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Psicologia da Educação

Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.55 São Paulo July/Dec 2022  Epub Aug 31, 2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i55p58-69 

Artigos

SIGNIFICAÇÕES DE CRIANÇAS SOBRE O FUTURO DE EDUCANDOS COM QUEIXAS ESCOLARES

Meanings of children about the future of students with school complaints

Significados de los niños sobre el futuro de los alumnos con quejas escolares

Ruzia Chaouchar dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-3441-782X

Daniela Barros da Silva Freire Andrade2 
http://orcid.org/0000-0002-7861-3814

Mitsuko Aparecida Makino Antunes3 
http://orcid.org/0000-0003-2793-7410

1 Universidade Nove de Julho - UNINOVE -São Paulo - SP - Brasil; ruziachauchar@hotmail.com

2 Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - Cuiabá - MT - Brasil; freire.d02@gmail.com

3 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - São Paulo - SP - Brasil; miantunes@pucsp.br


Resumo

Este artigo propõe-se a discutir as significações de crianças sobre o futuro de educandos com queixas escolares. Adota-se como referencial teórico-metodológico os fundamentos da Psicologia histórico-cultural edificada no materialismo histórico-dialético. Foram analisadas as enunciações de crianças de uma escola municipal, situada em Cuiabá-MT. Os procedimentos investigativos se alicerçaram no estudo do tipo etnográfico, utilizando-se da observação participante do cotidiano escolar, combinada com a realização de entrevistas, embasada no pressuposto de promoção de pesquisa com crianças e não sobre elas. Os dados revelaram uma presença significativa da dicotomia bom/mau orientando as significações de educandos(as) nas relações interperssoais estabelecidas com os pares identificados com queixas escolares, que foram objetivadas, simultaneamente, em possibilidades deles virem a ser policiais ou criminosos. Ao mesmo tempo, também sinalizaram a existência, em menor grau, de aspectos que tendem a promover rupturas em antinomias que engendram visões individualizantes dos fenômenos escolares, na medida em que práticas educativas imbuídas por valores humano-genéricos dirigidos ao processo de humanização também foram elementos incorporados em suas explicações sobre as perspectivas de futuro da “criança difícil”.

Palavras-chave: Crianças; Queixas escolares; Psicologia Histórico-Cultural

Abstract

This article proposes to discuss the meanings of children about the future of students with school complaints. The fundamentals of cultural-historical psychology built on historical-dialectical materialism are adopted as a theoretical-methodological framework. The utterances of children from a public school located in Cuiabá-MT were analyzed. The investigative procedures were based on an ethnographic study, using participant observation of everyday school life, combined with interviews, based on the assumption of promoting research with children and not about them. The data revealed a significant presence of the good/bad dichotomy guiding the students' meanings in the interpersonal relationships established with peers identified with school complaints, which were objectified, simultaneously, in possibilities for them to become police officers or criminals. At the same time, they also signaled the existence, to a lesser extent, of aspects that tend to promote ruptures in antinomies that engender individualizing visions of school phenomena, insofar as educational practices embedded by human-generic values ​​aimed at the humanization process were also incorporated elements in his explanations about the prospects for the future of the “difficult child”.

Keywords: Children; School Complaint; Cultural-Historical-Theory

Resumen

Este artículo se propone discutir los significados de los niños sobre el futuro de los estudiantes con quejas escolares. Se adoptan como marco teórico-metodológico los fundamentos de la psicología histórico-cultural construida sobre el materialismo histórico-dialéctico. Se analizaron los enunciados de niños de una escuela pública ubicada en Cuiabá-MT. Los procedimientos investigativos se basan en estudios etnográficos, utilizando la observación participante del cotidiano escolar, combinado con entrevistas, partiendo del supuesto de promover la investigación con niños y no sobre ellos. Los datos revelaron una presencia significativa de la dicotomía bueno/malo que orienta los significados de los niños en las relaciones interpersonales establecidas con pares identificados con denuncias escolares, que se objetivaban, simultáneamente, en posibilidades de que se conviertan en policías o delincuentes. Al mismo tiempo, también señalan la existencia, en menor medida, de aspectos que tienden a promover rupturas de antinomias que engendran visiones individualizadoras de los fenómenos escolares, en tanto prácticas educativas inmersas en valores humano-genéricos tendientes al proceso de humanización. También se incorporaron elementos en sus explicaciones sobre las perspectivas de futuro del “niño difícil”.

Palabras clave: Children; School complaints; Historical-Cultural Psychology

Introdução

Verifica-se, nas últimas décadas, a tendência da Psicologia Escolar e Educacional a mobilizar esforços para garantir a indissociabilidade entre teoria e prática, visando contribuir com o processo de desnaturalização do estatuto de objeto, relegado historicamente às crianças na esfera científica e em outras dimensões da vida social. Sob esse prisma, assume-se que essa condição geracional necessita ser focalizada como construção histórico-social ancorada em determinadas relações de produção (Vigotski, 2004).

Em face do exposto, busca-se tecer rupturas às análises individualizantes, unilaterais e universalistas sobre o desenvolvimento psíquico que engendram as formas cristalizadas de compreender as dificuldades de escolarização como resultado de processos internos de caráter orgânico e/ou hereditário do sujeito. Nessa dinâmica, a incorporação destes preceitos gestam a lógica de medicalização e potalogização dos fenômenos escolares, que se delineia, entre outros aspectos, nos encaminhamentos de crianças em idade escolar para o atendimento especializado, sobretudo no campo da saúde. Por sua vez, esses mecanismos operam nos processos de confirmação ou elaboração de hipóteses diagnósticas centradas em traços de “anormalidade” conferidos aos(às) escolares que destoam do padrão de aprendizado e/ou comportamento alinhado com os interesses dominantes (Souza, 2015).

Estudos (Souza & Sobral, 2015; Souza, et. al. 2020) voltados à elaboração de mapeamentos das produções científicas que versam sobre as características das demandas das queixas escolares ao longo das últimas décadas, no contexto brasileiro, sinalizam a tendência dos procedimentos escolares encaminharem os(as) estudantes que supostamente “não aprendem” e/ou apresentam condutas ditas indisciplinadas no processo de escolarização para os Serviços de Atenção à Saúde Mental; entre eles, o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Cury & Silvia, 2022; Souza, 2010a; Souza, 2015; Santos, 2022; Viégas, et. al, 2018).

Por sua vez, Santos (2022) alerta sobre o risco de se intensificar a incorporação e a sustentação da lógica manicomial nos itinerários dos encaminhamentos de crianças em idade escolar. Tendo em vista que, em grande medida, os mecanismos de transposição de fenômenos relativos à educação escolar para o campo da saúde mental são efetuados de forma desarticulada e fragmentada entre ambas as áreas.

Esse processo pode levar a avaliações simplistas, derivando para as supostas “deficiências”, “disfunções” ou “transtornos”, que se apresentam como diagnósticos que, por sua vez, produzem os laudos, que designam a criança a partir de descrições sintomatológicas como deficiência ou transtornos mentais, nutrindo a aliança forjada entre os interesses hegemônicos da psiquiatria e as indústrias farmacêuticas que se assentam nas leis do mercado (Whitaker, 2017). Com efeito, oculta-se que o “patológico” é engendrado na mesma normatividade enraizada nos ditames neoliberais em curso que constitui o “normal” (Dardot & Laval, 2016).

Nesse sentido, Collares e Moysés (1996) acenam para a existência de mitos que incidem sobre a criança, que comumente subsidam as justificativas e as responsabilizações individualizantes por ela não aprender de acordo com as expectativas hegemônicas da escola, as quais são construídas pela produção e perpetuação de estigmas (Goffman, 2008)1 conferidos aos(às) escolares e/ou seus familiares por meio de atributos depreciativos, manifestados no processo de constituição de pertença social. Tais aspectos configuram-se como expressão da sociedade brasileira, marcada profundamente por suas raízes escravocratas e sua colonização de natureza predatória, que legitimam e justificam as desigualdades sociais, as injustiças sociais, as discriminações de natureza étnico-racial, entre outros processos de opressão e exploração, que se manifestam em dinâmicas de patologização, medicalização e criminalização das esferas mais pauperizadas, sobretudo, a juventude negra periférica. (Eurico, 2020; Moura, 2021; Gonzalez, 2020).

Dessa forma, procura-se contribuir com o aprofundamento de fundamentos teórico-metodológicos que se dedicam a escutar as perspectivas das crianças sobre as questões que lhe dizem respeito no âmbito do processo educativo, especialmente aos aspectos imbricados com suas vivências escolares (Souza, 2010b, Asbahr & Souza, 2014; Silva, 2017, Santos & Andrade, 2020). À vista dessas premissas, o presente artigo2 propõe-se a identificar e a discutir as significações atribuídas às projeções futuras relativas ao escolar identificado com queixa escolar em sua experiência de escolarização, segundo narrativas de crianças, com idade entre 6 e 7 anos, vinculadas a uma escola pública da rede municipal de ensino situada na cidade de Cuiabá, Estado do Mato Grosso.

Diante do exposto, partilha-se da acepção que “[...] A perspectiva psicológica do futuro é a possibilidade teórica da educação” (Vigotski, 2021a, p. 103). Nessa direção, parte-se do pressuposto que as crianças fornecem conhecimentos imprescindíveis aos movimentos de enfrentamento e superação da problemática educacional em tela, que ao longo do tempo foi obscurecida por ser focalizada predominantemente sob o prisma adultocêntrico, além de individualizante e patologizante. Privilegiou-se, por essa via, as negociações e apropriações organizadas em torno das significações que as crianças forjam com o outro e consigo mesmas sobre a maneira como elas vivenciam e significam a escola, mediante suas múltiplas determinações históricas, culturais, sociais, econômicas, políticas, de territorialidade, entre outras, que constituem seus processos subjetivos e suas ações perante a realidade.

O percurso teórico-metodológico que fundamentou o plano de produção e análise das informações inspirou-se nos contornos do estudo do tipo etnográfico (André, 2003), que se revelam como pertinentes às investigações com crianças (Souza, 2010b, Asbahr & Souza, 2014; Silva, 2017, Andrade & Santos, 2018; Cruz & Schramm, 2019).

Desse modo, o processo de geração de dados aliçerçou-se no procedimento de observação participante (André, 2003) das experiências vividas pelas crianças no cotidiano escolar, combinado com a promoção de entrevistas semiestruturadas junto aos participantes (dois aprendizes identificados com as queixas escolares e vinte e quatro educandos(as) pertencentes às turmas do segundo ano do ensino fundamental). Este último procedimento foi delineado a partir do emprego de um roteiro lúdico adequado às especificidades das investigações com crianças (Andrade, 2019). As informações produzidas foram transcritas e analisadas por meio da proposta de Núcleos de Significação (Aguiar; Aranha & Soares, 2021).

Da criança abstrata à criança concreta: contribuições da Psicologia histórico-cultural

Geralmente perguntam como esta ou aquela criança se comporta no coletivo. Nós perguntamos: como o coletivo cria nesta ou naquela criança as funções superiores? (Vigotski, 2000, p.29)

Ao ensejar superar as tendências dos processos de naturalização da complexidade da natureza social do desenvolvimento psíquico que historicamente servem como meio de legitimação dos interesses e necessidades sociais dominantes, busca-se explicitar os pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural, ancorada do materialismo histórico-dialético. Por sua vez, tais fundamentos permitem a aproximação à concretude do objeto estudado.

Isto posto, Vigotski (2021a, p. 162), ao se edificar nos fundamentos do materialismo histórico-dialético, como o autor ressalta em sua investigação sobre a criança difícil, cita Marx, asseverando que “[...] toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e as suas formas fenomênicas coincidissem diretamente”. Tais premissas expressam sua preocupação teórico-metodológica em captar aspectos da raiz dos processos comportamentais supostamente desviantes do padrão hegemônico da época, alicerçado em pressupostos pseudoconcretos de caráter inatista, propondo analisá-los para além de sua manifestação externa, que oculta os nexos causais internos.

Nessa perspectiva, Leontiev (1978) salienta que as especificidades da constituição do psiquismo humano são construídas pelas particularidades das relações sociais determinadas pelo modo de produção e reprodução da vida social em um dado momento histórico. Sob este prisma, destaca-se que:

Antes de tudo, é já agora evidente que a individualidade do homem não pode de modo algum ser sua qualidade originária, inata, mas sim o resultado de um longo processo de socialização da vida social dos homens, assim como suas possíveis perspectivas, compreensível em sua verdadeira essência somente a partir da história. A gênese sócio-histórica determinante da individualidade humana deve ser posta energicamente no centro de tais análises mesmo porque tanto a ciência social quanto a filosofia da sociedade burguesa inclinam-se a ver na individualidade uma categoria basilar do ser do homem, o fundamento de tudo, que prescinde de vir a ser derivada. (Lukács, 2010, p. 66)

Dessa forma, parte-se da premissa de que o desenvolvimento psíquico é engendrado mediante o posicionamento ativo que o sujeito assume nas distintas relações sociais que se configuram como forças motrizes do seu processo formativo, que ocorre sob as determinações das situações concretas experienciadas. Estas, por sua vez, dependem das qualidades das mediações socioculturais que lhe são oferecidas, como também do lugar que ele/a objetivamente ocupa no conjunto de relações estabelecidas em determinadas condições sócio-históricas em cada momento do seu desenvolvimento (Leontiev, 1988).

Em diálogo com tais proposições, Vigotski (2021a) considera que o desenvolvimento do psiquismo humano é constituído numa dinâmica de contradições internas forjadas entre as legalidades natural e cultural, à medida que as funções psíquicas superiores se modificam e provocam o processo de superação por incorporação das funções elementares tomadas como substrato orgânico que adquirem outras estruturas na consciência.

Vigotski (2021b), ao investigar as distintas formas de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, enfatiza o controle do ato volitivo na dinâmica interfuncional dos processos psicológicos. Nessa direção, salienta que a complexidade mais intensa de desenvolvimento desses processos psíquicos superiores está associada aos traços em comum que se referem ao processo de domínio das possibilidades de desempenhar atos voluntários. Tal aspecto implica a tomada de decisão frente às diversas alternativas constituídas no conjunto de relações objetivas e subjetivas vivenciadas pelo sujeito, que dirigem seus modos de agir diante das exigências sociais. Esse processo, configurado no autodomínio da própria conduta, é caracterizado pelas reorganizações qualitativas no funcionamento da atenção voluntária, que se circunscrevem como resultado da dinâmica de desenvolvimento cultural do indivíduo. Em vista disso, “o aspecto mais característico para o controle de nosso comportamento é a escolha e, por isso, ao estudar os processos voluntários, a antiga psicologia considera a escolha como a essência do ato voluntário” (Vigotski, 1931/2021b, p. 357).

Vigotski (1931/2021b), ao analisar a formação e o desenvolvimento do caráter psíquico, sinalizou que é necessária a compreensão dos processos psicológicos não apenas em relação ao funcionamento do passado, sendo também fundamental abranger a estruturação da dinâmica de orientação às possibilidades futuras neles contidas, edificadas nas relações sociais e suas contradições objetivadas nas condições materiais e simbólicas da totalidade social.

Diante de tais considerações, compreende-se que o processo de eleição frente às alternativas concretamente existentes que engendram o agir ético-moral é produzido nas relações sociais perpassadas por sistemas normativos, valores, representações, ideias, significações e formas ideológicas que implicam as afecções vividas na experiência do indivíduo singular, orientando as formas de pensar, sentir e agir na relação com o outro, frente à realidade social, operando a sua constituição subjetiva (Santos, 2022).

Método

Como mencionado, a investigação foi desenvolvida numa Escola Municipal de Educação Básica (EMEB), situada em Cuiabá, Estado do Mato Grosso, no transcorrer de três meses. Participaram desta pesquisa duas turmas escolares (X e Y)3, escolhidas por sugestão da equipe gestora. Essas classes eram as que estavam vinculadas aos educandos Guilherme e Bernardo4, ambos identificados com queixas de indisciplina escolar em seus processos de escolarização. Assim, o processo de escolha das crianças5 culminou com a participação de vinte e seis aprendizes, entre seis e sete anos.

O contexto de investigação foi fundamentado nos preceitos dos estudos do tipo etnográfico (André, 2003). A escolha por essa abordagem no delineamento de pesquisa com criança, fundou-se em sua potencialidade para apreender as experiências vividas por elas a partir de suas próprias impressões, reconhecendo-as como seres sociais ativos no processo de investigação, que na relação com o outro produzem conhecimento sobre si e acerca da realidade (Santos & Andrade, 2020).

Ao assumir tais pressupostos, os dados produzidos por meio do procedimento de observação participante do cenário escolar foram inscritos em um diário de campo e, posteriormente, subsidiaram as formulações de relatos ampliados. Quanto à realização de entrevistas adotou-se um roteiro lúdico, que foi sistematizado por meio da narrativa encorajadora, que se caracteriza por ser uma ferramenta psicológica mediadora das experiências humanas, que possui o potencial de ampliar as capacidades e os processos criativos dos sujeitos (Andrade, 2019).

As premissas que ancoram esse recurso metodológico focalizam a dimensão das experiências lúdicas vividas pelas crianças nas relações estabelecidas com seus pares e entre elas e os adultos, como aspecto central para a escuta das perspectivas pessoais e coletivas desses atores sociais. Com efeito, a inclusão intencional da ludicidade como aspecto que orienta o trabalho pedagógico permite ampliar e enriquecer as possibilidades de experiências formativas na prática educativa (Cruz & Schramm, 2019).

A partir do exposto, a proposição da narrativa encorajadora como instrumento lúdico tem a finalidade de captar o que a crianças têm a dizer sobre si mesmas acerca dos aspectos que permeiam suas vivências escolares; assentou-se na proposição de uma situação real ou fictícia semiacabada, que pode ser enfocada como ponto de partida para a criação de novas históricas e/ou serem utilizadas para fomentar a continuidade de enredos inicialmente elaborados. Sob esse prisma, esses dispositivos, que consideram a autoria da narrativa infantil, podem ser considerados como mediações simbólicas caracterizadas como pequenas histórias, imagens, músicas, situações-problema, filmes, entre outros recursos circunscritos em elementos familiares às significações imbricadas com a complexidade do objeto investigado (Andrade, 2019).

Ao entrar em contato com as narrativas encorajadoras, vistas como indicadores de elementos presentes na cultura, a partir de trabalhos educativos que orientam os processos de aprendizagem e desenvolvimento, os participantes foram convocados ao exercício narrativo, que pode proporcionar os processos de autoria infantil e promover o fortalecimento de encontros intergeracionais, ancorados predominantemente por elementos comunicacionais menos hierarquizados, propiciando à criança ser reconhecida na condição de sujeito no desvendar do mundo e de seu próprio processo de desenvolvimento (Andrade, 2019).

Com base nesses parâmetros, a narrativa encorajadora (Andrade, 2019) adotada nesta investigação baseou-se num enredo semiestruturado, esboçado a seguir: “Era uma vez o príncipe que virou sapo; ele era um príncipe pequeno, da sua idade, e a gente não sabe o porquê dele ter virado sapo e como foi a vida dele depois que ele virou sapo. Como você inventaria a continuação dessa história?” (Notas de campo dos dias 15 de dezembro, 2016). Sobre esse aspecto, considerou-se que essa situação lúdica fundada em significações familiares do repertório infantil, poderia encorajar as crianças ao exercício de complexificação da narrativa, a partir do desdobramento de outras nuances argumentativas que se revelam na transmutação de uma lógica unívoca de atribuição de significações, tornando possível que elas manifestem conteúdos que envolvem suas vivências no processo de escolarização.

Para a promoção da análise das informações geradas, buscou-se estabelecer articulações entre os dados produzidos na observação participante e os conteúdos elaborados por meio do procedimento de narrativas encorajadoras (Andrade, 2019), que foram transcritos na íntegra, adotando-se como procedimento de análise a proposta de Núcleos de Significação (Aguiar; Aranha & Soares, 2021).

Discussão e Análise dos dados

No exercício de análise empreendido foi possível identificar três Núcleos de Significação (Aguiar; Aranha; Soares, 2021), assim identificados: 1. O colega problema hoje é o criminoso de amanhã; 2. O bom aluno hoje como o policial de amanhã; 3. Desvelando outras trajetórias: meu amigo difícil e suave.

1. O colega difícil hoje é o criminoso de amanhã

De modo geral, as significações produzidas e compartilhadas pelas crianças participantes possibilitaram identificar, entre outros elementos, aspectos dos múltiplos determinantes e contradições implicados na complexidade da gênese e do desenvolvimento da dinâmica de (re)produção das queixas escolares, abrangendo as distintas relações e contradições engendradas nas perspectivas futuras de escolares. Tais aspectos constituíram as significações atribuídas pelos (as) participantes aos projetos de vida dos(as) escolares designados(as) com dificuldades em sua trajetória de escolarização, as quais se orientaram preeminentemente pelos cânones da dicotomia bom/mau, que foram objetivados, simultaneamente, em vislumbramentos de projeções futuras de esses escolares virem a ser policiais ou criminosos (Santos, 2018).

Tendo em vista essa dinâmica, salienta-se que (os)as partícipes denunciaram sinais de internalização da reprodução de valorações dominantes constituído por estigmatizações (Goffman, 2008) engendradas nas relações interpessoais que eles(as) vivenciam no cotidiano, constituindo-se como sistema de referências que dirigem as explicações pseudoconcretas sobre os(as) educandos(as) que supostamente manifestam condutas e atitudes vistas como desviantes das prescrições e normas sociais e educacionais que perpassa a educação escolar estruturada no seio da sociabilidade burguesa, dentre elas desobediência, agressividade, indisciplina, rebeldia, desatenção, inquietude, insubordinação, violência.

Por sua vez, os escolares identificados com queixas escolares seriam punidos por frustrarem o atendimento das expectativas que, muitas vezes, os(as) professores(as) e demais atores(atrizes) de sua realidade apresentam, na medida em que supõem que as funções psíquicas superiores das crianças já estejam plenamente desenvolvidas e que elas tenham se tornado autocontroladas naturalmente, desconsiderando a qualidade das mediações fundantes para que seja propiciada, na dada situação social do desenvolvimento humano (Vigotski, 2006) em que o sujeito se encontra, a formação do processo de autodomínio da conduta.

Os conteúdos retratados pelos(as) participantes expressam elementos de naturalização de valorações individualizantes imanentes à ordem dominante, intrincadas às suas trajetórias de escolarização que tangenciam as bases de seus domínios afetivo-volitivos (Vigotski, 1934/2009), os quais gestam as escolhas operadas entre alternativas concretas que engendram a elaboração dos planos para o futuro.

Diante disso, os aspectos que compõem a categorização dicotômica bons/maus, tomada como referência pelas crianças partícipes nas construções de significações sobre o planejamento futuro dos estudantes que vivenciam obstáculos nos processos de escolarização, fornecem pistas que expressam a perpetuação das desigualdades e injustiças sociais que historicamente ancoram a produção e a reprodução de práticas discriminatórias e excludentes que permanecem nas práticas pedagógicas, ao apontarem elementos relativos às suas trajetórias escolares relacionados à criminalização proveniente e/ou motivada pelas condutas inadequadas dos estudantes.

Tais elementos, retratados pelos participantes sobre alguns determinantes e contradições sociais inerentes à sociedade capitalista vigente, que se refletem nas perspectivas de futuro dos escolares com queixas escolares no processo de escolarização, podem ser verificados no seguinte excerto, “[...] Ué, tem que comportar, não comporta porque não qué... quando ela crescer, ela não quer ser nada, ela quer ser aquelas pessoas, aqueles bandidos”. (Eva, sexo feminino, 7 anos, grifos nossos).

Pressupõe-se que as possibilidades de vir a ser relativa à criança identificada como tendo problemas de escolarização ancoram-se em conteúdos mortificantes, pauperizados, opressivos, entre outros modos de mediações de violência que gestam as vivências cotidianas. Pode-se constatar na tessitura das narrativas infantis a coexistência de aspectos de similaridade e complementariedade entre a representação de ser nada, associada à visão de indisciplina escolar localizada e personificada na figura do bandido, que incidem na dimensão de negação do estatuto ontológico da condição de sujeito, que se expressa na coisificação da criança “problema”.

Nessa direção, percebe-se que o sentido atribuído à expressão nada, ao vislumbrar o destino do escolar que manifesta comportamentos considerados problemáticos em relação ao rendimento normativo exigido no campo educacional, articulado às diversas mediações e contradições que envolvem o significado acerca do ser bandido, construído nas particularidades históricas, culturais e políticas do cenário brasileiro, oferecem subsídios para se pensar que as significações integradas às vivências das crianças participantes são faces constitutivas de uma mesma moeda, que se caracteriza pela dinâmica da ofensiva neoliberal que incide sobre a situação social vivida por elas, podendo vir a objetivar no campo simbólico e material aspectos de anulação e, com efeito, de aniquilação do “Outro”, identificado como tendo comportamento inadequado, ao deslocá-lo da dimensão de não-humano, isto é, à zona de não ser (Fanon, 2020).

Sob esse aspecto, as significações das crianças participantes desvelam indícios de uma identificação predominantemente negativa face aos traços associados aos escolares que se distanciam do padrão normativo de aprendizagem e conduta aceito e esperado no interior dos espaços escolares. Desse modo, os efeitos de qualquer forma de inadequação a tais prescrições é manifestada, em grande medida, em perpetuações de situações de humilhação social e diversas configurações de violência que incidem sobre as crianças ditas indisciplinadas, em especial as negras, indígenas e periféricas, que corriqueiramente são analisadas sob a ótica estigmatizante da periculosidade, do incômodo e, consequentemente, acabam sendo tratadas na cena escolar, muitas vezes, por via da punição, vigilância, inferiorização e silenciamento, entre outras formas de expressão de violências ancoradas no processo histórico do colonialismo e escravidão constitutivos da particularidade brasileira, que ainda persistem em diferentes esferas da vida social, repercutindo nas condições de sofrimento ético-político (Sawaia, 2004) vivido singularmente e coletivamente pelos escolares.

As manifestações das crianças partícipes, ao se proporem a vislumbrar o futuro possível do aprendiz anunciado com queixa escolar, oferecem elementos que reforçam a explicação de que, na dinâmica de aprofundamento da ofensiva neoliberal, os elementos coercitivos tendem a sobressair, tanto por via de leis moralmente regressivas, como por meio da violência policial que opera no campo legal do extermínio da população periférica. Tais determinações e mediações de caráter alienante inscritas na particularidade brasileira incidem no processo de desenvolvimento da capacidade teleológica das crianças, ao reverberarem diretamente na construção de planos para si mesmas, incorporadas por aspectos de desumanização e, nessa dinâmica, forjam a criação de projetos de vida individualizantes e pauperizados.

2. O bom aluno hoje como o policial de amanhã

Nesse processo, é possível identificar que os aspectos imprimidos nas explicações que as crianças elaboram sobre as diferenças no desempenho acadêmico dos estudantes que não cumprem as normas e regras sociais instituídas, estão associados a contornos estereotipados e circunscritos por uma roupagem de antagonista. Consequentemente, ao assumir características marcadas por atributos tomados como naturais a esses escolares, tal como a indisciplina, agressividade, rebeldia, dificuldades de atenção, entre outros, eles devem ser submetidos a ações punitivas por parte do policial que representa uma instância ordenadora das normas que regulamentam o modo padronizado que constitui as práticas educativas enraizadas no tecido social.

Ao manifestar esse repertório de significações articuladas aos processos históricos que as constituem, os participantes qualificam o policial como sujeito agenciador de ações disciplinares, coercitivas e punitivas que iriam impor “limites” ao educando “indisciplinado” e que, por decorrência, teria tendência ao crime, ao destoar da homogeneização de desempenho que lhe é exigido, desvelando em suas apropriações aspectos associados às dimensões vivenciadas em suas experiências de escolarização.

Por via desse movimento, o policial é adjetivado como aquele que deverá vigiar e corrigir o perigo de condutas tidas como inadequadas mediante a imposição de ações punitivas. Com efeito, tais posições sociais parecem ser desejáveis pelas crianças por se aproximar de representações mais próximas e legitimadas por padrões normativos, haja vista que o(a) escolar que não responde às expectativas da escola é aquele(a) que também tende à criminalidade, tendo como substrato uma condição imanente a ela própria; em outras palavras, está nela a não realização do bom desempenho escolar e do bom desempenho na vida social, tal como se pode observar nas enunciações expressas por Matheus sobre as crianças que são encaradas como desviantes do ideal do processo de ensino-aprendizagem:

Pesquisadora: O que você acha deles não fazerem tarefa?

Matheus: Um crime.

Pesquisadora: Um crime, como seria um crime não fazer a tarefa?

Matheus: Um crime quer dizer que a pessoa é criminosa.

Pesquisadora: O que é uma pessoa criminosa?

Matheus: Quer dizer que ela não faz tarefa e faz bagunça, muita bagunça, muita, muita, muita mesmo na sala.

Pesquisadora: É... e como você acha que seria essa muita bagunça?

Matheus: Que não faz tarefa, e ainda de prova bagunça a sala.

Pesquisadora: Como que é isso de prova?

Matheus: De prova quer dizer que, além de não fazer a tarefa, e ainda bagunça a sala.

Pesquisadora: Como você acha que é bagunçar a sala?

Matheus: Bagunçando, jogando as mesas, jogando tudo no chão, jogando até as mochilas. (Matheus, 7 anos)

Sob esse aspecto, as crianças revelam que o papel social de ser policial está vinculado à imagem estereotipada relativa ao bom aluno, ao ser caracterizado a partir de referências que incidem sobre os escolares vistos como participativo, organizado, atento, comportado, responsável, que não se envolve em briga, não questiona, não incomoda, é bem-sucedido nas atividades pedagógicas e respeita os limites impostos. Esses traços marcados como qualificadores do sucesso escolar se expressam na idealização de um sujeito salvador do universo.

Nesse caso, percebe-se a existência de uma forte adesão a elementos que engendram o cumprimento das práticas pedagógicas prescritivas e normativas, centradas na subserviência e no conformismo, que são tomados como valores e crenças inquestionáveis, com vistas à adaptação e conformação delas às expectativas sociais normativas.

Ao compreender os saberes infantis como expressões de suas vivências, os conteúdos expressos pelas crianças convocam reflexões sobre as condições materiais e simbólicas apropriadas e reproduzidas por elas nos espaços de socialização dos quais participam, que estão implicadas no reconhecimento e na aposta delas, predominantemente nos referidos projetos de atuações profissionais sustentados em torno do binômio bem/mal que produzem modos de ser assujeitados aos parâmetros valorativos típicos da sociedade vigente, configurando-se como elementos constitutivos de seus processos subjetivos.

3. Desvelando outras trajetórias: meu amigo difícil e suave

Ao partir-se do pressuposto que os saberes infantis são enredados nas relações sociais, que devem ser vistas em sua processualidade e contradições, e considerando que estas são modificadas pela própria agência humana, põe-se a possibilidade das crianças em suas múltiplas formas de ser e estar no mundo adquirirem consciência de si próprias como sujeitos históricos e de apreenderem suas vivências como sendo forjadas em um processo de contínua construção e transformação. Tal processo, por sua vez, está intimamente relacionado às qualidades das mediações que lhes oportunizam incorporar instrumentos que contribuem para o desenvolvimento de suas potencialidades.

Com efeito, as significações apropriadas pelas crianças participantes na elaboração de suas narrativas também tenderam a esvaziar a ideia reducionista que incide na individualização dos problemas escolares voltados prioritariamente aos seus pares, à medida em que as atitudes de solidariedade e companheirismo sedimentadas por valores humano-genéricos também ocuparam um papel central nas apropriações sobre sua realidade. Por essa via, constata-se que as situações lúdicas oportunizaram a manifestação de aspectos que, em contradição com a visão maniqueísta acima descrita, anunciam um posicionamento de implicação com o outro, com vistas a superar as polarizações presentes na focalização dessa problemática.

De modo geral, as crianças sinalizaram que os fios condutores de suas narrativas são contornados por elementos dicotômicos que atuam como substratos nas atribuições de conotações aos seus pares, vistos como aqueles que têm problemas no processo de escolarização. Mas, ao mesmo tempo, foi possível observar nas inflexões do desenrolar de seus enredos que tais aspectos antinômicos bem/mal não são considerados necessariamente excludentes, na medida em que elas também tendem a relativizar essa polarização mecanicista que opera nos processos de coisificação e padronização dos sujeitos, ao realizarem o exercício de captar outras dimensões de análise sobre o ser e estar no mundo social que lhes permitem alcançar uma interpretação mais complexa e humanizada de si e do outro, que se constituem mutuamente.

Tais elementos supracitados, por sua vez, transparecem na trama elaborada por João, em que ele oferece indícios de possibilidades da criança objetivada com dificuldades escolares transcender essa lógica dicotômica, ao descrever seu colega como aquele que possui capacidades e potencialidades em se apropriar dos conhecimentos científicos, desvelando uma postura de aproximação com a perspectiva de humanização que está vinculada à qualidade das relações de confiança estabelecidas com o outro no decurso da vida, como esboçado a seguir:

Pesquisadora: Como que o Ditinho iria se sentir ao conhecer a sala?

João: Muito bom!

Pesquisadora: Muito bom?

João: É que ele aprendeu a ler, aí todo mundo ficou feliz, aí eles pararam de bagunçar. (João, masculino, 7 anos)

Sob essa perspectiva de análise, compreende-se que a atividade lúdica utilizada na elaboração da narrativa potencializou o exercício de autonomia e o desenvolvimento da dimensão criativa das crianças participantes, favorecendo que elas desvelassem elementos sobre vivências comuns, partilhadas nas e pelas relações com seus pares. Nessa dinâmica, percebe-se que as crianças são capazes de reconhecer o seu par como agente competente e, ao mesmo tempo, essa dimensão intersubjetiva das relações constituída por valores éticos ampliou as possibilidades desses atores sociais expressarem impressões acerca de si mesmo e sobre o outro, permitindo-lhes reelaborar os sentimentos de estranheza, humilhação, tristeza, medo, solidão, fraqueza, entre outros ligados à produção das queixas escolares. Ressalta-se que esses aspectos reflexivos incorporados às narrativas infantis dos sujeitos participantes são mediados pelas condições objetivas dispostas na realidade social.

Diante disso, foi possível constatar que as crianças, ao se envolverem no processo de construção de suas narrativas, manifestaram contornos aos seus personagens a partir de atributos que os representam simbolicamente como sujeitos ativos e produtores de conhecimentos. Por essa via, esses atores sociais sugerem em seus discursos que as experiências lúdicas vividas apresentam uma estreita relação com o desenvolvimento de funções psíquicas superiores, ao impulsionar a capacidade deles se afetarem e serem afetados nos encontros com o outro, tal como João indica ao argumentar que “todo mundo ficou feliz”, sugerindo uma intensidade afetiva positiva vinculada à promoção das potencialidades de aprendizagem de uma das figuras que compõem a sua trama. Esse trecho parece denotar também aspectos relativos à sensibilidade das crianças aos processos de construções coletivas, ao assumirem o interesse por uma postura de solidariedade, corresponsabilidade e cumplicidade diante das dificuldades e incertezas que permeiam as vivências no universo escolar.

Desse modo, as considerações do excerto em questão mostram que as crianças podem assumir um posicionamento de identificação diante do outro visto como diferente, ao indicarem a valorização da possibilidade de melhoria do desempenho de seus pares que, em certas circunstâncias, são negados e inferiorizados socialmente por não se adequarem aos modelos convencionais dos processos de ensino-aprendizagem fundados em parâmetros universais e pré-definidos. Tais enunciados mostram que a experiência lúdica por meio da narratividade pode impulsionar as crianças participantes construírem e/ou fortalecerem o sentimento de pertença à cultura de pares (Corsaro, 2011) e, concomitantemente, essa dimensão relacional opera na constituição de seus processos subjetivos.

Os discursos das crianças, em suas ambiguidades, também sinalizam que as vivências lúdicas, ao estarem abertas ao inusitado, propiciam forjar relações intra e intergeracionais que podem mobilizar reflexões e ressignificações de representações cristalizadas, instituídas nas práticas educativas que incidem sobre a produção das queixas escolares. Tais assertivas insinuam que os(as) participantes, ao manifestarem atribuições fundadas em elementos que assumem o reconhecimento do outro como seu par, distanciam-se de uma apreensão fragmentada e reducionista da realidade e, por essa via, eles oferecem pistas da importância dos educadores planejarem e oferecerem suporte às experiências lúdicas que podem ampliar as oportunidades de estabelecimento de ações colaborativas, na medida em que essas atividades proporcionam a expressividade, em suas diversas formas, potencializando o desenvolvimento de saberes, afetos, autonomia, entre outras capacidades humanas que permitem às crianças tomarem consciência que são agentes ativos no processo de produção e compartilhamento de conhecimentos sobre si e seu mundo.

Sob esse aspecto, convém dizer que essas posturas de abertura ao encontro do outro não são encorajadas por meio de obrigatoriedades impositivas, mas se aproximam de uma perspectiva dialógica mediada por circunstâncias socioculturais, entre as quais se dá a responsabilidade da pessoa mais experiente de favorecer os processos de apropriação do conhecimento científico (Vigotski, 2009) que contribui para o desvelamento de mecanismos ideológicos, possibilitando às crianças requalificarem as relações estabelecidas com a sociedade.

Nessa direção, outros aspectos que marcam as resistências que as crianças assumem frente às práticas educativas hegemônicas podem ser notados nas tentativas delas contribuírem com o tensionamento e o rompimento das amarras sob as quais as queixas escolares se sustentam, como é observado na narrativa manifestada por Lara, ilustrado no excerto a seguir, em que ela propõe a relativização do dualismo aluno bom/mau nas construções de hipóteses sobre o escolar focalizado com dificuldades escolares. Sob essa dinâmica, a educanda, ao criar significações em torno de confrontações que envolvem as adjetivações de incapacidades vinculadas ao aluno identificado com queixa escolar, expressa aspectos que visam a fortalecer a representação de seus pares como seres que também são ativos, conscientes e criadores. Tendo em vista essa premissa, os anseios de Lara convocam a desnaturalização e a modificação das relações estabelecidas com os companheiros identificados com problemas no processo de escolarização, ao imprimir em sua narrativa elementos que sugerem a condução de práticas pedagógicas voltadas para ações colaborativas, orientadas por coparticipações entre os pares, fundadas na responsabilidade coletiva que se revela no compromisso ético-político com o outro, capaz de operar transformações concretas na realidade.

Vale destacar que, a partir da socialização dessas atividades coletivas, se torna possível a tomada de consciência do “nós”, que permite promover, cada vez mais, novas qualidades às capacidades psíquicas das crianças que são agentes dessas práticas sociais. Diante dessa reflexão, constata-se que as mobilizações de conscientização sobre o exercício de atividades coletivas que legitimam o outro como sujeito produtor de saberes que favorecem o processo de humanização e desenvolvimento também parecem motivar e impulsionar as construções de significações que ancoram as versões das crianças nas tentativas de conceituar o não aprender, como pode se notar no excerto subsequente:

Pesquisadora: Como é ser responsável?

Lara: É quando a gente, a gente tem personalidade, fala com os amigos que é uma boa pessoa, que ela é uma criança difícil de entender, mas ela não é porque ela uma pessoa suave, ela é educada e tudo que a gente tem que fazer é cuidar bem deles. (Lara, 7 anos)

Diante dessa perspectiva, os conteúdos discursivos presentes na narrativa formulada por Lara apresentam elementos que imprimem uma visão de sujeito inserido historicamente em sua realidade, ao salientar a importância de uma prática educativa que promova as múltiplas possibilidades de expressão humana. Ao ser mobilizada por essa perspectiva, ela denuncia como os atributos de caráter polarizados em bem/mal tornam-se empecilhos para o processo de ensino-aprendizado, que culminam em focalizações negativas sobre as crianças vistas como tendo problemas escolares, refletindo-se no obscurecimento de suas capacidades e potências humanas.

Ao partilhar da premissa que a construção de conhecimentos sobre si e acerca dos modos de viver são fundadas nas múltiplas relações sociais em que as crianças se constituem como seres singulares em contínuo processo de desenvolvimento, assim como os adultos, convém tecer reflexões sobre outras possibilidades de escolhas que transcendem as perspectivas dicotômicas. Estas devem ser ancoradas na apropriação de conhecimentos historicamente sistematizados, que permitem que as crianças reelaborem significações sobre a realidade humana, internalizadas na condição de função psíquica superior, podendo produzir modificações nas formas de pensar, sentir e agir no mundo, orientadas pela promoção da emancipação humana.

Considerações finais

A finalidade desta investigação foi analisar as narrativas elaboradas e partilhadas por crianças sobre as suas hipóteses relativas às perspectivas de futuro de educandos identificados com a queixa de indisciplina escolar, considerando as mediações e contradições que engendram suas vivências escolares. Tais significações expressam a intensa presença da dicotomia bom/mau na orientação das significações construídas pelos(as) participantes, que foram manifestadas, simultaneamente, em possibilidades deles virem a ser policiais ou criminosos. Esses aspectos denunciam as apropriações materiais e simbólicas mediadas por elementos de periculosidade, coercitivos, repressivos, entre outras formas de mediações de violências vivenciadas por elas, edificadas em projetos societários voltados à perpetuação dos interesses dominantes.

No desenrolar das reflexões expostas, verificou-se a coexistência, ainda que em menor nível de compartilhamento, de elementos que contrapõem as visões reducionistas, lineares e fragmentárias sobre o desenvolvimento psíquico, que incidem no processo de naturalização e individualização das dificuldades escolares. Tendo em vista que os conteúdos negociados e partilhados coletivamente pelas crianças também indicam a incorporação de valores humano-genéricos orientados à emancipação humana, como a solidariedade e a autonomia, que tendem a propiciar aos(às) educandos(as) a potencialização das máximas possibilidades de desenvolvimento.

Postas tais considerações, o escopo deste estudo buscou fornecer subsídios teórico-práticos às reflexões sobre a complexidade de determinações e contradições que operam o processo de formação e desenvolvimento de suas capacidades teleológicas, envoltas no processo de (re)produção de responsabilização e culpabilização pessoal sobre as dificuldades na experiência de escolarização. Assim, as significações elaboradas e compartilhadas pelas próprias crianças sobre a produção das queixas escolares são tomadas como saberes sociais fundantes para a superação dessa problemática educacional que exige a participação ativa de todos atores sociais envolvidos nesse fenômeno educativo complexo e multideterminado, imbricado ao recrudescimento das políticas neoliberais que nutrem os fenômenos de medicalização, patologização e criminalização das infâncias.

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1 Segundo Goffman (2008, p. 4), o estigma concerne “[...] a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena.”

2 Este trabalho se configura como um desdobramento da pesquisa de mestrado intitulada Crianças anunciadas com queixa escolar: estudo sobre significações e implicações na representação de si (Santos, 2018), delineada no interior do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIn), que se insere no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso campus Cuiabá-MT (PPGE/UFMT).

3 As turmas escolares associadas a esta pesquisa serão identificadas mediante as consoantes X e Y, com intento a resguardar o sigilo de identificação dos atores sociais participantes e do lócus de investigação.

4 Tendo em vista os contornos assumidos, assinala-se que a indicação de participação desses escolares não foi estabelecida pela pesquisadora, mas sustentou-se em significações partilhadas nas relações sociais tecidas entre os atores inseridos nesse cenário escolar. Sob esse aspecto, conforme os acordos negociados com os participantes, estes serão nomeados por nomes fictícios, de modo a assegurar o anonimato e o sigilo de suas identificações.

5 As crianças que se propuseram a participar da investigação foram selecionadas pelos seguintes critérios de inclusão: ser estudante do lócus de pesquisa, estar previamente anunciado sob a condição da queixa escolar em seu processo de escolarização ou ser membro das turmas a que estes estudantes estavam vinculados, apresentar a faixa etária entre seis e dez anos, ser estudante do ensino fundamental, possuir autorização prévia dos pais ou responsáveis por meio da inscrição no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e expressar interesse voluntário em participar da investigação a partir da inscrição do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).

Recebido: 20 de Dezembro de 2022; Aceito: 22 de Janeiro de 2023

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