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Psicologia da Educação

versión impresa ISSN 1414-6975versión On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.55 São Paulo jul./dic 2022  Epub 31-Ago-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i55p30-39 

Artigos

O REFORÇO ESCOLAR:“NÃO SOU BOM DE ESCOLA, SOU BOM DE CORAÇÃO”

School Tutoring:"I'm not good at school, I'm good at heart"

El Refuerzo Escolar:"No soy bueno de escuela, soy bueno de corazón"

Marina Lara Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0002-0232-7459

Claudia Leme Ferreira Davis2 
http://orcid.org/0000-0002-0003-3510

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC - São Paulo - SP - Brasil; marinalararodrigues@hotmail.com

2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC - São Paulo - SP - Brasil; claudiadavis@uol.com.br


Resumo

A pesquisa apresentada neste artigo identificou significações atribuídas por estudantes do ensino fundamental ao processo de reforço escolar. A partir da perspectiva teórica da Psicologia Sócio-histórica, conceitos fundamentais da constituição psicológica da criança no período escolar foram elencados. Com o referencial teórico foi criado um roteiro de entrevista, aplicado a estudantes de escolas particulares de São Paulo, sendo que este artigo traz uma das análises realizadas, com foco em um estudante. As respostas dos estudantes geraram uma análise qualitativa, utilizando o referencial teórico dos Núcleos de Significação, procedimento de análise elaborado por Aguiar e Ozella. A análise da entrevista de Caio trouxe significações a respeito do aluno que precisa de reforço escolar como sinônimo de “mau aluno”, contribuindo para a adoção de mecanismos de defesa por Caio, alimentados por sentimentos de exclusão, monotonia e cansaço com o ambiente escolar. A partir das informações encontradas, os adultos envolvidos com a criança podem reestruturar e orientar de forma diferente o processo de reforço escolar, visando à diminuição ou eliminação dos sentimentos de exclusão e desvalorização que o processo pode gerar.

Palavras-chave: Núcleos de significação; Psicologia sócio-histórica; Reforço escolar; Sentido; Significado

Abstract

The research presented in this article identified meanings attributed by elementary school students to the process of school tutoring. From the theoretical perspective of Socio-Historical Psychology, fundamental concepts of the psychological constitution of the child in the school period were listed. With the theoretical reference, an interview script was created, applied to students from private schools in São Paulo, and this article brings one of the analyses carried out with a student. The students' answers generated a qualitative analysis, using the theoretical reference of the Nuclei of Meaning core, an analysis procedure developed by Aguiar and Ozella. The analysis of Caio's interview brought up meanings about the student who needs tutoring as a synonym of "bad student", contributing to the adoption of defense mechanisms by Caio, fed by feelings of exclusion, monotony and tiredness with the school environment. From the information found, the adults involved with the child can restructure and orient the process of school tutoring in a different way, aiming at reducing or eliminating the feelings of exclusion and devaluation that the process can generate.

Keywords: Meaning core, sense; Socio-historical psychology; School tutoring; Sense; Meaning

Resumen

La investigación presentada en este artículo identificó significaciones atribuidas por estudiantes de la enseñanza fundamental al proceso de refuerzo escolar. A partir de la perspectiva teórica de la Psicología Socio-Histórica conceptos fundamentales de la constitución psicológica del niño en el período escolar fueron enumerados. Con la referencia teórica, se creó un guión de entrevista, aplicado a estudiantes de escuelas públicas de São Paulo, y este artículo trae uno de los análisis realizados, con um estudiante. Las respuestas de los alumnos generaron un análisis cualitativo, utilizando el marco teórico de los Núcleos de Significado, un procedimiento de análisis desarrollado por Aguiar y Ozella. El análisis de la entrevista de Caio aportó significados sobre el alumno que necesita refuerzo escolar como sinónimo de "mal alumno", contribuyendo a la adopción de mecanismos de defensa por parte de Caio, alimentados por sentimientos de exclusión, monotonía y cansancio con el ambiente escolar. A partir de las informaciones encontradas los adultos involucrados con el niño pueden reestructurar y orientar de forma diferente el proceso de refuerzo escolar, buscando la disminución o eliminación de los sentimientos de exclusión y devaluación que el proceso puede generar.

Palabras-clave: Núcleos de significación; Psicología socio-histórica; Refuerzo escolar; Sentido; Significado

Introdução

Em muitas ocasiões pode-se testemunhar a atribuição do diagnóstico de “dificuldades de aprendizagem” às crianças que não seguem o ritmo institucionalizado de educação e escolarização, mas observa-se que muitos desses alunos parecem não ter problemas que os impeçam de seguir o mesmo ritmo de outros estudantes. Suas dificuldades no processo de escolarização sugerem problemas com o meio escolar ou com métodos de ensino inadequados, além de pressões familiares, sociais ou institucionais, dentre outros fatores que podem dificultar o aprendizado - algo muito diferente de falar que a criança apresenta dificuldades de aprendizagem.

Parece também existir um discurso de patologização e medicalização que é predominante nos problemas escolares. A primeira caracteriza-se por atribuir diagnóstico de doença aos comportamentos que desviam da norma e a medicalização - como consequência natural da identificação da “doença de aprendizagem” - trata o problema com medicamentos. Ambos os discursos parecem constituir uma tendência crescente de dicotomizar questões de aprendizagem a partir do eixo saúde-doença: crianças que aprendem são saudáveis, crianças que não aprendem são doentes.

Nessa narrativa de criação do aluno doente é intrigante notar a ausência da própria criança, por ela não ter voz e, assim, não existir compreensão do que ela sabe a respeito de sua própria condição. No entanto, a criança é personagem principal,ecebe todas as atenções, apoio, medicação, reforço escolar. A autoavaliação negativa, o tratamento diferente por parte de colegas e adultos, a exclusão e a estigmatização desde cedo trazem implicações à formação dessa criança, marcando sua juventude e vida adulta. De posse de tais questões, a Psicologia Sócio-histórica se apresentou como base teórica de estudos, olhando a trajetória de vida da criança e não apenas seu diagnóstico médico, investigando como ocorreu a inserção no meio escolar, como foram as primeiras aulas, o meio familiar, a interação com os amigos, como ela age em outros ambientes. Não existe a necessidade de manter a investigação apenas no ambiente escolar e é possível olhar para várias direções, diferentes do foco - muitas vezes injusto - da sala de aula como geradora única do problema de aprendizagem.

Como fundamento desta pesquisa, adotam-se os princípios de Vygotski (2003), que aponta que todo trabalho psicológico deve analisar processos e não objetos, pois o processo psicológico está em constante mudança e não pode ser analisado como se fosse estável, isolado e reproduzível por meio de estudos experimentais. Assim, a pesquisa deve estar voltada para a explicação e não para a descrição; Vigotski faz uma distinção clara entre abordagem fenotípica e genotípica na análise do processo de desenvolvimento do fenômeno investigado. A abordagem fenotípica é aquela voltada para a aparência externa dos fenômenos, com o que parecem, como se agrupam com outros fenômenos semelhantes. A abordagem genotípica busca a origem do fenômeno e as relações dinâmicas causais, independentemente de como se apresentam. Existe uma relação direta entre abordagem fenotípica e descrição, bem como entre abordagem genotípica e explicação; a pesquisa deve buscar de forma primária a essência dos fenômenos psicológicos, dando importância secundária à descrição de suas características perceptíveis. Ainda, um destaque é dado à concepção de historicidade, pois não se trata apenas de olhar para o passado, e sim de olhar para o processo, entender a história de constituição do fenômeno.

Na concepção de Vygotski, a linguagem é fundamental no estudo do sujeito, pois as palavras permitem a comunicação entre os indivíduos, além de facultarem o planejamento e a autorregulação. Por meio da linguagem (signos) podemos pensar e expressar o pensamento, já que tudo o que se encontra no meio social é representado, na consciência, pelos signos, e mesmo quando o pensado não se faz presente é possível refletir sobre ele por meio de tais representações simbólicas (Aguiar & Ozella, 2013).

Aguiar e Ozella (2013) também dirão que o pensamento sempre é constituído por emoção e, para que se possa compreender o pensamento, é necessário analisar seu processo. O processo do pensamento constitui-se no uso da palavra com significado que, ao ser compreendido, permite o entendimento do movimento realizado no processo de pensamento. Como Vigotski dizia, o foco do estudo psicológico recai sobre o processo e não sobre o objeto ou o produto. Assim, no estudo apresentado neste artigo, o principal modo de coleta de dados foi por intermédio de conversas da pesquisadora com a criança, nas quais se esperava criar um espaço propício para que ela falasse sobre si mesma e sobre o que vive e experiencia. Por conseguinte, a análise incidiu na fala da criança, agrupada em núcleos de significação, procedimento detalhado na sequência do texto.

Método

Os estudos das “dificuldades de aprendizagem” devem colocar em foco o próprio aluno e sua constituição histórica; de acordo com Aguiar, Soares e Machado (2015), a aproximação do objeto e sua compreensão só ocorrerão quando o pesquisador se movimentar em direção às determinações sociais e históricas daquilo que está estudando. Por sua vez, esta aproximação e a análise dos significados e sentidos constituídos pelo indivíduo envolvem também o estudo da realidade social e cultural em que se inserem. Ao fazer uso do discurso para falar sobre a própria situação, a criança fala também a respeito de seu meio, da instituição escolar, dos aspectos culturais que interferem em sua formação como indivíduo.

Objetivo e justificativa

Esta pesquisa1 teve o objetivo de compreender quais são as significações constituídas por crianças do ensino fundamental a respeito do tema reforço escolar, em escolas particulares. Existem muitos estudos sobre este tema, mas que raramente dão voz à criança que experimenta a “dificuldade de aprendizagem”. Este é um ponto importante que justifica esta pesquisa: alcançar uma maior clareza a respeito da forma como o aluno vive e significa a própria situação. Com as conclusões da pesquisa espera-se dar subsídios aos pais, técnicos, educadores e à própria instituição escolar para que aperfeiçoem a abordagem do reforço escolar.

A coleta de dados baseou-se nos princípios descritos por Aguiar e Ozella (2013), que propõem a entrevista como um instrumento útil para acessar os processos psíquicos, especialmente os sentidos e significados. Não foram utilizadas entrevistas estruturadas ou derivadas de sugestões de roteiros de entrevista infantil, já que o trabalho é específico e elaborado a partir da realidade de cada criança investigada. Foi empregada uma linguagem simples, próxima do vocabulário e das estruturas gramaticais utilizados na faixa etária e camada social do participante. Esse cuidado foi tomado no intuito de evitar que a explicação excessiva das perguntas pudesse direcionar a resposta da criança, levando-a “explorar” aquilo que supõe ser a resposta “correta”, esperada pela pesquisadora.

Sujeito

Neste artigo são apresentados os resultados e a análise referentes a um menino de 11 anos que estuda em escola particular da Zona Oeste de São Paulo. Participa de reforço escolar no contraturno, com a pesquisadora. Quando a entrevista foi realizada, Caio2 estava cursando o 6º ano do Ensino Fundamental pela segunda vez. Apresentava notas baixas e fazia reforço escolar há 1 ano e meio. Caio foi medicado com Ritalina (Metilfenidato) por 3 anos, mas encerrou o uso do medicamento no fim de 2016.

Além da escola e do reforço escolar, frequenta aulas de inglês, natação, futebol e violão. Destas atividades, diz gostar apenas do futebol, que joga com bastante habilidade. Os pais são médicos, católicos, vão à missa todos os domingos e, em seguida, almoçam com a família da mãe na casa dos pais dela. Apresentam-se sempre falando baixo, de forma culta e com tranquilidade; o comportamento contrasta com o de Caio, que se apresenta, na maior parte do tempo, agitado, falando alto, utilizando palavrões em seu discurso e “estabanado”, segundo ele mesmo (e também na avaliação dos pais). Durante a semana e aos sábados os pais saem cedo para o trabalho e voltam tarde, mas a mãe sempre “fiscaliza” (palavra utilizada por ela) as lições dos filhos, mesmo que já estejam dormindo. Caio tem um irmão dois anos mais velho que estava concluindo o 9º ano à época da entrevista e que sempre teve ótimo desempenho escolar.

Local de coleta/produção de dados

A entrevista foi realizada em espaço isolado de interferências externas, tranquilo e acolhedor, com o qual a criança já estava acostumada. Ocorreu em período e em data que não interferiram nas atividades escolares ou extracurriculares da criança. A criança estava bem alimentada, descansada e disposta a participar da entrevista. Os dados da entrevista foram gravados e transcritos, para dar seguimento à análise.

Procedimentos de análise

A análise dos dados foi feita com o procedimento de “núcleos de significação”, proposto por Aguiar e Ozella (2006; 2013), que permite compreender os mecanismos do ser humano na construção de significações para eventos e fenômenos. Busca a palavra com significado, que não é qualquer palavra, e sim aquela que se origina da articulação dialética entre pensamento e linguagem, que expressa a construção histórica do sujeito: como ele se relaciona afetivamente e cognitivamente com a realidade em que vive.

Ao utilizar a palavra, o indivíduo sintetiza o pensamento e a fala, e esta palavra apresenta ao mesmo tempo função semântica e psicológica. Então, é preciso não apenas entender a palavra, mas também as condições materiais e subjetivas sob as quais ela é escolhida e utilizada. Nesse processo de identificação da palavra com significado busca-se compreender as significações constituídas pelo sujeito acerca de algo ou de alguém, sendo que a análise ocorre em três etapas, conforme descritas nos próximos parágrafos.

Em primeiro lugar, ocorre o levantamento de pré-indicadores, considerando o contexto de produção da fala do sujeito. Ao ler e reler o material transcrito são destacados os conteúdos que se repetem, aqueles que mostram uma carga emocional maior ou que indicam ambiguidades afetivas da criança em relação ao tema específico. Tais conteúdos são nomeados como “pré-indicadores” e compõem o quadro de possibilidades de organização dos núcleos de significação.

A segunda etapa é a sistematização de indicadores mais inclusivos, na qual o pesquisador considera os pré-indicadores em sua totalidade e os agrupa por critérios de similaridade, complementaridade ou contraposição e por contradição. Nessa etapa o pesquisador passa a articular os indicadores entre si, partindo de contextos específicos ou da trajetória de vida do sujeito. Os pontos de relevância dos pré-indicadores unem-se em narrativa única, agrupando vários trechos da fala, constituindo as zonas de sentido do sujeito, que são seus pontos de relação com o meio social.

A terceira e última etapa envolve a sistematização dos núcleos de significação, com interpretação inicial dos dados por parte do pesquisador, pois nesse trabalho crítico se reconstrói a historicidade do sujeito. Os núcleos de significação emergem da compreensão que o pesquisador tem da realidade e em relação ao sujeito pesquisado e devem apresentar um alto poder de síntese, resumindo, em seus títulos, a maneira pela qual o sujeito significa a realidade na qual opera. Com frequência, serão nomeados a partir de fragmentos da fala do próprio pesquisado ou pelo pesquisador, de forma a refletir a forma pela qual o participante significa o fenômeno em estudo.

Com essas etapas construídas tomam-se os núcleos de significação, que são analisados. Ela se inicia com cada um dos núcleos construídos e termina na articulação entre eles. Entretanto, essa análise não se pauta exclusivamente na fala do sujeito, pois deve, necessariamente, considerar o contexto social, político e econômico em que ele vive e a posição a partir da qual fala, buscando articulá-los e, assim, cumprir os objetivos da pesquisa.

Resultados

Esta seção apresenta os resultados da entrevista realizada com Caio, trazendo a voz da criança na forma de indicadores selecionados para destacar sentidos e significados a respeito do reforço escolar, dando ainda visibilidade à sua vida diária e relações no meio escolar, social e familiar. Os indicadores são agrupados e estruturados em três núcleos principais, apresentados a seguir.

Núcleo 01 - A busca pelo pertencimento: “Eu sou um cara bom. Não bom de escola. Sou bom de coração”

O Núcleo 01 articula a visão do entrevistado a respeito dos processos inclusivos e excludentes encontrados na escola e em outros ambientes, como a família e o grupo de amigos, que propiciam sentimentos de pertencimento e participação social. Neste núcleo também são apresentados indicadores a respeito da autoimagem: como Caio vê-se a si mesmo frente às diferenças que apresenta em relação aos seus pares.

Neste primeiro núcleo, Caio descreve claramente situações escolares nas quais ocorrem mentiras e intrigas entre os alunos. Em tais situações, Caio assume o papel de mau aluno, descrevendo-se como “atentado”3, com difícil relação com figuras de autoridade. Ele específica seus problemas com as professoras, já que elas preferem os alunos “puxa-saco”. Caio parece ter clara noção de que goza de má reputação e de que ela lhe prejudica por fazer dele o principal suspeito de maus feitos.

Caio aponta que não vê sua escola como omissa ao lidar com os conflitos entre alunos, sendo que a instituição busca solucionar problemas pelo diálogo: segundo Caio, existe uma reunião criada com o intuito de permitir às pessoas que se sentem humilhadas falarem. Entretanto, em sua apreciação essa não é uma boa escolha, porque falta sinceridade a alguns colegas; aqueles que são sinceros acabam se fragilizando perante o grupo, que usa o que foi dito para “zoar mais ainda”. Na avaliação de Caio, a escola pode acabar agravando os conflitos na tentativa de fazer a mediação.

O menino também demonstra desconforto com o fato das outras crianças aparentemente fazerem uso de preconceitos ao estabelecerem relações interpessoais, pois alguns de seus colegas “nem conhecem e já saem falando”. A falta de sinceridade das outras crianças, segundo ele, aumenta sua distância em relação a elas: ele é diferente, não é “puxa-saco” das professoras e não é falso como outros alunos. Essa visão de si mesmo o leva a interessar-se por profissões que fazem com que as pessoas “não tenham preconceitos, não briguem, diminuam a violência”.

Caio aponta a falsidade dominante como um dos motivos para que se considere excluído do grupo, mas parece não se importar em ser um outsider, alguém que abertamente foge dos padrões esperados e seguidos pela maioria. Mesmo sendo visto como a “ovelha negra” (sic) da família e um mau aluno na escola, ele aparentemente não se deixa ser definido por tais atributos e não se considera como alguém rejeitado pelo meio social. De fato, o menino parece ter encontrado uma razão que justifica sua exclusão, exacerbando tudo que nele é diferente: não é “bom de escola, mas é bom de coração”. Busca apoiar-se em outros valores: “tenho coração bom”, “eu sou um cara bom”, “não sou de fazer mal pro outro”, “eu sou um cara que pensa nos outros”, “sou da paz”, “eu sou um bom amigo”, “sou um cara do bem”.

É possível perceber movimentos de conformidade e inconformidade, de pertencimento e afastamento, de inclusão e exclusão, com todas essas dimensões (aparentemente contraditórias) estruturando um fluxo contínuo na constituição social de Caio. Tais polaridades, segundo Mattos (2012) afirma, são faces da mesma moeda: a exclusão de um grupo implica pertença a outro grupo, composto por aqueles não aceitos pelo grupo excludente. Na sala de aula atual de Caio isso fica bem claro: se não faz parte dos bons alunos, faz parte daquele dos “maus alunos”, dos “atentados”, como ele mesmo diz. Devido à sua inclusão nesse grupo, o menino avalia que é alvo de correções disciplinares autoritárias, que buscam um término rápido do conflito. Essa atitude sugere uma concepção moral que se alinha ao que Vinha (2003) e Vinha e Tognetta (2009) consideram como pouco saudável a longo prazo. Não existe uma visão de que o conflito consiste em uma oportunidade para construir preceitos morais entre os alunos ou compreender o ponto de vista do outro. Mesmo quando existe espaço para discutir conflitos, não se pode ignorar que eles podem se tornar uma ameaça ainda maior aos excluídos, pois sua exposição aumenta a chance de retaliação pelos que perpetram a exclusão.

É possível ver Caio como um excluído que não se ressente da exclusão, porque se vê como alguém que também exclui o grupo excludente, com pessoas de cujas características de personalidade ele quer distância. Como Mattos aponta (2012), as práticas de inclusão e exclusão dão visibilidade à subjetividade da criança, àquilo que ela acredita ser “certo” ou “errado” fazer com os outros. Caio aceita sua inclusão no grupo dos “atentados” e a imagem de “ovelha negra” (sic); vê os outros como defeituosos (com baixos preceitos morais); portanto, sua exclusão é voluntária, os confronta abertamente (até mesmo fisicamente, se necessário) e a punição é a consequência a ser enfrentada por ser diferenciado dos colegas. De seus movimentos em direção ao grupo ou afastamento dele emergem suas concepções derivadas do meio social a respeito de como lidar com as diferenças, focadas em detalhes na análise do próximo núcleo.

Núcleo 02 - A escola que não é inclusiva: “...nem sempre o cara é burro, pode ser que é preguiçoso e não presta atenção”

O Núcleo 2 é constituído pelas significações do sujeito confrontando sua maneira de sentir, pensar e agir com as expectativas de colegas, professores, familiares e sociedade em geral, tendo como elemento unificador o ambiente escolar. É um núcleo carregado de significações que indicam a construção de uma história pessoal que se debate entre o atrito e a conciliação com os outros.

Para Caio, o bom aluno é aquele que “vai bem”, “é inteligente”, “faz lição de casa”, “entende tudo que a professora explica”, “aprende rápido”; assim, ele aprendeu a relacionar este bom aluno com a perspectiva futura de sucesso. Quem não estuda ou não acompanha o ritmo escolar “arruma um emprego ruim”, no qual “a pessoa ganha mal e o trabalho é muito cansativo”. Assim, para Caio, o papel da escola e o que ele mesmo está fazendo ali estão bem claros; existe um script a ser seguido, relembrado constantemente por todos os atores do meio em que se encontra e punindo aqueles que saem de seu papel: os diferentes, os diversos.

Ao falar de suas qualidades e defeitos, há uma confusão entre bom aluno e inteligência para Caio, já que esta última é avaliada mediante o desempenho escolar: mede-se inteligência pelas notas e boa avaliação dos professores e educadores. Inteligência aparece como uma qualidade que é evidenciada quando se segue a expectativa da escola (algo que pode comprometer a noção de liberdade, autonomia e protagonismo dos alunos). Assim, é como se a inteligência fosse a qualidade mais importante, já que “a pessoa que não é inteligente arruma um emprego ruim”.

Entretanto, embora exista certeza a respeito do que a inteligência traz - ter um bom desempenho acadêmico e um futuro melhor -, existe também certa confusão sobre sua constituição e desenvolvimento. Caio possui interpretação e aplicação diferentes dos conceitos de inteligência e de bom aluno, talvez devido à sua exclusão do grupo desses últimos, abordada no núcleo anterior. Quando questionado, ele parece fazer uma modulação de tais conceitos, pois “nem sempre o cara é burro: pode ser que é preguiçoso e não presta atenção; não faz lição”. Caio parece reconhecer nuances desse conceito, possibilidades de inteligências nem sempre visíveis, ocultas, não detectadas no sistema educacional ou na avaliação formal, mas aferra-se à noção de que elas se devem a qualidades do “mau aluno”, como a preguiça. Não pertencer ao grupo é algo visto por ele como uma vantagem, avaliando a conformidade alheia como um problema.

Ao falar de si mesmo, Caio dá destaque às características que o diferenciam do grupo dos “bons alunos”: “eu sou meio líder na minha sala”, “eu não sou prego”. Com isso, diminui as conquistas daqueles que obtêm sucesso acadêmico e reconhecimento pelos pais, ao dizer que “eles ficam pagando de realizados”, mas, na verdade, são “uns frustrados”. Age do mesmo modo em relação às carreiras de prestígio, ao dizer, por exemplo, que “médico é tudo bobinho, não é?”, “Meeu, como alguém escolhe ser professor? Ô empreguinho...”. Embaixadores, advogados e auditores situam-se, também, como carreiras a serem evitadas pelos mesmos critérios.

Pode-se verificar em Caio um ressentimento quanto às expectativas de seus pais - os dois médicos - e da família expandida (avós): “a minha vó queria que ele (o pai) fosse médico e ele foi. Perdeu a vida pra fazer o que os pais querem”, algo que Caio não parece disposto a repetir, ao contrário do irmão. Para o menino, os pais acham que ele tem que ser “nerd, prego”. Isso diverge radicalmente do irmão da mãe, outro dissidente familiar: “Minha mãe diz que nasci na casa errada, que pareço com meu tio. Até hoje (é) minha avó que paga tudo dele”. É possível observar que as figuras desviantes de sua família são desvalorizadas, separadas ou diferenciadas de alguma forma.

Observa-se ainda nas falas de Caio que o remédio é visto como uma possibilidade para superar as “dificuldades de aprendizagem”. Ele parece ter sido diagnosticado - por profissionais médicos ou da educação - como desatento, situação que Caio ridiculariza ao brincar com a entrevistadora: “Achei que você não estava prestando atenção. Aí, eu ia te dar um remédio de desatento”. Observa-se que esse recurso químico já foi empregado, uma vez que Caio reconhece que há um “remédio que deixa a boca seca”.

O fato de tomar um composto químico para ter melhor desempenho escolar pode vir a significar uma confusão, por parte desse aluno, entre dificuldades sociais e educacionais com problemas orgânicos. Com isso, surge um problema que não é de Caio, mas do processo de ensino-aprendizagem, das expectativas que desconsideram diferenças individuais, como perfis cognitivos distintos e diferentes ritmos de aprendizagem (Kassar, 2016). Encaminhar um aluno para diagnóstico e subsequente medicação equipara-se a ignorar problemas de natureza escolar e familiar.

É na escola que as crianças passam grande parte de seu dia, uma vez que essa é a instituição para a qual a sociedade delegou a educação e a formação das crianças e jovens para a vida adulta. Não é de se surpreender, portanto, que o descaso pelo diferente e pelo diverso seja apropriado pelos alunos e que eles reproduzam entre si condutas discriminatórias. Entretanto, a importância exagerada dada ao papel de moldar comportamentos e atitudes esvazia o poder da educação, pois, segundo Biesta (2015), além de propiciar o aprendizado de conteúdos, a educação também deveria estar voltada para a qualificação, a socialização e a subjetificação. Ao voltar-se para a produção e o consumo de conhecimentos, a escola privilegia o primeiro de seus papéis - a qualificação de seus alunos -, atribuindo papel secundário ao que as crianças vivenciam em termos de socialização e de sua formação como sujeitos.

Núcleo 03 - Reforço escolar como cuidado ou estigmatização? “Claro que reforço ajuda, mas eu não quero fazer medicina. Eu tô na paz, quero jogar futebol...”

A composição do Núcleo 3 é feita pelas significações constituídas por Caio a respeito do reforço escolar, cujo componente de maior peso talvez seja a apropriação que faz da visão que o entorno social lhe transmite. As falas mostram que o reforço é visto como algo exaustivo e desgastante, situação inescapável diante de sua realidade imediata. Participar do reforço escolar gera também irritação e desânimo diante do aprender.

As falas de Caio permitiram a constituição dos dois indicadores que formam este núcleo e que se chocam diretamente: a percepção negativa acerca do reforço escolar e a valorização desse processo por parte da escola e da família, com consequente imposição para que dele participe. Percebe-se, partindo da análise do sujeito, que existe uma rejeição de Caio ao reforço escolar e que revela, em análise mais aprofundada, a forma como apreende os significados que circulam no ambiente escolar e familiar.

Ao falar do reforço, Caio mostra que se sente preso em uma atividade que considera perda de tempo. Caio também deixa transparecer em sua avaliação sobre o reforço escolar como apreende o mundo atual e, também, seus planos para o futuro, como “não quer fazer medicina”, entendendo que não precisaria estudar tanto assim. Caio “quer jogar futebol”, mostrando dessa forma sua concepção sobre as profissões: para algumas é necessário estudar; para outras, o estudo é desnecessário. Nesse sentido, revela o mundo idealizado da adolescência, no qual é possível ter sucesso e dinheiro apenas com habilidades físicas ou sociais, deixando de lado a educação formal.

A marca das exigências do grupo familiar e da escola aparecem quando Caio fala do reforço. Aparentemente, elas são por ele apropriadas: os professores apresentam o reforço como uma segunda (ou única) chance para os alunos que, como ele, não apresentam o desempenho esperado na sala de aula. Na verdade, os professores “sabem que ele só aprende no reforço”. Ao mesmo tempo, emerge daí algo contraditório, pois é o mesmo reforço que torna o aluno “mais malandro” na sala de aula; ele percebe que não precisa se esforçar tanto, pois confia que aprenderá, no reforço, o conteúdo escolar. Além disso, ao não prestar atenção na aula, Caio “atrapalha os outros”. Essa visão ambígua e contraditória do reforço escolar - ao mesmo tempo avaliado como algo bom e ruim pelos docentes - reafirma para Caio que ele nunca faz o que é certo, e que é sempre inapropriado na escola: alguém que fica para trás ou atrapalha os colegas.

As expectativas acadêmicas do grupo familiar são trazidas e Caio avalia que sua mãe utiliza as aulas de reforço como castigo por seu mau desempenho e não como uma oportunidade de crescimento pessoal. Existe, na apreensão do aluno, uma imposição do reforço por parte dos pais quando dizem que ele “está tendo uma oportunidade que quase ninguém tem”, bem como uma pressão para o sucesso escolar, na medida em que sem este último não há bom aproveitamento dos recursos investidos em sua educação. Afinal, para o menino, é preciso dar retorno ao investimento feito: “eles estão pagando” e, justamente por isso, cabe-lhe “dar valor” ao que recebe.

Observa-se assim, na construção da significação mais ampla sobre o reforço, o quanto a questão financeira permeia o discurso de Caio, misturado a outras vozes (as dos pais, professores, outras crianças), como se fosse uma presença constante no seu cotidiano. Nessa medida, a aprendizagem parece não ser considerada necessária ao desenvolvimento humano ou ao crescimento pessoal: trata-se a educação como via de acesso para um futuro profissional melhor (Castro, 2014).

Prevalece na escola, como se pode ver, uma visão neoliberal, pois a sala de aula é descrita como lugar de velocidade, desempenho e eficiência e, também, como um espaço no qual é fácil ser deixado para trás, caso não se tenha inteligência ou não se faça o esforço esperado. A diferença de desempenho - expressa pela desatenção, notas baixas ou mau comportamento - indica inadequação, que pode causar a exclusão do grupo (Gomes, Mariano, Oliveira, Barbosa, Sousa & Friedrich, 2010).

Nesse universo de discursos repetidos e recriados, transborda uma visão distante daquela descrita por Biesta (2015) sobre o papel multidimensional que deve ser realizado pela escola. A escola frequentada por Caio traz uma concepção de educação centrada na qualificação e na formação do profissional futuro, deixando de lado os domínios da socialização e da subjetificação. A preparação educacional está voltada para a corrida rumo ao ensino superior e à aquisição de carreiras prestigiosas ou rentáveis. Parecem existir (pelo menos na escola de Caio) tentativas extremas de recuperar aqueles que ficam para trás no percurso escolar, buscando prepará-los adequadamente para enfrentar a competição futura, algo que já ocorre, prototipicamente, na sala de aula.

Por fim, a construção de si supõe certo conformismo e homogeneização, na medida em que são valorizadas pela sociedade, seja na família, na escola, na igreja ou em outros grupos dos quais a criança participe. Toda subjetividade emergente que disso destoe tende a ser ignorada. Como Caio bem diz, muitos alunos não são “bons de escola”, mas podem ser “bons de coração”, uma diversidade que tende a ser ignorada no contexto a partir do qual Caio produz suas reflexões.

Discussão - Análise internúcleos

A análise internúcleos procura realizar uma transição mais intensa do nível empírico para o nível interpretativo, movimento iniciado já nas análises realizadas até aqui. Nesse momento são sintetizadas e contrastadas as significações de Caio em torno do tema principal deste trabalho: o reforço escolar.

Os significados de “reforço escolar” sofreram mudanças ao longo do tempo; ele parte de uma concepção inicial de “educação compensatória” ou “recuperação”, para se tornar, atualmente, um instrumento de acesso ao ensino superior e a um padrão financeiro de vida melhor (Passos, 2013). Em seu extremo atual, o reforço escolar já faz circular um significado mais recente de “vantagem competitiva”, quando alunos com bons resultados utilizam esse recurso como forma de estudar ainda mais (pois existe uma ligação muito forte entre a ideia de “estudar” e “aprender”) e apresentar desempenho melhor em comparação com os colegas. Assim, os significados circulantes de reforço escolar podem ser conotados de forma positiva ou negativa, constituindo um processo que pode ser utilizado tanto por “bons” quanto por “maus” alunos.

No caso de Caio, suas significações de reforço escolar são ainda pautadas pelo olhar do passado - do “mau” aluno -, pois os pais e a escola veem nesse processo uma forma de trazer as crianças para o nível médio de desempenho esperado para o conjunto de alunos. Mostram-se, nesse ponto, também outros significados: a falha no aproveitamento desse recurso pode representar o abandono de um futuro de sucesso, relegando o mau aluno a uma vida de muito trabalho e pouco retorno financeiro. O reforço escolar, portanto, não é apenas um processo transitório e temporário: ele é considerado também como uma forma de prever e projetar o futuro, gerando notável pressão escolar e familiar nos participantes. Nota-se que as significações de Caio não passam pela visão potencialmente positiva do reforço: ele não se vê como um aluno de elite adquirindo uma vantagem em relação aos outros; pelo contrário, os sentidos desse reforço escolar são carregados emocionalmente por tristeza, cansaço, monotonia.

As significações do reforço parecem ser agrupadas em dois temas que o envolvem e com ele se misturam: a inabilidade de lidar com as diferenças individuais e, consequentemente, a exclusão que isso causa. Embora seja discutível o quanto é “positivo” significar o reforço como “vantagem competitiva”, ainda assim percebe-se que esta atribuição ensejaria sentimentos diversos daqueles reportados por Caio. A divisão existente entre a elite (os estudiosos) e os demais (os que são atentados, preguiçosos, burros ou desatentos) mostra que a sala de aula de Caio reproduz padrões sociais que estão muito além da escola, moldados por um modelo competitivo - e não colaborativo - entre as pessoas.

Os sentimentos de inadequação estão muito presentes para Caio, que sente claramente que não pertence aos grupos valorizados nas salas de aula: Caio diz odiar os “puxa-saco” e também envolve-se em conflitos físicos com seus detratores. A certeza da própria inadequação - ratificada pelas relações sociais conflitantes - gera movimentos de afastamento. Em suas idas e vindas, Caio expressa tentativas de ajuste e acomodação social na escola, revisa constantemente a forma de conseguir inserção nos grupos-alvo e busca, por vezes de maneira desajeitada, seu lugar no mundo. Ainda que ameaçado pela exclusão, procura se reconciliar na busca de uma futura profissão que valorize a empatia, voltada ao próximo e para a minimização de conflitos.

Assim, neste estudo verifica-se que o reforço escolar apresenta significações bastante negativas. O processo em si é visto como necessário e até mesmo efetivo, pois, para Caio, é o único lugar no qual ele aprende. Mas, a efetividade do reforço não encobre ou melhora o fato de que seus participantes se tornam pessoas “diferentes” do resto do grupo. Ele deixa marcas, por vezes sutis, que aparecem na sala de aula pela exclusão e diferenciação em grupos, ou na família, sob a forma de pressão financeira pelo retorno do investimento feito em sua educação. Essa situação parece ser sustentada por uma visão simplista a respeito de como lidar com as diferenças individuais, expressa em comportamentos como o de patologização e medicalização: se o desempenho é ruim, medica-se o aluno desatento e estimula-se para que estude mais.

Entretanto, a despeito dessa pressão ser pouco saudável, é possível observar em Caio - ainda em momento de formação física e psicológica - um desejo de se integrar a seus pares, que se sobrepõe à estigmatização que sofre. Está em pleno movimento de construção de sua individualidade, mas percebe que ela só será positiva se a relação com os colegas for de acolhimento mútuo, de troca de sentimentos e de pontos de vista.

Considerações finais

Com o relato de Caio foi possível ter acesso à perspectiva da criança quanto à vida escolar e seu papel nela, um local muito importante porque nele passa muito tempo de sua vida. Caio adota estratégias específicas de socialização: é autoconfiante, autônomo, desdenha o grupo de “pregos”, “nerds” e “mentirosos” pelos quais não tem respeito. Em suas ações, estão refletidos os comportamentos de pessoas com desenvolvimento já completo, que olham para si mesmas e para os outros com olhar crítico, medem suas próprias atitudes, se preocupam com a maneira pela qual serão avaliadas por seus empregadores, colegas, professores... e fazem o melhor possível para se adequar às relações sociais.

Surpreendente também foi observar como emergem de forma nítida na voz de Caio problemas muito sérios e atuais da escola: o bullying, a patologização e a medicalização da desatenção, a rigidez curricular, as dificuldades no manejo dos conflitos e das diferenças entre os alunos. Ao falar de sua vida diária, Caio apontou ainda para problemas mais amplos de nossa sociedade: a corrupção, a injustiça social, a pressão por desempenho, a velocidade das informações, a fragilidade dos laços emocionais e a dificuldade de criar e manter relações estáveis. Causa admiração - e ao mesmo tempo apreensão - constatar que esses temas surgem com espontaneidade e facilidade no discurso de uma pessoa tão jovem.

É possível perceber que Caio já está lidando com essas questões da melhor maneira que pode. Independentemente de seu nível de maturidade, o fato é que são problemas com os quais convive em sua vida diária. Parece, então, que seria o caso da escola dar destaque maior aos temas que surgem no discurso de Caio, assumindo ser ela o principal espaço educativo de transmissão do conhecimento acumulado e, também, de socialização e de subjetivação de seus alunos. O papel formativo dessa instituição é maior, porque nele se constituem os cidadãos. Seria importante que a escola fosse tanto informativa quanto formativa, não colocando antes disso o treino para competições futuras, como o vestibular. Por último, ela pode ser um local onde se constituem redes colaborativas, nas quais todos estão conectados e cada um é responsável por sua parte, atuando de maneira respeitosa, ouvindo e discutindo as ideias dos outros e apresentando as próprias para serem também alvo de análises.

Com a realização desse movimento na escola, a visão do reforço escolar também seria possivelmente modificada, levando a uma outra significação do que é dele participar. Este estudo mostrou como uma criança pode ter sentimentos ambíguos e, em geral, negativos, em relação ao reforço. Ele não é tido como atividade prazerosa ou construtiva; na melhor das hipóteses é uma perda de tempo e, na pior, uma forma de punição por parte de pais e professores. Ele também é um processo que se liga de forma preocupante à lógica de competição socialmente dominante, produzindo ansiedade e angústia nas crianças. Finalmente, ao causar comparação entre alunos com diferentes desempenhos para determinadas tarefas, pode vir a gerar marcas emocionais de diminuição do próprio valor ou autodesvalorização. Alinhar esse processo com a escola formadora de pessoas significa perguntar como manter a característica de cuidado que o reforço escolar pode trazer, eliminando seus traços de exclusão e de inferiorização de diferenças individuais como, por exemplo, a de ritmo e estilo de aprendizagem.

Referências

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1 Pesquisa CAAE 84597418.5.0000.5482 aprovada no Comitê de Ética da PUC-SP em 17 de abril de 2018 sob parecer 2.603.259.

2 Nome fictício.

3 Nesta seção de análise, os trechos entre aspas são referências diretas às falas das crianças nas entrevistas.

Recebido: 10 de Novembro de 2018; Aceito: 28 de Maio de 2022

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