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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.31 no.59 Florianópolis jul./set 2019  Epub 03-Dez-2019

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2019e58223 

Artigo Original

Um diálogo teórico-metodológico sobre a técnica no pensamento de Vitor Marinho

A theoretical-methodological dialogue about the technique in Vitor Marinho thought

Un diálogo teórico-metodológico sobre la técnica en el pensamiento de Vitor Marinho

Leon Ramyssés Vieira Dias1 
http://orcid.org/0000-0002-8326-3353

André Malina2 
http://orcid.org/0000-0001-5832-812X

Ângela Celeste Barreto de Azevedo3 
http://orcid.org/0000-0003-2378-3936

1Mestre em Tecnologia para o Desenvolvimento Social Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil leon_mv1@hotmail.com

2Pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Escola de Educação Física e Desportos Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil andremalina@yahoo.com.br

3Pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Escola de Educação Física e Desportos Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil angelaestagio@yahoo.com.br


RESUMO

Os anos de 1980 foram marcantes para a Educação Física, pois disseminou-se o pensamento renovador e surgiu a perspectiva sociocultural. Nesse período, houve críticas à luz das Ciências Humanas e Sociais aos paradigmas positivistas (como o tecnicismo) nas produções da época. Dessa forma, o presente estudo teve por objetivo identificar a concepção da técnica na perspectiva sociocultural por meio da análise da obra de Vitor Marinho, um dos intelectuais responsáveis pela difusão do movimento renovador. Para tal, foram analisados três textos publicados pelo autor na década de 80, evidenciando os elementos explícitos e implícitos sobre a técnica e suas questões. Os dados foram tratados qualitativamente, embasados pelo referencial teórico de Álvaro Vieira Pinto. Os resultados apontaram que a mudança de referencial teórico-epistemológico que ocorreu com o pensamento renovador promoveu contribuições para pensar a técnica em uma perspectiva crítica e humanista, embora de forma imperfeita relativamente ao referencial teórico escolhido.

PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento; Estudo de prova de conceito; Tendência; Humanismo

ABSTRACT

The years of 1980 were important for Physical Education, because the renewing thought was disseminated and the sociocultural perspective emerged. In this period, there were criticisms in the light of the Human and Social Sciences to the positivist paradigms (like technicalism) in the productions of the time. Thus, the present study aimed to identify the conception of the technique in the sociocultural perspective through the analysis of the work of Vitor Marinho, one of the intellectuals responsible for the diffusion of the renovating movement. For that, three texts published by the author in the 80s were analyzed, evidencing the explicit and implicit elements about the technique and its questions. The data were treated qualitatively, based on the theoretical reference of Álvaro Vieira Pinto. The results pointed out that the change of theoretical-epistemological referential that occurred with the renewing thought promoted contributions to think the technique in a critical and humanistic perspective, albeit imperfectly in relation to the here chosen theoretical framework.

KEYWORDS: Knowledge; Proof of concept study; Trends; Humanism

RESUMEN

Los años de 1980 fueron importantes para la Educación Física, pues se diseminó el pensamiento renovador y surgió la perspectiva sociocultural. En ese período, hubo críticas a la luz de las Ciencias Humanas y Sociales a los paradigmas positivistas (como el tecnicismo) en las producciones de la época. De esta forma, el presente estudio tuvo por objetivo identificar la concepción de la técnica en la perspectiva sociocultural por medio del análisis de la obra de Vitor Marinho, uno de los intelectuales responsables de la difusión del movimiento renovador. Para ello, fueron analizados tres textos publicados por el autor en la década de 80, evidenciando los elementos explícitos e implícitos sobre la técnica y sus cuestiones. Los datos fueron tratados cualitativamente, basados en el referencial teórico de Álvaro Vieira Pinto. Los resultados apuntaron que el cambio de referencial teórico-epistemológico que ocurrió con el pensamiento renovador promovió contribuciones para pensar la técnica desde una perspectiva crítica y humanista, aunque de forma imperfecta respecto al referencial teórico escogido.

PALABRAS-CLAVE: Conocimiento; Prueba de estudio conceptual; Tendencias; Humanismo

INTRODUÇÃO

A técnica tem um papel relevante na sociedade. A Educação Física, área que alia ensino e formação, recebeu influências de distintas concepções e de diversos intelectuais em que o paradigma exacerbado da técnica esteve presente.

Nos anos de 1980, disseminou-se o pensamento renovador (EUSSE, ALMEIDA e BRACHT, 2017) na Educação Física e com ele surgiu uma perspectiva chamada de sociocultural. Tal pensamento e perspectiva trouxeram novos rumos para a área e acarretaram críticas, à época, ao positivismo e determinismo da técnica prevalentes (DAÓLIO, 1997; MALINA e AZEVEDO, 2017), em especial no âmbito esportivista (EUSSE, ALMEIDA; BRACHT, 2017; NOGUEIRA e BOSI, 2017). A partir desse contexto, encontra-se a obra de Vitor Marinho de Oliveira1, importante intelectual da Educação Física brasileira, um dos protagonistas dessa época de modificações e de novos rumos para a área (PIRES, 2009; CASTELLANI FILHO, 2010; MALINA e AZEVEDO, 2012).

No presente estudo objetivou-se identificar a concepção da técnica na perspectiva sociocultural por meio da análise da obra de Vitor Marinho. Desse modo, estabeleceu-se como objeto de estudo o seguinte problema de investigação: Qual o papel da técnica nos textos de Vitor Marinho?

Tal investigação justifica-se porque há, historicamente, uma predominância hegemônica na educação física de compreensão da técnica a partir das ciências naturais, em especial em estudos sobre o esporte e o ensino da Educação Física (AZEVEDO, 2017; 2013). Por isso, objetiva-se demonstrar um ponto de virada que expressa o pensamento renovador que delineou a perspectiva sociocultural na Educação Física. Ainda que não seja hermética, a crítica ao tecnicismo contida nos textos da época, como, dentre outros, em Medina (1983) e Santin (1987), expressa identificação que permite generalizar o pensamento de Vitor Marinho como uma parte ou expressão de tal crítica.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, na medida em que se objetiva identificar e problematizar a concepção de técnica representada pela perspectiva sociocultural na Educação Física. Dessa forma, pressupõe identificar e explorar o universo de significados que compõem o fenômeno estudado e as interações que se estabelecem, prevendo novas compreensões sobre a variedade e a profundidade dos fenômenos sociais (TERENCE; ESCRIVÃO FILHO, 2006). Para tanto, foi selecionada a obra de Vitor Marinho como representante da perspectiva sociocultural, destacando para análise três produções publicadas ao longo da década de 1980: os livros Educação Física Humanista (2010a) e O que é Educação Física (2011); e o texto A categoria reprodução na perspectiva de Bourdieu e de Passeron (2010b).

Cabe salientar que, apesar de ser publicado em 1985, o livro Educação Física Humanista é fruto da Dissertação de Mestrado de Vitor Marinho, de 1981. Por esse motivo, optou-se por analisá-lo antes do livro O que é Educação Física, de 19832. Além disso, ressalve-se que o texto A categoria reprodução na perspectiva de Bourdieu e de Passeron, embora tenha sido publicado em 1988 consta também do livro O Esporte Pode Tudo, de 2010, que traz uma compilação de textos relevantes na vida acadêmica do autor.

A coleta de dados ocorreu a partir da identificação dos elementos explícitos e implícitos da concepção de técnica em Vitor Marinho. Como elementos explícitos foram considerados aqueles em que a palavra técnica se fazia presente nas publicações analisadas da seguinte forma: i) com o sentido de “técnica esportiva” ou “gesto motor” e; ii) em trechos que se referiam à maneira pela qual o homem executa determinada ação, tendo em vista, segundo Vieira Pinto (2005), que “a técnica, na qualidade de um ato produtivo” (p.220) deve ser entendida “pela consideração da realidade do homem no mundo [...], nos estágios superiores da hominização, da forma de determinações sociais em que o ser humano é obrigado a existir (p.154)”. Já os elementos implícitos consistiram na interpretação de trechos em que a palavra técnica se fez ausente, mas que retratavam as ações humanas em que o componente técnico estava presente.

Os dados foram analisados pelo referencial teórico de Álvaro Vieira Pinto presente no volume 1 do livro Conceito de Tecnologia. Tal referencial teórico propõe uma discussão da técnica à luz das ciências humanas. De acordo com Vieira Pinto (2005, p.219), a técnica pode ser entendida como “noção de artes, habilidades do fazer, as profissões e, generalizadamente, os modos de produzir alguma coisa” e, por isso, a técnica para este autor é coetânea do homem, oferecendo-lhe, ainda, subsídios teóricos e operacionais para a realização de determinada ação.

DISCUSSÃO E ANÁLISE DE DADOS

Educação Física Humanista

Ao analisar a Educação Física por um viés humanista, Vitor Marinho introduz princípios filosóficos para pensar o homem. Nessa perspectiva, o autor delega críticas às técnicas comportamentalistas de ensino que recaem sobre a educação e sobre a prática pedagógica do professor. Ele nota que há um mecanicismo na aplicabilidade da teoria comportamentalista na Educação Física no campo escolar, dado o caráter eminentemente prático da disciplina e a facilidade de medir quantitativamente seus resultados.

Para o autor, os currículos privilegiam as disciplinas biomédicas e técnicas esportivas, enquanto outras são descartadas como àquelas oriundas das Ciências Humanas e Sociais. Isso foi um dos fatores responsáveis por uma postura dogmática e acrítica na Educação Física, na qual o homem seria concebido de forma fragmentada e secundária. Com isso, o autor não pretendeu levantar uma bandeira contra o ensino das técnicas esportivas, mas ressaltar a necessidade de pensar-se de forma crítica. Conforme Marinho (2010a):

O que parece evidente, entretanto, é que a educação física escolar ressente-se da falta de uma fundamentação filosófica que a oriente em direção às suas finalidades educativas [...] Desta forma, o maior passo estará dado para que a Educação Física encontre o seu verdadeiro lugar, onde nunca esteve e de onde nunca deverá sair (p.30).

Outro ponto abordado em Educação Física Humanista é que, apesar das tentativas dos métodos ginásticos francês, sueco e alemão em atender o homem como um todo atuando sobre o desenvolvimento físico, intelectual e moral, a história mostra que estas propostas não obtiveram sucesso. Para o autor, nas aulas de Educação Física a prática se concentrava na parte física em detrimento das outras capacidades humanas. Logo, Vitor Marinho questiona se a formação pedagógica do professor permite olhar o aluno sem dicotomizar corpo, mente e espírito. Para ele, é necessário que nas aulas de Educação Física tal prática tenha sentido. A imitação mecânica nas crianças sem o desenvolvimento da inteligência tem como consequência a formação de adultos brutos a reproduzir gestos sem consciência do que fazem. A técnica presente nos jogos e nos esportes não pode ser compreendida como o fim do processo, mas como um meio, um caminho para educar.

Já na segunda parte do livro Educação Física Humanista, o autor faz um debate sobre método. Ele afirma que há um equívoco na área da Educação Física ao tratar “método de ensino”, com uma concepção simplista de que o método seria o “como fazer” ou o “modelo de aula”. Para Vitor, tal equívoco também podia ser relativamente generalizado na Educação Física por causa da excessiva importância do ensino da técnica na formação de professores em detrimento de outros conhecimentos relacionados à docência. Como decorrência, ao ensinar, os professores confundem métodos de ensino com métodos de preparação física.

Observamos que os currículos das escolas superiores de Educação Físicas brasileiras, em sua maioria, ainda mantém o estudo desses ultrapassados “métodos”. A discussão sobre os métodos de ensino ainda parece estar restrita à escolha desse ou daquele modelo de aula, com o qual passa a confundir-se. Muito significativos para um passado algo distante, a calistenia e a desportiva generalizada provavelmente não resistiriam a uma crítica mais severa, no caso de serem consideradas como método stricto sensu (MARINHO, 2010a, p.101).

Desse modo, para Vitor Marinho, o ensino da técnica como fim em si mesma direcionava o foco apenas para o caráter físico da educação. Além disso, as aulas organizadas para atender a esse modelo de ensino eram fragmentadas em partes, momentos estanques e que desviavam o olhar pedagógico do professor.

Por outro lado, a compreensão que Vitor Marinho tem sobre método é de que são conjuntos de princípios. Para o autor, o método adequado não é o caminho, mas sim um caminho que pode abrir outros. O princípio da universalidade dos métodos permite que eles sejam aplicados por qualquer um, porém, os procedimentos escolhidos para tal fim estão impregnados da personalidade de quem aplica, revelando o posicionamento ideológico e/ou filosófico.

Nesse contexto, a mesma lógica pode ser aplicada às técnicas. A técnica não é propriamente o método e sim um recurso, a parte instrumental do método. O conjunto das técnicas, no entanto, pode configurar um método de ensino. Já os procedimentos identificam-se com os estilos de ensino que são a aplicação pessoal de determinadas técnicas. Em síntese, na percepção do autor, o método é algo maior, pois nele estariam presentes os princípios a serem seguidos. Assim, se a técnica adequada para se utilizar deve estar diretamente relacionada aos princípios presentes no método, os procedimentos serão a aplicação, ou seja, o estilo de ensino dessas técnicas (MARINHO, 2010a).

Cabe ressaltar que, além das críticas ao tecnicismo, Vitor Marinho produziu em seu texto um (breve) debate sobre o conceito de técnica, direcionando o seu entendimento sobre o assunto. Com isso, o autor não pretendeu levantar uma bandeira contra o ensino das técnicas esportivas, mas ressaltou a necessidade de se pensar de forma crítica. A técnica presente nos jogos e nos esportes não pode ser compreendida como o fim do processo, mas como um meio, um caminho para educar. Ao cotejar com a ideia de técnica de Vieira Pinto (2005), este nos faz compreender que não há “técnica” no sentido estrito da palavra. Chamamos usualmente de técnica a execução de certos atos que recebem dele mesmo essa qualificação. Por isso, quando nos referimos à técnica estamos diante de uma abstração, um produto da nossa capacidade de pensar. A técnica não pode ser pensada sem o homem, assim como àquela nunca chegará a dominá-lo.

A perspectiva filosófica humanista-existencialista, embasada pelo referencial epistemológico fenomenológico no qual Vitor Marinho se fundamentava, apesar de lhe oportunizar uma referência crítica sobre o homem e a técnica, não lhe possibilitou considerar as múltiplas determinações históricas. Em contraponto à estruturação de Vitor Marinho, Vieira Pinto (2005) considera como ingênuos os intelectuais que pensam a técnica a partir de uma visão existencialista ou essencialista e determinista. O espírito crítico deve fundamentar-se com o rigor e os instrumentos da lógica dialética, abandonando a lógica formal. Para ele, a teoria epistemológica da técnica deve ser obra da consciência dialética. A negação da historicidade para a compreensão dos fenômenos que permeiam a sociedade leva o pesquisador ao entendimento de homem e de mundo fundamentado na lógica instrumental, o que ocasionaria superficialidade. Tal consciência ingênua não se mostra capaz de compreender o mundo apropriando-se do método dialético, ignorando as conexões históricas. Por outro lado, a fenomenologia não ignora de todo modo às conexões históricas e expressa uma perspectiva crítica, pois se opõe ao positivismo.

O início da década de 1980 ficou marcado pela inserção do conhecimento advindo das Ciências Humanas e Sociais na área da Educação Física, que contestava os paradigmas das Ciências Médicas e do esportivismo na maneira de pensar a área. Essas contestações paradigmáticas dialogavam com a educação, a política, a sociedade e o próprio homem. Essa perspectiva pode ser ilustrada pelo livro Educação Física Humanista produzido na perspectiva fenomenológica por Vitor Marinho, protagonista na emersão do pensamento renovador da Educação Física que compreende a perspectiva sociocultural.

Vieira Pinto (2005), no entanto, compreende que a luta ideológica no qual as correntes filosóficas do pensamento contemporâneo estão postas também é um lugar onde se disputam conceitos. Em uma concepção oposta à maneira de compreender os fenômenos pela fenomenologia, entender a tecnologia como epistemologia nos ajudaria a analisar a técnica. Ao estudar a tecnologia fora do pensamento dialético corre-se o risco de conceber a técnica na condição de coisa em si, examinando-a como qualquer outro objeto material. Trata-se de, ao ver o produto da técnica, julgar que o processo de fazê-la tem a mesma ordem de ser da coisa fabricada. Um objeto ou uma construção, seja mais antiga ou mais moderna, tem o mesmo valor da técnica utilizada para fabricá-lo ou construí-lo (VIEIRA PINTO, 2005).

Na visão de Vieira Pinto (2005) é necessário ultrapassar a compreensão da técnica como sinônimo do objeto. Deve ser incluída, na epistemologia da tecnologia, a teorização da técnica com relação ao homem, uma vez que o ato de fazer alguma coisa é a maneira na qual o homem produz algo exterior a si. Observa-se, entretanto, que sob a perspectiva fenomenológica, Vitor Marinho trazia uma visão teórico-filosófica da técnica que não extravasava in totum o fazer, limitando o pensar sobre o porquê do ensino da Educação Física em uma determinada ação. Trata-se de uma limitação que poderia ser atribuída, em parte, ao próprio método fenomenológico e que, por sua vez, limitou o autor a não considerar a técnica como produto da capacidade humana em significativa construção de relações sociais nas quais o ensino de Educação Física deriva.

Embora atendesse a um cunho aproximado com a fenomenologia, Vitor Marinho trouxe em seu livro Educação Física Humanista uma perspectiva com sentido humanista-existencialista e demonstrou assim uma concepção não-idealista da técnica, quando cotejado com Vieira Pinto (2005). Para este autor, assinala-se: a visão idealista da técnica está presente quando o indivíduo afasta o entendimento sobre a técnica do processo social produtivo, desconsiderando todo o contexto social e das determinações históricas do presente e do passado. Na concepção do próprio Marinho (2010a):

O fato de fazermos a nossa proposta humanista à luz da Psicologia não sugere, em hipótese alguma, que a Educação passa ou deva ser reduzida ao plano individual. Este é importante quando interage com o social, em busca de uma superação dialética que permita ao homem ser o arquiteto de si mesmo e da construção de uma sociedade melhor e mais humana (p.2).

Nesse sentido, a própria escolha da forma metodológica pela qual Vitor Marinho estrutura o livro reconhece o contexto histórico e social na qual a Educação e a Educação Física estão inseridas. Ele parte das questões atuais em seu tempo; recorre à história para compreender e explicar os fenômenos; e volta às questões de seu tempo analisando-as a partir do entendimento das determinações históricas. Conforme Malina e Azevedo (2010) afirmam no prefácio à segunda edição do livro em análise:

Assim, seu livro “Educação Física Humanista”, embora represente às circunstâncias históricas do pensamento crítico da época, trata-se de um assunto atual porque retrata um humanismo existencialista ainda não alcançado, confirmando o conceito de história para além das divisões de tempo lineares entre passado, presente e futuro (p.6).

Para Vitor Marinho, “não será apenas a existência de matérias da área de ciências humanas que poderá transformar o professor num verdadeiro educador” (MARINHO, 2010a, p.29). No aspecto específico do campo da educação, contudo, somente “a partir da reflexão emanada pelas disciplinas com inspiração humanista, possa o professor [...] imprimir ao seu trabalho um caráter eminentemente pedagógico” (MARINHO, 2010a, p.29). Para ele seria isso que permitiria a manutenção e relevância à Educação Física no complexo educativo. Ainda segundo o autor:

As universidades, a partir do reconhecimento da Educação Física, como de caráter eminentemente pedagógico, devem integrá-la, por coerência, nos centros de ciências humanas, promovendo a sua desvinculação dos centros de ciências biomédicas (MARINHO, 2010a, p.97).

Nesse aspecto, as ideias de Vitor Marinho também vão ao encontro das ideias de Vieira Pinto (2005). Segundo Vieira Pinto (2005), a falta do conhecimento das Ciências Humanas e Sociais, bem como da Filosofia, pode aprisionar os estudiosos apenas no campo das noções. A falta do conhecimento filosófico tem como consequência a dicotomia a qual o trabalhador está submetido, pois conhece a prática, mas têm dificuldades na apreensão teórica. Nesse sentido, o professor o qual Vitor Marinho se refere não utiliza dos fundamentos filosóficos para orientar sua prática docente. Ao contrário, desenvolve sua aula tendo como principal finalidade o ensino da técnica ou a prática sem fundamentação teórica. Esse professor encontra-se no patamar denominado por Vieira Pinto (2005, p.222) de técnicos, que “são sempre as pessoas menos indicadas para emitir juízos sobre uma atividade na qual desempenham o papel de agentes”.

Para Marinho (2010a), o professor de Educação Física que tem sua prática fundamentada nos preceitos da concepção humanista

utiliza o jogo, o esporte, a dança e a ginástica - assim como as técnicas que lhe são próprias - como meios para o cumprimento dos seus objetivos educativos, não considerando com um fim em si mesmos. [...] encontra nas técnicas não-diretivas a sua principal estratégia metodológica, abandonando o papel autoritário que lhe foi tradicionalmente imposto. [...] percebe o aluno como pessoa, preocupando-se com a transferência da aprendizagem para a vida do aluno, muito mais do que para o desempenho esportivo (p.95).

Dessa forma, o professor desprovido de conhecimentos filosóficos pode tornar-se reduzido a um técnico dissociando teoria e prática no seu fazer pedagógico. Apesar do conhecimento prático do componente técnico, (o professor) não consegue entender teoricamente o sentido de sua prática. Para Vieira Pinto (2005), deve-se embasar teoricamente a técnica. A tecnologia desempenha o papel epistemológico de atribuir significado teórico à prática, de modo a estabelecer uma compreensão da realidade em sua totalidade, uma unificação do saber teórico e prático, constituindo um único conhecimento.

O QUE É EDUCAÇÃO FÍSICA

No livro O que é Educação Física, considerado um clássico dos anos de 1980 (NETO e AGUIAR, 2016), a questão da técnica parece estar mais pontuada do que no livro Educação Física Humanista e permeia todo o livro. A técnica aparece de maneira explícita em três vertentes que estão estreitamente relacionadas e que dão direção à abordagem do autor: 1) a técnica aliada ao desenvolvimento humano; 2) a técnica sem o fundamento filosófico como fator limitante ao desenvolvimento humano e; 3) a técnica como elemento presente na Educação Física. No desenvolvimento de suas ideias Vitor Marinho discorre sobre essas três vertentes, dando maior atenção às duas últimas.

No primeiro capítulo do livro - Do homem natural ao homem máquina - Vitor Marinho aborda como a técnica esteve aliada ao desenvolvimento humano ao longo da história. Traçando o percurso histórico do homem primitivo até a contemporaneidade, o autor ressalta a importância do desenvolvimento técnico nas civilizações primitivas e como as técnicas corporais se desenvolveram à medida que o homem também se desenvolvia.

Condenado a uma situação de nomadismo e seminomadismo durante a maior parte de sua existência, o homem dependia de sua força, velocidade e resistência para sobreviver. Suas constantes migrações em busca de moradia faziam com que realizassem longas caminhadas, ao longo das quais lutavam, corriam, saltavam e nadavam. Sua supremacia no reino animal deveu-se, no plano psicomotor, ao domínio de um gesto que lhe era próprio: foi capaz de atirar objetos. Provavelmente por ser o único que possuía o polegar, desenvolveu a preensão, por oposição daquele dedo aos demais. Isto facilitou, inclusive, o aperfeiçoamento da habilidade de lançar (MARINHO, 2011, p.13).

Nesse primeiro momento em que o homem ainda é visto como primitivo, Vitor Marinho tenta demonstrar que a técnica desenvolveu um papel essencial em sua existência, para além da própria sobrevivência. Vitor Marinho compreende que o desenvolvimento humano acontece concomitantemente ao desenvolvimento técnico. Nesse sentido, Vieira Pinto (2005), afirma que o homem não deixou de agir tecnicamente em nenhum período histórico e em relação a nenhum objeto, sendo normal que houvesse reflexões sobre os seus processos e suas formas de proceder. O desenvolvimento das técnicas não é algo que acontece separado do homem e sem o seu entendimento, pois é algo que ele mesmo produz. O homem é o único ser biológico capaz de se apoderar subjetivamente das conexões lógicas entre os corpos e os fatos da realidade e transferi-las, seja por invenção ou por construção.

O aparato técnico e/ou as técnicas corporais que o homem desenvolve e que se desenvolvem junto a ele, conforme Vitor Marinho observa, tem papel fundamental na formação do homem. O autor, de certa maneira, compreende que esse fenômeno acontece, porém sem evidenciar as bases teórico-filosóficas que fundamentam o “como” e o “porquê” esse processo acontece. Com Vieira Pinto (2005), por exemplo, pode-se entender que a técnica tem a função de constituir o homem, enquanto animal biológico, em ser social, em um processo de hominização.

A técnica é um ato consciente, imanente do ser humano. O homem, constituído pelo processo biológico - dotado de terminações nervosas complexas - é capaz de conceber ideias abstratas para o desenvolvimento das coisas. Diferente dos animais irracionais que buscam a adaptação biológica para a sobrevivência, o homem, enquanto ser autônomo e dotado de recursos intelectuais, cria o ideal para si ou materialmente para sua existência, transformando a natureza através de suas faculdades intelectuais (VIEIRA PINTO, 2005).

Segundo Vieira Pinto (2005), a técnica humana apenas se materializa devido às determinações do mundo físico, gerando determinações técnicas. Isso acontece de forma retroativa, uma vez que a partir das determinações do mundo é que as técnicas são incorporadas. O homem tecniciza a natureza na medida em que observa um modelo cada vez mais técnico. Cada vez mais o homem necessita aproximar a sua relação com a natureza.

Nessa perspectiva, ao tratar dos povos primitivos, Vitor Marinho também atribuiu ao desenvolvimento das capacidades técnicas, o desenvolvimento econômico. O autor mostra como o aparato técnico permitiu ao homem extrair mais recursos da natureza e como isso possibilitou maior espaço de tempo sem trabalho direto, conforme pode ser visto na seguinte citação:

O aspecto econômico não se fez exceção no estímulo à prática do exercício físico pelos primeiros homens. No começo, ainda absolutamente nômades, a caça e a pesca eram a base da sua economia. Posteriormente, iniciaram-se num processo de sedentarização, quando começaram a dominar técnicas rudimentares de agricultura e domesticação de animais. Em qualquer desses momentos, foi necessário o aprimoramento das habilidades físicas para a otimização de gestos e a construção de ferramentas que possibilitassem maior sucesso nas práticas de sobrevivência (MARINHO, 2011, p.13-14).

Nesse trecho, Vitor Marinho reforça a ideia da técnica no processo de hominização, pois esta permitiu que o homem produzisse meios para interferir no mundo objetivo, ou seja, em vez de adaptar-se, a o homem criou técnicas visando adaptar a natureza a si mesmo. Nesse mesmo sentido, Vieira Pinto (2005) permite compreender que a técnica mantém uma relação dialética de interação com o homem, visto que a técnica só aparece com o homem social e que o homem também só avança no ciclo evolutivo pela técnica.

Conforme Vieira Pinto (2005) observou, a técnica é coetânea ao homem e o constitui enquanto ser social e se desenvolve à medida que o homem também se desenvolve, em uma relação dialética. Assim, a técnica não deve ser entendida como motor do processo histórico, ao contrário, deve-se ter o entendimento de que o homem é o responsável pelo desenvolvimento histórico e com isso a técnica também se desenvolve. Para o autor, os estudiosos que a concebem como impulsionadora do processo histórico costumam tratar as questões sobre a técnica como uma força oculta. Ou seja, em uma ótica determinista, acreditam que a técnica é agente natural do processo histórico no qual o homem seria incapaz de superar, entregando a história ao domínio da técnica.

Entender que a técnica é o motor primário da história é enxergá-la de forma determinista, é acreditar que todos os fenômenos acontecem na sociedade, ou ao longo da história, são fatores determinados pela técnica ou por elementos técnicos. É dar centralidade à técnica para explicar as questões postas na sociedade e não ao homem. A perspectiva humanista de Vitor Marinho - observada ao longo de toda sua obra - livra-o do equívoco de conceber a técnica como motor do processo histórico. O resultado disso pode ser observado nessa produção pelas críticas ao modelo tecnicista da Educação Física, seja como prática social ou vinculada ao ensino. Dessa forma. observa-se que o tecnicismo não cabe na concepção educativa de Educação Física construída por Vitor Marinho.

A segunda categoria a ser destacada em O que é Educação Física é como Vitor Marinho enxerga a técnica sem fundamento filosófico como um fator limitante ao desenvolvimento humano. Após desenhar o percurso histórico da relação do homem com as práticas físicas no qual a técnica se fez presente, o autor destaca que com o desenvolvimento da sociedade a evolução técnica já não estava ligada apenas à formação do homem, - o que Vieira Pinto (2005) trata como processo de hominização -, mas que nesse formato a técnica poderia transformar o homem em homem máquina.

As críticas fundadas pelo autor não são direcionadas puramente à técnica, mas como o uso da Educação Física sem uma proposta educativa humanista ajuda a tornar o homem um homem máquina. Nesse sentido, Vitor Marinho parece referir-se aqui ao tecnicismo, como verifica-se abaixo na análise da continuidade do livro.

No capítulo “O Labirinto”, Vitor Marinho faz uma série de indagações em forma de tópicos: “Educação Física é ginástica?”, “Educação Física é cultura?”, “Educação Física é medicina?”, entre outros. Nesses tópicos, Vitor Marinho demonstra que a falta do componente pedagógico nas manifestações da Educação Física - esporte, jogo, dança etc. - culmina no tecnicismo, que seria a concepção do homem como máquina. Isso aparece no tópico “Educação Física é esporte?”, ao afirmar que:

Um outro aspecto importante é a preocupação com o rendimento. (...) Levado a extremos, cria sérias deformações. Nas escolas, a busca de campeões conduz à especialização prematura, inibindo o desenvolvimento do potencial psicomotor das crianças. Destas, passa a ser cobrada uma perfeição técnica na execução dos gestos esportivos. Os alunos passam a ser encarados como futuros atletas e não, simplesmente, como pessoas. As influências tecnicistas fazem com que a atividade do jogo esteja sistematicamente voltada para o desempenho e para os resultados de alto nível. Nesse caso, os menos habilidosos, que seriam os maiores beneficiários do esporte, são marginalizados e preteridos em benefício dos talentos. A Educação Física pode permitir essa discriminação? (MARINHO, 2011, p.76-77).

Vieira Pinto (2005) nos ajuda a compreender que o indivíduo assume diferença das máquinas à medida que possui um modo de fazer próprio. Já as máquinas possuem um modo de fazer3 que não controlam espontaneamente ou somente controlam dentro de padrões já previstos, devidamente concebidos a elas pelo homem. Desse modo, o homem-máquina no qual Vitor Marinho se refere é o homem que não tem seu próprio modo de fazer, que reproduz acriticamente e de forma assimilada sem a consciência filosófica daquilo que faz, seja relacionado aos movimentos corporais ou qualquer outro quesito da vida social.

Ainda sobre o livro O que é Educação Física pode-se observar a terceira categoria que destacamos - a técnica como elemento presente na Educação Física. Vitor Marinho entende que a técnica pode ser utilizada tanto quanto como fator limitante ao desenvolvimento das capacidades humanas quanto elemento essencial no ensino e prática da Educação Física. Essas duas perspectivas estão diretamente ligadas na concepção do autor. Para ele, quando o professor prioriza o ensino da técnica sem a fundamentação pedagógico-filosófica de seu trabalho, a técnica, que deveria ser meio do processo educativo, se torna fim. Logo, há o desenvolvimento do tecnicismo em detrimento de outras capacidades humanas.

Vitor Marinho, entretanto, não descarta a importância do ensino da técnica nas aulas. As críticas não circundam a técnica em si, mas como ela está presente na Educação Física. Para o autor, tal como pôde ser visto na análise do livro Educação Física Humanista, isso pode manifestar-se na área já que os currículos privilegiam as disciplinas de caráter biomédico e técnico-esportivo enquanto que as disciplinas fundamentadas nas Ciências Humanas e Sociais seriam renegadas.

A crítica de Vitor Marinho à ausência do componente pedagógico e à supervalorização do componente técnico é relatada quando o autor se refere ao trabalho do professor que desenvolve essa perspectiva.

Encarada a Educação Física essencialmente sob o seu aspecto biológico, o professor fica reduzido simplesmente a um “educador do físico”. Será a Educação Física encarregada, apenas, de atender a aspectos físicos do ser humano? Ao analisar as ginásticas sueca, francesa e alemã, encontramos sistemas que foram criados com a pretensão de atender ao homem como um todo, facilitando o desenvolvimento humano sob os seus aspectos físico, moral e intelectual. Apesar da boa intenção, não conseguiram atingir plenamente as suas metas. De um modo geral, a prática constatava uma atenção exclusiva ao físico, em detrimento dos demais segmentos da personalidade. Isto porque a maioria daqueles métodos foi fundamentada em suportes biológicos, conferindo um caráter anatomo-fisiológico à prática dos exercícios físicos, levando-a a alcançar resultados limitados (MARINHO, 2011, p.67).

Também pode-se observar que na percepção de Vitor Marinho o componente técnico, quando afastado do componente pedagógico, pode tirar o significado da prática para os alunos durante as aulas de Educação Física:

Nas aulas de Educação Física, desenvolver as qualidades físicas é, sem dúvida, um dos objetivos mais importantes a serem atingidos. Quando desejamos enfatizar a qualidade física chamada resistência aeróbica, imprescindível para os corredores, pedimos aos alunos que corram em torno da quadra. Voltas e mais voltas desenvolverão, por certo, a resistência almejada. Esse exercício, porém, carece de significado. Além de não promover um envolvimento intelectual e afetivo, em que circunstância essa tarefa será repetida? É fácil constatar que as pessoas só correm em círculos nas aulas de Educação Física! Por isso mesmo, todas as vezes que, durante uma aula, pedimos a adultos para correrem, eles imediatamente o fazem em círculo, embora haja bastante espaço e esta sugestão não tenha sido dada. Estão condicionados. Correr em círculo é um exercício com tão pouca significação - principalmente para crianças - quanto correr no mesmo lugar ou correr para trás, que contrariam os objetivos inerentes ao ato da corrida. Seria o mesmo que nadar sem água ou jogar voleibol sem bola. É preciso que os exercícios físicos não sejam o fruto da pura imitação mecânica; (...) é importante que as pessoas se movimentem tendo consciência de todos os seus gestos. Precisam estar pensando e sentindo o que realizam. (...) Caso contrário, estaremos diante da "deseducação física". (MARINHO, 2011, p.95-96)

Apesar das críticas à aplicabilidade da técnica quando feita isoladamente de um contexto pedagógico e filosófico, contudo, Vitor Marinho não refuga sobre a importância da técnica e de seu ensino. Tal afirmativa pode ser observada do capítulo “Afinal, o que é Educação Física?”. Ao abordar a questão do desenvolvimento da aptidão física nos jogos e nos esportes, a ideia que a técnica não deve ser excluída clarifica-se.

Não pretendemos excluir o desenvolvimento da aptidão física das preocupações da Educação Física. Nem o desenvolvimento de habilidades motoras por intermédio dos jogos e esportes. Correríamos o risco de descaracterizar a profissão. O fundamental é que se compreenda que essas atividades são meios e não fins. À medida que o desempenho esportivo, materializado pelo recorde, passa a encher os olhos dos alunos, professores e administradores, os valores mudam de direção. O que devia ser meio transforma-se em fim. Essa cegueira pedagógica assume proporções inaceitáveis. Um bom exemplo são as escolas que oferecem bolsas de estudo para atletas de um clube, fazendo-se representar por uma equipe de alto nível em campeonatos escolares. Nessa escola, esporte não é Educação Física. Imaginemos qual o tipo de motivação que os alunos têm em suas aulas, conhecendo as barreiras intransponíveis para jogar nas equipes representativas. Alguém pode argumentar que a competição esportiva não é o único - nem o principal - objetivo da Educação Física. Nessa escola, porém, será o único que receberá todas as honras (MARINHO, 2011, p.89).

Outra questão importante para compreender o papel relevado à técnica na obra de Vitor Marinho é o seu entendimento de que a atividade física não podia ser encarada como algo somente aprimorador do plano motor, mas que também permitia ao indivíduo o processo de tecno-intelectualização. Esse processo significava a intelectualização integrada à ação, ou seja, o desenvolvimento de técnicas em virtude das necessidades, como a necessidade do homem primitivo de desenvolver e manusear algumas ferramentas necessárias para a sobrevivência. No entendimento do autor, ainda que passível de críticas, o processo de desenvolvimento humano deveria estar aliado ao movimento.

A integração físico-mente (material-imaterial) surge de inferências feitas desde a pré-história. Há três ou quatro milhões de anos, apareceu o primeiro ser bípede (homo hábilis), possivelmente o primeiro exemplar de quem hoje chamamos homem. O saudoso Cagigal (...) considera o fato como o início do processo de tecnointelectualização do homem. Tecnointelectualização não representa a adaptação da inteligência a uma determinada técnica, mas o processo de intelectualização integrado à ação. (...) Vale a constatação de que o processo de desenvolvimento da inteligência humana sempre esteve em constante comunhão com o movimento. Atualmente já não se considera como inteligência a simples capacidade de compreensão. A criatividade seria a manifestação suprema de inteligência. A própria inteligência. A moderna tecnologia é capaz de reproduzir eletronicamente várias faculdades humanas (...), menos uma: o poder criativo. O excesso de tecnicismo (gerador de hábitos) afasta a Educação Física de sua fundamental participação no desenvolvimento da inteligência (criatividade). No momento em que, pela ginástica ou pelo esporte, as atividades são baseadas na repetição, não está havendo mais Educação Física (MARINHO, 2011, p.91-92).

Assim, Vitor Marinho está iniciando um processo longo de críticas à maneira como veio se desenvolvendo historicamente a Educação Física, mas também na perspectiva de época. Logo à frente, ainda nos anos de 1980, pode-se verificar que a sua concepção teórico-metodológica e ideológica entra em uma fase de transição.

A CATEGORIA REPRODUÇÃO NA PERSPECTIVA DE BOURDIEU E DE PASSERON

A perspectiva político-ideológica marxista de Vitor Marinho assumida na fase madura dos escritos e análises de suas obras foram embasadas pelo marxismo. Em A categoria reprodução na perspectiva de Bourdieu e de Passeron, de 1988, parece estar marcada por uma transição da perspectiva humanista-existencialista para tal perspectiva político-ideológica marxista posterior em sua produção acadêmica e concepção existencial. Daí interessa saber como ele estava compreendendo a questão da técnica naquele momento.

Por ser um texto da Educação, nesta obra a questão sobre a técnica não aparece de forma explicita, a não ser pelas críticas do autor à Pedagogia Tecnicista. A partir desse texto, Vitor Marinho toma consciência de um importante elemento para pensar o homem, a sociedade, a Educação e a Educação Física, elemento que virá permear todas as suas produções: a consciência de classe. A dimensão política assume na obra de Vitor Marinho um papel mediador com as demais questões. Nesses termos, a questão da técnica surge aliada às pedagogias e, no texto, Vitor Marinho faz críticas à pedagogia tecnicista.

Vitor Marinho, entretanto, afirma que o tecnicismo é algo combatido na Educação Física por alguns autores desde o início dos anos de 1980. Porém, a crítica é feita por esses autores somente em relação às consequências do tecnicismo e não atribuída ao elemento causador, ou seja, as contradições sociais não eram evidenciadas.

O tecnicismo e o mecanicismo já haviam sido contestados numa perspectiva existencialista, mas ainda de forma ingênua, em que as contradições sociais não eram exaltadas. Rodava-se em círculos e, no fundo, ainda se tinha uma postura de caráter funcionalista. A sociedade tinha de continuar do jeito que era e a modernização era única alternativa. É o que se chama re-forma (MARINHO, 2010b, p.89).

O tecnicismo criticado por Vitor Marinho ratificava a estratificação da sociedade em classes e a dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual. Nesse trabalho, o professor de Educação Física insere-se e destina à docência apenas ao corpo de quem ele ensina. Com isso, ao observar a sociedade por suas contradições sociais, o autor entende que o problema da Educação Física não é apenas técnico e sim político. O autor faz a análise de que o problema da Educação Física no Brasil não está apenas vinculado à maneira pela qual a técnica é utilizada na área e sim na maneira pela qual a técnica é utilizada na sociedade. Vitor Marinho defende que se deve contestar o tipo de sociedade na qual estamos inseridos, pois no seu entendimento transformando-se a sociedade a Educação Física necessariamente será transformada.

Nota-se que o entendimento do autor se transforma. Antes, a preocupação era mudar a maneira com a qual a técnica e as metodologias estavam postas nas aulas. Com a mudança de perspectiva teórica, Vitor compreende que essa seria apenas uma mudança superficial e não transformadora.

A partir daí, seus agentes podem optar pela reprodução ou pela transformação, o que não se esgota numa escolha técnica, e sim política. Quando falamos em educação transformadora é necessário saber o que se quer transformar. Entendendo que precisamos apenas rever técnicas e metodologias, assumimos uma postura modernizadora e estamos tendo uma “recaída” existencialista, re-formista. Os recursos metodológicos têm de ser estudados, sim, de modo que nossas aulas não continuem a parecer instrução de ordem unida. A negação desse momento já aconteceu. Agora ele tem de ser superado, criando uma síntese que, articulada com a realidade histórica, ajude-nos a enxergar uma saída (MARINHO, 2010b, p.89).

A partir da produção de A categoria reprodução na perspectiva de Bourdieu e de Passeron, de 1988, o autor transita da perspectiva fenomenológica para uma radicalidade política de crítica dirigida contra à sociedade capitalista. A técnica não fica de fora disso. Nesse sentido, a teorização da técnica mostra-se relevante para atribuir valores que seriam aqueles estabelecidos pela classe trabalhadora e que defendam seus interesses.

Desse modo, o entendimento de Vitor Marinho nos leva a compreender que limitar o indivíduo com movimentos técnicos não espontâneos e antinaturais seria impedi-lo de desenvolver-se e agir historicamente, bem como da capacidade de desenvolver-se intelectualmente e com capacidade transformadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A chave para entender a técnica na obra de Vitor Marinho está na compreensão do referencial teórico-epistemológico de análise utilizado pelo autor na década de 1980. A leitura de seus textos permite-nos afirmar que a discussão sobre a técnica permeia as produções analisadas, sendo questão central ou complementar do debate

Saliente-se aqui que a técnica é um elemento essencial para compreensão de seu pensamento em toda a sua produção teórica, pois, para ele, em texto posterior: “Urge um trabalho de base nas Escolas de Educação Física, onde professores e alunos não abandonem a discussão da técnica, mas que a entendam com fundamento político” (MARINHO, 2010c, p.370).

A análise dos textos mostra que o livro Educação Física Humanista representa a essência do pensamento fenomenológico na obra de Vitor Marinho, principalmente no que se refere ao método. Com a perspectiva fenomenológica vista em Educação Física Humanista, o esforço teórico de Vitor Marinho para explicar os fenômenos presentes na Educação Física não considerou determinações históricas essenciais para entender a sociedade e suas questões. Isso passa a ser considerado inicialmente em O que é Educação Física e de forma mais contundente em A categoria reprodução na perspectiva de Bourdieu e de Passeron. Neste texto, o autor parece já estar em fase de transição para a posterior adoção do marxismo como referencial teórico de seus textos.

Nessa perspectiva, a técnica é vista como “maneira de fazer” e não uma lente para entender o próprio homem. Tal como nos textos de Vitor Marinho, caberia indagar se há - na própria constituição da crítica ao tecnicismo nos anos de 1980 - similaridade com os principais textos destes anos. Ao cotejar-se a técnica como “maneira de fazer” com a perspectiva crítica de Vieira Pinto (2005), contudo, neste a técnica mostra-se como um componente essencial para a ação humana e está vinculada ao processo de construção social do próprio indivíduo.

Pode-se concluir, assim, que o pensamento renovador da Educação Física nos anos de 1980, aqui representado por textos de Vitor Marinho, ao pensar a técnica à luz das Ciências Humanas e Sociais inicia a construção de um pensamento que permite a crítica sobre os aspectos da técnica na sociedade. Nesse sentido, há concordância com Vieira Pinto (2005), pois “o domínio teórico da técnica pelo homem liberta-o da servidão prática à técnica, que vem sendo, crescentemente, o modo atual de vida pelo qual é definido e reconhecido” (p.223).

Dessa forma, é ilusório desconsiderar as contribuições presentes nos textos de Vitor Marinho dos anos de 1980. Ao contrário, ao contestar os paradigmas hegemônicos da Educação Física brasileira, as produções do autor representam um marco na área e contribuem decisivamente para a construção do pensamento renovador e da consequente perspectiva sociocultural na Educação Física.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos representantes do pensamento renovador da Educação Física e o consequente surgimento da perspectiva sociocultural nos anos de 1980, sem os quais possivelmente não estaríamos aqui. Em especial ao professor Vitor Marinho de Oliveira (in memorian).

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FINANCIAMENTO Não se aplica.

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica.

1Neste estudo, iremos nos referir à Vitor Marinho de Oliveira como Vitor Marinho. As referências utilizadas no texto seguem conforme foram publicadas pelas editoras e aparecem nos livros utilizados.

2Esses dois livros foram analisados pelo próprio Vitor Marinho na sua tese de doutorado publicada no livro Consenso e Conflito: Educação Física Brasileira. Essa análise, entretanto, não contemplou de modo pleno a questão da técnica.

3Por um lado, o modo de fazer é uma série de operações ordenadas com objetivos previamente determinados como o produto a ser fabricado. Por outro lado, o modo de fazer pode ser compreendido pelas propriedades da matéria que é obrigada a utilizar e as resistências a vencer.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Não se aplica.

PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

Recebido: 14 de Julho de 2018; Aceito: 29 de Outubro de 2018

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Não se aplica.

CONFLITO DE INTERESSES

Não há conflito de interesses.

EDITORES

Mauricio Roberto da Silva, Giovani de Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira.

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