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Motrivivência

On-line version ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.31 no.58 Florianópolis Apr./June 2019  Epub Sep 11, 2019

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e55270 

Porta Aberta

Educação Física escolar no ensino fundamental: o planejamento participativo na organização didático-pedagógica

School Physical Education in Fundamental Teaching: participatory planning in the didactic-pedagogical organization

Educación Física Escolar en la Educación Primaria: el planeamiento participativo en la organización didáctico-pedagógica

Uirá de Siqueira Farias1 
http://orcid.org/0000-0001-7286-1000

Valdilene Aline Nogueira2 
http://orcid.org/0000-0002-5271-1635

Cláudio Aparecido de Sousa3 
http://orcid.org/0000-0001-5956-0780

Daniel Teixeira Maldonado4 
http://orcid.org/0000-0002-0420-6490

1Mestre em Educação Física Universidade São Judas - USJT, Departamento de Educação Física, São Paulo, São Paulo, Brasil. uirasiqueira@yahoo.com.br

2Mestre em Educação Física Universidade São Judas - USJT, Departamento de Educação Física, São Paulo, São Paulo, Brasil. valdilenenogueira@yahoo.com.br

3Mestre em Educação Universidade São Judas - USJT, Departamento de Educação Física, São Paulo, São Paulo, Brasil. claudio.joga8@gmail.com

4Doutor em Educação Física Instituto Federal de São Paulo - IFSP, Departamento de Humanidades, São Paulo, São Paulo, Brasil. danieltmaldonado@yahoo.com.br


RESUMO

Relatamos duas experiências pedagógicas onde os docentes utilizaram o planejamento participativo como estratégia para selecionar as práticas corporais e os conteúdos tematizados durante as aulas de Educação Física no Ensino Fundamental. O primeiro projeto educativo foi desenvolvido com estudantes do 5º ano em uma escola municipal de São Paulo. Durante essas aulas os discentes participaram da escolha dos jogos, brincadeiras e esportes que foram desenvolvidos durante o ano. A segunda experiência ocorreu em uma cooperativa educacional localizada em Minas Gerais com alunos do 9º ano. Essa é uma escola que tem por essência o trabalho por projetos e os discentes participaram do planejamento de todos os componentes curriculares. Nas aulas de Educação Física os jovens escolheram, em conjunto com a docente, vivenciar e refletir sobre esportes, jogos, brincadeiras e ginásticas. Concluímos que o planejamento participativo pode estimular maior participação dos estudantes durante as aulas de Educação Física Escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física; Inovação pedagógica; Planejamento participativo

ABSTRACT

We have reported two pedagogical experiences where the teachers used the participatory planning as a strategy to select the corporal practices and the contents thematized during the classes of Physical Education in Elementary School. The first educational project was developed with 5th year students in a municipal school at São Paulo. During these classes the students participated in the choice of games and sports that were developed during that year. The second experience occurred in an educational cooperative located at Minas Gerais with 9th grade students. This is a school that has essentially the work designed by projects and the students participate in the planning of all the curricular components. In the classes of Physical Education the young people chose together with the teacher to experience and reflect on sports, games and gymnastics. We conclude that participatory planning can stimulate greater student participation at school during Physical Education classes

KEYWORDS: Physical education; Pedagogical innovation; Participatory planning

RESUMEN

Relatamos dos experiencias pedagógicas en las que los docentes han utilizado el planeamiento participativo como estrategia para seleccionar las prácticas corporales y los contenidos tematizados durante las clases de Educación Física en primaria. El primer proyecto educativo ha sido desarrollado con estudiantes del 5º año en una escuela municipal de São Paulo. Durante esas clases, los discentes han participado de la elección de los juegos y deportes que han sido desarrollados en el año. La segunda experiencia ha ocurrido en una cooperativa educacional ubicada en Minas Gerais con alumnos del 9º año. Esa es una escuela cuya esencia es el trabajo por proyectos y los discentes han participado del planeamiento en todas las asignaturas. En las clases de Educación Física los jóvenes han elegido, junto con la docente, vivenciar y reflexionar acerca de deportes, juegos y gimnásticas. Concluimos que el planeamiento participativo puede estimular mayor participación de los estudiantes durante las clases de Educación Física escolar.

PALABRAS-CLAVE: Educación física; Innovación pedagógica; Planeamiento participativo

INTRODUÇÃO

Durante a formação inicial e quando iniciamos a nossa atuação profissional na escola, percebemos que o planejamento das aulas de Educação Física não estava, em muitos contextos educativos, relacionado com as discussões mais contemporâneas sobre educação. Nesse momento, não realizamos nenhum tipo de reflexão sobre a função social da escola, as propostas pedagógicas e currículos das diferentes redes de ensino do componente, a práxis educativa, as relações entre objetivo, conteúdo, método e avaliação, a participação efetiva dos/das discentes na organização das aulas, dentre outros temas que poderiam nos ajudar a organizar as nossas ações didáticas de uma forma mais coerente e democrática.

Portanto, pudemos perceber neste período que as características profissionais do/a professor/a de Educação Física Escolar (EFE) se assemelhava a um/a treinador/a de modalidades esportivas, um/a recreacionista ou organizador/a de festas e campeonatos, como ressalta o trabalho de Taborda de Oliveira (1998/1999).

Ao nos depararmos com esse contexto que confirmava nossas percepções sobre a necessidade de uma discussão que trouxesse à tona questões didáticas e metodológicas da Educação Física, como nos aponta Caparroz e Bracht (2007), pensamos na urgência de dar a voz aos professores e professoras para que esses/as relatem suas experiências que inovam esse cenário. Ouvir esses/as profissionais torna-se, portanto, preponderante no processo de estruturação de práticas e reflexões à luz daquilo que vem ocorrendo nas escolas brasileiras (SILVA; BRACHT, 2012).

Para Almeida (2017) são considerados inovadores os/as docentes de Educação Física que conseguem diminuir o “fosso” entre o grande avanço teórico da área nas últimas décadas, principalmente após as propostas pedagógicas que foram elaboradas durante o movimento renovador, e a dificuldade de materializar essas mudanças na organização da prática pedagógica no chão da escola. O autor ainda ressalta que esses professores e essas professoras estão criando uma nova tradição para o componente, já que planejam e organizam as suas ações didáticas sem tratar de forma separada o pensamento e o movimento.

O objetivo deste trabalho é apresentar duas experiências didático-pedagógicas ministradas por dois docentes que lecionam aulas de EFE no Ensino Fundamental e utilizam o planejamento participativo como estratégia para selecionar as práticas corporais e os conteúdos tematizados. O professor e a professora, que aqui narram à construção de seus projetos, rompem com o estereótipo do professor “rola bola” ou “treinador”, possuindo características de profissionais reflexivos e intelectuais, que transpõem as barreiras da reprodução, optando assim por efetivar uma prática pedagógica libertadora, emancipadora e problematizadora (FREIRE, 1996; 2006; SOUSA, 2017).

González et al. (2013) vêm discutindo sobre a predominância de uma prática pedagógica tradicional no cotidiano escolar durante as aulas de Educação Física. Para os autores, essa manutenção na forma de se pensar a didática do componente dentro do ambiente escolar pode sinalizar o crescimento do abandono pedagógico, onde alguns professores/as já não possuem intencionalidades pedagógicas em suas atuações.

Machado et al. (2010) mostraram em seu estudo que a precariedade das condições de trabalho que os docentes de Educação Física atuam, a resistência de uma parcela dos/das estudantes em aprender temas relacionados com práticas corporais diferenciadas, a violência que ocorre nos bairros em que as escolas mais carentes estão inseridas e a falta de legitimidade do componente em muitas unidades escolares vem causando o desinvestimento pedagógico em muitos professores e professoras.

Em contrapartida, mesmo diante desse predomínio citado anteriormente, das precárias condições de trabalho e as grandes mudanças em que a educação brasileira tem passado, práticas pedagógicas em EFE comprometidas, renovadoras e/ou inovadoras têm emergido em alguns cenários escolares brasileiros, mostrando possibilidades de mudanças efetivas na prática pedagógica dos/das docentes (GONZÁLEZ, 2016).

Assim sendo, professores e professoras de EFE passaram a desenvolver as suas aulas possibilitando que os/as estudantes vivenciem diversificadas manifestações da cultura corporal, pensando em estratégias de ensino em que os/as alunos/as possam refletir e analisar aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos, biológicos e culturais relacionados com as práticas corporais, utilizando diferentes espaços da escola durante as aulas, avaliando os/as discentes com diversos instrumentos, incluindo todas as crianças e jovens nas atividades realizadas e permitindo que esses/as estudantes participem de forma efetiva do planejamento e dos conteúdos que serão tematizados durante o ano letivo (FARIAS; NOGUEIRA; MALDONADO, 2017; MALDONADO et al., 2017; NOGUEIRA; FARIAS; MALDONADO, 2017).

Sabemos que todos esses elementos didáticos são extremamente relevantes para se pensar em uma mudança significativa na prática pedagógica dos/as docentes de EFE. Todavia, em muitas situações que ocorrem no cotidiano escolar, os/as docentes conseguem colocar em prática alguns desses princípios. Assim, vamos dar enfoque nesse texto nas discussões relacionadas com o planejamento participativo com vistas de produzir práticas pedagógicas inovadoras/renovadoras nas aulas de Educação Física.

Entendemos que o planejamento participativo é considerado uma estratégia metodológica que possibilita a convergência entre o refletir e o agir no espaço escolar. Ele potencializa experiências educativas pautadas em princípios democráticos, já que todas e todos os/as sujeitos/as que participam do processo educativo se envolvem efetivamente com as escolhas realizadas nos projetos que elaboram (FALKEMBACH, 2008).

Correia (1996) apresentou uma proposta de planejamento participativo durante as aulas de Educação Física onde sugeriu quatro temas para os/as discentes, sendo eles danças, ginásticas, lutas e jogos. Após apresentar essas manifestações da cultura corporal, os/as jovens podiam sugerir quais estilos de lutas lhes interessavam e quais ritmos de dança eram do interesse deles, além de indicar quais ginásticas e jogos gostariam de vivenciar. Após esse debate prévio, era realizada uma votação para escolher as práticas corporais que seriam desenvolvidas naquele ano letivo e os/as alunos/as entregavam um documento para o docente com a programação das atividades que seriam realizadas em cada bimestre com a assinatura de todos os envolvidos.

O autor ressalta que esse processo possibilitou que os/as discentes participassem das decisões, da organização e da avaliação que iria ocorrer durante as aulas de Educação Física. Todavia, a partir dele, o docente precisou buscar recursos materiais e humanos para tematizar as práticas corporais escolhidas no planejamento participativo, já que o professor não pode propor apenas vivências dessas atividades, realizando também discussões de caráter mais teórico sobre as implicações históricas, psicológicas, antropológicas, fisiológicas e socioculturais do movimento humano (CORREIA, 1996).

Mais recentemente, Souza e Freire (2008) também utilizaram a estratégia do planejamento participativo para organizar o trabalho pedagógico durante as aulas de Educação Física em uma escola particular de São Paulo. Os autores ressaltaram que colocar os/as estudantes como protagonistas do processo de ensino e aprendizagem foi muito efetivo, pois percebeu-se a participação dos/as jovens em muitos momentos, embora elas e eles tenham demonstrado resistência pela proposta em algumas situações nas aulas.

Com a perspectiva de contribuir com a literatura da área de Educação Física relatando experiências positivas de docentes que utilizaram o planejamento participativo durante as suas aulas na escola, iremos relatar duas práticas pedagógicas que caminharam no sentido de possibilitar a participação efetiva das crianças e adolescentes no processo de escolha das práticas corporais e no desenvolvimento dos conteúdos que foram tematizados durante o momento em que esses projetos educativos foram realizados.

POTENCIAL DE RELATAR EXPERIÊNCIAS NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Ao escrever um relato de experiência, o/a docente reflete sobre as suas ações pedagógicas, adquirindo maior compreensão do processo de ensino e aprendizagem e das situações didático-pedagógicas que foram vivenciadas naquele período letivo. Além disso, esses professores e professoras colocam a sua prática pedagógica em domínio público, permitindo que outros docentes possam aprender com as suas ações didáticas e produzir críticas construtivas sobre o seu trabalho (CONTRERAS, 2016).

Também nos cabe ressaltar que durante muitas décadas os pesquisadores que lecionavam nas Universidades ou os “especialistas” que atuavam nas instâncias administrativas de diferentes redes de ensino foram os responsáveis por escrever os currículos e materiais didáticos para embasar a prática pedagógica dos/as docentes que atuavam na escola. Por conta disso, muitos professores e professoras foram considerados despreparados para sistematizar a sua prática pedagógica com autonomia e criticidade (NEIRA, 2017).

Entretanto, ainda na visão de Neira (2017), aquilo que acontece efetivamente nas escolas é bem mais complexo do que qualquer previsão que ocorra por aqueles que elaboram as políticas educacionais, já que a escola é um ambiente repleto de histórias e os/as docentes são narradores, personagens e autores das experiências didáticas que organizam cotidianamente durante as suas aulas.

Assim, concordando com as palavras de Bracht (2017, p. 11), o cotidiano da escola é marcado por contradições, particularidades, necessidades e interesses diversos e, quando os/as docentes publicam na literatura científica relatos de experiência que rompem com a tradição físico-esportiva da área, esses professores/as se tornam “produtores de conhecimento e elaboradores de experiências e não meros aplicadores das ideias dos outros”.

Outro ponto importante a ser considerado é que ao relatar os projetos educativos que ocorrem nas aulas de EFE, não estamos apresentando somente situações exitosas que aconteceram nas experiências educativas, pois os profissionais que trabalham na escola vivenciam dificuldades diversas em âmbito social, cultural, institucional, organizacional e pedagógico que prejudicam a sua atuação profissional (MALDONADO; SILVA, 2017).

É por conta de todas essas questões abordadas que acreditamos no potencial das experiências pedagógicas que estão correndo em escolas espalhadas por todo o Brasil e esperamos compartilhar com os leitores e leitoras algumas dessas vivências que foram conduzidas pelos autores desse trabalho em uma escola municipal de Santo André/SP e uma cooperativa educacional em Viçosa/Minas Gerais.

Pedimos licença, nesse sentido, para transitar a partir desse momento, entre a escrita em primeira e em terceira pessoa. Esse trânsito necessário, em nosso entendimento, caminha ao encontro de trazermos a reflexão realizada e registrada pelo professor e pela professora que compartilham seus relatos, considerando-os como escritores de suas práticas pedagógicas (FARIAS; NOGUEIRA; MALDONADO, 2017).

PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Tenho construído ao longo de nove anos de docência, lecionando em algumas redes de ensino no Estado de São Paulo, uma forma de atuar que objetiva promover a criticidade das crianças sobre as manifestações corporais em suas dimensões sociopolítico/culturais. Todavia, nem sempre foi assim. Ao sair da faculdade e adentrar nas salas reais, com turmas heterogêneas, recorri aos circuitos, às aulas sem discussões, a aprendizagem motora, ou seja, a reprodução de movimento.

Hoje, após quatro anos de estudos, me aprofundando em literaturas que discutem as práticas pedagógicas e mais expressivamente tendo contato com outros/as colegas de docência, venho aprendendo a rever minha forma de atuar, deixando de ser um mero reprodutor de práticas, muitas vezes descontextualizadas e, passando a reconhecer os conhecimentos que as crianças trazem como ponto inicial para ampliar e aprofundar as discussões sobre as manifestações da cultura corporal. Atualmente busco a compreensão da EFE como um componente curricular da Educação Básica, antes vista como algo sempre deslocado na escola, como algo diferente.

A maior alteração que ocorreu na minha prática pedagógica foi a de planejar os conteúdos que serão tematizados com a estratégia do planejamento participativo. Nesse sentido, ao ter contato com os/as estudantes na primeira aula, criei formas para que as crianças possam participar efetivamente do que será planejado para aquele ano letivo.

Com isso, trago algumas cenas do meu cotidiano escolar, em forma de relato de experiência, que foi realizado em uma escola pública municipal da cidade de Santo André - SP, com uma turma de 5º ano, no segundo semestre de 2017. A minha relação com essa turma já dura há três anos. Assim sendo, ressalto que as crianças inicialmente tinham grande resistência à minha forma de entender a Educação Física na escola, pois, diferente daquilo que eles/as estavam acostumados, eu trago para a sala de aula discussões de elementos que estão além da dimensão procedimental dos conteúdos. Esse fato provocou um grande estranhamento e até confusão para os/as estudantes

Diante desse cenário, se apropriando dos pensamentos de Paulo Freire (1979), um trabalho de descodificação e codificação foi iniciado para que as crianças pudessem ampliar a ideia de Educação Física vivenciada antes da minha chegada, e juntos, professor e alunos/as, de forma dialogada, fomos construindo um olhar mais qualificado sobre as práticas corporais. Tivemos que rever aquilo que as crianças conheciam por EFE, pois elas nunca tinham tratado os conhecimentos do componente curricular de forma a discutir, interpretar e buscar se aprofundar sobre as tematizações. Antes da minha chegada nessa escola, tudo era feito de forma bem mecânica, ou seja, as crianças eram conduzidas até a quadra, realizavam a atividade proposta pelo educador e eram entregues na sala após o termino da aula. O objetivo da aula era simplesmente colocar as crianças em movimento.

Então, a ideia foi desenvolver e estimular a participação mais efetiva das crianças na elaboração e concretização das aulas de EFE, dando voz a elas para que pudessem entender na prática como esse diálogo seria possível, tomando a práxis como elemento central, onde o/a docente de Educação Física precisa promover vivências, debates e estudos de diferentes aspectos das práticas corporais, possibilitando a sua transformação constante junto às crianças (FRANÇOSO; NEIRA, 2014).

Para dar o primeiro passo, solicitei que cada criança deveria ter um caderno de registros, onde conseguisse registrar os conhecimentos que foram aprendidos durante as aulas, ou seja, esse instrumento seria um dos elementos em que os discentes, de forma autoral, construiriam suas anotações de itens que eles considerassem importantes.

É claro que, como toda criança que vive em um sistema que pouco estimula sua autonomia e criatividade, no início do trabalho os/as estudantes queriam copiar aquilo que eu ia pontuando no quadro. Esse é um processo que tenho tido dificuldade de romper, mas em passos pequenos, estou estimulando que os/as discentes registrem os conhecimentos mais importantes e que façam sentido para eles, acabando com a concepção de cópia daquilo que o docente escreve na lousa. A utilização do caderno de registro já é uma prática que venho realizando há algum tempo e colhido bons frutos com essa estratégia didática.

Iniciei o projeto educativo trazendo as possibilidades temáticas que a EFE possui, então, em sala de aula, comecei algumas discussões sobre a prática de alguns jogos e esportes em si e quais os outros elementos que estão para além do fazer, e que necessitam de atenção para entender de fato as diferentes manifestações da cultura corporal. Nessa lógica, de forma intencional, destaquei os jogos, brincadeiras e os esportes, já que fui percebendo nas falas das crianças, em momentos descontraídos no pátio da escola e também fora da aula de EFE, que queriam aprender sobre determinados jogos e esportes. Essa percepção acabou se transformando em uma forma de mapear o interesse deles/as.

Para dar andamento no planejamento e na sequência de aulas, solicitei que os alunos e as alunas realizassem uma pesquisa com os familiares sobre jogos que eles praticavam quando crianças, além de pontuar se essa prática era realizada predominantemente por meninas ou meninos. A intenção dessa atividade era fazer os/as discentes dialogarem com os seus familiares sobre elementos de sua história de vida, como um recordatório, além de trazer assuntos que pudessem ser discutidos nas aulas de Educação Física como, por exemplo, as gestões de gênero.

Notei que 23 crianças, em um universo de 28, retornaram na próxima aula com a pesquisa realizada. Me reuni com os/as discentes mais uma vez em sala para organizar nossas próximas aulas e tarefas, tais como trabalho em grupo, avaliações e debates. Nesse momento, solicitei que cada estudante contasse os resultados da sua pesquisa com a família. Utilizando o caderno de registros, cada aluno e aluna foi narrando sua experiência, criando assim uma lista de jogos que seriam utilizados no planejamento das aulas.

Essa forma de construir o planejamento tem sido extremamente significativa na minha prática pedagógica e mais ainda para as crianças. Após a exposição de todos/as, eu parabenizei o empenho na tarefa e informei que estava estruturado nosso planejamento, então, utilizando o caderno de registro, eles anotaram cada jogo, autor, onde a cada aula esse/a aluno/a deverá se organizar para apresentar o jogo, suas regras, seus materiais e mediar a efetivação do mesmo. No momento de apresentação dos discentes eu me torno um mediador do processo de ensino e aprendizagem.

Na figura 1, a aluna, seguindo a ordem programada, apresentou o “taco”, um jogo realizado pelo pai dela quando criança. Essa aluna registrou em seu caderno os detalhes do jogo e expôs à turma, posteriormente abriu para os colegas um momento de perguntas e sugestões para a realização e adaptação da prática. Em quadra, a aluna solicitou que a turma se dividisse em duplas, e em forma de rodízio, cada quarteto jogava quatro minutos ou até uma dupla marcar quatro pontos, possibilitando a vivência de todos/as. Essa estratégia foi criada pela aluna motivada pela quadra pequena que temos na escola, além de ser uma tarefa dos/das discentes pensarem nas adaptações para a prática.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 1 Aluna apresentando o jogo “Taco” 

Seguindo uma exigência da tarefa, a aluna contou que seu pai realizava esse jogo na rua e predominantemente era jogado por meninos. Então a aluna proferiu o seguinte discurso

Eu acho que é por causa que antigamente só os homens faziam esporte e tinham direito de tudo, e as mulheres nada, eram tratadas como empregadas. Tem algumas pessoas que ainda acham que o lugar das mulheres é em casa pra fazer a faxina, mas não, tipo tem algumas mulheres que não gostam de jogar futebol, mas eu gosto, cada mulher é diferente, mas não é por causa disso que eles têm que excluir a gente de algumas coisas que homem faz.

Confesso que a discussão que eu mais esperava era essa, e como previsto, as meninas iniciaram uma discussão em torno do que as mulheres podiam ou não realizar em termos de práticas esportivas. Aproveitando a oportunidade, e não esquecendo que o esporte também seria tematizado nesse semestre, pedi que a turma se organizasse em seis grupos para a próxima aula, pois iríamos iniciar o aprofundamento das discussões sobre a mulher no futebol.

Chegado o dia da pesquisa na sala de informática, orientei a turma sobre as regras da elaboração do trabalho, onde eles/as deveriam buscar informações relacionadas com o futebol feminino como salários, condições profissionais, barreiras sociais e aquilo que eles/as considerassem pertinente. A tematização do esporte, tendo como centro o futebol feminino, teve um objetivo específico no desenvolvimento das aulas, pois não vivenciamos essa prática corporal, já que ainda tínhamos diversos jogos programados para serem desenvolvidos. Portanto, seguindo preceitos advindos dos escritos de Freire (1979), ficou acertado com o grupo a investigação de aspectos que estão além do fazer, com o objetivo de estimular a conscientização, a reflexão crítica das crianças utilizando os aspectos implícitos no futebol feminino e que muitas vezes passam despercebidos pela sociedade.

Então, as crianças se organizaram, e em rodízio utilizaram os computadores, pois a escola não dispõe de máquinas para todos e todas, e foram buscando elementos para a produção de seus trabalhos. Depois de uma semana os grupos deveriam entregar os trabalhos, compondo um dos instrumentos de avaliação do semestre. Os resultados dessa etapa me deixaram muito contente, tanto no aspecto de produção, envolvimento, atitudes. A partir das pesquisas realizadas em casa com os familiares, e especialmente após o relato da aluna anteriormente descrito, surgiu um ambiente propício para se discutir a questão da participação das mulheres nas práticas corporais, algo que nunca tinha acontecido em uma aula de EFE nessa turma. Além disso, foi possível perceber que as crianças estavam mais “antenadas” aos acontecimentos que envolviam as questões de gênero e igualdade, por exemplo. Assim, em um dos jogos programados no planejamento participativo, uma criança propôs a divisão das equipes por gênero e, nesse momento, alguns estudantes sugeriram outra forma de divisão, onde visualizavam maior equilíbrio entre as equipes.

Os resultados de tal prática pedagógica me fizeram repensar o quanto, de fato, abordagens como essa podem suscitar uma leitura das manifestações da cultura corporal de forma mais ampla e reflexiva, tanto para as crianças como para o professor. Os/As estudantes, a partir de então, se mostraram atentos/as em diversos momentos, não só na EFE, mas no contexto escolar em ações que pudessem envolver a participação das meninas. Não posso afirmar que foi essa forma de trabalho pedagógico que promoveu essa mudança, mas ela tinha esse objetivo, de ser o propulsor de debates como este, como exemplificado na figura 2.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 2 Dia da pesquisa sobre o futebol feminino e um dos trabalhos realizados. 

Após esse processo, senti que a turma ficou empolgada com a temática. Ciente da importância do aprofundamento das reflexões e vivências dos jogos, brincadeiras e esportes que estavam sendo tematizados, e seguindo uma lógica de explorar ao máximo as possibilidades que esses temas permitem, solicitei mais uma tarefa para ser realizada em casa, onde as crianças deveriam assistir qualquer prática esportiva e analisar os aspectos que estavam envolvidos naquela manifestação corporal e que eles considerassem importantes para ser discutido em aula, como: Quem pratica? Onde é praticado? Tem público assistido? Tem propagandas?

Os dados dessa tarefa foram utilizados em um debate em círculo que estimulei na quadra. As crianças trouxeram seu caderno de registro, com seus apontamentos percebidos e expuseram ao grupo. Foi uma dinâmica nova pra mim, e principalmente para as crianças. Diversas impressões e questionamentos foram colocados na discussão como:

  • Aluna A: Professor, os comerciais ou patrocínios dos jogos de futebol podem ser cervejas?

  • Aluno B: O que as bebidas alcoólicas têm haver com um esporte? Não teria que ser saudável?

  • Aluna C: Professor, eu percebi que no jogo de vôlei, a maioria do público era masculina, tinha algumas crianças e mulheres só!

  • Aluno D: Eu assisti uma luta de UFC, e a maioria do público é de homens. Também ví as meninas que ficam segurando as placas.

O debate permitiu que as crianças explorassem sua capacidade de ler certas particularidades da manifestação corporal escolhida, além de estimular a troca de ideias, de opiniões divergentes ou convergentes, ou seja, como intencionado pelo professor, os/as estudantes dialogaram sobre o assunto. Mesmo tendo ciência que promover o pensamento crítico não é uma tarefa fácil, e até complexa de ser entendida pela área acadêmica da Educação Física, tenho perseguido alcançar tal ideal com uma metodologia que permita o diálogo, a participação mais efetiva dos/das alunos/as e o aprofundamento das manifestações corporais estudadas.

A avaliação, outro elemento da prática pedagógica, tem sido um grande desafio e ao mesmo tempo algo bem interessante nas minhas aulas. Utilizar o caderno de registros, as tarefas de casa, os trabalhos individuais e em grupos, inclusive avaliações pontuais sobre determinado assunto da tematização, pode parecer algo que se assemelhe as perspectivas tradicionais, mas no cenário nacional da EFE, promover aulas com intencionalidade pedagógica, aprofundar o conhecimento sobre as manifestações da cultura corporal , solicitar tarefas e aplicar avaliações, são estratégias pouco comuns nas aulas do componente em muitos ambientes educacionais, pois ainda se nota que a formação esportiva, a recreação e as aulas livre têm sido considerado sinônimo de EFE, causando a chamada desvalorização do/da professor/a perante a escola e a sociedade, como ressalta Taborda de Oliviera (1998/1999).

Para finalizar, realizei uma avaliação online, utilizando a ferramenta do google formulários. Venho utilizando esse recurso desde 2014, mas com mais propriedade nos dois últimos anos. Essa ferramenta amplia as possibilidades de recursos pedagógicos para os/as docentes, onde pode ser criado diversas formas de testes, avaliações ou enquetes, com perguntas, vídeos e figuras, tudo ao alcance das crianças, pois se tratando de tecnologia, na minha realidade, tem se mostrado uma experiência positiva pelo fato de eu poder associar os conteúdos que estão sendo tematizados com um ambiente diferente da sala de aula e que tem chamado a atenção dos/das discentes, pelo simples fato de ser uma ferramenta online e eles e elas responderem as perguntas diretamente pelo computador.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 3 Avaliação online de EFE 

Nessa avaliação as crianças colocaram em palavras seus conhecimentos desenvolvidos durante as aulas. No instrumento avaliativo existiam algumas questões abertas e fechadas sobre o componente curricular e sua função na escola, sobre o futebol feminino e sobre os jogos e brincadeiras que compuseram o planejamento participativo do semestre, ou seja, o próprio conhecimento trazido, ampliado e construído pelas crianças, foram elementos que nutriram a avaliação. Respostas como essas a seguir apontam que as aulas parecem estar surtindo algum sentido para os/as estudantes.

  • Aluna A: O futebol feminino, e não são apenas duas mulheres jogando futebol, e sim uma de muitas lutas pela igualdade social! Devemos lutar pelos nossos direitos e mostrar para o mundo que não somos apenas frágeis e delicadas, somos muito mais que isso!

  • Aluno B: Por mim, a educação física não são apenas esportes e sim jogos, brincadeiras, ginásticas e outros. É claro que também pode ser um esporte, mas não somente isso, vai muito mais além, tanto na prática quanto na escrita. Ela pode ser também um trabalho ou uma lição de casa.

Claro que nem todas as crianças conseguiram romper com a ideia de que a EFE serve só para brincar ou fazer exercícios. Notei em reuniões com as famílias que a visão que aquele pai, mãe ou responsável tem sobre o componente curricular, muitas vezes é reproduzida pelos/as alunos/as. Quando cheguei nessa escola, algumas vezes fui questionado pelos familiares por estar enviando tarefa para casa e aplicando avaliações, fato que foi aos poucos se modificando com o dia a dia do trabalho. Entretanto, ainda enfrento dificuldade em aplicar metodologias que se diferenciam daquilo que foi construído historicamente na área.

Para finalizar o ano, levando em consideração a tematização do futebol feminino, produzi com os/as discentes uma obra de arte com bolas envolvidas com tinta, onde cada criança proferia chutes em direção a uma tela de pintura e foram protagonistas de um quadro que foi sorteado no dia da formatura da turma.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 4 Quadro produzido pelas crianças sobre o futebol feminino. 

Assim, considero que refletir sobre a minha prática pedagógica é um exercício que exige muito comprometimento e abertura para rever as ações didáticas que realizei. Como apresentado, o que venho tentando desenvolver hoje é fruto de uma história construída com a participação de diversos agentes da escola, e confesso não ser fácil. As questões sociopolítico/culturais são determinantes e influenciam diretamente a minha forma de trabalhar, e muitas vezes os/as docentes necessitam remar contra a maré para mudar passo a passo uma visão cristalizada que a escola e a sociedade em geral possuem da Educação Física.

Ciente dos possíveis tropeços que esse relato possui, como, por exemplo, a grande dificuldade que encontro muitas vezes de se trabalhar em uma perspectiva crítica da EFE, pois somos taxados de estranhos por tentar fazer as crianças construírem um conhecimento sobre as práticas corporais que vão além do movimento em si, onde eles e elas possam realizar uma leitura de mudo, de realidade social e a partir daí transformar sua realidade. Outra dificuldade foi utilizar o planejamento participativo, pois percebi o quanto é trabalhoso ouvir as crianças, fazer elas se sentirem produtoras de conhecimento. Muitas vezes a aula fica com um tom de desorganização, parece que foge de nossas mãos. Essa realidade exige do/da docente muita persistência e esperança. Mesmo diante disso, continuarei em busca de aulas que promovam o aprofundamento, a pesquisa, os debates, a construção e o diálogo do e sobre os conhecimentos da EFE.

PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO NAS SÉRIES FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Esses escritos têm o objetivo de relatar a construção do planejamento de ensino e aprendizagem em uma cooperativa educacional, localizada na cidade de Viçosa-MG. Viçosa é uma cidade universitária com cerca de 80.000 habitantes e 30.000 flutuantes, esta população depende diretamente das universidades da cidade, em especial da Universidade Federal de Viçosa - UFV. A escola onde os projetos aqui relatados aconteceram foi fundada por professores da UFV, em forma de cooperativa, sem fins lucrativos, no intuído de construírem uma instituição que fosse condizente com os ideais educacionais que acreditavam.

Conclui a graduação em Educação Física em 2008, pela UFV e, após aprovação em um processo seletivo atuei como educadora nesta escola entre os anos de 2010 e 2015 e lá me ocupei das funções de professora de EFE e coordenadora de projetos. A ideia do planejamento participativo nessa escola nasce junto à ideia de se trabalhar com projetos, embasada em seus documentos pedagógicos, como citado no trecho a seguir:

“optamos em trabalhar com a Pedagogia de Projetos por ser uma metodologia que propõe justamente a participação ativa do aluno na construção do seu conhecimento e por envolver dois procedimentos que consideramos fundamentais no processo de aprendizagem: a pesquisa e a elaboração” (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2016).

No entanto, quando iniciei o meu trabalho nessa escola, como professora de EFE, percebi que a disciplina mantinha-se afastada da proposta pedagógica que permeava todos os demais componentes curriculares. Como ocorre em diversos outros cenários, a Educação Física era apenas vista como um momento de lazer ou de prática dos tradicionais esportes de quadra: voleibol, handebol, basquetebol e futsal.

Após diversas reuniões com a equipe pedagógica, estabeleci, em conjunto com os/as demais colegas, que as práticas na EFE seriam construídas de maneira entrelaçada aos problemas do cotidiano dos educandos e educandas, atribuindo significado para eles/as. A elaboração dos planejamentos, dessa forma, deveria ocorrer de maneira democrática e os projetos escolhidos seriam resultado do interesse e envolvimento dos educandos/as e educadores/as que, a partir da constituição de assembleias, dedicariam-se à pesquisas, discussões e vivências das práticas corporais tematizadas.

As assembleias são reuniões entre educadores/as e educandos/as aonde são decididos assuntos referentes à organização da escola como um todo. Nelas são discutidas, de maneira democrática, pautas como a compra de materiais, a organização de excursões e monitorias e, também assuntos atuais na sociedade que possam ser trabalhados nas disciplinas ou em projetos. As assembleias gerais são aquelas com a participação de todos/as funcionários/as, estudantes e demais interessados/as, para a discussão de assuntos e ações de interesse da comunidade escolar. Nesses espaços de diálogo são organizadas as ações coletivas que guiarão o currículo da escola para a apropriação e transformação dos saberes construídos pela humanidade (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2016).

Acontecem ainda, assembleias específicas, com reuniões dos/das estudantes com os/as educadores/as aonde se organizam os projetos de cada turma, e foi assim que elaborei, com a participação dos/das discentes, o planejamento que poderia ser desenvolvido durante o período letivo pela turma do 9º ano para a EFE.

No início do ano de 2015 organizamos as assembleias para discussão dos projetos que desenvolveríamos nas aulas de EFE. O primeiro passo para a elaboração desses projetos foi a investigação, assim os/as estudantes dedicaram-se a pesquisa na sala de informática e em casa, entrevistaram amigos e parentes à procura de práticas corporais que pudessem ser trabalhadas nos projetos. Neste momento muitas dúvidas rondavam a turma, como por exemplo, se a pipa poderia ser considerada prática corporal e se ela era conteúdo da EFE. Assim, conversávamos em círculos para que chegássemos em direções semelhantes.

Durante esta etapa, alguns estudantes também propuseram que os projetos se resumissem somente aos esportes coletivos e que fossem direcionados por treinamentos e campeonatos, outros/as estudantes queriam esportes radicais e outros ainda jogar queimada e pique bandeira em todas as aulas. Era necessário então, dialogar e colocar todas as expectativas no planejamento.

Organizei um quadro com todas as sugestões aceitas nos debates e nesse quadro os/as estudantes e educadores/as poderiam sugerir atividades. Um bom exemplo foi elaborar o projeto de voleibol próximo ao campeonato mundial de vôlei, que aconteceria em Betim, assim uma das atividades seria assistir à final do campeonato no ginásio. A tematização do voleibol foi protagonizada, nessa turma, por discussões sobre o contexto atual do voleibol no país, a possibilidade e as limitações da prática do esporte adaptado e as discrepâncias percebidas entre patrocínios e tempo de televisão para mulheres e homens que realizam a mesma prática esportiva.

Uma das regras decididas pelo grupo também diz respeito à avaliação. Estabeleci assim, que ela deveria acontecer durante o andamento dos projetos e que além da percepção do envolvimento dos/as estudantes nas atividades, seriam também utilizados instrumentos como a elaboração de textos escritos, o registro e posicionamento nas discussões, criação de charges, escritas de crônicas, um questionário de auto-avaliação e finalmente, o evento organizado pela turma de encerramento do projeto.

O encerramento da tematização, dessa forma, só seria decidido pelo grupo quando a professora e os/as estudantes entendessem que os objetivos traçados foram alcançados. Durante o mês de fevereiro daquele ano, nos organizamos para a montagem do quadro de projetos da Educação Física da turma, onde todas as intenções dos/das discentes e educadores se configuraram da seguinte forma:

Quadro 1: Projetos das aulas de Educação Física Escolar 

PROJETO ATIVIDADES
Ensinar o que gostamos Oficinas: construção de brinquedos, exposição de artesanato, grandes e pequenos jogos, auxiliar o 8º ano no Festival de Handebol.
Semana Radical Vivências de diversas possibilidades em atividades radicais e esportes de aventura, tais como: montanhismo, rapel, skate, patins, bike e parkour.
Programa caminha orientada Atividades de caminhada com os alunos do 9º ano e do Ensino Fundamental realizada duas vezes na semana. Criação do kit corrida - camiseta e garrafinhas da escola.
Gincana de integração Gincana com estafetas e provas variadas. Atividades tradicionais de gincana que envolvessem toda a escola.
Festival de atletismo Conhecer as modalidades, escolher quais iremos vivenciar, construir os materiais e organizar um festival na Universidade Federal de Viçosa.
Ginástica em ação Vivência nas diversas possibilidades gímnicas: ginástica artística, ginástica aeróbica, ginástica geral e trampolim. Excursão ao pavilhão de ginástica da Universidade Federal de Viçosa.
Torneios e Seminários: o que podemos mudar? Homofobia, racismo, desigualdade social, corrupção e sexismo no esporte, elaborar um torneio de futebol pensando em outras alternativas.
Gênero em discussão: capoeira na escola Quais os limites da expressividade dos corpos no que se refere à masculinidade e feminilidade? Por que nunca tivemos professora de capoeira na escola? Pesquisa, visita a rodas de capoeira, vivência, pedir ajuda ao professor de capoeira dos pequenos.
Dia do amigo Jogos que faço na minha rua. Cada aluno poderá levar um amigo que não estuda na escola para apresentar como brincam fora da escola.
Voar, voar, subir, subir Confecção de pipas. Poder ir ao morro próximo da escola para brincar. Organizar festival de pipas.
Nosso esporte preferido: vivenciando o voleibol Aprender o rodízio 5x1 do vôlei. Ensinar o jogo para os estudantes dos 5º e 6º anos. Pensar em estratégias para angariar dinheiro e propor uma excursão para acompanharmos um jogo de voleibol no campeonato mundial de clubes em Betim-MG.
Dia da consciência corporal Como as questões de qualidade de vida se dão no cotidiano das famílias? Sobre o que ele está condicionado? A lógica de tempo, Cidadania, Escola e Saúde. Palestras e debates. Descobrindo o nosso corpo. Tema inicial: danças circulares.

Fonte: Elaborado pelos autores.

O quadro ficou exposto durante todo o ano na sala da turma e a medida que novas ideias sobre os projetos fossem surgindo, discutíamos em assembleias, que sempre ocorriam nas sextas-feiras. Além do quadro mantínhamos um painel de notícias. A ideia era incentivar um trabalho com notícias, utilizar de mídias que favorecessem a interatividade como o vídeo (filmes, documentários, reportagens especiais), estabelecendo conexões com o planejamento em questão. A estimulação à pesquisa sobre os temas na atualidade permitiu aprofundamento temático e foi também uma maneira do aluno e da aluna se posicionarem diante do conhecimento a ser veiculado no componente curricular.

A seguir mostrarei alguns registros fotográficos dos projetos que foram desenvolvidos durante as aulas de EFE.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 5 Projeto Semana Radical 

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 6 Vivência do voleibol adaptado e do torneio de Futebol para todos e todas 

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 7 Festival de Atletismo 

Ao trabalhar nessa perspectiva, tinha o entendimento que o planejamento não é apenas uma simples junção de planos de aulas ou descrição de atividades a serem desenvolvidas. Ele precisa ser construído e vivenciado por todos e todas atores e atrizes do processo para se fazer verdadeiramente participativo. Assim, ressalto que durante o andamento do ano letivo, muitas ações foram ajustadas, projetos refeitos, objetivos reescritos. Estas modificações foram reflexo do amadurecimento dos educandos e educandas e de mim, educadora, uma vez que conseguimos, por vezes, repensar a prática e ponderar novas propostas.

Aprendendo com Freire (1996), penso também que ensinar exige consciência do inacabamento. Logo, a História é um tempo de possibilidades e não de determinismos. Devemos nos lançar para a prática educacional a partir do inacabamento do ser que é próprio de nossas experiências (re)construídas e (re)contadas durante a vida. Reflito à partir desse relato, que a professora crítica e o professor crítico, além de entender os bastidores das práticas corporais que tematizam, precisam estar predispostos à mudança e à aceitação das diferenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos elencar, sem a intenção de passar uma ideia de “receita de bolo” sobre atuação docente em Educação Física, mas sim de contribuir para a análise problematizadora das experiências relatadas, que o docente e a professora que aqui compartilham suas ações pedagógicas possuem comprometimento, intencionalidade, mostram uma perspectiva de mudança que rompe a inércia traçada por muitos anos pela Educação Física na escola e não se eximem de suas responsabilidades pedagógicas e apenas cedem aos interesses dos/as estudantes, apesar de terem como característica central a participação e o diálogo em seus planejamentos.

Acreditamos que as duas experiências pedagógicas apresentadas mostraram que o planejamento participativo possibilitou uma maior interação entre os saberes relacionados à cultura corporal de movimento e os/as estudantes nas aulas de EFE nesses ambientes educacionais. Esse traço fundamental em uma prática dialógica pode ser observado no espaço dado aos/às estudantes para que eles opinassem sobre a construção dos temas das aulas e dos projetos, na participação ativa estudantil durante a vivência das práticas corporais realizadas e, nos resultados obtidos nas avaliações do processo de ensino-aprendizagem, aonde de maneira democrática, puderam ser construídos novos olhares sobre a EFE que acontece nessas escolas.

Nesse sentido, é importante ressaltar que essas unidades escolares possuem características de funcionamento muito diferentes, mas colocar o/a discente como protagonista do processo educativo foi o fator decisivo para proporcionar maior sentido e significado para os/as jovens dos conteúdos que estavam sendo tematizados.

Mudar o sentido e o significado do componente EFE não tem sido uma tarefa fácil, porém, percebemos que é necessário que os/as docentes estejam sempre dispostos ao repensar, à abertura ao novo, às releituras de suas práticas e ao compartilhamento com seus pares, pois a transformação dos cenários impostos se dá a toda hora e é estabelecida principalmente pela luta a favor da emancipação humana em seus sentidos mais amplos.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

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FINANCIAMENTO Não se aplica.

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Todas as imagens foram produzidas pelos próprios autores.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Não se aplica.

PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

Recebido: 12 de Fevereiro de 2018; Aceito: 09 de Abril de 2018

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

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CONFLITO DE INTERESSES

Não se aplica.

EDITORES

Mauricio Roberto da Silva, Giovani de Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira.

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