento tanto para ponderações dos professores acerca das escolhas metodológicas assumidas como também entre os pares de alunos propiciando momentos coletivos de reflexão e refinamento das pesquisas e suas potencialidades e fragilidades; 2) produção colaborativa de um ensaio abrangendo o conteúdo do curso - como um exercício de atividade colaborativa entre os pares de alunos; 3) produção individual de um ensaio com uma avaliação crítica da aprendizagem - com vistas a uma reflexão crítica acerca da metodologia empregada na disciplina, estratégias didáticas e auto avaliação da aprendizagem. Detalharemos a condução dessas avaliações mais adiante.

Dada a confluência internacional e a presença de professores e alunos estrangeiros, o inglês foi definido como língua padrão das preleções dos professores e apresentações dos trabalhos. Sobre isso, vale a pena pontuar que todos os alunos regularmente matriculados em seus respectivos programas passaram por um exame de proficiência para leitura e interpretação de textos em línguas estrangeiras nos seus respectivos processos seletivos; no entanto, é natural que a proficiência na língua inglesa não seja homogênea. Assim, uma das professoras organizadoras do curso se dispôs a realizar a interpretação consecutiva durante todo o curso, ocasionalmente contando com apoio também de alunos.

Um aspecto positivo sobre a utilização de uma língua estrangeira em uma disciplina se deve à sensibilização dos alunos ao vivenciar e realizar discussões em uma língua diferente da materna, reforçando as práticas de leitura, escrita e exposição oral e funcionando como um estágio prático de adaptação, da importância de produzir e apresentar trabalhos também em eventos fora do país, oportunidade esta a qual poucos têm acesso fora do contexto da pós-graduação.

Nuances teórico-epistemológicas apresentadas

Pela leitura da ementa proposta no curso, as bibliografias básicas e complementares, compreendemos que o curso se situa no campo das Ciências Sociais, mais especificamente centrado nas metodologias de caráter intervencionista e crítico ancoradas em alguns pressupostos da Psicologia Histórico-cultural conforme postulados pelo psicólogo russo Vygotsky ([1924-1934]/1997).

Neste campo teórico as problematizações são tensionadas pelo interesse na compreensão dos impactos da pesquisa no contexto social, isto é, de que modo a produção de conhecimento pode trazer contribuições ao emaranhado de relações sociais, não somente por uma ótica estritamente analítica, mas principalmente pela possibilidade de transformação social.

Daí a organização, conforme apresentada anteriormente, centrada no aspecto crítico e colaborativo da pesquisa, fomentando reflexões que extrapolam o individual e se transformam coletivamente ao contrastar diferentes modos de fazer-pesquisa ainda que compartilhando de um campo teórico comum.

Por esse prisma, as possibilidades de avaliação propostas ao longo do curso de modo algum se dariam pela individualidade, mas pela construção colaborativa que permeia as discussões ao longo dos encontros síncronos e a partir das leituras indicadas.

Essa estratégia poderia ser taxada à primeira vista como pouco produtiva, visto que ainda que compartilhem de um referencial teórico consonante, os objetos de estudo nas pesquisas de cada um são destoantes. No entanto, é justamente nesse confronto de possibilidades diferentes de organizar metodologicamente a produção de conhecimento que emerge a potência crítica que permite a identificação de um olhar rigoroso sobre a produção pela perspectiva de seu criador e também de seu leitor (Magalhães & Fidalgo, 2019).

É também em função desse aspecto que o formato do curso destoa da prática corriqueira com aulas expositivas seguidas de perguntas e atividades em um modelo estanque que hierarquiza os processos de aprendizagem e situa os discentes como sujeitos meramente receptores. Aqui interessava uma aproximação dialógica que permitisse o confronto com as próprias ideias e com a ideia do outro em um cenário marcado pela mediação constante e com múltiplas possibilidades de significações e ressignificações.

Nessa esteira, pelo menos duas das avaliações propostas permitiam justamente esse movimento crítico de confrontar-se a si mesmo: a produção de um ensaio individual elencando perspectivas construídas nas reflexões do grupo e contrastando concepções prévias e a produção de um ensaio em duplas. Nesta segunda, podemos compreender um movimento do macro para uma unidade menor. Se num primeiro momento a coletivamente catalisava as reflexões envolvendo alunos e professores, num segundo momento a potência se localizava nas reflexões entre os pares de alunos.

Ao consideramos o caráter dinâmico da aprendizagem e as possibilidades de significação e ressignificação no diálogo com o outro (Aguiar, Soares & Aranha, 2021), os ensaios produzidos individualmente e em dupla não poderiam também representar a cristalização de ideias visto que a produção de conhecimento se dá num fluxo contínuo, social e historicamente situado. Assim, podemos compreender que a terceira estratégia de avaliação proposta, com a apresentação de um seminário, se configura como uma possibilidade ainda mais expansiva e complementar para pensar a aplicação dos conceitos e pressupostos teóricos abordados.

Os seminários não partiram da noção de certo ou errado, mas da possibilidade de aplicação teórico-conceitual com foco em seus aspectos intervencionista e transformador em seus respectivos contextos histórico-culturais. Por isso o cerne do curso se manteve na necessidade de uma abordagem que possibilitasse a apresentação de categorias essenciais nos movimentos de análise sem fugir das nuances históricas (Aguiar, Penteado & Alfredo, 2020) que permeiam as ideias.

Dada essa preocupação em ampliar o leque de possibilidades de aplicação de conceitos emergentes nos postulados da Psicologia Histórico-cultural que norteiam as chamadas Metodologias Críticas de Pesquisa, o curso tangenciou três perspectivas teórico-metodológicas: a Clínica da Atividade, a Pesquisa-Trans-Formação e a Pesquisa Crítica de Colaboração, sobre as quais discorreremos a seguir.

A Clínica da Atividade

Esta perspectiva tem como objetivo primário a transformação da realidade e, a partir disso, compreender o desenvolvimento humano através da ação do pesquisador. Nessa esteira, busca oferecer uma teoria acerca do desenvolvimento humano partindo de uma perspectiva psicológica centrada no desenvolvimento da atividade e no poder de agir.

Assim, a ideia de desenvolvimento pode ser aqui compreendida simultaneamente como objeto central de estudo e também como método, uma vez que a Clínica da Atividade se configura como um “método para ação”. Vale mencionar que ainda que o conhecimento científico seja um construto de sua aplicação, ela centra-se primariamente na transformação do ambiente de trabalho, tomando o pensamento como potência para o experimentar e recriar (Clot, 1999).

Deste modo, os conceitos de sentido e eficiência que tangenciam essa corrente podem ser compreendidos respectivamente como uma experiência seminal que parte do indivíduo e a compreensão de uma transformação que torne sua atividade mais eficiente ao assumir um papel coletivo, considerando que, conforme Clot e Kostulski (2011, p. 102), “as transformações só permanecem por meio do trabalho em grupo”.

Nesse ambiente organizacional em que se busca a transformação do trabalho, há ainda as noções de gênero e estilo como dimensões indissociáveis, sendo o primeiro uma forma de construção coletiva que orienta a ação do trabalhador e o segundo o resultado da interposição entre a história do indivíduo e a história do coletivo.

Dessarte, ainda que a ação do trabalho seja uma construção marcada pela coletividade, memória e elementos operacionais compartilhados pelo grupo em um dado contexto, a transformação pela atividade se dará à medida em que o indivíduo imprime na ação suas singularidades, realizando ajustes e modificações constantes para alcançar os objetivos que pretende, os quais posteriormente reintegram o ciclo com novas definições do denominado gênero, o que justifica a indissolubilidade desses conceitos.

É interessante notar que a partir dessa junção entre gênero e estilo no trabalho vislumbra-se a possibilidade de conflito, no sentido de quebrar limitações e arranjos hierárquicos estanques, abalando determinadas estruturas de poder à medida em que a intervenção resultante do estilo passa a ser incorporada à ação cotidiana através do diálogo e direcionamento dos próprios trabalhadores, já que, segundo Clot (2000, p. 25), “a problemática da tarefa só pode ser resolvida pela modificação das relações entre os pares (...)”.

Transpondo essa compreensão para um contexto de produção de pesquisa, seja ela situada ou não em um contexto de produção, faz-se necessário assumir o pressuposto da Atividade Clínica como método que se pauta na ação dos sujeitos envolvidos e as transformações que se dão a partir delas.

Para que isso seja possível, o papel do pesquisador implica reconhecer os objetivos almejados em um dado cenário e a partir deles promover a observação dos sujeitos envolvidos em suas respectivas atividades. Em um segundo momento, é preciso que os próprios sujeitos possam confrontar suas ações (Self-confrontation) de forma analítica, podendo se empregar recursos como gravações em vídeos que permitam a autoanálise da atividade. Em seguida, espera que as mesmas ações sejam também confrontadas pelos pares (Cross-self-confrontation), para que, por fim, a discussão mediada resulte na institucionalização das transformações propostas à medida em que diferentes modos de realização da ação sejam incorporados ao gênero de trabalho do grupo.

Sob essa égide, podemos compreender a Clínica da Atividade como uma possibilidade metodológica que excede a observação e resulta em ações transformadoras a partir do confronto e da análise crítica de ações rotineiramente realizadas sobre as quais pouco se reflete, e que possibilitam a sedimentação de novos conhecimentos e o afastamento de arranjos hierárquicos nos diversos contextos socioculturais.

A Pesquisa-Trans-Formação

Essa possibilidade metodológica, que se ancora nos pressupostos do Materialismo Histórico Dialético e na Psicologia Sócio-Histórica, conforme Marx e Engels (apudVygotsky [1930/2004, p. 150]), emerge dos tensionamentos e incertezas que permeiam a realidade desafiadora dos pesquisadores, demandando deles constantes reformulações com vistas à produção de conhecimento de forma a contribuir para a transformação da realidade, tendo como objeto de estudo o Ser Social-histórico (Aguiar, Penteado & Alfredo, 2020).

A concepção de Ser Social-histórico decorre da constatação de que as expressões individuais em sua natureza revelam condições sociais, históricas e ideológicas mas, ao mesmo tempo, revelam também as especificidades das subjetividades historicamente construídas.

Isso posto, estudar os fenômenos que se desdobram a partir das relações sociais e a emergência das subjetividades demanda do pesquisador o chamado pensamento categórico, o qual oferece condições para a pesquisa e produção de sentido ao delimitar categorias que orientam o processo de compreensão da realidade para além das aparências e ideologias. Envolve ainda a observação atenta dos movimentos sociais e seus desdobramentos, o que imbrica na Pesquisa-Trans-Formação a compreensão do método com a dupla faceta instrumento-resultado (Vygotsky, 1930/2007, p. 69).

Assumindo o potencial analítico do movimento histórico das sociedades é possível compreender a historicidade como uma categoria de análise e reflexão. Partir dessa categoria nos possibilita modificar o foco em relação ao fenômeno, para prioritariamente buscar compreender como ele se caracterizou como tal. Essa retomada de recortes temporais pode evidenciar pistas sobre contradições e deslocamentos nas relações sociais e ao mesmo tempo fornecer indicações sobre a direção em que a sociedade caminha.

A categoria mediação, por sua vez, possibilita análises não dicotômicas, rompe com a visão de uma sociedade linearizada que determina o papel dos sujeitos e os idealiza de uma forma mecânica e naturalizada. Ela parte da materialidade social indicando um movimento de mão dupla em que os elementos envolvidos no tecido social se constituem mutuamente e de forma interdependente.

Por fim, em ressonância com Veresov e Fleer (2016), ao assumirmos o pressuposto de que nada é fixo e imutável e sem as contradições dialéticas o desenvolvimento torna-se impossível, podemos ainda delimitar a contradição também no escopo do pensamento categórico, compreendendo-a como um princípio que movimenta a transformação social e que nos possibilita identificar momentos específicos de transição e superação de determinados fenômenos ao oferecer uma visão da totalidade.

Vale ressaltar que em termos de fazer-pesquisa, empregar a contradição como categoria de análise não se limita à mera identificação e descrição das contradições sociais. Permite que elas sejam reconhecidas como engrenagens do movimento e, portanto, como fenômeno social.

Em síntese, essa vertente teórico-metodológica busca romper com as dicotomias, reconhecer as engrenagens que colocam em movimento os mecanismos das relações sociais e a partir delas vislumbrar formas de compreender e transformar a realidade em estrita observância às suas tendências e especificidades históricas situadas.

A Pesquisa Crítica de Colaboração

Caminhando para a última vertente das Metodologias de Pesquisa Crítica abordas ao longo do curso, a Pesquisa Crítica de Colaboração (PCCol) demanda análises que decorrem especificamente de comportamentos linguísticos e compreende a colaboração em oposição às ideias de cooperação ou persuasão. Isto porque ela é centrada na construção de uma relação de confiança entre os participantes da pesquisa, ajuntando-os para a produção de conhecimento através do compartilhamento de sentidos (Magalhães & Fidalgo, 2019).

Em consonância com o princípio de rompimento da hierarquização e dicotomias da Pesquisa-Trans-Formação, a PCCol se afasta do dualismo pesquisador-pesquisado e adota a concepção de participantes, que implica a transformação de todos os envolvidos ao longo da pesquisa sem a delimitação fronteiriça corriqueira no contexto acadêmico.

A proposta metodológica emerge da necessidade de um paradigma crítico para pensar a formação de professores e os processos de ensino e aprendizagem. Retomando a centralidade do comportamento linguístico, a estrutura de uma pesquisa realizada com a PCCol demanda intenso cuidado com as questões de linguagem, visando criar um ambiente de interação com intervenções que permitam aos participantes reorganizarem as ideias de forma mútua, mas sem induzi-los. Para isso, elementos como o estabelecimento de turnos, escolhas lexicais e organização das perguntas e afirmações mostram-se elementos-chave para a produção de conhecimentos ao longo das interações.

Com isso, os participantes assumem constantemente riscos nas interações, com liberdade para levantarem questões entre si, confrontarem informações e refletirem coletivamente sobre as afirmações. As escolhas lexicais empregadas pelos participantes precisam de maior atenção, uma vez que elas podem servir como disparadores para as produções de sentido, ressignificações e transformações. É esse direcionamento para as questões da linguagem que nos permite modernamente definir a PCCol sob a égide da colaboração crítica em vez de puramente uma etnografia colaborativa.

Essas nuances reforçam o caráter intervencionista da PCCol ao estabelecer uma relação horizontal entre os participantes da pesquisa, tornando-a também uma produção coletiva de conhecimento que se cristaliza pelas negociações durante os confrontos e contradições que emergem nas interações.

Com o intuito de organizar essas interações e reflexões espontâneas é preciso que se estabeleça uma escuta responsiva que se oriente pela definição clara do propósito da pesquisa e dos métodos e estratégias que serão empregados na intervenção, além de considerar os elementos contextuais e relações de poder que demarcam as ações, conforme se espera de uma metodologia pautada no perspectiva Histórico-cultural.

Concisamente, a PCCol pode ser compreendida como uma aproximação teórico-metodológica pensada para a pesquisa de intervenção e que demanda a criação de um ambiente coletivo de interação que permite aos participantes se questionarem, compartilharem sensações e ações, desconstruindo relações hierárquicas e catalisando singularidades que doutro modo seriam silenciadas ou silenciadoras.

Contribuições de um curso pautado na reflexão e crítica entre os pares

A abordagem sistematizada pelo curso na confluência de três perspectivas teórico-metodológicas ancoradas nos pressupostos da Psicologia Histórico-cultural contribui para uma reflexão mais centrada nas questões metodológicas para a produção e coleta de dados e evidencia a complexidade de assumir a pesquisa intervencionista como modo de fazer-ciência no campo das Ciências Sociais.

É interessante notar as especificidades de cada uma das vertentes, suas similaridades e disparidades. Como similaridades fica evidente o foco na Teoria Histórico-cultural de Vygotsky, as noções de construção de conhecimento de forma colaborativa e a importância da intervenção como pedra angular para formação profissional e transformação social. As disparidades convergem para a aplicação dos conceitos, categorias de análise, foco e contextos de intervenção.

Por se tratar de um curso voltado essencialmente para as metodologias, o potencial de reflexão crítica e a interação entre os pares de alunos e docentes de diferentes países potencializa e pavimenta novos caminhos de produzir pesquisa de modo orgânico e sem a pressão indicada por Hoffman (2007) para a construção de redes de colaboração, uma vez que ela é aqui compreendida como um processo que se dá pela relação, pela interação entre os envolvidos tendo em vista um objetivo de produzir conhecimento e transformar a realidade de modo prático.

Além disso, o sentido de crítica é completamente esvaziado da ideia de julgamento, juízo de valor e assume uma combinação de entrelaçamentos teórico-conceituais que colocam em suspenso ideias estanques sobre determinados conceitos e escolhas metodológicas.

Nesse sentido, o curso contribui de forma ainda mais significativa para pesquisadores em formação no sentido de não somente ampliar as possibilidades de coleta, produção e análise de dados, como também no sentido de compreender com maior clareza quais escolhas metodológicas poderiam ser empregadas de forma mais profícua em relação a cada objeto de estudo.

É justamente esse processo de sistematização da pesquisa e da metodologia propiciado por este curso que oferece um alento para minar as questões apresentadas na introdução deste relato que frequentemente assombram e estressam os alunos no contexto da pós-graduação. Mais que conhecer as metodologias, é necessário conhecer formas de aplicá-las e identificar até que ponto o ferramental teórico contribui para as análises que pretendemos realizar.

O fato de o curso ter sido organizado na língua inglesa certamente representou um desafio para todos os presentes; no entanto, possibilitou aos alunos uma vivência única de interação com pares de outros países que de outra forma não seria possível. O próprio exercício da interpretação simultânea português-inglês, das intervenções docentes ao menor sinal de dúvida, a utilização de materiais audiovisuais com indicadores de citações e leituras propiciaram um ambiente de estudo menos tenso, configurando um percurso formativo tal qual pressupõem as vertentes teórico-metodológicas que estudamos, isto é, marcado pela dialogia, minado de hierarquias e focado na construção de saberes por meio da colaboração crítica.

Referências

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Recebido: 18 de Março de 2022; Aceito: 11 de Fevereiro de 2023

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