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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.61 Florianópolis  2020  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e61739 

Artigo Original

Por uma Educação Física da ordem da potência: o que pode o corpo em movimento?

For a Physical Education in terms of potency: what can the body in motion do?

Por una Educación Física de la orden de la potencia: ¿qué puede el cuerpo en movimiento?

Elder Silva Correia1 
http://orcid.org/0000-0001-8403-2226

Felipe Quintão de Almeida2 
http://orcid.org/0000-0002-4056-5159

1Universidade Federal de Sergipe - UFS, Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGED, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.

2Universidade Federal do Espírito Santos - UFES, Centro de Educação Física e Desportos - CEFD, Vitória, Espírito Santo, Brasil.


RESUMO

A partir de uma pesquisa teórica em filósofos como Spinoza, Deleuze e Guattari, problematizamos o modo pela qual as práticas corporais podem colocar para o corpo a questão do limite de sua (im)potência por meio de um circuito de afectos, que vai do desamparo à alegria. Concluímos que tais práticas podem ser um território privilegiado para responder à pergunta: “O que pode o corpo em movimento”. As consequências ditam à Educação Física como lidar pedagogicamente com elas.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física; Corpo; Potência

ABSTRACT

From a theoretical research on philosophers such as Spinoza, Deleuze and Guattari, we problematize the way in which body practices can pose to the body the question of the limit of its (im) power through a circuit of affection, which goes from helplessness. the joy. We conclude that such practices can be a privileged territory to answer the question: "what can the body in motion". The consequences dictate to Physical Education how to deal with them pedagogically.

KEYWORDS: Physical Education; Body; Power

RESUMEN

A partir de una investigación teórica sobre filósofos como Spinoza, Deleuze y Guattari, problematizamos la forma en que las prácticas corporales pueden plantear al cuerpo la cuestión del límite de su (im) poder a través de un circuito de afecto, que va desde la impotencia. la alegría. Llegamos a la conclusión de que tales prácticas pueden ser un territorio privilegiado para responder a la pregunta: "¿qué puede hacer el cuerpo en movimiento". Las consecuencias dictan a la Educación Física cómo tratarlas pedagógicamente.

PALABRAS-CLAVE: Educación física; Cuerpo; Poder

INTRODUÇÃO1

É melhor ser alegre que ser triste,

alegria é a melhor coisa que existe. [...]

A vida é a arte do encontro

(Vinícius de Moraes e Baden Powell)

Embora2 o corpo tenha sido rebaixado no discurso filosófico do Ocidente, podemos identificar autores ou perspectivas teóricas que, na contramão desta tradição, conferiram a ele outro estatuto ou dignidade político-epistemológico-ontológica. Ainda no século XVII, Spinoza, em sua “Ética”, afirmava que maldizer o corpo, desde Platão até Descartes, ocorria na medida em que desconhecíamos o que ele pode:

O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo - exclusivamente pelas leis da natureza, enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer [...]. O corpo, por si só, em virtude exclusivamente das leis da natureza, é capaz de muitas coisas que surpreendem a sua própria mente (SPINOZA, 2013, p. 167).

Retomando a pergunta de Spinoza, Deleuze (2002, p. 23-24) reforça que “[...] falamos da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus efeitos [...], mas nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo [...]. Como dirá Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas ‘o que surpreende é, acima de tudo, o corpo [...]’”.

Spinoza (2013), no prefácio da terceira parte de seu livro “Ética”, declara que os homens que escreveram até então sobre o corpo, ao invés de tentar compreendê-lo, preferiram abominar e ridicularizar os afectos e as ações humanas. Reconhece, também, que mesmo Descartes, tendo buscado compreender os afectos, buscou explicá-los através de um suposto domínio absoluto da mente sobre eles. Neste sentido, para o autor, Descartes acreditava que o corpo agisse através de um comando da mente e que as ações do corpo dependessem exclusivamente da vontade da mente.

Spinoza (2013) destaca que esse equívoco sobre o corpo ocorre na medida em que desconhecemos o que ele pode. Spinoza propõe uma transformação na concepção de corpo, assim como outros autores supracitados. O corpo não é mais compreendido como receptáculo da alma, nem submisso à vontade da mente, haja vista que a sua aptidão em ser afetado e afetar é essencial para o aumento da capacidade da ação do homem, assim como para o aumento da capacidade de produzir conhecimento.

Depois de Spinoza, outros filósofos também reservaram ao corpo um tratamento diferente do da tradição. O caso mais paradigmático, no século vinte, é o da fenomenologia de Merleau-Ponty, mas podemos observar, antes dele, filósofos como Montaigne, Schopenhauer e Nietzsche, para citar apenas três deles, que expressam um “interesse pelo corpo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), por aquilo que ele precede, atravessa ou extravasa, por assim dizer: a razão e a linguagem (nos afectos, nos desejos, no sensível, na mímesis, etc.).

Daí a importância dessa transformação na concepção de corpo, mudando não somente o modo como nos relacionamos com ele, mas por nos possibilitar repensar atividades ético-políticas e epistemológicas, como é o caso da educação, por exemplo.

Sendo o corpo um dos elementos centrais para a Educação Física (EF), e esta uma prática pedagógica (BRACHT, 1999) em que a sua intervenção lida com as práticas corporais sob o crivo de uma intenção pedagógica, podemos perceber ressonâncias dessa tentativa ao conferir ao corpo um novo estatuto ontológico. Visualizamos isso em vários autores da área, como: Betti, (2006, 2007), Bracht (1999, 2019), Fenterseifer e Pich, (2012), Pich, Silva e Fensterseifer (2015), Almeida (2012), Costa e Almeida (2018), Costa (2014) e Manoel (2011). Apesar das diferenças teóricas, tais autores impuseram uma crítica a qualquer modo de rebaixamento do corpo, seja criticando a tentativa de reduzi-lo à sua dimensão biológica, seja de subordiná-lo exclusivamente aos códigos da cultura. Essas perspectivas buscaram pensar nas ações do próprio corpo frente às relações de poder que o atravessam; não interessariam somente os efeitos da cultura sobre o corpo, mas a maneira como acontece a própria ação do corpo nas relações sociais, isto é, numa determinação que não vem apenas de fora e se inscreve nele, mas interna ao próprio corpo.

O presente artigo é um recorte de uma dissertação, que se propôs como um de seus investimentos conceber o corpo como condição para a produção de novos processos de subjetivação e outros modos de existência, em um horizonte ético-político dos encontros nas práticas corporais. Acreditamos que uma das condições para isso se dê através da consideração de que as práticas corporais são, em seu nível mais fundamental, um circuito de afectos, que colocam o corpo diante do limite de sua (im)potência. Assim, este é o objetivo do presente escrito.

Dividimos o texto em quatro partes: inicialmente, a partir de Spinoza, Deleuze e Guattari, apresentamos os conceitos de potência, afectos, afecções e corpo-sem-órgãos. Em seguida, diante desses conceitos, buscamos mostrar como as práticas corporais podem colocar para o corpo a questão do limite de sua (im)potência, através de um circuito de afectos que compreende desde o desamparo à alegria, inferindo, assim, que as práticas corporais são um território privilegiado para a investigação do “que pode o corpo em movimento”. Na terceira parte, seguida das considerações finais, buscamos implicações disso para a EF como prática pedagógica.

APRESENTANDO OS CONCEITOS

Para compreender os conceitos de afecções, afectos e potência, faz-se necessário investigar a íntima relação entre eles. O primeiro diz respeito ao estado do corpo afetado, implicando a presença do corpo afetante (DELEUZE, 2002a); são as inscrições ou marcas de um corpo no outro resultante de um encontro entre eles. Já os afectos são a transição de um estado a outro (DELEUZE, 2002a) ou, dito de outra forma, é a variação (aumento ou diminuição) da potência dos corpos, sendo justamente dessa potência que decorre a capacidade de agir do corpo. O afecto é a própria potência em variação a partir das afecções que o corpo sofre. Isso quer dizer que, a depender das afecções e dos afectos, a potência do corpo é aumentada ou diminuída.

Neste sentido, a potência corresponde à tendência a perseverar na existência, mantendo-se e abrindo-se ao máximo a aptidão que o corpo tem para ser afetado (DELEUZE, 2002a). Por isso, Spinoza (2013, p. 311) enfatiza ser útil ao homem tudo o que possibilita ao corpo poder ser afetado de muitas maneiras, favorecendo o próprio corpo a perseverar em sua existência.

Para compreender melhor o conceito de potência, é-nos necessário investigar também o conceito de corpo. Deleuze (2002a, 2002b) nos mostra que, para Spinoza, o corpo se apresenta da seguinte maneira: uma essência que nada mais é do que um grau de potência; um poder de ser afetado e de afetar, no grau em que a potência se exprime; também compreende as afecções que preenchem esse poder.

Neste sentido, um corpo pode ser afetado de diversas maneiras, na medida em que é constituído por partes extensivas que entram em relações que caracterizam esse corpo. Dito isto, o corpo é considerado a partir das maneiras que ele tem de preencher seu poder de afetar e de ser afetado. Deleuze (2002b) aborda isso muito bem ao mostrar que um cavalo, um homem ou mesmo dois homens, se comparados, não têm o mesmo poder de serem afetados, isto é, eles não são afetados pelas mesmas coisas ou, então, se afetados pela mesma coisa, não são afetados da mesma maneira ou na mesma medida.

Isso nos mostra que as relações entre as partes extensivas que caracterizam um corpo dependem desse seu poder de ser afetado. Deleuze (2002b, p. 147) assinala que “[...] uma relação não pode ser separada de um poder de ser afetado”. Em decorrência disso, para Spinoza, as perguntas “qual é a estrutura de um corpo?” e “o que pode um corpo?” são equivalentes, de modo que a estrutura de um corpo é o resultado da composição das relações entre as partes extensivas que o caracterizam e o que pode um corpo diz respeito ao seu grau de potência e limites de seu poder de ser afetado.

Decorre disso que a potência do corpo equivale à sua capacidade de buscar estabelecer encontros com outros corpos, de modo que sua própria potência seja aumentada - afectos que ampliam a potência de agir do corpo. Para Spinoza (2013), quando são produzidos afectos que possibilitam ser aumentada a potência do corpo, a este processo o autor chama de alegria. Contrariamente, quando a potência do corpo é diminuída, dá a esse afecto o nome de tristeza. Alinhado a isso, quando há uma relação entre dois ou mais corpos em que se verifica o aumento da potência (produção da alegria), Spinoza (2013) denomina a isso de bom encontro. Em contrapartida, quando no encontro diminui a potência (produção da tristeza), o autor chama de mau encontro.

Neste sentido, Deleuze (2002a) compreende que essa concepção de corpo diz respeito, antes de tudo, a conceber e a compreender as amplitudes e limiares (mínimo e máximo) das relações de velocidade e lentidão e dos poderes de afetar e ser afetado que um corpo possui. O que interessa, principalmente, são a produção e a compreensão das variações e transformações do corpo mediante suas relações e seus poderes. Dito de outra forma, dado um determinado corpo, o que interessa é saber quais corpos se compõem com ele, quais os afectos, se estes diminuem ou aumentam sua potência de agir, ou seja, o que pode esse corpo num dado encontro, numa determinada relação. Isto é, como estes corpos podem entrar em relação de modo a se comporem. Qual a condição que podemos criar de modo a se fixar uma relação que permita a composição.

Assim, a potência do corpo corresponde ao conatus. Spinoza (2013, p. 173) define o conatus como “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser [...]”. Destaca que a potência de qualquer coisa (do corpo, por exemplo) é este esforço pelo qual sozinha, ou em conjunto, age ou se esforça para agir e este esforço nada mais é do que a essência atual desta coisa. O conatus seria nossa capacidade de criar as condições para favorecer nosso conatus. Esta nossa capacidade de criar essas condições é nossa potência de afetar e de ser afetado, isto é, dos afectos de que somos capazes. Por isso, a depender dos afectos de nossos corpos, o conatus é favorecido ou constrangido. Se o conatus do corpo aumenta, experimentamos aquilo que Spinoza chama de alegria; se o conatus é constrangido, experimentos a tristeza. É isso que leva Deleuze (2002b) a destacar que as afecções determinam o conatus e este é a procura daquilo que lhe é útil nas afecções, favorecendo-o e ampliando-o. Por isso, Deleuze (2002a) entende que a potência diz respeito a uma aptidão para ser afetado e, neste sentido, o conatus corresponde à tendência a abrir ao máximo essa aptidão de ser afetado.

Inspirados nessa concepção spinozeana de conatus, Deleuze e Guattari (2012) cunham o conceito de desejo. Os autores o concebem como o esforço ou a inclinação por algo que seja útil ao próprio desejo, por isso, nesta perspectiva, segundo Deleuze (2002a), com base em Spinoza, não desejamos algo porque ele seja bom, mas é bom porque o desejamos. Assim, o desejo que circula no corpo não é fechado em si mesmo, nem estagnado, mas modificado a partir dos encontros que esse corpo faz.

É a partir disso que os autores ampliam a noção de corpo-sem-ógãos (CsO), inicialmente elaborada por Artaud. Para Deleuze e Guattari (2012), o CsO é a condição de possibilidade do desejo, que não podemos desejar sem produzir, isto é, o CsO nos permite desejar, faz com que o fluxo do desejo nos atravesse. Mas, por que se faz necessário produzir um CsO para desejar?

Tal problemática se passa em torno de uma crise da ação (LAPOUJADE, 2015), isto é, algo acontece em nossa sociedade que nos faz perder nossa capacidade de agir (nossa potência). Lapoujade (2015, p. 264) esclarece que é algo como um niilismo passivo, um a priori que nos impede, nos sufoca: “[...] que preexista em nós um sistema que deslegitime por antecipação as potências que a ele se opõem. O sujeito é como que separado de sua potência de agir [...]”. É como se nossas possibilidades de ação fossem “possíveis preestabelecidos”; confunde-se nossa potência de agir com esses possíveis preestabelecidos ao delimitar nossos encontros, moldando os tipos de relações que devemos produzir e o que devemos experimentar.

É a essa separação do corpo do que ele pode, isto é, à sua potência de agir, que Deleuze e Guattari (2012) opõem o conjunto de práticas do CsO. Essas práticas lidam com o problema de tornar o corpo capaz de agir novamente, tomando posse de sua própria potência. Para isso, elas investem no desenvolvimento do corpo, numa continuidade do corpo, continuidade que não é extensiva, mas intensiva, por possibilitar ao corpo o aumento e a amplificação de seu grau de potência - o CsO é uma política de revitalização da potência do corpo (YONEZAWA, 2013).

Todo o problema do CsO se encontra na maneira como vamos fazer com que o desejo seja liberado, no esforço em organizar os encontros que produzem os tipos de desejos. Não basta liberarmos o desejo; nossa preocupação é também conhecer qual o tipo ou qualidade do desejo que ele possibilita ao corpo no plano da ação. É por isso que produzir um CsO nos leva a pensar um cuidar dos encontros, com uma dada atenção aos afectos produzidos nestes encontros. Por isso, faz-se necessário buscar que afectos nos possibilitem produzir um CsO com uma preocupação ético-política.

Partimos aqui do pressuposto de que regimes de afecções ou circuitos de afectos é que sustentam os corpos num determinado modo de existência. Se o papel do conjunto de práticas de um CsO é liberar o desejo, se o CsO implica o deslocamento para outros modos de existência possíveis, “[...] será necessário perguntar como podemos ser afetados de outra forma; será necessário estar disposto a ser individualizado de outra maneira, a forçar a produção de outros circuitos [de afetcos]” (SAFATLE, 2016, p. 15).

Deleuze e Guattari (2012) nos mostram que produzir um CsO e suas intensidades é possível tão somente a partir de um coletivo, quer dizer, do encontro com outros corpos. São os outros corpos que nos “forçam” a liberar o nosso desejo, diferenciando-o, definindo seu tipo, sua qualidade, bem como determinando as intensidades que irão circular nele. Entendemos, por isso, que tudo se passa na investigação dos afectos que são produzidos nos encontros. Se temos aqui uma preocupação ético-política, é necessário então um afecto que produza uma comunidade de corpos que os abram à ética e à política.

Compreendemos que este afecto pode ser o desamparo. Para Safatle (2016, p. 50), a política nos confronta com acontecimentos que nos desamparam, que nos forçam a pensar o impossível, nos deslocam de lugar, pois “[...] toda ação política é inicialmente uma ação de desabamento e só pessoas desamparadas são capazes de agir politicamente”. Neste sentido, o desamparo seria o desabamento das reações possíveis, uma momentânea paralisia, ao estar à frente de um outro a quem não sabemos como responder, como agir, na medida em que estar desamparado é estar sem recursos diante de um acontecimento que não é a atualização dos possíveis; é uma forma de impotência (SAFATLE, 2016), mesmo que momentânea. Porém, como fazer com que o desabamento dos possíveis do corpo produzido pelo desamparo não se tornem paralisia, uma impotência contínua, mas ser condição para que o corpo busque produzir novos possíveis?

Para Safatle (2016), trata-se de compreender o desamparo como condição para o desenvolvimento de uma certa coragem afirmativa. O autor indica que se a experiência do desamparo é necessária para a ação; ela é indispensável se for compreendida como condição para produção de um afecto afirmativo, que seja um estímulo para a potência do corpo de suportar a perda dos seus possíveis. É este ato de resistência do corpo que expressa sua capacidade de ação, na medida em que resistir ao desabamento dos possíveis é criar condições para que outros novos possíveis sejam produzidos.

Acreditamos que esse afecto afirmativo seja a alegria, na medida em que ela diz respeito ao conatus; Deleuze (2002a) o compreendeu como o esforço para experimentar alegria.

Em um texto intitulado “O corpo que não aguenta mais”, Lapoujade (2002, p. 81-82) compreende que a pergunta “que pode o corpo?” não diz respeito à atividade do corpo, mas à sua potência, que, paradoxalmente, está ligada à própria definição de corpo: “o corpo é aquele que não aguenta mais, aquele que não se ergue mais”. Esta é, para o autor, a condição do corpo.

As formas que agem no corpo, que o fazem “não aguentar mais”, são as que perguntam “o que o corpo pode suportar?” (LAPOUJADE, 2002). O insuportável promove no corpo a experiência de sentir a alegria de possuir a potência de resistir. Isto é: “É na sua resistência a estas formas vindas de fora, e que se impõem ao dentro para organizá-lo e lhe impor uma ‘alma’ [um sujeito], que o corpo exprime uma potência própria” (LAPOUJADE, 2002, p. 85).

Assim, Lapoujade (2002), a partir de Deleuze, nos lembra que o corpo é primeiramente encontro com outros corpos; a problemática se passa em como permitir ser afetado por outros corpos, sem que esse encontro não produza em si um sujeito que o organize, que o restrinja, mas, ao contrário, que o faça expandir sua potência de agir.

A experiência de ser afetado, sem ser assujeitado, mas buscando o aumento da potência de agir, é necessariamente uma experiência de limite, mais precisamente, de limite da impotência do corpo; do limite de saber deixar ser afetado pelo fora até o ponto de tirar dessa afecção um “afecto afirmativo” (SAFATLE, 2016), um afecto de alegria que expresse o aumento do seu esforço de agir (conatus). Por isso, essa experiência, mesmo que a princípio produza o desamparo, se caracteriza como busca por experimentar afectos de alegria na medida em que o corpo se inclina ao aumento de sua potência.

AS PRÁTICAS CORPORAIS COMO UM CIRCUITO DE AFECTOS E COMO LIMITE DA (IM)POTÊNCIA DO CORPO: do desamparo à alegria

Com base nos conceitos apresentados no tópico anterior, buscamos pensar aqui que as práticas corporais, em seu nível mais fundamental, dizem respeito a como os corpos são afetados e quais são os afectos produzidos e circulados a partir destas afecções. Assim, as práticas corporais colocam diversas questões:

  • - O que pode o corpo em movimento?

  • - O que pode o corpo que surfa?

  • - O que pode o corpo que pratica futebol?

  • - O que pode o corpo que joga tênis?

  • - O que pode o corpo que dança?

  • - Ora, eles podem surfar, jogar futebol, tênis e dançar.

Parece-nos algo tão óbvio que facilmente tiramos a imanência das práticas corporais, reduzindo-as a fins, a significações, perdendo de vista seu elemento mais fundamental: as afecções e os afectos que fazem variar a potência destes corpos.

Considerando as práticas corporais como um continuum de corpos em movimento, que aumentam ou diminuem a potência dos corpos a partir de um determinado regime de afecções, elas colocam para os corpos uma enorme variedade de composição de relações.

Se levarmos em conta o atletismo, por exemplo, ele disponibiliza diversas maneiras de saltar, correr e lançar. Correm-se determinadas distâncias tanto de maneira individual (100 m, 200 m, 400 m, por exemplo) como coletiva (revezamentos 4x100 / 4x400 m). Existem provas em que se mistura a corrida com os saltos. Há, também, os lançamentos de objetos como o dardo, o disco e o martelo; e, quanto ao salto, existem o salto em distância, o salto em altura, o salto com vara e o salto triplo.

A cada prova dessas, ao corpo se coloca um problema que exige dele a capacidade de entrar em composição com elementos distintos, como fazer com que ele entre em relação de composição com a gravidade, para que consiga saltar determinadas distâncias ou alturas, bem como arremessar determinados objetos. O que interessa aqui é que a variedade de composições que o atletismo exige do corpo produz determinadas afecções e afectos, ou seja, o corpo tem sua potência em variação a partir dos problemas que as provas colocam.

Gumbrecht (2007, p. 124) diz, por exemplo, que a composição do corpo com objetos “[...] enfatiza a capacidade do ser humano de adaptar seu corpo à forma, aos movimentos ou ao funcionamento do instrumento [...]”. Não é uma simples adaptação; mais do que isso, ele faz aumentar sua própria potência: [...] quanto mais um atleta consegue adaptar seu corpo com perfeição à forma e aos movimentos de um cavalo ou de um carro, melhor ele os controla, e mais potencializa a eficácia de seu corpo [amplia sua potência] (GUMBRECHT, 2007, p. 124).

Ao mesmo tempo em que o esporte é lugar privilegiado do tecnicismo, em que o treino representa uma tentativa de reificação e domínio do corpo, como nos lembra Vaz (1999), são as condições dadas pelo esporte, paradoxalmente, as relações entre os múltiplos elementos com as quais o esporte possibilita entrar em composição com os corpos dos atletas, que levam estes corpos a entrar em devir, ou seja, a conquistar novas potências.

Se o esporte de alto rendimento pode ser um território privilegiado do domínio do corpo (VAZ, 1999), a abordagem de Gumbrecht (2007) nos leva também a considerar que, paradoxalmente, as condições dadas pelo território esportivo, enquanto possibilidades de composição entre os corpos, criam condições para ampliar a sua potência. Neste sentido, compreendemos que o autor nos leva a considerar a complexidade do território esportivo. Assim:

O fascínio da patinação artística pode ser descrito como o desafio de ajustar um corpo, num momento específico e num limite de tempo predeterminado, a uma sequência de figuras complexas e predefinidas [...] Por outro lado, superar os limites do esporte significa ir em busca de níveis maiores de complexidade das figuras envolvidas. [...] em vez de simplesmente adaptar seus corpos, com uma perfeição infinita, aos critérios embolorados do gosto dos juízes (GUMBRECHT, 2007, p. 129).

No entanto, não se trata aqui de ser capaz de produzir um movimento perfeito, com eficácia, simetria. A questão, aqui, se encontra no plano intensivo, isto é, no momento em que a capacidade de agir do corpo entra em variação e conquista uma nova potência, a abertura de um novo possível que não é a atualização dos possíveis anteriores. Porém, esse novo não se reduz à criação de um novo movimento no esporte, como, por exemplo, quando Rivelino eterniza no futebol o drible do elástico, hoje reproduzido por vários outros jogadores. O novo aqui está relacionado com o corpo que está em movimento ao experimentar que conquistou uma potência até então não experimentada por ele - este novo é singular.

Os jogos com bola podem ser um território para a ampliação da potência dos corpos, sobretudo por seu caráter de contingência, o que torna mais possível o improviso. Grande parte das jogadas em um jogo de futebol, ou em um “golzinho” jogado na rua, por exemplo, é realizada contra a resistência imprevisível do adversário. “[...] Enquanto o time está com a bola, tenta criar uma jogada e evitar o caos; a equipe adversária, em posição defensiva, tenta destruir a forma emergente e precipitar o caos [...]” (GUMBRECHT, 2007, p. 134). Neste momento, é produzida uma gama de afecções e afectos que põem em uma variação a potência dos corpos que estão no jogo.

Outra questão que os jogos envolvem é o timing, ou seja, a capacidade do corpo de produzir certos movimentos na hora certa (GUMBRECHT, 2007). O timing representa a composição da percepção que o corpo tem do espaço e do momento de produzir o movimento; a capacidade do corpo de se deslocar num espaço específico no momento oportuno (GUMBRECHT, 2007).

O ato de fazer um desarme no futebol, de conseguir a abertura na marcação da defesa adversária no basquete, de surfar uma onda, de saltar um obstáculo no Le Parkour, de se esquivar de um golpe no muay thai, por exemplo, são modos de perceber o ambiente, de perceber os corpos e o próprio corpo do sujeito em movimento a partir do timing. Isso exige toda uma tentativa e um esforço de leitura das afecções produzidas em determinados momentos da prática corporal, assim como da própria potência dos corpos em movimento ali envolvidos.

Mesmo que nos exemplos citados tenhamos lançado mão de movimentos efetuados, de ações já concretizadas, o regime de afecções presentes nas diversas situações que as práticas corporais produzem nos corpos é inseparável dos afectos que daí decorrem. Portanto, enquanto o circuito de afectos está situado no plano intensivo, “[...] é puramente transitivo, e não indicativo ou representativo, sendo experimentado numa duração vivida que abarca a diferença entre os dois estados” (DELEUZE, 2002a, p. 56).

Isto quer dizer que no âmbito das práticas corporais, ao se esforçar por compor relações de composições com outros corpos diante do espaço e das regras, por exemplo, o corpo pode experimentar algo que a princípio não estava inscrito no campo de seus possíveis. Em seu nível mais fundamental, as práticas corporais não se limitam em produzir significações, nem recompensas (emagrecer, ser saudável, etc.), mas afectos experimentados em determinadas durações que demarcam o limite entre o “posso” e o “não posso” dos corpos em movimento, expandindo sua potência, abrindo-o para novas maneiras de se movimentar.

O que nos interessa é compreender como os corpos se conectam às práticas corporais e aos outros corpos envolvidos; como os corpos entram em movimento em função de um problema que lhe surge diante das afecções resultantes do encontro entre eles e as práticas corporais, fazendo com que busquem o aumento de sua potência.

Conceber as práticas corporais como um território fértil para a investigação da pergunta “o que pode o corpo em movimento?” é possível tão somente a partir de uma relação que coloque em questão o limite da potência e da impotência do corpo. E isto se dá necessariamente através de um determinado regime de afecções, que fazem com que os corpos entrem em um circuito de afectos que os conduzem ao desamparo e à alegria.

A consideração de que as práticas corporais colocam para o corpo uma diversidade de possibilidades de composição - na medida em que, quando se joga um determinado esporte, como o futebol, por exemplo, somos incitados a compor relações com uma série de elementos e corpos -, também nos leva a conceber que o movimento só é possível quando os corpos entram em relação. A relação só pode acontecer a partir desses outros corpos e de situações que as práticas corporais colocam para eles e deles exigem uma determinada ação.

No entanto, há situações nas práticas corporais em que elas impõem uma determinada paralisia, um desmoronamento dos possíveis, na medida em que o corpo não sabe como responder, já que não encontra respostas em seus possíveis atuais. Podemos ver isso, por exemplo, quando, em um jogo de futebol, a defesa adversária impõe uma organização, um sistema de marcação a ponto de o ataque não conseguir encontrar ações de passar pela defesa. As afecções aí presentes fazem com que o corpo experimente o que chamamos de desamparo; ao menos momentaneamente, o corpo é despossuído de seus possíveis, encontrando-se num estado de impotência.

É esse estado de impotência que serve de precondição para que o corpo busque a produção de novos possíveis que não estavam presentes anteriormente. No exemplo do futebol, isso somente é possível se o corpo continuar a se esforçar para conseguir produzir movimentos que façam com que ele consiga passar pela defesa adversária. Aqui há necessariamente uma passagem do afecto do desamparo para a alegria, na medida em que o primeiro dispara a força afirmativa do segundo, fazendo com que o corpo continue a perseverar no movimento, na tentativa de ultrapassar a defesa. Neste exemplo, as afecções e os afectos presentes naquela situação, na medida em que o corpo busca sua capacidade de se movimentar, é essa própria capacidade que ativa o movimento.

Compreendemos, por isso, que as práticas corporais, nas condições aqui apresentadas, colocam uma questão de limite à impotência e à potência do corpo. Submete o corpo a situações que o afetam até o limite em que a impotência conduz a uma busca por um afecto afirmativo, que afirme sua própria potência a partir da transfiguração da impotência em potência.

Assim, há uma característica das práticas que nos coloca o problema dos limites: “[...] O limite não é algo que se pensa, mas que se enfrenta; e que só se pensa se se enfrenta [...]” (LAPOUJADE, 2015, p. 307). O limite, neste sentido é “[...] o ponto em que a impotência se torna nova potência [...]”. No âmbito das práticas corporais, o limite é quando a impotência de se movimentar se transforma em potência de movimento. Por isso, gostaríamos de insistir que a experiência das práticas corporais, enquanto limitação, tem como questão fundamental a própria experimentação de fazer com que a potência do corpo continue a ampliar.

No entanto, isso não quer dizer que se trate de um movimento desprovido de pensamento. Como aprendemos com Spinoza, o que é ação no corpo é também ação na mente. A mente, enquanto ideia das afecções do corpo, é estimulada a produzir mais ideias na proporção das afecções sofridas pelo corpo. No contexto das práticas corporais, as afecções que um jogo inscreve no corpo exige correlativamente da mente a produção de ideias acerca destas afecções.

No âmbito das práticas corporais, faz-se necessária, então, uma leitura de jogo que esteja plenamente conectada às ações do corpo. Assim é no surf, por exemplo: é necessária toda uma leitura do mar, das ondas, para conseguir o timing que possibilite ao surfista ampliar sua capacidade de movimento. É necessariamente quando o corpo se depara com o limite de sua (im)potência que a capacidade da mente de produzir pensamento é também ativada - por isso, para Deleuze, só se pensa forçado, na medida em que envolve a capacidade do corpo de ser afetado.

Movimentar-se é, então, estar no limite de ser afetado tão somente até o momento de extrair daí mais potência, permitindo ao “movimento continuar a movimentar-se”: que o jogar futebol não me impeça de jogar basquete, que o surfar não me impeça de dançar ou de experimentar uma ginástica, um Le parkour. Nadar, por que não? Jogar Rúgbi, sim! Praticar slackline, badminton, escalada, andar de skate e patins também! Não importa a forma, mas a intensidade, importam os afectos, as potências que cada prática corporal oportuniza.

À GUISA DE CONCLUSÃO: possibilidades para a Educação Física

A partir do reconhecimento de que as práticas corporais, em seu nível mais fundamental pertencem à ordem das afecções e dos afectos, e que elas próprias são um território privilegiado para a investigação da questão a respeito do “que pode o corpo em movimento?”, na medida em que põe o corpo diante do limite de sua (im)potência, consideramos que a EF como prática pedagógica que lida com as práticas corporais deve assumir, como uma atitude fundamental, a tarefa de criar as condições para que a potência dos corpos possa ser ampliada no contexto de tais práticas.

Não caberia à EF assumir o papel de “juiz” no que tange às formas legítimas de se movimentar, por exemplo. Nesta perspectiva, a questão principal para a EF seria a da seleção dos afectos, mas a consciência de que a participação nesse processo não acontece no sentido de impor quais são os verdadeiros afectos que elevam a potência do corpo. Apesar de se apostar em um circuito de afectos que transita entre o desamparo e a alegria, isto só serve para a EF não deixar os corpos esquecerem das perguntas: Quais os corpos em movimento que se compõem? Quais os afectos aí produzidos? Que práticas corporais podem ser o território para esses encontros afetivos? Quais encontros possibilitam a produção de alegrias consistentes?

Neste sentido, a EF, como uma prática pedagógica para a potência, deve constituir uma condição de possibilidade que garanta que os encontros entre os corpos nas diversas práticas corporais sejam o menos cruéis possível; que, mesmo em uma experiência de impotência, se possa guardar o mínimo de alegria que sirva para uma transmutação em potência. Em outras palavras, ela deve ser a possibilidade para a produção de novas condições de os corpos os afetarem e serem afetados, de modo que estes possuam a capacidade de aprender a se apresentar a outros corpos e a outras práticas corporais em relações de composição. Por isso, o traçar da cartografia dos afectos numa dada prática corporal é essencial para investigar “o que podem os corpos em movimento”. Ou seja, a intervenção pedagógica da EF auxiliaria os alunos a analisar, por meio das práticas corporais nas aulas de EF, os circuitos de afecções que produzem afectos em seus corpos, que diminuem ou aumentam sua potência.

Sabemos, no entanto, que, apesar de a questão da seleção dos afectos e do aumento da potência ser uma dimensão fundamental para pensar uma atitude ativa do corpo nos encontros produzidos nas práticas corporais, isso não basta para a prática pedagógica da EF, principalmente para sua intervenção no território escolar. Como bem nos lembra Bracht (1999), a EF, como prática pedagógica, necessita de uma dimensão ético-normativa, porém envolve um conhecimento que, ao mesmo tempo, é um saber que se traduz num realizar “corporal”, e um saber sobre esse realizar corporal, o que nos coloca em uma encruzilhada:

[...] a EF é levada a uma encruzilhada ou mesmo a um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racionalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimensão das experiências/vivências humanas passíveis de serem propiciadas também pelo movimentar-se (nas mais diferentes formas culturais) que ‘resiste às palavras’, ou, dito de outra forma, não é possível pedagogizá-las por via da sua descrição científica; fogem ao controle, à previsão (da ciência); são, de certa forma, únicas, singulares. [...] como tratar na EF essas experiências? Nos subordinar ao ‘desfrute lúdico’? Como construir uma prática pedagógica que, por definição, é uma intervenção racional/consciente sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, de maneira a contemplar essas dimensões do movimentar-se humano? (BRACHT, 1999, p. 59).

Gostaríamos de levantar aqui a hipótese de que esse paradoxo identificado por Bracht (1999) corresponde a uma possibilidade para a EF contribuir para o aumento ou a ampliação da potência dos corpos, através da análise dos regimes de afecções presentes numa determinada aula. Ou seja, a prática pedagógica da EF, ao buscar racionalizar o corpo e o movimento, não descaracterizaria a singularidade do corpo; ao contrário, seria condição de possibilidade para a criação de novos possíveis na medida em que o corpo entraria em contato com seu próprio limite. Tal condição, possibilitada pelo paradoxo apontado por Bracht (1999), é que mantém a prática pedagógica da EF “viva”, em movimento. Assim, a atividade epistemológica da área e sua prática pedagógica não deveriam tentar equacionar tal paradoxo ou tentar resolvê-lo. Ao contrário, a análise se centraria em explorar as possibilidades que ele abre tanto para a atividade epistemológica, como para a prática pedagógica.

Acerca disso, podemos sinalizar aqui uma possibilidade de exploração desse paradoxo. Em sua análise acerca do conhecimento, Spinoza (2013) distingue o conhecimento produzido pela consciência e o conhecimento produzido pela razão. No primeiro, o sujeito só percebe se a sua potência aumentou ou diminuiu, isto é, só percebe o afecto de alegria ou tristeza. Isso acontece porque, segundo o filósofo (2013), a consciência só percebe os efeitos produzidos pelos encontros entre os corpos, desconsiderando sua causa - neste tipo de conhecimento, o sujeito encontra-se na servidão, pois é incapaz de regular seu afectos. Já no conhecimento produzido pela razão, Spinoza (2013) nos mostra que o sujeito é capaz de compreender as relações de conveniência (que produzem alegria) e desconveniência (que produzem tristeza) entre os corpos. Tendo essa compreensão, o sujeito, através da razão, se esforça por organizar os encontros em função das conveniências e desconveniências percebidas.

Ora, no conhecimento racional, o sujeito se torna causa ativa de seus próprios afectos, na medida em que não somente é capaz de percebê-los, como tem conhecimento das relações que os produzem, podendo, então, intervir nos encontros, de modo a produzir afectos que aumentem sua potência. Se aqui a questão vai além percepção dos afectos, mas da compreensão de sua causa, trata-se de seus usos. Isto é, como, a partir do conhecimento e da produção dos afectos, podemos nos tornar livres? Neste sentido, a razão spinozeana busca nos afectos aquilo que é útil para o aumento da potência do corpo, entendendo essa potência como a aptidão de afetar e ser afetado. Por isso, a partir de uma concepção spinozeana, o conhecimento racional é o mais potente dos afectos, já que conhecer é ser afetado da melhor maneira possível. Em Spinoza (2013), um conhecimento racional dos afectos não diminui a potência do corpo; pelo contrário, possibilita ao sujeito compreender como pode afetar de uma melhor maneira, haja vista que afecto é a condição de todo conhecimento e de toda ação.

É a partir dessa relação entre razão e afecto que o paradoxo apontado por Bracht (1999) é uma condição a ser explorada, pois, diante disso, a tarefa pedagógica da EF seria criar um plano comum aos corpos em movimento para tornar possível a fabricação, ampliação e o compartilhamento da potência de produzir movimento/práticas corporais. Ora, isso só seria possível na medida em que, tratando-se da prática pedagógica da EF no âmbito escolar, sua função principal seria a de produzir sujeitos que tenham a percepção de praticar uma dada prática corporal amparados numa dimensão ético-política da produção dos afectos nas relações e encontros que compõem a aula.

Isto se coloca como um desafio ético-político para a prática pedagógica da Educação Física, na medida em que possibilita aos sujeitos compreenderem como a produção dos afectos no contexto das práticas corporais é condição de possibilidade para eles conhecerem como se constitui a relação entre seus corpos e como esse conhecimento é condição para a produção de relações melhores e mais potentes entre eles.

Disso decorre que a Educação Física, a partir de sua prática pedagógica, possibilitaria aos sujeitos aprender a entrar em relações de composição com o outro, com o novo, com uma nova prática corporal, por exemplo, a se compor com ela; portanto, a possibilidade de os sujeitos produzirem outros modos de vida, outros territórios existenciais. Isto é, os afectos produzidos a partir do encontro com essa prática pedagógica permitiriam aos sujeitos ampliar sua condição de existência (através do desamparo), no sentido de produzir outras condições (através da alegria) a partir desse aprendizado, produzindo, assim, autonomia. O que está em jogo aqui são questões e implicações necessariamente éticas, políticas e, acima de tudo, quid vitae (questão de vida).

Com isso, o reconhecimento da consideração de que as práticas corporais em seu nível mais fundamental são circuitos de afectos pode contribuir para a EF enriquecer sua prática pedagógica no sentido de se valer dos afectos produzidos nas práticas corporais presentes em sua intervenção, para a potência destes corpos não estar plenamente submetida aos códigos das aulas, mas que tais potências também possam fazer com que as aulas sejam a oportunidade para a produção de bons encontros. Aqui, o conhecimento racional se constitui fundamentalmente de um conhecimento afectivo, pois a razão se reveste de afecto e lhes mostra caminhos mais poderosos. Diante disso, os corpos e os afectos envolvidos nas práticas corporais não perderiam sua potência de criar novos possíveis. Destarte, se a racionalização de uma aula de EF pode possibilitar o aumento da potência dos corpos, nos termos que aqui defendemos, tais corpos e seus afectos seriam as condições de possibilidades para uma EF da ordem da potência.

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1A dissertação que deu origem a este artigo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

2Os autores declaram não haver conflito de interesses na realização desta pesquisa.

AGRADECIMENTOS Não se aplica.

FINANCIAMENTO A dissertação que deu origem a este artigo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 25 de Fevereiro de 2019; Aceito: 22 de Setembro de 2019

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CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Não se aplica

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses na realização desta pesquisa

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