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Motrivivência

versión On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.31 no.59 Florianópolis jul./sep 2019  Epub 03-Dic-2019

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e67052 

Editorial

A política de devastação e autoritarismo de Bolsonaro, ‘o exterminador do Brasil’: ‘future-se’ para o abismo, sofrimento e adoecimento de Brasil e a urgente resistência ativa

Maurício Roberto da Silva

Giovani De Lorenzi Pires

Rogério Santos Pereira


O preâmbulo costumeiro

Sem vontade de escrever

Análise racional

Pois não há razão nenhuma

Na tragédia nacional.

Sem enxergar uma luz

Para as nossas desventuras

Já que adentramos sem tréguas

A pior das ditaduras…

Aluvião de miséria

Miséria de pão e de luz

Terraplanismo sem nome

Olavismo credo-cruz!

Estado laico já morto,

Direito dilacerado

Não falta nem mais um passo1

Esta edição busca dar continuidade ao pensamento crítico, que, através das palavras, combate a barbárie estabelecida em solo pátrio de 2013 a 2018. Tudo começou com o Golpe e o respectivo impeachment de Dilma Rousseff, que culminou com a chegada ao poder da mais pura expressão do neoliberalismo protofascista; da mais pura expressão de devastação da frágil democracia, em processo de construção após 1980, como relatado pelo poema de Dora Incontri que serve de epígrafe a este editorial, cujos versos serão citados durante todo o texto. As estrofes do poema revelam, no período de 2015 a 2019, um Brasil sofrido, submisso, fraco e servil, onde a ordem vigente é matar, desmatar, oprimir, perseguir, mentir, enfim, destruir o rio que desaguaria no mar de um futuro, mas que agora promete chafurdar na lama fétida do autoritarismo, do neoliberalismo e do fascismo - todos eles arautos de uma mesma matriz perversa: destruição e opressão no lugar de emancipação social, econômica e política. Dito isso, temos a honra e a alegria de publicar este projeto editorial feito a muitas mãos e muitos corações, com compromisso ético-político-pedagógico. Nesta edição, portanto, além de apresentar os autores colaboradores, refletimos sobre os impasses trazidos pelo projeto protofascista de Bolsonaro e sua consequente plêiade de devastações na ética, na economia e na política brasileiras. O poema de Dora Incontri fala da violência que mutila os corpos, mata e adoece milhares de brasileiros, entre os quais os trabalhadores empobrecidos, desempregados ou subempregados, as Marielles, os indígenas, os negros, LGBTTs, as populações de rua, os sem-terra, sem-teto, ‘pobres de tudo’.

Posto este preâmbulo, nós, que militamos na área de Educação Física, Esporte e Lazer, sobretudo na subárea Sociocultural e Pedagógica da área 21, temos o dever de denunciar a ordem autoritária e ditatorial que estamos vivendo. Ao nos posicionar contra a política de devastação engendrada pelo governo Bolsonaro, estamos nos reportando aos perigos da volta da Ditadura Militar de 1964, que se nos avizinham. Consequentemente, estamos nos referindo à militarização da vida cotidiana, que se impõe pelo discurso e pela prática de retorno à ditadura, pela militarização da segurança pública no Rio de Janeiro, ainda no governo Temer, que diuturnamente, nas favelas, provoca o genocídio de jovens negros da periferia - não só no Rio mas também em outras cidades brasileiras. Além disso, urge lembrar da intervenção militar nos presídios e da tentativa de militarizar as escolas, como se elas fossem um ‘colégio militar’. Tudo isso sem contar os militares ocupando postos-chave do governo e invadindo sindicatos e salas de aula nas universidades.

Ao fim e ao cabo, o que está em jogo na atualidade, para reflexão na nossa área, é a hipótese da volta da militarização da vida, da cultura e do corpo, que ficou mais evidente dos anos 1960 até os primórdios dos anos 1980, mas que agora volta com sinais de mais violência, retrocesso e virulência. Assim sendo, torna-se necessário refletir sobre a possibilidade de a reprodução dos valores e o ethos capitalista e autoritário reverberarem sobre a cultura corporal e de movimento, ou seja, sobre a possibilidade de a educação incorporar a ideia de ‘corpo bélico’, que, de certa forma, vigorou no período de 1962 a 1985, sob a opressão da aliança conservadora burguesa-militar que assumiu o comando político-econômico do Brasil. Tal fato histórico deve servir de alerta para os pensadores e pesquisadores da área das chamadas Ciências do Esporte, e para além dela, conquanto esteja em pauta a problemática das ‘Políticas do Corpo’. É preciso não olvidar que, até bem pouco tempo, vivenciávamos a ‘ordem unida’ da ginástica calistênica, com suas vozes ditatoriais de comando e disciplina militar, que impregnava as quadras e ginásios de esporte escolares de um clima de autoritarismo e mandonismo. Vale lembrar que essa educação militar dos corpos, tem suas origens na fundação da Escola de Educação Física do Exército na década de 1920, visando a instrução e a formação da tropa e da sociedade civil, com base nos valores morais e cívicos da caserna, conforme os estudos de Amarílio Ferreira Neto2 e Lino Castellani Filho3. A pergunta que se coloca é se, devido a essa onda atual de militarização fascista e ditatorial da vida cotidiana que estamos vivendo, não corremos os riscos de termos um retrocesso da área pedagógica da Educação Física?

Sendo assim, por esses sinais emitidos pela memória da história mais recente, ousamos falar de ordem autoritária nestes tempos sombrios. Trata-se de estarmos atentos às tentativas de retorno à militarização ditatorial da Educação Física, Esporte e Lazer, cujos valores, veiculados pelos arautos do governo ditatorial/protofascista/neoliberal, poderão incidir sobre as relações sociais e sobre a formulação de políticas públicas e sociais, principalmente sobre as políticas do corpo.

Quanto a esse respeito, é mister reconhecer, a partir das reflexões presentes no novo livro de Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro, que

Não existe uma continuidade mecânica entre nosso passado e o presente, mas a raiz autoritária de nossa política corre o perigo de prolongar-se, a despeito de novos estilos de governabilidade. Mais uma vez igualdade e diversidade, sentimentos e valores próprios da expansão dos direitos democráticos, correm perigo quando não se rompe coma figura do pai político - agora uma espécie de chefe virtual, que fala em nome e no ugar dos filhos e dependentes -, do herói destacado e excepcional, do líder idealizado. Essa é uma linguagem que herdamos dos mandonismos do passado, da época do domínio exclusivo da grande propriedade rural, mas que vem encontrando renovada sobrevida nesta era dos afetos digitais, igualmente autoritários. 4

***

A política da devastação e o autoritarismo de Bolsonaro, o ‘exterminador do Brasil’

Para a imersão no passado.

Que faremos nós então?

Quem pensa, com sofrimento,

Nas perdas e nos abismos

Do Brasil em sangramento?

Que faremos, impotentes,

Vendo esses homens comprados

Arrebentando os futuros

Que foram antes sonhados?

Homens de terno e bravata

Sem cuidado com ninguém

Sem pensar que estão ferindo

Os próprios filhos também…

Voltando ao Brasil colônia

Submisso, fraco e servil

Nada sobrará aos nossos

Senão um futuro vil.

O que está feito já mata.5

Para falarmos sobre as devastações nas políticas sociais perpetradas pelo governo autoritário e protofascista de Bolsonaro, faz-se necessário refletir e responder à pergunta: ‘como reconhecer um governo autoritário?’. Aliás, nos dois últimos editoriais, já havíamos abordado a questão do ‘neoliberalismo autoritário’ e tentado responder às duas perguntas que dizem respeito às idiossincrasias do governo Bolsonaro no que tange à fusão hedionda do neoliberalismo com o fascismo, a saber: ‘como reconhecer um governo neoliberal?’ e ‘como reconhecer um governo fascista?’.

O autoritarismo, pode ser compreendido como um termo que se refere aos governos totalitários, ditatoriais, fascistas e protofascistas, podendo ser utilizado para retratar vários contextos diferentes, que digam respeito à estrutura de um sistema político específico, de determinados comportamentos psicológicos ou então de ideologias políticas. Vale ressaltar que os elementos de protofascismo são comuns a formas diferentes de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas tinham base num léxico empobrecido e numa sintaxe elementar, de modo a limitar o desenvolvimento dos instrumentos do raciocínio complexo e crítico.6

Alguns exemplos de governos autoritários presentes na história humana: Robert Mugabe, que durante trinta anos (1987-2017) se manteve à frente do Zimbábue, governando com poderes quase absolutos; Augusto Pinochet, que presidiu o Chile entre 1973 e 1990, através de uma sistemática supressão de direitos e da participação política por parte da sociedade. Além desses, destacam-se outros exemplos extremamente relevantes e famosos como: os regimes nazifascistas europeus - traduzidos nas imagens de Hitler, na Alemanha, e de Mussolini, na Itália - e o stalinismo soviético. Mais do que modelos autoritários, esses governos chegaram aos níveis do totalitarismo, que se diferencia do autoritarismo pelo seu aparato estatal capaz de controlar quase todos os aspectos da vida cotidiana dos indivíduos, através da aplicação sistemática de uma lógica de ‘terror’ e da coerção policial. Nesse sentido, esses são os motivos que nos levam a combater o autoritarismo protofascista de Bolsonaro, para que ele não logre controlar as diversas instâncias da nossa vida: a economia, a política, a cultural e o social.7 Não há melhor fora de descrever toda a matança da cidadania do que dizer que “É uma pulsão de morte que move cada ato desse desgoverno, é uma perversidade sádica, é o elogio da insanidade, do obscurantismo, é a glorificação da ignorância.”8

Finalmente, respondendo à pergunta ‘como reconhecer um governo autoritário e populista?’, podemos dizer, em linhas gerais, que algumas das características de suas práticas políticas são: “1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras do jogo democrático; 2) negam a legitimidade dos oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir as liberdades civis dos oponentes, inclusive a mídia”.9

O país vivenciou, de 2013 a 2018, a trama de um Golpe, que iniciou com o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff e culminou com a subida ilegal de Michel Temer ao poder. Daí em diante, conforme evidenciamos nas últimas edições, aconteceu uma série de destruições, encetadas por Temer com o aval jurídico-político do STF, das Mídias (Rede Globo de televisão e conglomerados, entre outras), das Forças Armadas, das igrejas neopentecostais, das empresas nacionais e multinacionais, da classe média e de outros parceiros traidores da pátria e do povo brasileiro, como o Congresso Nacional. Trata-se de uma situação apocalíptica a que vivemos agora. Como já foi dito, em 2016, as forças políticas e econômicas de ultradireita derrubaram o governo democraticamente eleito da presidenta Dilma Rousseff, por meio de uma farsa grotesca, que foi de fato um golpe de Estado, e abriram o caminho para que subissem ao poder essas duas bestialidades desenfreadas: primeiro Temer, movido por uma irracionalidade absoluta, guiado com o propósito de destruição dos direitos dos trabalhadores e de alguns ministérios, e depois Bolsonaro, cujo objetivo, segundo Marcos Bagno,10 é terminar de exterminar e destruir o ainda resta.

E assim, essas duas bestas esplêndidas, principalmente o Bolsonaro, resolveram:

Destruir o ar que respiramos, destruir a água que bebemos, destruir o chão que pisamos, destruir tudo e absolutamente tudo, a começar pela destruição de milhares de vidas humanas. É um projeto de terra arrasada. O Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do planeta, nossos indicadores sociais são apavorantes, mas essa quadrilha que assaltou o poder não está satisfeita: é preciso assassinar mais jovens negros, é preciso exterminar o pouco que ainda resta de populações indígenas, não basta uma mulher assassinada a cada hora e meia, não é suficiente ser o campeão de assassinatos de lésbicas, gays e transexuais, nem ser o país mais perigoso para os defensores do meio ambiente. É uma pulsão de morte que move cada ato desse desgoverno, é uma perversidade sádica, é o elogio da insanidade, do obscurantismo, é a glorificação da ignorância e a consequente criminalização de todas e de todos que promovam minimamente a liberdade de pensamento, o debate sadio das ideias, o avanço social e cultural por meio do conhecimento, da arte, da cultura, da ciência.11

Nesse sentido, o que se pode intuir é que essa crise brasileira e (também) mundial é determinada pela forma valor e pela forma política, além de determinada pela forma jurídica. Do ponto de vista da economia, há a perspectiva da sobreacumulação, que explica as fases da economia brasileira interconectada com a mundial, assim como as razões e intenções da política econômica neoliberal do governo atual. Do ponto de vista das relações internacionais, o que se percebe é que o Brasil e a América Latina assumem foros de periferia sistêmica diante dos Estados Unidos, cuja consequência é nos levar para uma política externa permeada de idealismo multilateral, subserviente e entreguista no que se refere à defesa da autonomia e da defesa do patrimônio nacional, enfim, das nossas riquezas: uma verdadeira republiqueta das bananas! Aliado a tudo isso, há a perspectiva militar e sua racionalidade fardada, que diz respeito ao caráter militar do poder ditatorial no Brasil e no Cone Sul e ao atual arranjo entre “farda e toga”.12

Diante de todo esse quadro de devastação política, econômica e social, torna-se iminente acentuar que todo esse processo autoritário e repressor não é uma idiossincrasia do Brasil. Trata-se de um movimento global da ultradireita, mas que enfrenta grande insatisfação cidadã para com as políticas públicas e sociais que lhe são características, com o próprio sistema democrático liberal, com os partidos políticos e seus representantes ‘democraticamente’ eleitos, com a violência e as manifestações de ódio expressas pelas elites e pela classe média, com os cortes progressivos de diversos direitos, entre os quais os direitos trabalhistas, e, por fim, mas não menos grave, com a degradação ambiental.13

Todo esse conluio político-econômico, aliado ao caráter neoliberal e protofascista do governo Bolsonaro, tem impactado a vida cotidiana de tal sorte que nos incita, como cidadãos, a sair da posição de resistência passiva para uma efetiva resistência ativa, como veremos mais adiante neste editorial. Juntamente com esse pensamento sobre a crise na economia política do governo Bolsonaro, impõe-se a reflexão de que a sociedade brasileira tem agora a tarefa de criar algo parecido com uma democracia, por meio de uma transformação radical do papel do Estado - isso porque, até então, a função do Estado brasileiro tem sido gerir uma guerra civil surda. Assim sendo, o atual momento histórico nos mostra que o ‘pacto social’ no país acabou, e a democracia ainda precisa ser alcançada; nós diríamos que ela precisa ser refundada para além do neoliberalismo e do fascismo. Tudo isso se materializa na política de extermínio em curso nas periferias do Brasil, cujo sangue, que se espraia sobre o asfalto, não sensibiliza parcelas da população, principalmente a classe média e as elites.

Nesse sentido, pensar que,

[...] com esse Estado brasileiro, a gente conseguiria criar uma democracia demonstra o grau de ilusão em que a gente estava assentado. Não é que a nossa democracia está em risco, a nossa democracia nunca existiu. Ela existiu para uma faixa da população, enquanto a outra vivia num sistema medonho.14

Em suma, “[..] o Brasil precisa quebrar a ilusão de construir conciliações sem conflito”.15

Quanto a esse respeito, vale dizer que a democracia liberal, combinada com valores e práticas do fascismo, termina por engendrar o individualismo, a competição, o egoísmo, a meritocracia, as discriminações e os preconceitos de classe, gênero, raça/etnia, cultura, geração e outros. Esses valores não combinam com a ideia de democracia emancipatória, uma vez que requerem uma ordem autoritária e anti-humanista, na qual o arbítrio e a mentira deliberada das fake news incentivam e reavivam o ódio, a discriminação e a violência, fenômenos presentes numa sociedade capitalista brutalmente dividida em classes sociais.16

De fato, o que se vivencia no cotidiano da conjuntura atual é um dos mais perversos, injustos e bárbaros períodos da história brasileira desde a Ditadura Militar de 1964, cujos episódios violentos e sanguinários inspiram o governo de Bolsonaro na atualidade. Trata-se de um ditador, um pastiche de militar, antidemocrata de extrema direita, antipopular, antinacional, protofascista e obscurantista, cuja política praticada tem o caráter de devastação dos direitos humanos e sociais e da cidadania ainda em construção. Essa situação pode ser constada pelo constante cumprimento de sua agenda destrutiva e cheia de promessas hediondas, formulada antes e durante as eleições de 2018, que, após seis meses de gestão, foi literalmente cumprida, sem dar tréguas aos trabalhadores em geral, aos negros, aos indígenas, a GLBTTs e aos movimentos sociais e sindicais, conforme vimos aludindo nas últimas edições desta revista.

Com efeito, a chamada ‘política da devastação’ de Bolsonaro tem possibilitado algumas iniquidades, que vão desde a defesa da Ditadura e das milícias assassinas até a destruição de instituições e de projetos sociais já consolidados, principalmente nos governos Lula e Dilma. Entre as principais devastações perpetradas pelo governo Bolsonaro, todas igualmente repudiáveis e carentes de luta e mobilização ativa por parte da sociedade civil, encontram-se: a destruição da Amazônia, a corrupção em família, as ofensas de racismo e xenofobia contra nordestinos, o aparelhamento da Polícia Federal, o nepotismo, a perseguição a desafetos políticos, a entrega das riquezas nacionais, as privatizações generalizadas do patrimônio público, a entrega das riquezas nacionais ao capital estrangeiro, a subserviência ao capital internacional e ao imperialismo estadunidense, a defesa da Ditadura e, consequentemente, da tortura, inclusive com o enaltecimento de figuras abjetas, asquerosas e nauseabundas como Brilhante Ustra, a defesa da exploração do trabalho infantil, , o envolvimento com as milícias, a perseguição a jornalistas contrários ao governo, o desmonte do cinema brasileiro, a incitação à violência e ao porte de armas, a misoginia, a homofobia, as agressões a professores e estudantes, os assassinatos de indígenas, a intolerância religiosa, a censura aos dados científicos sobre o desmatamento da Amazônia e o uso de agrotóxicos produzidos por instituições competentes e confiáveis, a liberação de veneno na comida, o incentivo aos garimpeiros para invadir as terras indígenas e assassinar os índios, os cortes e contingenciamentos na educação em geral, o sucateamento e a destruição das universidades e dos institutos federais (Future-se).

O ‘future-se’ para o abismo

Projeto de destruição do ensino superior, o ‘Future-se’, é mais um projeto de devastação do patrimônio público, pois escancara as portas para a privatização da educação e, particularmente, do ensino público superior. O Future-se é um projeto de privatização da educação, com o claro intuito de entregar a universidade para o capital nacional e internacional e, assim, excluir literalmente os jovens das classes trabalhadoras empobrecidas (negros, indígenas) do processo de formação humana e construção da cidadania. Trata-se de uma promessa evocada nas eleições de 2018 por Bolsonaro. De fato, a promessa vem sendo cumprida paulatinamente com o chamado contingenciamento das universidades (pagamentos das contas de água e luz) e cortes na Ciência & Tecnologia, que, prontamente, incidiram sobre o ensino, a pesquisa e a extensão, em especial os cortes na pós-graduação. O que está em pauta é a total mercantilização da educação, cujo cerne é a máxima da flexibilização neoliberal, que facilita a ampliação das universidades privadas já existentes e a chegada de novas no ‘mercado educacional’, ‘atraente’ e ‘lucrativo’. Grande parte delas são oriundas de grupos financeiros do capital nacional e internacional, como por exemplo: Advent, Kroton, Anhaguera/Uniban, Aties, Abril, BeVry, GP investiments, Estácio, Lauvate, Pátria Blackstone, entre outras.

É essa financeirização da economia política que foi imposta pelo governo Bolsonaro como alternativa para o ‘futuro do presente’ das universidades brasileiras e para a educação em geral. Na prática, o que está em pauta é um abismo, uma barbárie, que leva à destruição da educação pública, laica, inclusiva, democrática, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada para todos pela extrema-direita protofascista do golpista Temer e agora do governo obscurantista de Bolsonaro, que vem desenvolvendo a política do ódio e da destruição do Estado de Direito, da Soberania, da Democracia, da Natureza, da Ecologia e dos que são considerados adversários, como mulheres, negros, LGBTTs, povos indígenas, quilombolas, comunistas, socialistas, petistas, enfim, esquerdistas.17

Toda essa política de devastação da educação pública do Brasil e de todas as políticas públicas e sociais na atualidade (Saúde, Reforma da Previdência, Reforma Trabalhistas e outras) promovem também o desmonte da política de formação dos profissionais da educação e a mercadorização das universidades e dos institutos federais, com o ‘Future-se’.18

Em 17 de julho, o Ministério da Educação lançou o que parece ser o núcleo da política cognitiva (de educação e de ciência, tecnologia e inovação) da gestão de Jair Bolsonaro: o programa Future-se. [...] Ele foca a sua intenção em equacionar o que considera o principal problema das instituições federais de ensino superior (IFES) - seu despropositado e insustentável custo para o Estado - mediante a captação de recursos das empresas para pesquisa e desenvolvimento (P&D).19

Nesses termos, a intenção do governo é que as IFES diminuam seu custo mediante a “captação de recursos próprios”, os quais se originariam de uma “[...] maior interação com o setor empresarial para atividades de inovação”. Uma questão crucial para que isso acontecesse seria a “[...] criação de um ecossistema de inovação pujante nas IFES, possibilitando que trabalhem com maior foco em inovação e em parceria com empresas”.20 O intuito, como já vimos nos estudos das políticas públicas e sociais, não é novidade. O que é novo é o contexto em que essas ideias reaparecem, ou seja, agora marcadas pela radical “oessisação” (proliferação desenfreada de Organizações Sociais - OS) das universidades públicas, que vem sendo há muito concebida e às vezes naturalizada em algumas universidades;21 embora à revelia de sindicados de professores e trabalhadores técnico-administrativos.

O objetivo de toda essa sanha destrutiva é desmontar o que estava sendo consolidado para democratizar, universalizar e elevar o padrão cultural e educacional da classe trabalhadora brasileira. Um exemplo disso são os ataques à Educação, à Ciência & Tecnologia e aos Serviços Públicos, em especial através de Portarias, Projetos de Lei (PL), Resoluções e Emendas Constitucionais, incidindo sobre os 28 programas de formação de professores implantados durante os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016).22

À guisa de síntese sobre os limites e equívocos do ‘Future-se’, Roberto Leher aponta em suas análises que o PL aborda temas de imensa importância de modo não sistemático, improvisado, desconexo e superficial; em síntese, de modo rudimentar. Segundo ele, em linhas gerais, seria

[...] inadequado falar que o PL instaura um ‘programa’, uma vez que seu objetivo é instituir um choque de neoliberalismo nas universidades e IFs. Contudo, o PL está longe de ser inócuo. Possivelmente seu caráter rudimentar resulta de duas variáveis: a falta de familiaridade dos autores com os temas tratados e, contraditoriamente, a crença dos autores de que, ao importarem o que supõem ser os modelos exógenos, poderiam viabilizar medidas que refuncionalizam as universidades e os institutos.23

Mais ainda, o autor nos adverte que

O propósito dos autores é promover “avanços” na difusa política educacional, tensionada por forças díspares: militares em busca da ordem tecnocrática, fundamentalistas querendo “limpar” as universidades do marxismo cultural e da suposta partidarização de seus dirigentes e estudantes, em prol de uma agenda antisecularista e anticientificista, e os operadores do mercado que desejam o fim da natureza pública das instituições federais e torná-las organizações (Chaui, 2000) utilitaristas (LAVAL, 2003).24

Ao finalizar suas análises sobre o ‘Future-se’, Leher diz que

[...] a leitura dos artigos permite constatar inúmeras tensões e contradições no bojo do inteiro teor do PL, porém com a voz proeminente dos que se apresentam como agentes do mercado, inebriados pelo ideólogo de Chicago, Milton Friedman, buscando reproduzir, na aurora da segunda década do Século XXI, o que os antigos boys realizaram, em matéria educacional, sob a ditadura Pinochet.25

Em linhas gerais, podemos refletir sobre a política de devastação das universidades e institutos federais, apontando, à guisa de síntese provisória, as principais consequências para o futuro do presente das universidades públicas, de acordo com o Mapa de Riscos do Programa Future-se,26 a saber:

  • A universidade ficará sujeitas às ações definidas pela [Organização Social] OS;

  • Contratação sem concurso, riscos de liberdade de cátedra e pode inviabilizar determinados cursos;

  • OS elabora plano de ensino afetando a autonomia acadêmica e a independência dos projetos político-pedagógicos;

  • Perda da autonomia nas definições das áreas e linhas de pesquisa;

  • Recursos captados pelo fundo não serem suficientes para financiamento das atividades previstas, e com eventual perda de orçamento público, inviabilizar as diversas atividades da universidade;

  • Metas de rentabilidade não alcançadas colocando em risco os planejamentos dependentes dos fundos;

  • pesquisas sem parceiro privado e previsão de rentabilidade serão secundarizadas;

  • Desequilíbrio no tripé ensino, pesquisa e extensão, definido como indissociável pela [Constituição Federal] CF;

  • Privatização progressiva da universidade;

  • Imóveis com baixa liquidez não atraem o mercado e promovem ilusão de capitalização. Dificuldades de financiamento;

  • Universidade não define ações junto aos fundos, apenas o Conselho-Gestor, afetando o financiamento e a autonomia;

  • Terceirização da gestão pública;

  • Diversos aspectos do programa ensejam questionamento de legalidade e constitucionalidade podendo gerar quadro de insegurança e reversibilidade;

  • Conflito entre interesse público e privado pode fragmentar a unidade do sistema e da responsabilidade pública na prestação de serviços;

  • Heterogeneidade dos contratos e práticas poderá resultar em conflitos internos às IFES;

  • Modelo de governança das OS entrará em conflito com o das IFES e seus sistemas de colegiado;

  • Mudança de modelo, natureza e finalidade pode ser irreversível;

  • Fundos podem ser descapitalizados, impactando as universidades;

  • Debate dificultado, distorção da proposta e tomada de decisão e encaminhamentos prejudicados;

  • [A universidade] não será priorizada se não houver demanda de empresas, distorcendo o equilíbrio entre pesquisa básica e aplicada.

  • [A universidade] não será priorizada se não houver demanda de empresas, distorcendo o equilíbrio entre as áreas;

  • Cursos pagos prevalecerão em relação à extensão universitária e social, distorcendo [a] utilidade pública [das universidades];

  • Promessas de “Futuro” podem não ser entregues, impactando as universidades e rompendo expectativas.

Diante dessa sanha privatista e entreguista do Patrimônio Público, torna-se quase impossível não se indignar com essas mudanças neoliberais que sobressaltam o país, trazendo consequências concretas para a classe trabalhadora, cada vez mais empobrecida e sem os direitos básicos do cidadão (trabalho, saúde, educação e outros), sobretudo para os trabalhadores que já sofreram impactos com a Reforma Trabalhistas, sofrerão com a Reforma da Previdência e, agora, com a privatização das universidades engendrada pelo ‘Future-se’. Nesse sentido, o mote da luta contra o projeto neoliberal e protofascista é lembrar que “se é público, é para todos”, como nos adverte Emir Sader. Segundo o autor, “[...] há um grande risco ao que é de todos, ao que é público, um retrocesso que vai além dos projetos e leis e se materializa como uma verdadeira cultura do atraso em todos os setores sociais, atingindo conquistas nascidas de grandes lutas”.27

Sofrimento e adoecimento do Brasil e a urgente resistência ativa

As esperanças mais perto

E o presente nos será

Um deprimente deserto…

Só a esperança mais ao longe,

Mais cansativa e esforçada

Pode abrir uma clareira

À nossa vista embaçada.28

A revista Motrivivência, em suas diversas edições, ao fazer análises de conjuntura, vem advogando a ideia de que, de fato, de 2013 a 2018, a situação da crise na política brasileira, em virtude do Golpe de Estado, é gravíssima, uma verdadeira calamidade pública. Nesse sentido, tem denunciado frequentemente as agruras do neoliberalismo e suas interfaces com o fascismo e o autoritarismo. Essa posição, contudo, nunca foi fatalista e apontava para a esperança, sob a forma de reflexão filosófica e poesia, para a resistência dos trabalhadores e trabalhadoras, apontava para a luta permanente, para a resistência ativa e para uma ‘luz no fundo túnel’. Essa sempre foi a nossa posição, mesmo reconhecendo que a “[...] frágil democracia brasileira está desvanecida, mas podemos salvá-la. É hora de trocar o fatalismo pela indignação ativa. Deter o avanço da ultradireita exigirá reinventar a participação popular e apostar nas fissuras republicanas do sistema”.29

Em termos de resistência ativa, em meio à estupefação, à perplexidade e a algumas manifestações de enfrentamento, há sinais alentadores de resistência, como a tentativa de a esquerda, as centrais sindicais e os movimentos sociais e de estudantes se fortalecerem em um só bloco, a exemplo do ocorrido durante as manifestações de 14 e 28 de maio em defesa da Educação e contra o autoritarismo e a destruição das demais políticas públicas e sociais pelo governo Bolsonaro.

Todo esse movimento de resistência se dá primordialmente pelo protagonismo dos jovens estudantes universitários e do ensino médio, ladeados pelas mulheres negras, por indígenas, GLBTTs, sem-terra, sem-teto, pelo Movimento Povo sem Medo, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por movimentos em defesa das populações de rua, entre outros. Vale destacar que toda essa peleja acontece em meio a um abismo do absurdo, à banalização total do insulto, aos exílios forçados, às ameaças de morte - num total desrespeito aos direitos conquistados, à liberdade de ir e vir e à liberdade expressão, em suma, no atropelo primário às regras mínimas de convivência democrática, para já não falar das leis e da Constituição Federal, na destilação do ódio como única arma política.30

Todo esse empenho de lutar e resistir, no entanto, devido à complexidade da fusão entre neoliberalismo, autoritarismo e fascismo, torna-se muitas vezes incipiente diante da barbárie estabelecida pelos arautos do poder, autoritários e protofascistas. De fato, há uma aparente apatia da sociedade civil, exigindo resistências ainda mais robustas, para além da estupefação e da perplexidade, cujos efeitos se assemelham a um gás paralisante, “[...] como se nossa casa estivesse a ser roubada e nós e nos escondêssemos num canto com medo de que o ladrão, se nos visse, se sentisse provocado e, além dos nossos bens, nos levasse também a vida”.31

O mais grave e lamentável nisso tudo é o clima de insalubridade, que vem ocasionado enfermidades em quem está na resistência ativa e não abandonou o barco das lutas históricas mesmo doente, tanto quanto naqueles e naquelas militantes que já adoeceram e foram quase vencidos pelos efeitos paralisantes ocasionados pelas políticas de devastação do governo. Nessa perspectiva, vamos percebendo que nossos amigos adoecem mais, uma vez que o contexto político em que vivemos repercute sobre nós também como forma de sintoma social de adoecimento físico-mental e sofrimento (ansiedade, melancolia, depressão, síndrome do pânico, queda de imunidade, doenças cardiorrespiratórias entre outras), levando em conta que o organismo sente os efeitos de um discurso de ódio que nos toma como alvos,32 nomeadamente o ódio à democracia e os ódios de classe, gênero, raça/etnia, cultura e geração. Seguindo essa linha de reflexão, consideramos importante debruçar-nos mais - principalmente, os estudiosos da Saúde Coletiva - sobre os sintomas do sofrimento e do mal-estar que assolam o Brasil nos últimos quatro anos, em razão das mazelas causadas na vida cotidiana pelas políticas neoliberais, autoritárias e protofascistas.

Sem dúvida, o Brasil está nas mãos desse Bolsonaro perverso, com sua mentalidade de algoz, e não de um estadista que zela pela construção da democracia brasileira, ainda em construção. Ele prima pela autoverdade e pelo brilho das estrelas torturadoras dos generais de 1964. É nesse limiar, nos últimos anos de polarização política, que os brasileiros têm adoecido, conforme relatos da medicina interna, de cardiologistas, clínicos gerais e psicanalistas. Os doentes chegam aos consultórios queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar, apresentando problemas do coração, ansiedade extrema e/ou depressão. Todos esses sintomas, provavelmente, iniciaram na campanha eleitoral de 2018, em virtude dos discursos de ódio e violência proferidos por ele e levados a cabo até a presente data.33

No que tange à questão do processo saúde-doença, mal-estar e sofrimento, no caso específico dos professores universitários, é preciso destacar que, além dos sintomas impostos à diversas categorias de trabalhadores, há a pressão e o fardo provocados pelo chamado produtivismo acadêmico, que faz parte do que os pesquisadores chamam de “trabalho intensificado nas federais” 34. Resultado de tudo isso: uma dupla violência simbólica, de caráter objetivo e subjetivo que adoece os professores de uma forma geral, em virtude das jornadas estafantes de trabalho e da pressão psicológica do cotidiano acadêmico. Em suma, para compreendermos essa natureza paralaxe da violência, devemos focar os circuitos entre diferentes níveis. Por exemplo, entre o poder e a violência social: uma crise econômica (crise estrutural do capital) que leva à devastação é experenciada como um poder incontrolável quase natural, enquanto deve ser experenciada como violência.35

Também consideramos relevante recuperar, na medida do possível, as memórias dos traumas do passado, que repercutem no presente e anunciam um ‘Future-se’ altamente destruidor dos direitos sociais e humanos. Precisamos de “uma memória ativa que transforma o presente”, conforme nos adverte Maria Rita Kehl, ancorada nos estudos de Gagnebin. Nesse caso, teríamos que nos lembrar que

[...] o Brasil sofre até hoje os efeitos sintomáticos da violência e das desigualdades sociais, oriundos de dois longos períodos de crueldade e opressão, que nunca foram reparados nem elaborados coletivamente, a saber: três séculos de barbárie escravagista, entre os séculos XVII e XIX, e duas décadas de ditadura militar, entre 1964 e 1985.36

Retomando a questão da resistência diante do quadro de adoecimento dos diversos tipos de militantes, acreditamos que as escolas, as universidades, os sindicatos e os movimentos sociais devem, como proposta de superação desse quadro, ocupar-se mais com esse fenômeno do adoecimento da população em tempos de barbárie - promovendo encontros coletivos para debate sobre o tema e possível atendimento aos seus filiados.

Ademais, em termos de resistência propositiva, temos que:

  • Retomar [...] os espaços como a família, o bairro, a comunidade e o território, com todas as suas instituições, os locais de trabalho, os sindicatos, os partidos, os movimentos de luta social por direitos, as frentes, as igrejas, o parlamento, as escolas, as rádios comunitárias e todos os meios de comunicação, as redes sociais, físicas e pela internet, como meios para apresentar, explicar e propor a resistência ativa, imprescindível neste momento histórico de destruição da soberania nacional, do Estado de Direito, da Democracia, da Constituição de 1988, dos programas, projetos e ações sociais que garantem conquistas da classe trabalhadora;37

  • “Lutar pela Educação Pública Laica, inclusiva, democrática, universal, de qualidade, socialmente referenciada [...] lutar pela soberania nacional, pela democracia, pelas políticas públicas sociais a serviço de atender necessidades e direitos da classe trabalhadora. Isto passa pela luta: (1) por governos democráticos e populares, pela defesa do estado de Direito, contra o autoritarismo e o Estado de Exceção; (2) pelo atendimento das reivindicações transitórias, imediatas e históricas da classe trabalhadora; (3) pela unidade na luta pela satisfação de necessidades básicas, dos direitos, das amplas massas, de amplos setores, com suas bandeiras identitárias (direitos das mulheres, dos jovens, dos LGBTTs, dos negros, quilombolas, povos tradicionais, nações indígenas, imigrantes, Sem Terra, Sem Teto, entre outros); (4) pela unidade dos mais amplos setores democráticos, humanistas, socialistas, comunistas, de esquerda, do Brasil, da América Latina e do Mundo todo, porque a luta não é só local, ela é internacional contra o obscurantismo, a barbárie, o imperialismo, a extrema direita, os nazifascistas, contra o liberalismo e o ultraliberalismo; (5) pela luta por outro modo de vida que preserve com dignidade e felicidade a vida humana e a natureza em geral do planeta terra;[...]”.38

À guisa de superação e proposição para aprofundar a resistência ativa, é preciso compor a cada dia uma nova sociedade, democrática e inclusiva, criando novas formas de poder desde agora, novas formas de manifestação da vontade cidadã, novas e mais amplas redes de mobilização da defesa dos direitos. Mas isso tudo só terá sentido se, devido à radicalidade desses governos autoritários de ultradireita que se espalham pela América Latina e pelo mundo, deixarmos de dar espaço para as conciliações de interesses e de classe em negociações. A saída deverá ser buscar a ruptura com a opressão e a espoliação, construindo novas alternativas concretas de luta permanente e novos paradigmas, novas esperanças.39

Levante sua mão sedenta

E recomece a andar

Não pense

Que a cabeça aguenta

Se você parar

Não! Não! Não!

Não! Não! Não!

Há uma voz que canta

Uma voz que dança

Uma voz que gira

(Gira!)

Bailando no ar

Uh! Uh! Uh!

Queira! (Queira!) Basta ser sincero

E desejar profundo

Você será capaz

De sacudir o mundo

Vai! Tente outra vez! Humrum!

Tente! (Tente!)

E não diga

Que a vitória está perdida

Se é de batalhas

Que se vive a vida

Han!

Tente outra vez!40

***

Este editorial configura-se também como um espaço/tempo adequado para registrarmos nossa inconformidade e crítica a outra notícia, que de certo modo repete todo o autoritarismo e o perfil privativista desse governo entreguista, conforme as denúncias que fizemos acima. Trata-se da divulgação de uma nova forma de classificação dos periódicos científicos pelo sistema Qualis-CAPES, com a criação de critérios únicos e unificados, gerando o que se está chamando “Qualis referência” (Of.n.06/2019-GCAP/DAV/CAPES), apresentado como uma ferramenta de avaliação da produção dos programas (e dos integrantes, docentes e discentes, por suposto) de pós-graduação.

De fato, a unificação das classificações dos periódicos entre as diferentes áreas do conhecimento era um desejo sempre manifestado pelos editores, visando a superação da fragmentação e do constante descontentamento com avaliações setorizadas, que desconsideravam aspectos relevantes histórica e socialmente de cada periódico. No entanto, a proposta de unificação encaminhada pela CAPES, além de autoritária por não levar em consideração características próprias da produção e veiculação do conhecimento de cada área, sobretudo do campo das ciências sociais e humanidades, revela definitivamente a adesão do órgão de coordenação e fomento da ciência brasileira aos interesses do capital privado, o que é muito mais grave! Dizemos isso tendo em vista que, nessa nova ordenação do sistema de avaliação dos periódicos científicos, todos os três indicadores bibliométricos considerados “universais” são formulados por indexadores ligados a empresas do gigantesco mercado da editoração comercial: CiteScore (Scopus/Elsevier), Fator de Impacto - FI (Web of Science/JCR/Thomson Reuters) e Indice h5 (Google Scholar). Em decorrência dessa adesão incondicional aos interesses comerciais privados, foram alijados ou tornados de importância secundária índices e indexadores mantidos por instituições públicas relevantes, sobretudo ligadas a uma visão geopolítica latino-americana, como SciELO, LILACS, Redalic.

Aliás, essa crítica também se encontra na carta aberta publicada pelos editores dos periódicos da prestigiada41 Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que aponta:

Alguns problemas imediatos na aplicação da proposta da CAPES já foram identificados. A definição da área-mãe (área da pós-graduação com maior número de artigos publicados na revista) é fortemente influenciada, no caso de campos do conhecimento por natureza interdisciplinares - como é o caso da Educação Física -, pela área com maior número de programas e alunos42.

O novo “Qualis Referência”, no que se refere às revistas do campo da Educação Física, no interior da Área 21, já está se mostrando extremamente danoso, especialmente à dimensão sociocultural e pedagógica da área. Ora, é por todos sabido que a internacionalização da produção/veiculação da dimensão biodinâmica, baseada nas ciências duras e nos métodos estatísticos universais, é muito mais fácil porque os seus processos discursivos, essencialmente quantitativos, são mais facilmente vertidos para a língua inglesa. O mesmo não se aplica às narrativas descritivo-interpretativas dos estudos do campo sociocultural e pedagógico da Educação Física. Portanto, resta(va) aos pesquisadores desse campo os periódicos nacionais, aliás de qualidade infinitamente superior aos “populare$ e relevante$” Afghanistan Sport Science Journal que tem servido para muitos pesquisadores brazucas cumprirem suas metas de publicação internacional...

No novo Qualis, os periódicos nacionais que publicam estudos socioculturais e pedagógicos da Educação Física foram todos “arrastados” para a metade inferior do espectro de classificação, como mostra o estudo preliminar de Lazzarotti Filho e Nascimento (2019) 43. Isso faz com que uma publicação em um desses periódicos deixe de ser “interessante” para docentes, discentes e programas de pós-graduação, que estarão orientados, por uma estratégia de sobrevivência, a procurar veicular sua produção em periódicos que rendam mais pontos nos processos de avaliação do sistema, isto é, nos chamados “extratos superiores”. Desse modo, a curto e médio prazo, é de se prever, como perniciosa consequência, um rebaixamento na qualidade daquilo que os periódicos da área irão receber para avaliar e publicar, já que é sabido que a pesquisa, na nossa área, ocorre basicamente por dentro dos programas de pós-graduação - temos nos referido a isso em diversas situações. Ver, por exemplo, PIRES e POFFO, 2018 44.

O que nos preocupa ainda mais é que os digníssimos membros da comissão de avaliação da área 2145, mesmo diante do quadro grave que lhes foi apresentado pela Diretoria de Avaliação da CAPES, parecem ter se apressado a cumprir os preceitos do tal GT Qualis Periódicos, sem ter a preocupação sequer de discutir com a comunidade científica, tornando-se voluntariamente nos algozes dos periódicos acadêmicos da área.

Motrivivência repudia essa atitude autoritária e regressiva e registra sua inconformidade com as consequencias daí decorrentes, porque desconsidera toda a trajetória de resistência que os periódicos da Educação Física enfrentam cotidianamente, com limites orçamentários e de pessoal. Consideramos que a “ducha de água fria” que recebemos da CAPES e da comissão de avaliação da Área 21 é um dos mais contundentes ataques à própria continuidade das revistas.

Ao fim e ao cabo, importa perguntar, com os já citados editores dos periódicos científicos da FIOCRUZ: “Até quando ficaremos discutindo classificações que pouco contribuem para avaliar a qualidade real da produção de conhecimento?”

Nesta edição, em nossa seção de Homenagens, continuamos destacando pessoas que fizeram ou ainda fazem parte da construção do projeto editorial da Motrivivência. Dessa vez, estamos falando da nossa colega professora Albertina Bonetti. Sua participação na equipe editorial, no período entre 1996 e 2000, foi fundamental para superar as perenes dificuldades vividas para a publicação deste periódico.

Nossa capa, mais uma vez tem a contribuição luxuosa do professor e fotógrafo Paulo Lima, retratando o mundo de movimento de crianças e jovens da cidade de Salvador/BA.

Por fim, hoje, mais do que nunca, depois das injustiças cometidas pela ‘justiça’ contra o povo brasileiro e a esquerda, conforme evidências da manipulação de Moro e Dallagnol apontadas pelo The Intercept, reiteramos: Lula Livre! Marielle presente!

Veja!

Não diga que a canção está perdida

Tenha fé em Deus

Tenha fé na vida

Tente outra vez!

Beba! (Beba!)

Pois a água viva

ainda tá na fonte (Tente outra vez!)

Você tem dois pés

para cruzar a ponte

Nada acabou!

Não! Não! Não!

Oh! Oh! Oh! Oh!

Tente!46

Florianópolis/SC, agosto/2019.

Maurício Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires e Rogério Santos Pereira
Editores

1INCONTRI, Doria. O libertário ante a barbárie. Jornal GGN, [S. l.], 15 jul. 2019. Disponível em: https://jornalggn.com.br. Acesso em: 5 ago. 2019.

2FERREIRA NETO, Amarílio. A Pedagogia no Exército e na Escola: A Educação Física (1920-1945). Motrivivência, Ano XI, no. 13. Nov. 1999.

3CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: A história que não se conta. Campinas, SP: Papirus, 1989

4SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 62.

5INCONTRI, 2019.

6CASTRO, Ricardo. A nebulosa Fascista: texto baseado em Umberto Ecco. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Mais, 14 maio 1995.

7PERES, Vitor P. dos Santos. Autoritarismo: 3 pontos para reconhecer um governo autoritário. Politize, [S. l.], 23 ago. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2ZZoZHK. Acesso em: 4 ago. 2019.

8BAGNO, Marcos. Glorificação da ignorância. Carta Capital, [S. l.], 16 jul. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2yUuVFK. Acesso em: 7 ago. 2019.

9FRANCO, Bernardo Mello. Ameaça à democracia. O Globo, [S. l.], 30 set. 2018. Disponível em: https://glo.bo/2TlKBLT. Acesso em: 2 ago. 2019.

10BAGNO, op. cit.

11Ibid.

12MASCARO, Alyssom Leandro et al. Dossiê Governo Bolsonaro: Apresentação. Margem Esquerda, São Paulo, n. 32, p. 10, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2Wqgdog. Acesso em: 5 ago. 2019.

13CACCIA BAVA, Silvio. Editorial: A nova democracia. Le Monde Diplomatique, São Paulo, Ano 12, n. 144, julho 2019. p. 3.

14SAFATLE: ‘Brasil precisava quebrar ilusão de construir conciliações sem conflito’. Rede Brasil Atual, [São Paulo], 6 jun. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2MJ9kbK. Acesso em: 5 ago. 2019.

15SAFATLE..., 2019.

16SAFATLE..., 2019.

17TAFFAREL, Celi N. Z.; SOUZA, Erica C. (org.). Dossiê Considerações sobre a política de formação dos profissionais da Educação e o Programa Institutos e Universidades empreendedoras e inovadoras. Salvador: Anfope, ago. 2019a. Disponível em: https://bit.ly/2M9GWjn. Acesso em: 5 ago. 2019.

18Ibid.

19DAGNINO, Renato; ROMÃO, Wagner; BEZERRA, Rogerio. Universidades: Future-se aporte de recursos e empresas. In: TAFFAREL, Celi N. Z.; SOUZA, Erica C. (org.). Dossiê Considerações sobre a política de formação dos profissionais da Educação e o Programa Institutos e Universidades empreendedoras e inovadoras. Salvador: Anfope, agosto 2019. p. 135. Disponível em: https://bit.ly/2M9GWjn. Acesso em: 5 ago. 2019.

20Ibid., loc. cit.

21DAGNINO; ROMÃO; BEZERRA, 2019.

22TAFFAREL; SOUZA, 2019a.

23LEHER, Roberto. Análise preliminar do Future-Se. In: TAFFAREL, Celi N. Z.; SOUZA, Erica C. (org.). Dossiê Considerações sobre a política de formação dos profissionais da Educação e o Programa Institutos e Universidades empreendedoras e inovadoras. Salvador: Anfope, ago.2019. p. 142. Grifos no original. Disponível em: https://bit.ly/2M9GWjn. Acesso em: 5 ago. 2019.

24Ibid., loc. cit.

25Ibid., loc. cit.

26MAPA de risco do Programa Future-se. São Paulo: Unifesp, 7 ago. 2019. Apresentado no Conselho Universitário (Consu) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mimeo.

27SADER, Emir. Se é público é para todos. Rio de Janeiro: Uerj, 2018.

28INCONTRI, 2019.

29SANTOS, Boaventura de S. Boaventura: E agora Brasil?. Outras Palavras, [S. l.], 3 jul. 2019. Disponível em: https://bit.ly/31pEOro. Acesso em: 5 ago. 2019.

30SANTOS, 2019.

31Ibid.

32MATUELLA, Luciano. Meus amigos tem adoecido mais. SUL 21, [S. l.], 16 jul. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2MUmjat. Acesso em: 5 ago. 2019.

33BRUM, Eliane. Doente de Brasil: como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade. El País, [S. l.], 2 ago. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2ysXlqh. Acesso em: 2 ago. 2019.

34SGUISSARDI, Valdemar; SILVA JÙNIOR. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009.

35ZIZEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 7-8: 17, 18.

36SCHWARCZ, 2019, passim.

37TAFFAREL, Celi N. Z.; SOUZA, Erica C. Contribuição para o FEE-BA acompanhar, monitorar e avaliar a política educacional. O desmonte do PNE e da política de formação dos profissionais da educação e a mercadorização das universidades e dos institutos federais com o Future-se. In: TAFFAREL, Celi N. Z.; SOUZA, Erica C. (org.). Dossiê Considerações sobre a política de formação dos profissionais da Educação e o Programa Institutos e Universidades empreendedoras e inovadoras. Salvador: Anfope, ago. 2019b. p. 5. Disponível em: https://bit.ly/2M9GWjn. Acesso em: 5 ago. 2019

38TAFFAREL; SOUZA, 2019b, p. 15.

39CACCIA BAVA, 2019, p. 3.

40Trecho da música Tente outra vez, de Raul Seixas.

41Menos para o governo (?), que descaradamente colocou em suspeição os resultados de uma grande pesquisa sobre drogas conduzida pela FIOCRUZ, somente porque estes eram contrários à ideologia fascista que se implantou no país.

42Disponível em: http://periodicos.fiocruz.br/sites/default/files/anexos/Carta_Forum-Editores_Qualis-Unico_Portal-de-Periodicos-Fiocruz-.pdf

43Disponível em https://www.facebook.com/RBCE.CBCE/

44Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/motrivivencia/article/view/2175-8042.2018v30n54p111

45Como sempre, cabe perguntar: nossos representantes na CAPES ou representantes da CAPES na área?

46Trecho da música Tente outra vez, de Raul Seixas.

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