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Psicologia da Educação

versión impresa ISSN 1414-6975versión On-line ISSN 2175-3520

Psic. da Ed.  no.55 São Paulo jul./dic 2022  Epub 21-Ago-2023

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2022i55p98-105 

Artigos

PESQUISACAMINHANTE:A PESQUISA AÇÃO-PARTICIPANTE (PAP) COMO MÉTODO DE PESQUISA LONGITUDINAL

Walker research:the Action-Participant Research (PAP) as a longitudinal research method

Investigación walker:la Investigación Acción-Participante (PAP) como método de investigación longitudinal

1 Universidade Regional de Blumenau - FURB - Santa Catarina - SC - Brasil; frbusarello@gmail.com

2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - São Paulo - SP - Brasil; bsawaia13@gmail.com


Resumo

Este artigo relata uma pesquisa ação-participante longitudinal realizada desde 2016 até 2021 com mulheres indígenas Xokleng/Laklãnõ que vivem no contexto urbano de Blumenau, SC. Analisa a trama afetiva que compôs esta caminhada de seis anos e traça a configuração do método que denominamos de pesquisacaminhante para demarcar a temporalidade e o lugar das pesquisadoras, das pesquisadoras-participantes e sua intencionalidade, de fortalecer a luta e a resistência dessas que vivem na cidade de Blumenau, uma cidade de origem germânica e marcadamente “branca”. Como instrumento, foram utilizados entrevistas, fotografias, diversos encontros pela cidade e participação em eventos oficiais e, principalmente, encontros constantes entre as pesquisadoras, nos quais elas puderam se expressar como mulheres indígenas. O referencial teórico é a psicologia sócio-histórica, com base nas reflexões de Vigotski e Spinoza, utilizando o afeto como bússola das ações. O método revelou potência para contribuir com a práxis da psicologia social, destacando aquelas voltadas às comunidades tracionais.

Palavras-chave: Psicologia Social; Pesquisa Ação-Participante longitudinal; Povos Indígenas; Afetos

Abstract

This article reports a longitudinal participant-action research carried out from 2016 to 2021 with indigenous women Xokleng/Laklãnõ who live in the urban context of Blumenau, SC. Analyzes the affective plot that composed this walk of six years and outlines the configuration of the method we call walking research to demarcate the temporality and the place of researchers, researcher-participants and their intention to strengthen the struggle and resistance those who live in the city of Blumenau, a city of German origin and markedly “white”. As instrument, interviews, photographs, various meetings around the city and participation in official events were used. and, mainly, constant meetings between the researchers, in which they could express themselves as women indigenous. The theoretical reference is socio-historical psychology, based on the reflections of Vigotski and Spinoza, using the affection as a compass of actions. The method revealed power to contribute to the practice of social psychology, highlighting those aimed at traditional communities.

Keywords: Social Psychology; Longitudinal Participant-Action Research; Indian people; Affections

Resumen

Este artículo reporta una investigación longitudinal de acción participante realizada de 2016 a 2021 con mujeres indígenas Xokleng/Laklãnõ que viven en el contexto urbano de Blumenau, SC. Analiza la trama afectiva que compuso este paseo de seis años y esboza la configuración del método que llamamos walking research para demarcar la temporalidad y el lugar de los investigadores, los investigadores-participantes y su intención de fortalecer la lucha y la resistencia los que viven en la ciudad de Blumenau, ciudad de origen alemán y marcadamente “blanca”. Como se utilizó el instrumento, entrevistas, fotografías, diversos encuentros por la ciudad y participación en actos oficiales, y, principalmente, encuentros constantes entre las investigadoras, en las que pudieran expresarse como mujeres indígena. El referente teórico es la psicología sociohistórica, a partir de las reflexiones de Vigotski y Spinoza, utilizando la el afecto como brújula de acciones. El método reveló poder contribuir a la práctica de la psicología social, destacando los destinados a las comunidades tradicionales.

Palabras-clave: Psicología Social; Investigación Longitudinal Participante-Acción; Gente India; Afectos

Introdução

O presente artigo é baseado em uma pesquisa de doutoramento em Psicologia Social e pretende relatar a pesquisa ação-participante (PAP) longitudinal realizada junto a mulheres indígenas Xokleng/Laklãnõ, que vivem no contexto urbano de Blumenau/SC. A pesquisa teve início em 2016 e continuous até 2021; seu modelo longitudinal permitiu a análise das afetações em processo, ao mesmo tempo que promoveu afetações com potência de superação das emoções tristes que lhes inibiam a ação coletiva transformadora.

A caminhada se deu junto com quatro mulheres indígenas que vivem na cidade de Blumenau e uma mulher indígena que vive em Itajaí: Vaiká, Tolym, Indyara, Maria Kóziklã e Tàgi Niara; por algum tempo também caminhamos junto com Tchului, porém ela não acompanhou toda a PAP. Um dos elementos que ressoam neste artigo, em razão dessas caminhadas e encontros, é a temporalidade: tanto das afetações, vivências, como afetos produzidos. Afinal, a PAP tem como diretriz a ideia de que pesquisar é sentir e se afetar (Busarello, 2017).

O método tal como aqui desenvolvido adota uma perspectiva longitudinal, pois a pesquisadora acompanhou e partilhou da vida desse grupo de mulheres indígenas e realizou com elas intervenções, análises e construções coletivas; assim, foi possível combinar “a variabilidade entre os indivíduos (como em uma pesquisa transversal) com a variabilidade no tempo (para as mesmas pessoas, a informação é coletada em duas ou mais ocasiões)” (Athias, 2011, p. 11). O método tem como pressuposto a teoria dos afetos de Spinoza e sua categoria de ingenium, importante para superar a dicotomia singular e universal, eu e o outro. O ingenium é a singularidade e o nó afetivo dos sujeitos (Ramos-Alarcón Marcín, 2008; Pac, 2013; Moreau, 1994), que são potência em ato, o que possibilita uma análise da trama e da processualidade dos afetos e do movimento do ingenium coletivo e singular. A filosofia monista de Spinoza abre a possibilidade de ver os afetos como lugar da ética-política e em movimento.

Ao definir que o sujeito é potência em ato, o filósofo holandês possibilita perceber que todos são protagonistas de sua história, pois são seres de potência - nas palavras de Spinoza são conatus. Campos (2008) explica, a partir do filósofo, que o conatus é o esforço no tempo de um corpo em afirmar-se perante a oposição. Deste modo, é possível compreender que o sujeito é aquele que está se esforçando para perseverar diante das adversidades do cotidiano. Considerando ainda que, a partir da visão espinosana, temos o poder de afetar e ser afetados nos encontros. A PAP longitudinal adotou como procedimento criar bons encontros aos participantes, o que orientou sua configuração, de forma que ela é resultado também dessas afetações e encontros vividos nesses seis anos de história.

Seguindo a visão espinosano, o corpo e a mente não são aqui compreendidos como separados, mas como uma só e mesma substância, sob dois atributos: pensamento e extensão. O indivíduo vivencia as flutuações de ânimo que derivam da composição afetiva dos três afetos primitivos: alegria, tristeza e desejo (Spinoza, 2013, p. 139)1.

Através das vivências da PAP, sob a lente do filósofo holandês, observam-se os movimentos do território (corpo-cidade) e dos sujeitos que compõem a pesquisa, que caminha e se encontra nesses espaços, caracterizando o que chamamos aqui de pesquisacaminhante. Ressalta-se que não foram feitas coletas pontuais, mas registros, escritos e corporais, em caminhadas e ações coletivas constantes pelo território de Blumenau e de São Paulo. É essa característica que permite o acompanhamento das mudanças do ingenium (Moreau, 1994) das mulheres indígenas que participaram desta pesquisa. Por isso, a temporalidade é um diferencial da PAP longitudinal: não é um retrato de um momento, mas uma história de afetações e flutuações afetivas dos corpos que dela participam em ato.

Afetar e ser afetado: A pesquisa ação-participante longitudinal

A PAP é norteada pela ideia do sujeito como participante e protagonista da pesquisa, envolvendo-o nas tomadas de decisão e planejamento das ações. Seguindo esse pressuposto, no início da pesquisa, realizada no mestrado (2016/2017), foi utilizado o termo “pesquisadoras-informantes” para nomear as mulheres indígenas que participaram e se envolveram com a caminhada do pesquisar. Esse termo foi substituído no doutorado para demarcar o protagonismo dessas mulheres na construção de toda a pesquisa e caminhada de seis anos e nas análises da referida tese (Busarello, 2022), transformação da realidade, escolha de instrumentos de pesquisa e, também, para enaltecer o caráter participativo e coletivo do método da PAP. Ninguém é objeto de estudo ou portador de conhecimento maior ou menor, todos participam e são afetados pelo participar. Cabe lembrar a horizontalidade existente entre pesquisadora e pesquisadoras-participantes, característica central desse método.

A partir de um enfoque fundamentalmente interdisciplinar, o pesquisador-produto-histórico parte de uma visão de mundo e do homem necessariamente comprometida e neste sentido não há possibilidade de se gerar um conhecimento “neutro”, nem um conhecimento do outro que não interfira na sua existência. [...] A pesquisa em si é uma prática social onde pesquisador e pesquisado se apresentam enquanto subjetividades que se materializam nas relações desenvolvidas, e onde os papéis se confundem e se alternam, ambos objetos de análises e, portanto, descritos empiricamente (Lane, 1992, p. 18).

O pesquisador é sujeito da pesquisa e vice-versa. Paulo Freire afirma que a pesquisa como ato de conhecimento tem como sujeitos os pesquisadores profissionais e os grupos populares e como objeto a ser desvelado a realidade concreta (Freire, 1999). Isso ocorre porque a pesquisa é construída em um constante encontro, no qual todos se afetam e são afetados (Spinoza, 2013, p. 99); sendo assim, não há neutralidade científica. A partir do postulado espinosano, essa última premissa é um mito epistemológico. Vale, porém, um alerta: afirmar que não há neutralidade científica significa a implicação com as afetações produzidas e suas ressonâncias nos sujeitos e territórios que compõem o pesquisar. Não remete à falta de rigor metodológico, mas nos lança ao constante cuidado das afetações.

Portanto, não existe hierarquia entre os participantes da PAP, pelo contrário, todos são protagonistas, estão envolvidos e são envolvidos; o resultado é a pesquisa em ato e a transformação da realidade concreta. Afirmar que não existe divisão entre pesquisadora e pesquisadoras-participantes é também demonstrar a importância do saber para além da universidade. Esse é um aspecto que Fals Borda afirma ser a potencialidade da pesquisa participante: levar a universidade até o campo concreto da realidade (Fals Borda, 1999). A união entre universidade e o território é vínculo de potência, pois nesse momento a pesquisadora também é agente de transformação no local, assim como os sujeitos também agem produzindo conhecimento científico - eis aqui um encontro de expansão nas mais diversas compreensões, pois as marcas irão reverberar em diferentes locais e histórias de vida - ; não há fronteiras para as imagens e ideias desse encontro. Como exemplo, uma das conversas que a pesquisadora teve com Tolym, uma das pesquisadoras-participantes, sobre a saudade da Terra Indígena e, as duas juntas, conversando sobre o que a pesquisadora-participante sente, tentam compreender o que significa esse afeto e quais são seus gatilhos afetivos. As inquietações da indígena se traduzem em dois poemas criados e utilizados durante a pesquisa. Essa é a construção coletiva e a união de conatus que tornam a PAP longitudinal, pois as reflexões não são solitárias mas conjuntas e refletidas nas afetações vividas durante a pesquisacaminhante.

O cuidado com a nomenclatura pesquisadora-participante surge já no início da pesquisa. A inspiração para o termo foi a forma como a PAP acontece e possibilita o encontro e a criação conjunta. Sendo assim, além de fazerem parte da pesquisa, elas pesquisam junto com a pesquisadora e participam das elaborações, conhecem a teoria (como elas diziam “essas coisas bonitas que a professora Bader fala”) e se apropriam do que está sendo observado. A relação é contínua e perene nos dois papéis: pesquisadora e participante. Assim, a mistura de afetações, como participante e como pesquisadora, medeia a PAP e transforma a realidade. Destaca-se que a participação ocorreu inclusive em eventos acadêmicos, levando o papel de pesquisadora das mulheres indígenas para além desta pesquisa e refletindo para outros territórios onde elas transitaram, afetaram e contaram a sua história. Em uma conversa com Tolym sobre suas palestras nas escolas da região, ela diz se sentir potente, pois “Eu posso falar e eu não preciso esperar que outro fale por mim.” (Tolym). Da mesma forma que se une o pesquisar e o participar, também unem-se os corpos que caminharam em conjunto, o território e a universidade, visto que foi transitando constantemente pelos dois locais, ao longos dos seis anos, que as mulheres indígenas escavaram espaços de denúncia e fala para potencializarem a sua voz: como elas diziam, “a voz é a nossa flecha”. Mesmo que o foco de análise e da PAP tenha sido a cidade loira de Blumenau, transitou-se também pelo espaço da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), local onde a pesquisadora aprendeu e aperfeiçoou a pesquisacaminhante e as pesquisadoras-participantes partilharam suas vivências, participaram de eventos e publicaram seus textos. O pesquisar não se faz só, mas com vários e, no caso da pesquisa longitudinal, isso implica encontros a longo prazo.

Na PAP, o saber da vida, os afetos e as memórias são evidenciados e potencializados, como afirma o latino-americano Fals Borda: “[...] en la investigación-acción es fundamental conocer y apreciar el papel que juega la sabiduría popular, el sentido común y la cultura del pueblo, para obtener y crear conocimientos científicos, por una parte”. (Fals Borda, 2009, p. 279). A construção do conhecimento e da pesquisa são a junção entre os envolvidos e seus saberes; portanto, os sujeitos, seus territórios e suas histórias formam a pesquisa e a fazem em ato; não existe um planejamento elaborado antes de ir a campo e conhecer o local, os sujeitos e suas necessidades.

Não é por isso que a pesquisa ação-participante não possui rigor científico, pelo contrário, a pesquisadora garante isso ao ser capaz de unir teoria/prática na pesquisa e ao zelar pelo compromisso ético-político com a realidade, afetações e sujeitos envolvidos. Fals Borda (1999) afirma que uma das características básicas da pesquisa é o rompimento da díade sujeito-objeto. Segundo o autor, são evidentes as potencialidades de obter um conhecimento sólido a partir da relação sujeito-sujeito, uma total participação daqueles que estão envolvidos na pesquisa (Fals Borda, 1999, p. 59). É justamente esse marcador de relação destacado por Fals Borda que a nomenclatura de “pesquisadora-participante” evidencia; não se trata de hierarquia ou de objetificação dos sujeitos, mas da participação e partilha do ato de pesquisar: se pesquisa junto e com eles, por isso é uma pesquisacaminhante. Quiçá, a PAP seja um método por si só ético-político, visto seu cuidado com os sujeitos, suas necessidades e seu objetivo de transformação social perante a realidade concreta, principalmente em contexto de desigualdade social. O ético-político, na PAP, acontece no cotidiano das relações e encontros, é diário e marca os corpos em sua historicidade.

Sawaia (1989) explica que a PAP se desenvolveu na prática militante. Segundo a autora, o método é resultado das mesmas formas e forças que colocaram o povo na busca pela saída das práticas de opressão. Por isso é uma prática de pesquisa militante, que é feita, geralmente, no contexto da desigualdade social.

Diante da realidade, a PAP se propõe à transformação social através da potencialização dos sujeitos e instrumentalização para enfrentamento da realidade da luta de classes em suas diferentes especificidades. É uma prática revolucionária, pois questiona a realidade e acredita na potência de todos os sujeitos para a transformação social. O revolucionário está nas relações, nos encontros e na criação perante a indignação com a realidade. Aqui reside também o pressuposto espinosano de que todos os corpos possuem conatus, ou seja, uma potência de vida - enfatizando que a potência não é algo externo ou dado pelo pesquisador, mas inerente aos corpos.

Como cada corpo possui suas especificidades, Freire explica que “pôr em prática esta metodologia significa recriá-la, enriquecê-la; significa inventar métodos com os quais trabalhar de maneira que as pessoas não sejam meros objetos.” (Freire, 1999, p. 41). Por isso a PAP tem espaço para a criação, a partir das necessidades do momento. Nesse caso, a criatividade é uma das potências desse método, como também sua espontaneidade, que juntamente com os envolvidos, garante a riqueza do processo de pesquisa militante. Afinal, a criação abre um campo de possibilidade para análise dos afetos, escuta das vivências e os bons encontros; os instrumentos da pesquisa, assim, se tornam inúmeros e respeitam a realidade concreta. No caso desta pesquisa longitudinal foram utilizados: encontros com muito café e conversa, criação de grupos no whatsapp, criação conjunta da associação de indígenas que vivem em contexto urbano (que originou outras ações coletivas), atividades coletivas como exposição de fotos na galeria da Universidade Regional de Blumenau e participação no desfile cívico do aniversário da cidade, criação de mídias sociais, viagens em conjunto, idas à Terra Indígena, entrevistas individuais e coletivas (foi feito um encontro de mulheres e memórias), registros fotográficos e algumas campanhas de apoio aos povos indígenas tanto da Terra Indígena como na cidade. Muitas dessas atividades surgiram espontaneamente do grupo que as pesquisadoras-participantes criaram - Associação O Brasil é Minha Aldeia (ABRAMA)2. Portanto, a PAP longitudinal acompanhou as mulheres que faziam parte desse coletivo e pôde analisar a processualidade afetiva decorrente dos diversos encontros e ações vivenciadas ao longo dos anos, inclusive a criação da associação, compreendida como uma expressão do desejo de comum. É para essa força que a PAP é orientada, pois é resultado da busca para a saída das práticas de opressão (Sawaia, 1989) e é na união dos corpos que se encontra uma resposta para os imperativos da desigualdade social.

A vivência da pesquisa, juntamente com a possibilidade de criar e de experienciar bons encontros, lembra que a potência varia de intensidade conforme os encontros que vivenciamos em nossa biografia de vida (Spinoza, 2013, p. 99). A partir das novas afetações, as pesquisadoras-participantes também se apropriam da cidade de outra forma: esta é a potência da pesquisa militante, em que o protagonismo não é da pesquisa, mas do território e dos corpos que a compõem. O ato de pesquisar, neste caso, é só a ferramenta para a decolonização e enfrentamento da desigualdade social. No caso das mulheres indígenas, através das vivências ocorre a transformação da vergonha em se movimentar na cidade como indígena para o amor de si (Busarello, 2022).

Portanto, os encontros provocados pela PAP possuem uma responsabilidade ético-política e uma intencionalidade para os afetos alegres em todos os envolvidos; esse método é norteado para os bons encontros e a decorrente expansão da potência dos sujeitos. Os encontros que vivemos serão bons quando compõem com o corpo e a potência se expande, ou maus, quando decompõem e a potência diminui (Deleuze, 2002). Por isso, a pesquisadora deve dar um passo atrás e observar que tipo de encontros está provocando - compõem ou não compõem com os corpos?

Diante do exposto até aqui, fica claro que a pesquisa se dá na experiência do cotidiano, na vivência dos sujeitos a partir do encontro enlaçado pelo vínculo entre pesquisadora e pesquisadoras-participantes. Este tem como afeto dominante a confiança mútua (Spinoza, 2013, p. 179) entre os envolvidos e, por causa deste afeto, possuem espaço para compartilhar histórias, alegrias, tristezas e sonhos durante a caminhada da pesquisa, que nesse caso é longitudinal. O enlace afetivo da confiança mútua e, por conseguinte, do afeto alegre da amizade, são o elo e o vínculo principal da PAP, porque, como explica o holandês, é útil aos sujeitos se unirem para fazer de todos um só e consolidar amizades (Spinoza, 2013, p. 206) e, através da amizade mútua e da sociedade comum, utilizar o preceito da razão à imaginação, “[...] para que nossa imaginação seja, assim, profundamente afetada por elas, de maneira que estejam sempre a nossa disposição”. (Spinoza, 2013, p. 221). Essa constelação afetiva, marcada por afetos alegres, se torna uma forma de união dos corpos e, por consequência, o fortalecimento destes. Amizade é pedagogia (Da silva, 2008), principalmente no contexto da desigualdade social que fragmenta e individualiza os sujeitos, ou neoliberal, em que um é concorrente do outro, enquanto o afeto da amizade potencializa a força do comum, une os corpos e cria formas criativas de resistência.

Tatián (2001) demarca a potência deste afeto ao afirmar que “la amistad, una amistad preservada por la cautela, describe entonces una realización en acto de comunidad entre hombres libres en un contexto adverso a la libertad” (2001, p. 21). Este enlace afetivo é o que permite à pesquisadora e às pesquisadoras-participantes caminharem juntas e construírem a pesquisa em ato, considerando, neste caso, que não existe uma instituição mediando as relações, mas os corpos encarnados enlaçados pela amizade e confiança mútua, que criam um ato de comunidade, conforme explica Tatián. Neste caso, a comunidade se dá na criação e na caminhada conjunta ao longo dos anos. O afeto em questão é um vínculo de mediação e bons encontros norteados para o comum na cidade loira de Blumenau, criando e recriando através da amizade revolucionária que une e acolhe ao invés de esfacelar e dividir.

No entanto, Chauí (1999) ressalta que a amizade é destruída quando as semelhanças são substituídas pela hierarquia. A PAP é um método que possibilita o enlace afetivo da amizade porque, retomando o provérbio mencionado por Spinoza a Henry Oldenburg, “[...] entre amigos, todas las cosas, sobre todo las espirituales, deben ser comunes” (Spinoza, 1988); no caso deste método, o comum é o norte e a motivação da caminhada para a transformação social. Seus pressupostos e horizontalidade entre os corpos envolvidos na pesquisa permitem o afeto que compõe com o corpo da pesquisadora e das pesquisadoras-participantes. Afirmar que não há hierarquia na PAP significa permitir o enlace deste afeto fundamental; todas são pesquisadoras e todas são participantes. Na pesquisa longitudinal, a amizade e a confiança mútua se tornam históricas e balizam as diversas vivências do cotidiano, uma constelação afetiva ético-política com os corpos que protagonizam a PAP.

Por isso, a pesquisa acontece nos encontros e afetos produzidos a partir deles. Também procura provocar afetos alegres em seus envolvidos para ser causa adequada e gerar ação, não reação. Conforme Spinoza (2013), o corpo pode ser afetado de muitas formas: “assim, quando podemos ser causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão” (Spinoza, 2013, p. 98). A PAP é norteada para a ação dos corpos que a envolvem e decorrentes afetos alegres; ela é ético-política e revolucionária.

Assim, a pesquisa procura aumentar a potência dos sujeitos e quiçá aqui resida uma das grandes chaves de importância da pesquisa ação-participante: a possibilidade de afetar, ser afetado e expandir o conatus. Através das vivências provocadas pela PAP, com a confiança como afeto dominante, os encontros mudam e por conseguinte os afetos também. As pesquisadoras-participantes queriam contar a sua história, se expressar como indígena e serem ouvidas a partir disso. Ou seja, desejavam outras formas de encontros na cidade, o que foi materializado pelo encontro com a pesquisadora sentipensante, que também queria ouvir essas mulheres.

Portanto, a partir das novas vivências possibilitadas pela pesquisa, novos afetos são vivenciados, como explica Chauí (2006): mais rica a experiência, mais a mente compreende. Assim, a pesquisa é uma expansão de horizontes afetivos, uma mediação para os envolvidos e a possibilidade revolucionária de transformação sobre a realidade e cristalizações afetivas. No caso desta PAP longitudinal, a participação nos encontros do NEXIN e Encontro da Rede Articulação Psicologia e Povos da Terra na Escola Florestan Fernandes, em São Paulo, além de outros em Florianópolis e Blumenau, possibilitaram novas vivências expressando ser indígena e de escuta dos afetos. As falas e histórias narradas pelas pesquisadoras-participantes nesses espaços não eram julgadas ou envergonhadas, pelo contrário, foram acolhidas e legitimadas por aqueles que as escutavam. Os novos encontros provocam novas marcas no corpo e imagens ou ideias na mente, quebrando assim uma cristalização afetiva histórica. A PAP faz mediação para novas vivências e afetações; assim, cria novas marcas no corpo memorioso, expandindo a imaginação e a potência daqueles que a vivem.

A pesquisadora assemelha-se, então, ao que Fals Borda denomina de pesquisador sentipensante. Por esse termo o autor colombiano define “aquella persona que trata de combinar la mente con el corazón, para guiar la vida por el buen sendero y aguantar sus muchos tropiezos” (Fals Borda, 2003, p. 9). Ou seja, a pesquisadora foge da visão neutra e positivista, que possui uma visão eurocêntrica de mundo, para um olhar e postura sentipensante: em que os afetos alegres, confiança, amizade e o compromisso ético-político são basilares para a relação presente nos corpos participantes, que também são sentipensantes, da PAP. Neste caso, possui um compromisso ético-político com os sujeitos participantes, com a realidade concreta e tem a preocupação com os bons encontros e a transformação social.

O pesquisador sentipensante é o militante dos encontros que compõem com os corpos, da potência, e possui responsabilidade ético-política com os sujeitos e seus territórios. Sabe do mito da neutralidade científica e por isso pensa, sente e age para provocar composição com (e junto d)os corpos, como lembra o latino-americano Eduardo Galeano: gosto das pessoas sentipensantes, que não separam a razão do coração. Que sentem e pensam ao mesmo tempo. Sem divorciar a cabeça do corpo, nem a emoção da razão. Esta é a pesquisadora sentipensante que sente, afeta e se afeta ao mesmo tempo que pesquisacaminharam junto das outras companheiras da pesquisa militante, ela sabe que a emoção não é ausência de razão, mas os radares ético-políticos dos encontros (Sawaia, 2001).

O resultado da PAP não é pré-determinado, mas tem objetivo e tese que são construídos com os sujeitos, pois como a pesquisa acontece em relação entre os envolvidos, o seu resultado não é controlado, mas fruto de uma caminhada coletiva - a pesquisacaminhante - no território e o considerando nesses passos, compreendendo assim as afetações produzidas entre o corpo coletivo e o singular. Procedimentos muito distantes da realidade positivista de pesquisa. Quiçá, a única certeza é das marcas nos corpos memoriosos e da aprendizagem constante. A pesquisadora sabe que não será a mesma após a pesquisa ação-participante. Borda (1985) explica a partir da pesquisa realizada por ele que:

De estas tareas - viajes en grupo y reuniones - salió una información útil para los fines de movilización popular en la región, que no hubiera sido posible recoger sino de manera colectiva y de boca en boca. Esta dimensión grupal y oral del trabajo de investigación, ligada a la utilidad comunitaria inmediata, concede a la IAP dos de sus especiales características que no comparte con otros métodos: las de la colectividad y informalidad, al incorporar diseño de la investigación social un conocimiento valorado que resulta de vivencias socializadas del pueblo y con el pueblo (Fals Borda, 1985, p. 37).

Com as diferentes vivências coletivas da pesquisa são oportunizados novos horizontes de aprendizagem e novas percepções sobre a realidade concreta. Os novos encontros coletivos também mudam as ideias inadequadas; portanto, a PAP é norteada para ser causa adequada para os envolvidos, uma atividade revolucionária do comum que produz novas imagens nos sujeitos. Como Vaiká conta sobre a caminhada:

Quando a gente tem que fazer um caminho, a gente tem que ficar passando naquele caminho o tempo todo, até você amassar e realmente transformar aquela picada em uma estrada e é isso que os rolês fazem. Eles reforçam de que o indígena é indígena também no contexto urbano e deve se levantar essa bandeira, deve-se brigar por essa causa (Vaiká).

Seguindo a trilha dos afetos: algumas considerações

Por sua característica coletiva, a PAP compartilha os afetos, ideias e também produz experiências de comum. Isso possibilita a união do conatus dos sujeitos e quebra a rotina individualista vivida no sistema capitalista neoliberal, “o sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.” (Galeano, 2012, p. 81). Essencialmente, este método de pesquisa demonstra que o comum é possível e potente - o coletivo ampara e compartilha; o comum alimenta a fome dos abraços, pois é o abraço em meio à sociedade individualista, capitalista e solitária. Abraçar é resistência diante da quebra do comum existente no contexto urbano capitalista que não dá de comer, nem amar, condena à solidão e rechaça as emoções, carinho e cuidado.

O pesquisador sentipensante prioriza sua responsabilidade e compromisso ético-político, por isso sabe que as afetações da pesquisa irão ressoar para além das páginas escritas, pois os corpos são memoriosos (Spinoza, 2013) e fazem parte do ato de pesquisar - não há divisão entre razão e emoção, corpo e mente. A pesquisa longitudinal se mostra como um método de conhecimento e análise do ingenium dos envolvidos e do território de atuação, pois é possível avaliar e acompanhar as mudanças nas cristalizações afetivas e seus afetos dominantes, movimento e expressão do sujeito. Para além disso, a pesquisa longitudinal nos relembra do compromisso e do vínculo necessário entre universidade e comunidade, entre pesquisadora e pesquisadoras-participantes. A PAP longitudinal convoca a Psicologia para a realidade concreta.

A pesquisa aqui relatada foi uma celebração da amizade, esta que encontrou nos corpos a união e fortalecimento da potência, o que é possível pelas vivências possibilitadas pela pesquisa ação-participante (PAP). A horizontalidade também está na visão espinosana de que todos os corpos afetam e são afetados, pois todas as mulheres (pesquisadora e pesquisadoras-participantes) que compuseram esta pesquisa foram afetadas e tiveram sua biografia marcada pelos nossos encontros (regados a café e boas conversas). Não há como ter neutralidade científica quando a pesquisa é balizada para a potencialização dos corpos daqueles(as) que vivem as mazelas da desigualdade social e da ideologia dominante capitalista. A PAP oferece a possibilidade de abraçar, sentir, agir, narrar e se afetar.

Referências

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1 É salientado que apesar do filósofo preferir a palavra indivíduo em sua obra e usar raramente o termo sujeito (Medeiros, 2010), este artigo irá utilizar essa palavra para se referir aos indivíduos humanos, seguindo também os preceitos da Psicologia Social da Escola de São Paulo, na qual o sujeito é compreendido como produto e produtor da sua história pessoal e também da história da sociedade (Lane, 1992, p. 15).

2 Esse grupo surgiu em 2017 durante a pesquisa realizada no mestrado e teve continuidade no doutorado; por isso, a base principal desta pesquisa militante é a luta pelos direitos dos e das indígenas que vivem no contexto urbano de Blumenau.

Recebido: 26 de Janeiro de 2023; Aceito: 30 de Janeiro de 2023

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