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Psicologia da Educação

versión impresa ISSN 1414-6975versión On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.55 São Paulo jul./dic 2022  Epub 31-Ago-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i55p10-20 

Artigos

O DESENVOLVIMENTO DA ATENÇÃO VOLUNTÁRIA:CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

The development of voluntary attention:contributions of school education

El desarrollo de la atención voluntaria:contribuciones de la educación escolar

Carolina Nicodemos Coelho1 
http://orcid.org/0000-0001-5106-5048

Cárita Portilho de Lima2 
http://orcid.org/0000-0002-9386-4806

Célia Regina da Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-8010-6803

1 Universidade de São Paulo - USP - São Paulo - SP - Brasil; delaglu-13@hotmail.com

2 Universidade Federal da Paraíba - UFPB - Paraíba - PB - Brasil; carita.portilho@yahoo.com.br

3 Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - Minas Gerais - MG - Brasil; crsilvau@gmail.com


Resumo

Este artigo propõe-se a apresentar aspectos essenciais das análises construídas a partir de uma pesquisa teórica que teve o objetivo de analisar as contribuições que a Pedagogia Histórico-crítica e a Psicologia Histórico-cultural apresentam em relação às potencialidades e possibilidades de que o ensino escolar e a atividade de ensino do professor promovam o desenvolvimento da atenção voluntária dos estudantes. Dessa forma, assumiu-se como objeto de estudo o desenvolvimento dessa função psicológica em sua dimensão cultural. As análises buscaram mostrar, nas produções da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-crítica, elementos acerca do desenvolvimento da atenção que possam auxiliar na concretização do objetivo apresentado por esta investigação, destacando a necessidade de considerar o materialismo histórico-dialético como perspectiva teórico-metodológica orientadora das teorias analisadas e também das análises propostas por este trabalho. O material empírico da investigação consistiu em artigos, teses e livros que discorrem sobre o desenvolvimento da atenção e o papel do ensino para tal desenvolvimento. Como síntese das dimensões essenciais identificadas por meio da análise das obras destaca-se a necessidade de compreender que o desenvolvimento das funções psicológicas humanas não se esgota em um processo de maturação biológica, mas articula e submete esta dimensão aos aspectos culturais, históricos e sociais do desenvolvimento humano, sendo que a adoção da Psicologia Histórico-cultural, como perspectiva teórico-metodológica para a organização do ensino e da atividade docente, mostra ser uma importante ferramenta para o enfrentamento da lógica medicalizante.

Palavras-chave: Desenvolvimento Humano; Educação; Psicologia Histórico-cultural

Abstract

This article proposes to present essential aspects of the analyzes constructed from a theoretical research that had the objective of analyzing the contributions that Historical-Critical Pedagogy and Historical-Cultural Psychology present in relation to the potentialities and possibilities that the school education and the teaching activity promote the development of voluntary attention of the students. Thus, the development of this psychological function in its cultural dimension was assumed as the object of study. The analyzes sought to highlight elements of the development of attention in the productions of Historical-Cultural Psychology and of Historical-Critical Pedagogy that may assist in the achievement of the objective presented by this research, highlighting the need to consider historical-dialectical materialism as a theoretical perspective -methodological guide of the theories analyzed. The empirical material of the research consisted of articles, theses and books that discuss the development of attention and the role of teaching for such development. As a synthesis of the essential dimensions identified through the analysis of the works it is necessary to understand that the development of human psychological functions is not exclusively in a process of biological maturation, but rather it articulates and submits this dimension to the cultural, historical and social aspects of human development. The adoption of Historical-Cultural Psychology as a theoretical-methodological perspective for the organization of teaching and teaching activity, proves to be an important tool for confronting the medical logic.

Keywords: Human Development; Education; Historical-Cultural Psychology

Resumen

Este artículo presenta los aspectos esenciales de las discusiones realizadas a partir de una investigación teórica que tuvo el objetivo de analizar las contribuciones que la Pedagogía Histórico-Crítica y la Psicología Histórico-Cultural direccionan a la enseñanza escolar y la actividad del profesor en la promoción del desarrollo de la atención voluntaria de los estudiantes. Así, se asumió como objeto de estudio el desarrollo de esa función psicológica en su dimensión cultural. Los análisis buscaron evidenciar, en las producciones de la Psicología Histórico-Cultural y de la Pedagogía Histórico-Crítica, elementos acerca del desarrollo de la atención que puedan auxiliar en la concreción del objetivo presentado por esta investigación, destacando la necesidad de considerar el materialismo histórico-dialéctico como perspectiva teórica-metodológica orientadora de las teorías analizadas y también de los análisis propuestos por este trabajo. El material empírico de la investigación consistió en artículos, tesis y libros que discurren sobre el desarrollo de la atención y el papel de la enseñanza para eso proceso. Como síntesis de las dimensiones esenciales identificadas por medio del análisis de las obras se destaca la necesidad de comprender que el desarrollo de las funciones psicológicas humanas no se agota en un proceso de maduración biológica sino que articula y somete esta dimensión a los aspectos culturales, históricos y sociales del desarrollo humano, siendo que la adopción de la Psicología Histórico-Cultural, como perspectiva teórico-metodológica para la organización de la enseñanza y la actividad docente, demuestra ser una importante herramienta para el enfrentamiento de la lógica de la medicalización de la educación.

Palabras clave: Desarrollo Humano; Educación; Psicología Histórico-cultural

Introdução

Este artigo é fruto de uma pesquisa teórica realizada com o objetivo de analisar as contribuições que a Pedagogia Histórico-critica e a Psicologia Histórico-cultural apresentam em relação às potencialidades e possibilidades de que o ensino escolar e a atividade de ensino do professor promovam o desenvolvimento da atenção voluntária dos estudantes. Dessa forma, delineou-se como objeto de estudo o desenvolvimento dessa função psicológica em sua dimensão cultural.

Este problema de pesquisa surge a partir de inquietações vinculadas aos processos de formação inicial de professores. Tais inquietações nascem do reconhecimento da necessidade de que esses profissionais se tornem capazes de problematizar a lógica medicalizante de compreensão do desenvolvimento humano e, essencialmente, contribuir a partir de suas futuras práticas profissionais para o efetivo desenvolvimento psicológico dos estudantes. Desta forma, a discussão proposta insere-se no campo da Educação, que busca, nos conhecimentos psicológicos, os respaldos científicos para a organização intencional e consciente da prática pedagógica. Para tanto, este trabalho articula-se com análises que se pautam na perspectiva da Psicologia Histórico-c e da Pedagogia Histórico-crítica, entendidas a partir de sua base materialista histórico-dialética.

A necessidade de analisar a dimensão cultural do desenvolvimento humano parte da constatação da retomada das explicações organicistas, não só nas pesquisas científicas, mas também nos discursos de professores, para explicação dos problemas escolares, interferindo diretamente nas teorias e metodologias pedagógicas (Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010).

As teorias organicistas ressurgem no final do século XX, quando o discurso médico começou a ganhar força no campo das neurociências, enaltecendo o papel da Psicologia - em uma perspectiva biologicista - na explicação do desenvolvimento humano. Com os avanços das neurociências, a condição humana volta a ser biologizada, considerando essencialmente as bases neurofísicas e os determinismos genéticos na análise do indivíduo, seus comportamentos e formas de aprender (Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010).

Em pesquisa realizada nas plataformas MEDLINE, Scielo e LILACS utilizando como palavra chave “desenvolvimento da atenção”, Leite e Rebello (2014) encontraram 717 artigos tratando sobre esse tema, dos quais 77% discorrem sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) a partir de um viés biológico; os outros 23% tratam direta ou indiretamente do desenvolvimento da atenção, mas também contemplando essencialmente seus fatores patológicos e explicando o problema do TDAH como um distúrbio orgânico. Como sintetizam Leite e Rebello:

Os estudos que reconhecem a não-atenção como um transtorno o compreendem, em sua maioria, como um problema orgânico que decorre de uma espécie de desajuste químico no cérebro - especialmente no que se refere aos circuitos dopaminérgicos cujas causas estariam atreladas a fatores genéticos (2014, p. 62).

Essa forma de compreensão do desenvolvimento humano, ao atribuir ao indivíduo as justificativas para não alcançar o nível de desenvolvimento esperado, acaba por culpabilizá-lo e contribui com a produção de diagnósticos incompletos e artificiais que culminam na medicalização de diversos problemas dos indivíduos e da organização social atual (Garrido, 2008).

O termo Medicalização é usado para explicar um fenômeno por meio do qual atribui-se a fatores biológicos, médicos, individuais a justificativa de problemas que possuem uma origem social, cultural e política (Collares & Moysés, 1994). Tal fenômeno consiste em tornar o sujeito o único culpado por seus fracassos, transformando-o em doente e/ou disfuncional. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Na escola, se um aluno não consegue aprender como esperado pelos profissionais, muito rapidamente a justificativa para essa situação é atribuída a algum transtorno ou patologia da criança (Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010).

No campo da Educação e da ciência, de uma forma geral, existem muitos questionamentos sobre o quanto esse tipo de diagnóstico configura-se como a melhor via para explicação do desenvolvimento, como mostram as pesquisas desenvolvidas por Leite e Rabello (2014) e Eidt, Tuleski e Franco (2014). A necessidade de superar essa lógica impulsionou ainda a organização do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade1, que reuniu 600 estudiosos entre psicólogos e professores com o intuito de contextualizar, discutir, denunciar e buscar soluções para este problema.

A partir da perspectiva teórica que orienta este trabalho, o movimento de problematização e denúncia da medicalização da educação e do desenvolvimento humano precisam ser acompanhados de propostas que conduzam ao enfrentamento deste problema. No caso da atenção, é necessário conquistar avanços no que diz respeito ao processo de promoção dessa função psicológica em suas dimensões culturais.

É nesse contexto que esta análise se insere, pois assume como enfoque enfrentar os impactos da lógica medicalizante na Educação, bem como sua influência na forma de conceber os processos de ensino e de aprendizagem nas escolas. Diante disso, a pergunta orientadora das reflexões a serem apresentadas é: como pensar formas de enfrentamento da lógica medicalizante a partir do fortalecimento do papel do ensino e da educação escolar no desenvolvimento da atenção?

Frente a isso, defende-se que a compreensão da formação e desenvolvimento da atenção, desde a perspectiva da Psicologia Histórico-cultural e Pedagogia Histórico-crítica, guarda importantes possibilidades para orientar a construção de condições escolares que promovam a aprendizagem e o desenvolvimento psíquico dos alunos que frequentam as escolas brasileiras.

Neste sentido, este artigo, produto de uma investigação de natureza teórica, discute trabalhos produzidos no campo da Psicologia Histórico-cultural considerando seus fundadores - L. S. Vigotski (1896-1934), A. N. Leontiev (1903-1977) e A. R. Luria (1902-1979) e outros colaboradores -, as produções brasileiras orientadas por esta perspectiva e obras vinculadas à Pedagogia Histórico-crítica. Foram analisados livros, dissertações, teses e artigos científicos que discorrem sobre o desenvolvimento da atenção e o papel do ensino nesse processo. De uma forma geral, essas perspectivas defendem que o desenvolvimento humano não se esgota em um processo de maturação biológica, mas constitui-se por dimensões culturais, históricas e sociais que, embora engendrem processos orgânicos individuais, possuem caráter coletivo. A potência dessas teorias reside na possibilidade de se produzir um debate que possibilite a problematização e o enfrentamento da “era dos transtornos”, ao se propor a enfrentar os impactos desta lógica na aprendizagem e no desenvolvimento psicológico humano.

Método

Como anunciado anteriormente, as discussões propostas neste trabalho são produtos de uma pesquisa teórica que buscou nas produções da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-crítica elementos acerca do desenvolvimento da atenção que pudessem auxiliar na identificação das potencialidades e possibilidades de contribuição do ensino escolar e da atividade de ensino do professor no desenvolvimento da atenção voluntária.

A análise das obras focou-se na compreensão sobre como os autores explicam o desenvolvimento da atenção em sua dimensão cultural e como a educação escolar e o ensino impactam diretamente esse processo. Em consonância com a base teórico-metodológica dos trabalhos analisados, esta investigação encontrou no Materialismo Histórico-dialético inspiração para a construção das análises e sínteses apresentadas neste texto.

Para Vigotski (1995), o Materialismo Histórico-dialético é uma contraposição à lógica formal de compreensão não só do desenvolvimento do indivíduo como dos fenômenos sociais. Ao partir desse pressuposto, os fenômenos não podem ser vistos como estáticos, pois a sociedade não é estática, o homem a refaz, a ciência transforma-se; sendo assim, entende-se que os fenômenos se dão cultural e historicamente por meio e a partir das ações dos seres humanos frente à realidade. Desta forma, os fenômenos sociais e humanos estão sempre em processo e jamais acabados (Severino, 1994).

Tais pressupostos respaldam a defesa apresentada por Vigotski (1995) de que os fenômenos psicológicos devem ser estudados historicamente, o que significa estudá-los em movimento, identificando suas fases, mudanças e sua essência.

O pensamento materialista histórico-dialético, ao respaldar-se na lógica dialética, analisa os fenômenos em seu movimento e contradições, busca compreender o fenômeno em sua gênese e desenvolvimento, apreendendo o problema em sua totalidade. Neste sentido, considera-se a contradição produzida pelos próprios condicionantes históricos da existência humana para a produção de um conhecimento crítico que promova não só avanços na compreensão de fenômenos, como proponha métodos de superação dos problemas relacionados a este fenômeno (Severino, 1994).

A partir desses pressupostos, foram analisadas as ideias dos estudiosos sobre o problema do desenvolvimento da atenção, buscando mapear as referências teóricas e as bases que sustentam as explicações dos autores em questão, relacionando-as com os processos de ensino em contexto escolar.

A análise dessas obras inspirou-se no roteiro proposto por Folscheid e Wunenburger (2006), com vistas a produzir registros nos quais fossem identificados e sistematizados os seguintes elementos: tema geral, tese, objeto da discussão; principais momentos a serem destacados da dinâmica do texto; ideias e argumentos; concepção de desenvolvimento e papel da Educação; síntese.

Resultados

A análise das obras que compõem o material de investigação desta pesquisa foi dividida em três momentos:

  1. análise dos clássicos da Psicologia Histórico-cultural buscando identificar os pressupostos teóricos que regem a concepção de desenvolvimento das funções psíquicas em seu caráter cultural, para discutir elementos essenciais para a compreensão do desenvolvimento da atenção voluntária. Para tanto, foram analisados textos dos precursores soviéticos da Psicologia Histórico-cultural: Lev Semionovitch Vigotski (1995); Alexander Romanovich Luria (1979a, b) e Vasily Vasilovich Davidov (1988).

  2. análise de importantes produções brasileiras no campo da Psicologia Histórico-cultural a fim de identificar como as produções clássicas desta perspectiva teórico-metodológica têm sido discutidas, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento da atenção voluntária. Para isso, inquiriram-se teses e artigos de autores relevantes nesta área, como Lígia Marcia Martins (2013), Nadia Mara Eidt (2014), Adriana de Fátima Franco (2014), Hilusca Alves Leitte (2014), Silvana Calvo Tuleski (2014), Vanessa Gertrudes Rabatini (2016) e Marcelo Ubiali Ferracioli (2018).

  3. análise das produções no campo da Pedagogia Histórico-crítica a fim de encontrar discussões sobre como a organização do ensino escolar pode favorecer o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, especialmente da atenção em sua dimensão cultural. Foram analisados artigos e teses de autores no campo da Pedagogia, como Dermerval Saviani (2011), Lígia Márcia Martins (2013), Ana Carolina Galvão Marsiglia (2015) e Juliana Pasqualini (2006).

Psicologia Histórico-cultural: uma análise dos clássicos

Para contextualizar e potencializar a compreensão do desenvolvimento da atenção, desde a concepção defendida pelas obras analisadas, torna-se necessário discutir algumas concepções gerais acerca do desenvolvimento humano defendidas por esta perspectiva teórico-metodológica. A proposta de apresentar as concepções gerais que orientam a explicação do desenvolvimento humano como ponto de partida para a discussão do desenvolvimento da atenção é consequente com a necessidade de ir ao cerne do fenômeno analisado e, além disso, constituiu-se como requisito básico para a discussão sobre desenvolvimento humano, de acordo com a perspectiva defendida pelos autores clássicos da Psicologia Histórico-cultural, segundo os quais o psiquismo humano caracteriza-se como um sistema interfuncional, tornando-se impossível a discussão sobre o desenvolvimento de uma determinada função psicológica isolada do processo de desenvolvimento psicológico dos seres humanos de uma forma geral.

Assim, a análise de textos clássicos da Psicologia Histórico-cultural mostra que estes autores defendem como objetivo central da ciência psicológica a explicação do processo de desenvolvimento das funções psicológicas em suas dimensões culturais, pois compreende-se que o desenvolvimento não se esgota em um processo de maturação biológica, mas parte desta base, que é transformada qualitativamente a partir da internalização de atividades e objetos da cultura e de signos histórica e socialmente constituídos pela humanidade (Vigotski, 1995).

Neste contexto, é importante destacar que a Psicologia Histórico-cultural não ignora a dimensão biológica do desenvolvimento humano, pois considera-se que o psiquismo humano desenvolve-se em duas linhas: a elementar (marcadamente biológica) e a superior (de natureza eminentemente cultural) - que vai sendo construída à medida que o sujeito internaliza a cultura humana por meio de atividades realizadas a partir das relações sociais (Vigotski, 1995).

Desta forma, é por meio das relações sociais - que ocorrem desde a mais tenra idade - que os seres humanos se inserem ativamente na cultura que, ao ser internalizada, possibilita o desenvolvimento de características psicológicas qualitativamente distintas das que os sujeitos possuíam.

Assim, para a Psicologia Histórico-cultural, o desenvolvimento humano se dá no processo de domínio dos procedimentos historicamente elaborados pela humanidade; tais procedimentos são aprendidos a partir das relações com adultos e pares. Neste contexto, a discussão sobre os impactos do ensino escolar no desenvolvimento do psiquismo humano ganha especial importância.

A escola, a partir de sua função de socializar elementos da cultura humana objetivados em signos que expressam saberes científicos historicamente constituídos, passa a ser uma instituição de reconhecido impacto sobre o desenvolvimento humano. Para Vigotski (1995), o desenvolvimento cultural das funções psíquicas está intrinsecamente relacionado ao domínio dos signos construídos historicamente pela humanidade, pois a internalização dos signos permite que o indivíduo alcance, ao longo de um revolucionário, contraditório e intenso caminho, o domínio da própria conduta.

O desenvolvimento cultural de qualquer função, incluindo a atenção, consiste em que o ser social, durante sua vida e atividade, elabora uma série de estímulos e signos artificiais. Graças a eles, orienta-se o comportamento social da personalidade; os estímulos e os signos assim formados tornam-se os meios fundamentais que permitem ao indivíduo dominar seus próprios processos comportamentais (Vigotski, 1995, p.149, tradução nossa).

O desenvolvimento da atenção voluntária, expressão do domínio da própria conduta pelo sujeito no campo atencional, deve ser entendido nesse complexo caminho de desenvolvimento cultural das funções psicológicas como um sistema, uma vez que as funções psíquicas se relacionam intrinsecamente, impossibilitando a análise isolada de uma determinada função. Sendo assim, os estudos acerca das funções psíquicas devem considerar a relação das funções psíquicas com a totalidade do psiquismo em sua integralidade e não em partes isoladas, como explicita Vigotski (1995): “o conceito de função psíquica [...] pressupõe obrigatoriamente e implica, em primeiro lugar, a relação com o todo, com o qual se realiza uma função determinada e, em segundo lugar, a ideia de que a formação psíquica, que chamamos de função, tem um caráter integral (p. 5, tradução nossa).

Tendo apresentado alguns dos princípios teóricos gerais defendidos pela Psicologia Histórico-cultural para a explicação do desenvolvimento humano, desde uma perspectiva integral, pode-se anunciar aspectos específicos do desenvolvimento da atenção. Neste contexto, também serão consideradas as duas dimensões do desenvolvimento da atenção: o desenvolvimento da atenção pautado nas funções orgânicas do indivíduo, objetivado de forma involuntária, à mercê do sistema nervoso central, e o desenvolvimento cultural, no qual a inserção na cultura humana promove um processo qualitativamente distinto do desenvolvimento natural (Vigotski, 1995).

Os estudos sobre a atenção realizados por Luria (1979) o levaram a conceituar a atenção voluntária como uma inibidora de estímulos irrelevantes, ou seja, uma função psicológica que nos permite selecionar, dentre infinitos estímulos, aqueles que são fundamentais para a organização das funções psíquicas. Sem esta inibição de respostas a estímulos irrelevantes, a atividade cerebral seria tão desorganizada que desenvolver qualquer atividade seria impossível.

Assim como a atenção elementar, a atenção voluntária começa a ser desenvolvida desde os primeiros momentos da vida do indivíduo. Quando o adulto chama a atenção da criança para um determinado objeto ou ação, ele está dando os primeiros subsídios necessários para que a criança desenvolva sua atenção voluntária. Vigotski (1995) denomina esse primeiro movimento de condução da atenção de “atenção mediada externamente”, pois a criança necessita de estímulos externos para orientar e fixar sua atenção em um determinado ponto.

Em seus estudos, Vigotski (1995) constatou que há momentos em que um único estímulo externo não é suficiente para conduzir a atenção da criança. Tal constatação o levou a elaborar o método funcional de dupla estimulação, no qual o estímulo verbal do pesquisador não é suficiente para orientar a atenção da criança e esse processo também passa a ser conduzido por outro estímulo externo (cartões coloridos, por exemplo). Esta segunda série de estímulos é o meio que ajuda a criança a direcionar a operação psíquica para os outros estímulos apresentados pelo experimentador, ajudando-a a fixar sua atenção na resposta correta. O resultado da introdução de estímulos auxiliares se manifesta muito rapidamente por meio da diminuição de respostas erradas, o que mostra que a atenção se torna mais estável e que a criança está controlando tais processos com a ajuda de estímulos auxiliares (Vigotski, 1995, p. 150, tradução nossa).

É importante destacar que os resultados de experimentos desta natureza deixam claro que o estágio do desenvolvimento da atenção interfere diretamente nos resultados obtidos pelas crianças e no modo como elas utilizam os mediadores externos. Vigotski explica que as crianças vivenciavam quatro momentos com relação ao uso de mediadores externos nestes experimentos: “Utilização incompleta e irracional dos cartões; 2) Passagem para o uso energético dos mesmos e subordinação total aos meios externos; 3) Uso racional de cartões para resolver a tarefa interna com meios externos e, finalmente, 4) Passagem para o tipo de conduta dos adultos” (Vigotski, 1995, p. 151, tradução nossa).

O autor atribui as diferenças dos resultados obtidos nos diferentes períodos do desenvolvimento ao fato de as crianças em idade escolar já conseguirem internalizar os estímulos externos, a ponto destes se tornarem estímulos internos, ou seja, a mediação da atenção não parte mais apenas do pesquisador, mas também de processos relacionados ao autodomínio da atenção por parte da criança; dinâmica esta contrária ao que ocorre com as crianças em idade pré-escolar, que ainda não desenvolveram a atenção a ponto de internalizar estímulos externos, necessitando que o pesquisador conduza sua atenção.

Por meio deste e de outros experimentos desenvolvidos por Vigotski e seus colaboradores, estes autores elaboraram como síntese teórica dos processos investigados a defesa de que um signo, ao ser internalizado pelas crianças no decorrer de seu desenvolvimento, passa a mediar as relações destas com o mundo. Para Vigotski (1995), a palavra, signo por excelência, tem a função de estímulo catalizador na condução da atenção desde o nascimento da criança. Vigotski (1995) indica a palavra como função primária do desenvolvimento da linguagem e como base para o desenvolvimento de todas as demais funções psíquicas superiores, ou seja, o papel da cultura, especialmente da linguagem, destaca-se nesse processo. Rubinstein (1978) enaltece o papel da linguagem ao determiná-la como elemento essencial no desenvolvimento humano: “A linguagem é um componente inseparável da cultura material, sua gênese e seu desenvolvimento só podem ser entendidos em relação com a evolução histórica-social do homem, e nela está a base de suas condições de produção (Rubinstein, 1978, p. 464, tradução nossa).

Deve-se ainda ressaltar que a linguagem não se limita à oralidade e à escrita, pois a linguagem também inclui gestos e sons, expressa-se como linguagem interior e exterior. Como assevera Rubinstein (1978), nas crianças pequenas a principal forma de comunicação são os gestos que, como uma forma de linguagem, desenvolvem-se nas relações sociais e resultam na possibilidade de apropriação da cultura humana.

No entanto, a palavra continua sendo um mediador de extrema importância para esta perspectiva teórica, pois, para Vigotski (1995), a palavra aprendida pela criança medeia a formação de conceitos que, por sua vez, medeiam o desenvolvimento das funções psicológicas, dentre elas a atenção, elevando-as a seu nível cultural.

A compreensão do desenvolvimento da atenção para esta concepção teórico-metodológica demanda ainda que se entenda que os signos são internalizados por meio da atividade do sujeito, no interior da qual o sujeito poderá selecionar sua atenção (de forma externamente orientada ou autônoma) para determinados objetos de acordo com seus interesses, objetivos e necessidades (Vigotski, 1995).

A análise das obras clássicas da Psicologia Histórico-cultural evidenciou ainda que, para esta teoria, as atividades efetivadas no contexto escolar guardam importantes possibilidades de desenvolvimento psicológico para as crianças. Segundo Davidov (1988), é na escola que as crianças potencializam o desenvolvimento cultural de suas funções psíquicas, processo que também irá impactar o desenvolvimento da personalidade desses sujeitos:

No processo da atividade de estudo, as gerações mais jovens reproduzem em suas consciências a riqueza teórica acumulada e expressa pela humanidade nas formas ideais da cultura. A atividade de estudo, como as outras formas de atividade reprodutiva das crianças, consiste em uma das vias de realização da unidade do histórico e do lógico no desenvolvimento da cultura humana (Davidov, 1988, p 166).

Deste modo, a análise das obras clássicas mostrou elementos centrais para a compreensão do desenvolvimento da atenção voluntária e anunciou potencialidades da ação da escola nesse processo. No próximo item serão apresentadas as sínteses construídas a partir da análise das produções brasileiras. Esta análise buscou identificar concepções teóricas que possam orientar, de modo mais direto, a organização do ensino e da atividade do professor para a promoção do desenvolvimento da atenção voluntária.

Psicologia Histórico-Cultural: uma análise da Psicologia Brasileira

A análise das produções brasileiras que abordam o tema da atenção, direta ou indiretamente, e o papel da educação escolar no desenvolvimento dessa função identificou as seguintes problematizações e argumentos:

  1. a adoção da Psicologia Histórico-cultural é vislumbrada como uma importante ferramenta no enfrentamento da perspectiva medicalizante presente nos diagnósticos psicológicos e também nas instituições escolares brasileiras, ao ser uma oposição à lógica naturalista e à visão unilateral do desenvolvimento. Desta forma, os autores pretendem descentralizar a discussão sobre o sujeito que “não aprende” - restringindo-se à perspectiva individual do problema - ao considerar o papel de uma escola que não tem conseguido efetivar sua função social de ensinar a todos os estudantes e encontra na patologização individual uma explicação convincente para os entraves que vivencia no exercício de seu dever histórico de formar as novas gerações. Assim, enfatiza-se que os problemas escolares são produzidos no bojo de uma organização social e econômica que desumaniza e exclui (Eidt, Tuleski & Franco, 2014; Leite, 2015; Ferracioli, 2018).

  2. as críticas à instituição escolar são acompanhadas de defesas de que o ensino escolar pode ter papel importante no desenvolvimento psíquico dos estudantes, quando favorece a apropriação da cultura. Sendo assim, defende-se que é papel da escola contribuir para a humanização dos estudantes ao promover as funções psíquicas elementares ao nível cultural, a partir da construção de condições para socialização e ensino dos conhecimentos escolares a todos os estudantes (Eidt, 2007; Martins, 2011 e 2013).

  3. a valorização do planejamento das ações pedagógicas no processo de promoção do desenvolvimento psíquico dos estudantes, destacando a necessidade de que o conteúdo escolar ofereça a eles a possibilidade de realizarem uma leitura fidedigna do real (Martins, 2011). Denuncia-se que a falta de condições concretas para que os professores planejem a atividade de ensino dificulta a organização de um trabalho que considere a tríade conteúdo-forma-destinatário2 (Ferracioli, 2018). Além disso, algumas autoras analisam que, de forma geral, a formação inicial oferecida aos professores brasileiros não os tem capacitado a compreender as leis e regularidades do desenvolvimento psíquico das crianças e o papel das atividades humanas (especialmente das atividades-guia) nesse processo (Marsiglia & Martins, 2015; Rabatini, 2016).

  4. o desenvolvimento da atenção voluntária em contexto escolar ocorre por demanda da própria atividade desenvolvida pelos estudantes neste contexto. Neste âmbito, as tarefas de ensino planejadas e executadas pelo professor precisam conduzir o educando à internalização de signos que passam a mediar internamente sua atenção, tornando-a crescentemente autocontrolada, a partir de motivos que se constituem diretamente a partir da atividade de estudo. Esta defesa, desenvolvida por Ferracioli (2018), baseou-se ainda na concepção de que a educação escolar, ao ensinar os conteúdos sistemático-científicos, promove intencionalmente o desenvolvimento da atenção em sua dimensão cultural. Este autor, que elabora suas sínteses teóricas a partir de um experimento formativo realizado com estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental, defende ainda que os principais determinantes pedagógicos de favorecer o desenvolvimento da dimensão voluntária da atenção estão relacionados, sobretudo, às formas como os conteúdos escolares são ensinados. A partir dos resultados obtidos por Ferracioli (2018), afirma-se que são mais potencializadoras do desenvolvimento da atenção dos estudantes tarefas de estudo elaboradas pelos professores com um número maior de fases e durações mais curtas, executadas a partir de intervenções que intercalam ações centralizadas e descentralizadas de ensino e que se efetivam considerando tanto os recursos atencionais atuais e iminentes dos estudantes, como a busca de uma coesão interna da tríade conteúdo-forma-destinatário. As elaborações construídas por este autor possuem grande importância para este trabalho, pois trata-se de uma pesquisa que se debruçou sobre o mesmo objeto de estudo desta investigação.

Frente aos pontos anteriormente expostos, nota-se que as produções oferecem os seguintes argumentos para a compreensão do fenômeno atenção/desatenção no contexto brasileiro: a Psicologia Histórico-Cultural como oposição à lógica biologicista e medicalizante; a instituição escolar como agente dos interesses de uma determinada classe social que propaga leituras tendenciosas da realidade, mas, contraditoriamente, ao buscar formas de socialização dos conhecimentos escolares podem construir formas de resistência a esta dinâmica; o conhecimento a respeito da periodização do desenvolvimento do psiquismo humano como um fundamento para a organização de um ensino que promova o desenvolvimento da atenção em suas dimensões culturais.

Assim, ao problematizar a lógica medicalizante de compreensão do desenvolvimento humano os autores denunciam que a lógica biologicista é fruto de uma visão unilateral dos fenômenos psicológicos, que atribui aos aparatos biológicos do sujeito em desenvolvimento supostos transtornos e déficits, ignorando fatores históricos, culturais e sociais imbricados nesse processo.

Em contrapartida, a compreensão de que o desenvolvimento psicológico ocorre por meio da apropriação da cultura historicamente produzida pela humanidade e o reconhecimento do papel fundamental da escola neste processo traz implicações importantes para a compreensão do desenvolvimento da atenção:

A atenção superior, isto é, voluntária, forma-se necessariamente sob condições de ensino. Para tanto, é necessário oportunizar ao indivíduo, desde os primeiros anos de vida, a apropriação do conhecimento acerca do mundo que o rodeia, organizando sua percepção sobre ele e dirigindo sua atenção, tendo em vista a análise, a discriminação, a síntese, enfim, ativando formas de pensamento nas quais a atenção corrobora para a identificação do essencial, do fundamental, para além do mais atrativo e aparente (Martins, 2011, p 234).

Para tanto, é imprescindível que o ensino seja organizado, considerando: 1) os conhecimentos didático-pedagógicos pertinentes a esta prática (forma); 2) os conteúdos escolares a serem socializados (conteúdo) e 3) as leis e regularidades do desenvolvimento psíquico dos sujeitos inseridos no contexto escolar (destinatário) (Marsiglia & Martins, 2015).

Assim, as produções no contexto da Psicologia Histórico-cultural no Brasil enfatizam que o conhecimento acerca das regularidades psíquicas é imprescindível para que o processo de ensino cumpra sua função, já que a criança se relaciona de diferentes formas com a realidade nos diferentes momentos de sua vida. Além disso, as atividades humanas incidem de modos distintos no desenvolvimento psíquico dos sujeitos nos diferentes períodos da vida. Neste sentido, a atividade guia - atividade que impulsiona sobremaneira o desenvolvimento psicológico de um sujeito em determinado período de sua vida (Rabatini, 2016) - deve ser considerada no planejamento pedagógico.

Por fim, é necessário destacar que os autores analisados são unânimes em denunciar que a maior parte dos professores não encontra as condições concretas necessárias para desenvolver seu trabalho a partir das perspectivas defendidas.

Este ponto da discussão encaminha a pesquisa para a análise das produções que discorrem acerca do papel da escola no desenvolvimento da atenção desde a perspectiva dos estudiosos da Educação. Para tanto, foram analisadas obras que, desde a Pedagogia Histórico-crítica, podem colaborar para a discussão sobre como a organização do ensino pode promover o desenvolvimento da atenção voluntária.

Análise das produções no campo da Pedagogia Histórico-crítica

Como ponto de partida desta discussão, é necessário destacar que as obras analisadas defendem a impossibilidade de transposições imediatas da Psicologia Histórico-cultural para o campo da Educação Escolar (Martins, 2013).

Isto posto, é necessário destacar que, para os autores da Pedagogia Histórico-crítica, analisar o papel da escola na promoção do desenvolvimento humano requer entender esta instituição a partir de seus determinantes históricos e sociais.

Segundo Saviani (2011), compreender o ensino escolar a partir de seus múltiplos determinantes requer compreender esta instituição em sua contradição: reprodução de dinâmicas excludentes e desiguais do modo de produção social capitalista e as possibilidades de humanização ao socializar os conteúdos escolares. Além disso, o autor defende o compromisso da Pedagogia Histórico-crítica com a luta pela superação da ordem social vigente.

Feitas estas observações, é possível identificar nas produções analisadas três ideias centrais:

  1. o professor possui um papel essencial na transposição dos conteúdos clássicos em conteúdos escolares e estes possuem um papel central na humanização dos sujeitos inseridos no contexto escolar (Marsiglia & Martins, 2013 e Martins, 2013);

  2. a possibilidade de efetivação da função social do professor está profundamente marcada por sua formação inicial e em serviço que não pode se esgotar em um fazer pedagógico, mas deve se aprofundar em teorias psicológicas, históricas, filosóficas e sociológicas que favoreçam uma compreensão mais ampla e complexa do processo de ensino e aprendizagem (Marsiglia & Martins, 2013 e Martins, 2013);

  3. a ação do professor deve incidir sobre os processos psíquicos que ainda estão em formação nos estudantes (Zona de Desenvolvimento Iminente) e criar condições para que os estudantes se apropriem dos conteúdos escolares. A Zona de Desenvolvimento Iminente refere-se às funções psicológicas que ainda estão em processo de maturação, que demandam a ação e/ou colaboração com um outro para que se desenvolvam (Pasqualini, 2006).

Assim, as produções no campo Pedagogia Histórico-crítica coadunam com a perspectiva de que o ensino escolar pode se constituir como um instrumento essencial na humanização dos estudantes ao agir de forma consciente e intencional sobre o desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores (Pasqualini, 2006 e Marsiglia & Martins, 2013), dentre as quais se encontra a atenção.

Construindo sínteses e algumas considerações

A presente pesquisa surgiu no cerne de inquietações acerca do processo de formação inicial de professores, no que tange às suas possibilidades ou não de oferecer aos docentes subsídios para uma organização consciente do ensino capaz de efetivamente proporcionar o desenvolvimento cultural das funções psíquicas desde a mais tenra idade dos alunos, em contraposição a uma onda de explicações biologicistas e medicalizantes do desenvolvimento humano que vem ressurgindo no cenário escolar atual.

A perspectiva de pesquisa aqui adotada encara os discursos que permeiam os novos modelos pedagógicos como expressões do processo de medicalização da vida, que se expressa pela culpabilização dos sujeitos singulares por problemas sociais e políticos de âmbito coletivo. Esse contexto levou à pergunta de pesquisa “como pensar formas de enfrentamento da lógica medicalizante a partir do fortalecimento do papel do ensino e da educação escolar no desenvolvimento da atenção voluntária?”.

Para tanto, foram analisadas diversas obras no campo da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-crítica a fim de encontrar elementos explicativos sobre o processo de desenvolvimento das funções psíquicas, dando ênfase à atenção e, essencialmente, encontrar princípios teóricos que possam orientar a organização de um ensino escolar que seja capaz de favorecer o desenvolvimento voluntário da atenção dos estudantes.

Em síntese, este trabalho permitiu identificar as seguintes regularidades nas defesas feitas pelas obras analisadas:

  1. Para que se faça possível a elaboração de um processo de escolarização que efetivamente promova o desenvolvimento humano em seu caráter cultural, é imprescindível que se discutam, repensem e reorganizem os currículos das graduações em Pedagogia que orientam a formação inicial de professores. Nas obras analisadas, existe uma ênfase de que o desconhecimento dos docentes acerca dos processos e regularidades do desenvolvimento cultural do psiquismo humano os encaminha a um viés e a uma leitura naturalista desse processo.

  2. É necessário valorizar o papel do professor na organização e sistematização dos conteúdos escolares criando condições para a sua autonomia, criticidade e criatividade.

  3. Os fenômenos que se manifestam no cotidiano escolar como entraves para o desenvolvimento dos processos de ensino e de aprendizagem precisam ser analisados à luz de suas determinações sociais, históricas, culturais, políticas e econômicas, suas contradições, possibilidades e limites.

  4. A análise sobre as possibilidades e potencialidades do papel do ensino escolar na promoção do desenvolvimento cultural das funções psíquicas superiores, destaca que este desenvolvimento não se dá espontaneamente, nem tampouco com qualquer tipo e qualidade de ensino; faz-se necessário um modelo pedagógico que esteja organizado em prol desse processo.

Por fim, entende-se que as sínteses aqui apresentadas contribuam para pesquisas e práticas profissionais que busquem organizar o ensino e a atividade docente com vistas à promoção da aprendizagem escolar e do desenvolvimento psíquico dos alunos. Espera-se que esta pesquisa possa somar esforços à luta por uma Educação que assuma seu papel na humanização dos sujeitos por meio de suas ações éticas, políticas e pedagógicas.

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1 Entre os dias 2 e 4 de junho de 2011, reuniram-se em Buenos Aires representantes do Forumadd ─ grupo interdisciplinar contra a patologização e medicalização da infância ─, da Argentina, e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, do Brasil, que construíram em conjunto o Dossiê sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

2 Síntese didático-metodológica apresentada por Martins (2013) a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Pedagogia Histórico-crítica.

Recebido: 04 de Março de 2019; Aceito: 27 de Outubro de 2022

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