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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.61 Florianópolis  2020  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e64993 

Artigo Original

Independência catalã, identidade e globalização no Fútbol Club Barcelona

Independencia catalana, identidad y globalización en el Fútbol Club Barcelona

Catalan independence, identity and globalization at the Fútbol Club Barcelona

Jonathan Rocha de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-3704-8169

André Mendes Capraro1 
http://orcid.org/0000-0003-3496-3131

1Universidade Federal do Paraná-UFPR, Departamento de Educação Física, Curitiba, Paraná, Brasil


RESUMO

A Catalunha enfrenta uma histórica crise política e econômica, acentuada nos últimos anos. O futebol local tangenciou esses desdobramentos que afetaram a dinâmica estrutural e a identidade dos clubes na região, especialmente, o FC Barcelona. Tencionando as abordagens históricas, políticas e o dualismo entre o global e o local, este estudo visou analisar o impacto da identidade catalã, independentismo catalão e a globalização no FC Barcelona. Para tanto, utilizou-se referencial bibliográfico, fontes históricas documentais e reportagens. Concluiu-se que a identidade do Clube é reconstruída continuamente, de acordo com as ações e posições de seus distintos grupos diretivos em relação à situação política e econômica local. Todavia, as questões esportivas e financeiras são o fio condutor nas tomadas de decisão do clube atualmente, em detrimento de sua representatividade social na região.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; FC Barcelona; Catalunha; Independência; Globalização

ABSTRACT

Catalonia faces a historic political and economic crisis, aggravated in recent years. Local football touched on these developments that affected the structural dynamics and identity of the clubs in the region, especially FC Barcelona. With a focus on historical, political and dualism between the global and the local, this study aimed to analyze the impact of Catalan identity, Catalan independence and globalization in FC Barcelona. For that, bibliographic references, historical documentary sources and reports were used. It was concluded that the identity of the Club is continually rebuilt, according to the actions and positions of its different governing groups in relation to the local political and economic situation. However, sporting and financial issues are the guiding principle in the club's decision-making today, to the detriment of its social representation in the region.

KEYWORDS: Identity; FC Barcelona; Catalonia; Independence; Globalization

RESUMEN

Cataluña enfrenta una histórica crisis política y económica, acentuada en los últimos años. El fútbol local tangenció esos desdoblamientos que afectaron la dinámica estructural y la identidad de los clubes en la región, especialmente el FC Barcelona. Teniendo en cuenta los enfoques históricos, políticos y el dualismo entre lo global y lo local, este estudio tuvo como objetivo analizar el impacto de la identidad catalana, independentismo catalán y la globalización en el FC Barcelona. Para ello, se utilizó referencial bibliográfico, fuentes históricas documentales, reportajes. Se concluyó que la identidad del Club es reconstruida continuamente, de acuerdo con las acciones y posiciones de sus distintos grupos directivos en relación a la situación política y económica local. Sin embargo, las cuestiones deportivas y financieras son el hilo conductor en las tomas de decisiones del club actualmente, en detrimento de su representatividad social en la región

PALABRAS-CLAVE: Identidad; FC Barcelona; Cataluña; Independencia; Globalización

INTRODUÇÃO

A Comunidade Autônoma da Catalunha possui seu próprio idioma (catalão), costumes particulares e representa a parte mais rica da Espanha com cerca de 21% do PIB espanhol (INSTITUT D’ESTADÍSTICA DE CATALUNYA, 2018). A região passou por períodos de intensas crises políticas que afetaram profundamente a sua identidade, especialmente no século passado, como a ditadura do general Miguel Primo de Rivera (1923-1930), a guerra civil (1936-1939) e a ditadura de Francisco Franco (1939-1975). Ambos os generais eram contra qualquer tipo de fragmentação da Espanha e a valorização de culturas que não fossem a castelhana (FIGOLS, 2016). Nestes períodos, a Generalitat - Parlamento Catalão - foi destituída e o uso público da bandeira e do idioma catalão foram proibidos pelo Estado espanhol, com poder centralizado, ainda, na capital, Madrid (ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

Com o fim do regime militar de Francisco Franco (franquismo), a democracia foi reestabelecida na Espanha, esmorecendo o ativismo político na Catalunha em suas primeiras décadas. No entanto, a situação conflituosa ressurgiu a partir de 2008, devido à forte crise econômica que atingiu toda a Espanha (SIMÓN, 2018), bem como os escândalos de corrupção governamental denunciados na mesma época. Neste contexto de tensões políticas, o futebol local tangenciou esses desdobramentos que afetaram não apenas a dinâmica estrutural, mas também as identidades de diversos clubes na Espanha, entre eles o (FC) Fútbol Club Barcelona (SANT’ANA, 2012; RIGO; TORRANO 2013).

O termo identidade apresenta uma pluralidade inter-relacionada de significados (territoriais, culturais, étnicos, simbólicos, etc.) e dimensões (individual ou coletiva) representativas e/ou de pertencimento (CALDERÓN, 2018). Arias (2002) aponta a identidade como uma construção social e dialética, passível de transformações constantes carregadas de historicidade. O autor sugere, ainda, que essa compreensão construtivista de identidade pode ser pautada por uma relação de interdependência com a cultura, ou seja, ambos os conceitos são polissêmicos e complementares (ARIAS, 2002).

A partir dessa lógica, o FC Barcelona, principal clube catalão, fortificou e associou sua identidade social1 ao Catalanismo (identidade regional da Catalunha2), tornando a ser considerado, histórica e exaustivamente, um representante da região (GARCIA, 2012; RIGO; TORRANO, 2013; BARCELONA, 2019). Nesse sentido, o clube passou a ser visto como um símbolo de resistência catalã e oposição ao governo central espanhol durante os períodos ditatoriais. Desde então, desenvolveu-se uma intensa rivalidade com o clube mais prestigiado da capital, o (CF) Club de Fútbol Real Madrid.

Em contrapartida, outros autores (ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014; SIMÓN, 2018) apresentam elementos que despertam um olhar mais crítico em relação a essa identidade social de “representante simbólico da Catalunha”, construída historicamente. Em primeiro lugar, os autores argumentam que o FC Barcelona não foi apenas vítima durante o franquismo, indicando algumas benesses inerentes às ações estatais ao longo do regime. Além disso, Simón (2018) afirma que tanto o clube catalão quanto o clube da capital tiveram êxito (esportivo) durante o franquismo. Para Rossi e Mendes Jr. (2014) o catalanismo é uma estratégia política e econômica, e que o clube cresceu esportiva e economicamente durante o franquismo.

Outro aspecto também deve ser destacado no processo de construção identitária multifacetada do clube, trata-se da globalização. Este fenômeno adentrou exponencialmente na gestão do clube, sobretudo, após o fim do regime ditatorial e o estabelecimento de uma democracia na Espanha. Deste modo, o clube evoluiu esportiva e financeiramente, tornando-se um clube “global” e não mais “local” (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2004). Para Carmen Rial (2009), os clubes-globais são aqueles que transcenderam as fronteiras territoriais da região na qual estão situados, tornando-se “[...] nódulos de fluxos econômicos, humanos, midiáticos e simbólicos globais”. Para a referida autora...

São clubes que tem torcedores espalhados pelo planeta, jogadores provenientes de diferentes lugares do mundo, que estão presentes na mídia em diferentes países, que concentram capital que circula globalmente, que atingem a imaginação de uma população planetária. (RIAL, 2009: 04).

Isto posto, sugere-se que a globalização propicie uma tensão na identidade regional de um clube-global. Rial (2009) alerta que os conceitos de futebol globalizado e clubes-globais, embora parecidos, não são sinônimos, pois os clubes-globais representam uma parcela, importante, mas não totalitária, do sistema futebolístico. O futebol globalizado, por sua vez, apresenta dinâmicas mais amplas - por exemplo, o fluxo de internacional de jogadores em países marginais do sistema futebolístico - e facilitadas pela flexibilização capitalista das relações de trabalho, bem como pelas interações específicas entre o local e o global (RIAL, 2009).

Segundo Goig (2006), a globalização é uma reconfiguração entre território e sua identidade (nacional ou regional), implicando em uma tensão entre o global e o local. Deste modo, a identidade regional do FC Barcelona sofrera um esvaecimento em seus sentidos e significados devido a globalização, enquanto o sistema futebolístico, especialmente no aspecto econômico, parece ter se adaptado aos meandros desse fenômeno. Para Pablo Alabarces (1998), as identidades nacionais (e as regionais, neste mesmo sentido) visam suprir o vazio causado pelas demandas do mundo globalizado e o futebol parece ser um segmento capaz de preencher essa lacuna de pertencimento. O esporte estabelece, muitas vezes, uma dicotomia entre “nós” e “eles”, elemento fundamental para materialização de uma identidade (ALABARCES, 1998).

Além disso, a divergência política se acentuou na região e diversos movimentos de independência da Catalunha se intensificaram, sobretudo, a partir da crise econômica espanhola em 2008. Por conta disso, alguns referendos de consulta popular foram realizados recentemente, o maior e mais notório - marcado pela retaliação do Estado espanhol - foi promovido no dia 1º de outubro de 2017, com a presença de 2,2 milhões de eleitores3 (LA VANGUARDIA, 2017). Neste contexto, Simón (2018) afirma que o futebol possui um papel político importante na construção de uma identidade regional. No entanto, o FC Barcelona pode ser considerado atualmente um clube-global, mas historicamente envolvido nas atividades políticas e sociais da Catalunha. Haja vista a dicotomia entre o global e o local, surge a possibilidade de pensar uma ruptura entre o clube catalão e o movimento de independência catalão. Deste modo, como o clube se posiciona em relação ao independentismo e quais os possíveis desdobramentos resultantes dessa posição? Tencionando as abordagens históricas, sociais, políticas e o dualismo entre o global e o local, esta pesquisa visou analisar os impactos da identidade catalã, independentismo catalão e a globalização no FC Barcelona.

METODOLOGIA

Este estudo caracteriza-se por adotar uma metodologia qualitativa, com viés descritivo e exploratório. Para Uwe Flick (2011), este tipo de pesquisa concentra-se em “[...] descobrir o novo e desenvolver teorias empiricamente fundamentadas” (FLICK, 2011). Segundo Creswell (2010), a pesquisa qualitativa é “fundamentalmente interpretativa” e exige, ainda, um levantamento de dados empíricos e documentos secundários complementares ao objeto de estudo. O pesquisador qualitativo pode utilizar diversas estratégias de investigação como um norteador para os procedimentos no estudo qualitativo (CRESWELL, 2010).

Para alcançar os objetivos propostos, este estudo utilizou-se de referencial bibliográfico e fontes históricas documentais correlatas à localidade do objeto. Realizou-se a busca por produções científicas correlatas ao tema no banco de dados “Scholar Google”, “Scielo” e o Portal de Periódicos da CAPES, utilizando como descritores (no idioma português e inglês): “identidade FC Barcelona”, “Independência Catalunha”, “globalização futebol”. Foram encontrados artigos e dissertações pertinentes à proposta. Estes foram lidos e analisados no estudo. Contudo, a leitura dessas produções limitou-se, ainda, aos periódicos disponíveis publicamente, excluindo as produções de periódicos privados. Além disso, o levantamento de dados coletou informações das mídias sociais locais, de institutos de pesquisa estatais, bem como de algumas reportagens dos veículos de comunicação online relevantes: La Vanguardia; El País; Mundo Deportivo; Sport; Marca; AS; Centro de Investigaciones Sociológicas; Centre d’Estudis d’Opinió; Institut d’Estadística de Catalunya e o site oficial do FC Barcelona.

Vale destacar, ainda, que um dos pesquisadores esteve presente durante algumas semanas no local de análise em maio de 2018. Assim sendo, essa breve experiência possibilitou maior proximidade com alguns agentes e fontes contempladas nesta pesquisa, auxiliando na interpretação dos dados coletados.

A pesquisa dividiu-se em cinco seções. A primeira aborda as questões geopolíticas e de identidade (regional) da Catalunha. Na sequência, estas questões foram relacionadas com o processo de construção de identidade social do FC Barcelona. Na terceira seção, analisou-se, a partir da perspectiva histórica, a conjuntura sociopolítica do clube catalão e da região na rivalidade com o Real Madrid. Em seguida, investigou-se os desdobramentos do referendo de 2017 acerca do independentismo e a relação com o clube. Finalizou-se a discussão pautando o fenômeno da globalização no processo de construção identitária do clube.

Catalunha: identidade e independentismo

A sociedade catalã manifesta um intenso sentimento de orgulho e valorização de sua cultura, patrimônio, economia e história. Observa-se que a forte identificação dos catalães com a região está intimamente ligada a esses aspectos, bem como ao antagonismo entre o catalanismo e o centralismo espanhol. Esse contexto favoreceu o surgimento de novos movimentos e associações civis como a Assemblea Nacional Catalana (ANC) que, juntamente com elite social e com alguns partidos políticos, passaram a articular eventos, plebiscitos e campanhas em prol de mais autonomia e/ou independência da Catalunha (CRAMERI, 2015).

Neste sentido, associações civis, como a ANC, organizaram um movimento de apoio ao novo Estatuto de Autonomia da Catalunha (aprovado em 2006) que atribuía maior autoridade política a região, levando cerca de um milhão de pessoas as ruas de Barcelona em 2010. E, desde 2012, esse movimento é organizado no dia 11 de setembro - dia nacional da Catalunha - e tem levado um número similar de pessoas a clamar pela independência nas ruas de algumas cidades catalãs (CRAMERI, 2015). No ano de 2015, a frente independentista torna-se maioria na Generalitat, iniciando as novas articulações para um processo de independência catalã, como a polêmico referendo acerca da independência em 1º de outubro de 2017. No entanto, será dedicada uma seção específica para este tema adiante.

Como destacado, os referidos movimentos civis entraram em disputas políticas cada vez mais ostensivas contra o Estado espanhol. Contudo, compreender os anseios políticos da sociedade catalã é uma tarefa complexa. Cabe salientar que o posicionamento político dos catalães é divergente acerca do independentismo. De acordo com alguns estudos (CIS, 2018; CEO, 2018), mais da metade da população catalã não apoia o movimento de independência e defende a permanência da Catalunha no território espanhol.

Poucos meses após o conturbado referendo de outubro de 2017, conhecido como elecciones autonómicas, o Centro de Investigaciones Sociológicas realizou uma pesquisa acerca da opinião pública sobre o cenário político pós-eleitoral. O estudo aplicou um questionário com 60 perguntas em 2450 colaboradores locais. Dentre as principais informações, destaca-se que menos da metade (36%) dos colaboradores locais desejavam um Estado espanhol que reconhecesse a possibilidade das comunidades autônomas se converterem em Estados independentes, e cerca de 41% considera-se identificado com o catalanismo. A pesquisa também aponta que 62% da amostra se identificava tanto com o catalanismo quanto com o nacionalismo espanhol (CIS, 2018).

Neste mesmo período, o Centre d’Estudis d’Opinió (CEO) também realizou um estudo nos mesmos padrões - a exceção do número de entrevistados (1338 colaboradores) - e com a mesma finalidade. A pesquisa apresentou resultados não muito distantes, apontando que 48% da amostra real desejava um Estado catalão independente. A disparidade pode ser observada no quesito de identificação dupla dos entrevistados com Catalunha e com a Espanha chegando a apenas 28% (CEO, 2017).

Cabe ressaltar que o primeiro centro de pesquisa está localizado em Madrid e o segundo está situado na cidade de Barcelona, na Catalunha. Ambos os trabalhos sugerem que um pouco menos da metade da população catalã é independentista. Assim sendo, não é possível afirmar que os movimentos civis representem a opinião (em sua totalidade) dos catalães acerca do independentismo.

É possível considerar, ainda, uma dupla-identidade (nacional e regional) dos catalães em relação à Catalunha e a Espanha, embora haja ressalva de uma diferença percentual significativa entre as pesquisas destacadas. No âmbito futebolístico, os torcedores catalães podem torcer tanto para os clubes locais quanto para o selecionado espanhol - campeão mundial (2010) e bicampeão europeu (2008-2012). Juan Antonio Simón corrobora com a complexa dualidade, ao comentar que...

Nos últimos anos, o apoio a um Estado independente aumentou em certos setores da sociedade catalã. Ao mesmo tempo, as vitórias da seleção espanhola entre 2008 e 2012 mostraram um fenômeno interessante que afeta a diversidade de identidades que hoje coexistem na sociedade catalã. No dia 10 de julho de 2010, cerca de 425.000 pessoas tomaram as ruas de Barcelona para protestar contra decisão do Tribunal Constitucional que endossou a inclusão do termo nação no Preâmbulo do novo Estatuto de Autonomia, mas que carecia de efetividade jurídica interpretativa. Um dia depois, a Câmara Municipal de Barcelona mencionou que 75.000 pessoas tinham testemunhado a Final da Copa do Mundo na África do Sul [em que a Espanha jogou e sagrou-se campeã] através da tela gigante que havia sido instalada no centro da cidade. [Tradução nossa] (SIMÓN, 2018: 1241).

O FC Barcelona em meio à crise política catalã

O FC Barcelona, fundado em 1899 pelo suíço Hans Gamper4 - que mais tarde mudaria o seu nome para o idioma catalão, chamando-se Joan Gamper -, passou por diversas situações que fomentaram a construção de sua identidade social. Os regimes militares e as demais tensões sociais tangenciaram a dinâmica estrutural e essa identidade social do clube em alguns momentos de sua centenária existência. Em decorrência da intenção dos regimes ditatoriais de extinguir a cultura catalã (e qualquer outra que não fosse castelhana), o clube sofreu alguns males. A mote de exemplo, houve um bombardeio em sua sede em 19385 - a aviação franquista lançou uma bomba na cidade - atingindo parte da sede do clube que desmoronou; seu nome oficial foi alterado para o idioma espanhol, bem como as referências à bandeira da Catalunha retiradas do escudo; o clube teve decretado pelo General Primo de Rivera o encerramento temporário das suas atividades (que durou 6 meses)6; e o êxodo de jogadores do elenco durante uma excursão ao México - foram algumas consequências, diretas e indiretas, destes períodos. Durante a Guerra civil em 1936, o clube teve ainda seu presidente Josep Sunyol - Deputado republicano e aliado as lideranças catalãs anti-Franco - assassinado, devido um enfrentamento com as tropas franquistas (ROSSI; MENDES JR, 2014; MONTALBAN, 2018).

Não obstante, o clube apoiou oficialmente algumas causas sociais da Catalunha ao longo de sua história. Sob a presidência de Joan Gamper, o clube apoiou à criação do Comitê Olímpico Catalão, em 1914, e aderiu à campanha promovida pelos ayuntamientos de Cataluña em 1918, que reivindicavam um Estatuto de Autonomia perante o governo espanhol (SANT’ANA, 2012; RIGO; TORRANO, 2013). Segundo o site oficial, o FC Barcelona estava comprometido com a reforma social, política e cultural iniciada pelo governo republicano catalão. O informativo oficial do clube, em outubro de 1932, esclarecia a posição do clube: “A popularidade do nosso clube inclui, indiscutivelmente, elementos que não estão relacionados ao esporte”. A participação em atos políticos e culturais fazia parte desse comprometimento. Além disso, a Catalunha recebeu um grande número de imigrantes e foi nesse contexto que o “Barça” se tornou um importante mecanismo de integração na sociedade catalã (BARCELONA, 2019). Tais fatos, entre outros, foram fundamentais para o clube fortalecer e consolidar seu catalanismo.

Nestes cenários que favoreciam a construção de sua identidade regional, César Garcia (2012) afirma que o catalanismo do FC Barcelona é fruto de um processo de construção e administração do relacionamento do clube com seus torcedores locais, sobretudo os independentistas. Embora o independentismo não seja unanimidade na Catalunha, o autor especula que um posicionamento político do FC Barcelona favorável à independência da região, não diminuiria o processo de construção do relacionamento com seus torcedores na cidade (GARCIA, 2012).

No final da década de 1960, o ex-presidente Narcís de Carrera criou o lema “Més que um club - “Mais que um clube” - buscando expressar esse sentimento social de orgulho e valorização cultural dos catalães, sugerindo que o clube transcendia a esfera esportiva e possui um compromisso sociocultural (RIGO; TORRANO, 2013). Pouco tempo depois, a frase seria utilizada oficialmente, como slogan, na plataforma de campanha do candidato (e vencedor) a reeleição, Augusto Montal i Costa, em 1973. Para Figols (2016), a frase representava, em um primeiro momento, a construção de um histórico posicionamento (catalanista) político do clube “[...] expressando um sentimento comum do clube e de seus torcedores” (FIGOLS, 2016) e ainda é utilizada pelo clube, embora sem o significado identitário de outrora.

De fato, era nos jogos do clube em que se falava catalão (especialmente quando proibido) preservando a cultura da região, bem como seu hino atual, criado em 1974, busca expressar o catalanismo em sua composição (FIGOLS, 2016). Nos últimos anos, em todas as partidas no Camp Nou, grande parte dos torcedores catalães grita aos 17 minutos e 14 segundos de jogo - In-Indè-Independència - pela independência da Catalunha. Para alguns autores, este fato ocorre porque no ano de 1714 a região da Catalunha deixou de ser um território livre, sendo anexada definitivamente à Espanha, marcando o fim da Guerra da Sucessão Espanhola (ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

Frequentemente, o FC Barcelona oferece seu estádio para eventos favoráveis ao catalanismo, em alguns casos sob o viés independentista7. O clube azul/grená também apresenta(ou) e lança(ou) materiais alusivos a bandeira da Catalunha, por exemplo: camisas de jogo, pequenas bandeiras individuais e a tarja de capitão com as cores e o formato da Senyera - bandeira da Catalunha - (GARCIA, 2012). Além disso, o clube elabora mosaicos nestes mesmos moldes para serem exibidos em jogos importantes, principalmente contra o CF Real Madrid nos últimos anos, seu maior rival (SIMÓN, 2018).

Apesar da pertinência dos fatos que associam o clube blaugrana ao catalanismo, é possível elencar alguns aspectos que apontam certo distanciamento entre o FC Barcelona e a identidade catalã, principalmente, durante o governo franquista. Não apenas na esfera do antagonismo ao Estado vivia o FC Barcelona. O clube foi diversas vezes beneficiado pelo regime militar no prisma esportivo, financeiro e jurídico. Deste modo, engendra-se uma tensão entre a concepção tradicional que apontara o FC Barcelona como uma instituição alvejada apenas negativamente pelo governo Franco. Rossi e Mendes Jr. (2014) apontam uma fidelidade institucional entre o FC Barcelona e o regime militar do general Franco, haja vista que o clube “[...] cresceu durante o franquismo, a ponto de equiparar-se ao CF Real Madrid como grande representante do futebol espanhol” (ROSSI; MENDES JR., 2014: 179). Assim, a intenção do governo era despolitizar o clube e consolidá-lo como uma potência local.

De fato, alguns exemplos... O primeiro deles é o caso “Kubala”. Em 1950, o CF Real Madrid e o FC Barcelona disputaram a contratação do húngaro Ledislao Kubala, mas com desfecho favorável ao clube catalão após contar com articulações de agentes ligados ao regime franquista que auxiliaram na liberação do jogador, impedido pela FIFA de atuar por dois anos. Dois anos mais tarde os clubes disputariam a contratação de outro atacante, Alfredo Di Stefano novamente com intervenção estatal, só que desta vez com desfecho em favor do clube da capital (SANT’ANA, 2002; ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

Outro ponto a ser destacado foi a intervenção direta do general Franco no litígio judicial acerca do terreno de antigo estádio do clube blaugrana - Les Corts - permitindo sua venda em um momento em que o clube precisava arrecadar dinheiro para custear as obras superfaturadas de seu novo estádio, o Camp Nou, em 1965 (SANT’ANA, 2012; FIGOLS, 2016). Além disso, o clube comenta em seu site oficial que rapidamente passara a ser visto como “[...] ícone do esporte espanhol sob o novo regime [Franco]” (BARCELONA, 2019).

Durante os primeiros 15 anos de franquismo, o clube conquistou diversos títulos importantes8, sendo o maior campeão nacional do período com cinco títulos da liga e quatro títulos da Copa Generalíssimo9. Por outro lado, o CF Real Madrid amargurou quase 20 anos [1933-1953] sem títulos da liga nacional (SANT’ANA, 2002). Além disso, o número de sócios do clube apresentou um crescimento vertiginoso no início da Era Franco. Somente nos três primeiros anos do regime, o clube quadruplicou o número de associados, saltando de 3.486 sócios em 1939 para 15.400 em 1942 (ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

É possível observar, ainda, um novo distanciamento do clube em relação ao catalanismo, quando, aos poucos, voltara seus esforços para o cenário internacional, consolidando-se como um clube-global. De acordo com Giulianotti e Robertson (2004), a política de globalização no futebol está ligada, também, ao aprimoramento de um regime democrático. Este fato pode justificar a inclinação do FC Barcelona à globalização no período democrático espanhol estabelecido no pós-franquismo.

El clásico: FC Barcelona versus CF Real Madrid

Antes de avançar ao impacto da globalização no posicionamento sociopolítico do clube catalão, vale salientar algumas peculiaridades acerca do maior antagonismo entre clubes de futebol na Espanha, essencialmente no que tange a identidade. Arlei Damo (1998) comenta em sua dissertação que o futebol é capaz de produzir identidades sociais e situações de conflito podem se materializar em torno de questões envolvendo identidade e prestígio social, sendo resolvidos por meio do esporte. Esta perspectiva pode ser observada no FC Barcelona em diversos aspectos, por exemplo, sua rivalidade com o CF Real Madrid. Para tanto, ambos os clubes buscam a supremacia esportiva, também simbolizando as conquistas políticas e sociais de suas respectivas regiões, associando-as as suas construções identitárias (CALDERÓN, 2018).

A rivalidade entre FC Barcelona, maior clube da Catalunha, e CF Real Madrid, maior clube da capital, possui um intenso caráter histórico e político. As partidas disputadas entre as equipes são conhecidas como El Clásico e assumiram uma posição que transcende a esfera esportiva, acirrando ainda mais seus confrontos (SANT’ANA, 2012). É possível que essa rivalidade tenha se propulsionado - além dos êxitos esportivos alcançados pelos dois clubes10, mesmo durante o regime militar (SIMÓN, 2018) - pelas dubitáveis concepções que apontam para ambos os clubes como simbologias ideológicas opositoras de suas respectivas regiões. Cabe ressaltar que o El Clásico é o jogo de futebol que mais se repetiu no futebol espanhol (LA LIGA, 2019).

Acerca das rivalidades clubísticas, Arlei Damo (1998) sugere outra espécie de representação que pode ser observada no FC Barcelona, a identidade clubística. Abordando aspectos do torcer futebolístico, o referido autor sugere que essa identificação ocorre, dentre algumas possibilidades, a partir daquilo que o clube não se identifica ou que o diferencia, que representa oposição, “o outro”, ou seja, o Real Madrid CF (DAMO, 1998). O clube da capital espanhola se consolidou como maior adversário do FC Barcelona, por representar antagonismo em aspectos políticos, étnicos e esportivos. Por exemplo: Madrid, a cor branca e o castelhano como símbolos do Real Madrid CF, como elementos de contraposição aos torcedores do clube blaugrana mais identificados com o catalanismo.

O antagonismo entre barcelonistas e madridistas ainda pode ser observado atualmente, sobretudo no prisma esportivo, embora em menores níveis de tensão que nos períodos ditatoriais. Segundo Goig (2006), na Espanha, mesmo após os regimes militares, é possível transparecer a superioridade local no terreno das suas disputas simbólicas por meio do futebol, como uma autoafirmação de sua identidade social. Para um torcedor blaugrana identificado com o independentismo, uma vitória do FC Barcelona sobre o CF Real Madrid, pode simbolizar uma vitória sobre o centralismo espanhol.

Não obstante, os veículos de comunicação exercem um importante papel na constituição das rivalidades esportivas. Segundo Simón (2018) a imprensa espanhola possui um papel de difusora de identidades sociais (no sentido simbólico) dessa rivalidade. O autor explica que o futebol foi (e ainda é) utilizado como potencializador de discursos identitários na Espanha, especialmente pelos meios de comunicação. Observa-se essa difusão de identidades sociais opositoras nos principais veículos de comunicação esportivos: Mundo deportivo e Sport (sediados em Barcelona) costumam exaltar os feitos do clube catalão e desdenhar das conquistas de seu rival; já os jornais Marca e AS (sediados em Madrid) fazem o mesmo com o clube da capital espanhola, subestimando o seu rival da Catalunha. Ao retratar um determinado fato envolvendo um dos clubes ou os dois, estes meios de comunicação, frequentemente, adotam posturas dicotômicas em suas matérias11.

Vale salientar que as partidas do El Clásico movimentam cifras milionárias geradas, sobretudo, devido ao número de espectadores e os ganhos dos direitos de transmissão televisiva. Em um levantamento elaborado anualmente pela empresa especializada no ramo de pesquisas patrimoniais Deloitte, o FC Barcelona e o CF Real Madrid ocupam as duas primeiras posições no ranking internacional de clubes de 2019, avaliados em 690 e 750 milhões, respectivamente (DELOITTE, 2019). Diante disso, aliado à história esportiva e social, o aspecto econômico potencializa ainda mais a competitividade e a rivalidade entre os clubes.

“Més que um club” ou “Mès que catalunya”? o FC Barcelona entre o global e o local

Aos poucos, o clube voltara a sua atenção ao cenário internacional, investindo gradativamente no mercado global. É difícil afirmar um marco inicial dessa abertura, mas compreende-se que este processo tenha se intensificado durante o período democrático espanhol, estabelecido com o enfraquecimento e o fim do regime franquista. De fato, Giulianotti e Robertson (2004) afirmam que a política de globalização no futebol está ligada, também, ao aprimoramento de um regime democrático.

Neste período, surgiram os primeiros grandes investimentos na contratação de grandes jogadores estrangeiros, como a do holandês Johan Cruyff em 1973, considerado na época o melhor jogador em atividade no mundo (RIGO; TORRANO, 2013), tornando o FC Barcelona uma potência esportiva (GOIG, 2006) e econômica (GARCIA, 2012) globalmente. Segundo Goig (2006), o processo de globalização é uma ramificação de dimensões (círculos sociais, redes de comunicação, relações de mercado, modos de vida etc.) que transcende as fronteiras territoriais capaz de promover novas configurações territoriais de identidade. O caso do FC Barcelona parece ser bem típico.

Assim, o FC Barcelona caracteriza-se como uma corporação transnacional aliada a histórica identificação regional com interdependências particulares e universais que, de acordo com Giulianotti e Robertson (2004), podem ser explicadas pelo conceito de glocalization - global e local amalgamados. Para os autores, o glocalization é um processo “(...) pelo qual as culturas locais se adaptam e redefinem qualquer produto cultural global para atender às suas necessidades, crenças e costumes particulares”. Deste modo, é possível preservar partes de uma identidade local à medida que a marca se expande em um contexto global, ou seja, por fins esportivos e econômicos, o FC Barcelona buscou expandir sua marca preservando sua identidade social com o catalanismo, embora o êxito do clube nesta questão seja controverso.

Durante o desenvolvimento do processo de globalização do futebol e o alto investimento na contratação de jogadores e técnicos estrangeiros, o clube passou a ser criticado pela imprensa e pelos jogadores espanhóis/catalães, pois, desse modo, investiria cada vez menos nas canteras - categorias de base do clube - e na contratação de jogadores locais (FIGOLS, 2016).

Diante da lógica de um futebol “glocal” de Giulianotti e Robertson (2004), o surgimento de jogadores locais representa a preservação de uma cultura, pois eles passam a ser vistos como o “coração da equipe”. Em casos de identificação local (no já mencionado sentido regional), no caso do FC Barcelona, são estes jogadores que assumem a liderança e a braçadeira de capitão da equipe. Por exemplo, nas duas últimas décadas, o FC Barcelona teve como capitães: Pep Guardiola, Luís Henrique, Carles Puyol, Xavi Hernandéz. Todos catalães. Para Rigo e Torrano (2013), a escolha por jogadores locais como capitães serve para suprir uma demanda identitária (cultural) de um clube transnacional, como pode ser o caso do FC Barcelona. Curiosamente, os últimos dois capitães da equipe não são catalães e após a saída de Andrés Iniesta (34 anos) em maio de 2018, a braçadeira de capitão passou a tutela do argentino Lionel Messi. Cabe ressaltar que Messi está no clube desde os 13 anos e Iniesta chegou ao FC Barcelona com 12 anos de idade.

Rigo e Torrano (2013) afirmam que o clube ainda busca preservar de outras formas sua identificação com a Catalunha. Acredita-se que esta espécie de resgate ou (re)aproximação com a identidade regional (catalã), possa ser constatada nos diversos materiais alusivos à Catalunha que o clube lança, como bandeiras individuais distribuídas nos jogos do time, camisas de jogo e a tarja de capitão, tudo com as cores e o formato da Senyera (GARCIA, 2012).

A globalização potencializa o alcance de clubes transnacionais, como o FC Barcelona, a um segmento de simpatizantes (consumidores) muito além de sua localidade. Este fato pode causar um distanciamento com seus torcedores locais. Vale ressaltar que o clube catalão buscou exaltar a sua cultura, sobretudo, durante a gestão de Joan Laporta (2003-2010) que apoiava explicitamente a independência da Catalunha (GARCIA, 2012). Para Simón (2018) “[...] a chegada de Joan Laporta a presidência do FC Barcelona em 2003, marcou o início de um processo de recatalanização do clube, estabelecendo um flerte paralelo entre clube e Catalunha” (SIMÓN, 2018: 1242).

Por outro lado, há alguns anos Giulianotti e Robertson (2004) já apontavam que países como EUA, Japão e China, ofereciam a chance dos grandes clubes (corporações transnacionais) de realocar as suas identidades globais e locais, desterritorializando-se de suas “casas”, ou seja, constituindo um novo território simbólico ampliado e difundido globalmente para além de seu espaço de origem/região, com o objetivo de atrair consumidores de outros mercados e nacionalidades. Essa dualidade entre o global e o local pode ser observada em alguns gestores do clube catalão, cujas respectivas ações foram influenciadas pela perspectiva de cada gestão.

O FC Barcelona fora comandado por dirigentes adeptos aos posicionamentos políticos distintos. Alguns simpáticos a Franco e ao Partido Popular, como José Luis Nuñez (1978-2000) e Joan Gaspart (2000-2003) - empresários que impulsionaram o processo de globalização no clube; outros, como Joan Gamper (1908-1909; 1910-1913; 1917-1919; 1921-1923 e 1924-25), favoráveis à valorização da cultura catalã por meio de maior autonomia da região; e os mais radicais, apoiadores do movimento de independência catalão, a exemplo: Josep Sunyol (1935-1936), Joan Laporta (2003-2010) - ex-membro do partido Solidaritat per la Independència (GARCIA, 2012; ROSSI; MENDES JR, 2014; BARCELONA, 2019). Atualmente (2019), o presidente Josep Maria Bartomeu apresenta um comportamento neutro politicamente e ativo economicamente, o que reflete diretamente na imagem politizada do clube. Cada uma dessas diretorias apresentava uma dinâmica de gestão particular no tangente das questões políticas, sociais e econômicas, exercendo influência direta na construção histórica da identidade do clube.

Referendo do dia 1º de outubro de 2017

No ano de 2015, a frente independentista tornou-se maioria na Generalitat12, iniciando, paulatinamente, novas articulações para um processo de independência da Catalunha, como a organização de um referendo acerca da independência marcado para 1º de outubro de 2017. No entanto, alguns dias antes, o governo espanhol declarou o referendo como ilegal, e deslocou um grande contingente policial para evitar que o evento fosse realizado, já que a Mossos d'esquadra - Polícia autônoma da Catalunha - havido anunciado que não iria atuar.

O evento acabou marcado pela forte repressão policial que fechou colegiados e deixou 893 feridos, sendo quatro hospitalizados (LA VANGUARDIA, 2017b). Vale destacar que, segundo o jornal espanhol El País, o resultado do referendo foi de 90% dos votos a favor da independência, embora menos da metade (42%) dos eleitores tenham participado (EL PAÍS, 2017).

Neste recente ambiente de crise econômica, política e de valores identitários, o FC Barcelona tinha uma partida pelo campeonato espanhol marcada para a mesma data do referendo. Os rumores eram de que o clube não entraria em campo e solicitaria o adiamento da partida. Contudo, o clube entrou em campo com portões fechados contra o Unión Deportiva Las Palmas, que estampava a bandeira da Espanha em seu uniforme, especialmente confeccionado para a ocasião. Temendo a perda de seis pontos na liga nacional, alguns dirigentes admitiram que “uma possível punição esportiva pesou mais que o compromisso social do clube”, tal posicionamento foi duramente criticado pela imprensa catalã e por seus fãs locais (LA VANGUARDIA, 2017c).

Nesta ocasião, algumas personalidades futebolísticas manifestaram posturas distintas politicamente. Se por um lado, o treinador Josep Guardiola (atualmente no Manchester City, da Inglaterra) manifestou explicitamente seu desejo por uma Catalunha independente, por outro, o famoso zagueiro multicampeão do clube, Gerard Piqué, adota uma postura cautelosa ao lidar com esta questão, que pode ser explicada pelo fato de que o atleta não queira comprometer a sua carreira como jogador, receando possíveis punições no âmbito esportivo. Não obstante, o processo de construção de relacionamento com seus torcedores na cidade e no resto da Espanha não se alterou (SIMÓN, 2018). No entanto, a postura adotada pelo clube durante esse episódio deixa clara a importância dada a outros aspectos (econômicos e esportivos) que não as causas sociais catalãs, desvelando um distanciamento de seu catalanismo. De fato, a situação econômica e esportiva do clube seria prejudicada em caso de independência da Catalunha. Segundo reportagem do jornal El País, o clube seria excluído da liga nacional da Espanha e perderia seu principal jogador, Lionel Messi, devido a uma suposta cláusula automática de rescisão contratual13 em caso de independência da região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção de identidade no FC Barcelona passou (e ainda passa) por uma série de transformações contínuas nas esferas sociais, políticas, econômicas e esportivas. Assim sendo, a sociedade catalã manifesta grande divergência política quanto ao apoio ao movimento de independência da região, pois pouco mais da metade da população não concorda com a separação da região. Salienta-se que essa divergência política interna em Barcelona impacta cada vez menos no principal clube da cidade.

De fato, é inegável que o clube catalão possui vínculos com a cultura e as causas da Catalunha. Cabe ressaltar que o clube não foi um pleno representante dos interesses catalães em determinados momentos de sua história, sobretudo, durante o regime militar franquista, que o prejudicou em alguns aspectos, mas lhe proporcionou benesses em outros. No entanto, o clube construiu a imagem de uma instituição catalã perseguida pelo governo que consolidou uma identidade catalã para si e um antagonismo ao governo central madrilenho, potencializando a sua rivalidade com o CF Real Madrid.

Observa-se, ainda, que estudos apontam para uma dupla-identidade entre os adeptos do catalanismo, boa parte torcedores blaugranas. Uma parcela importante dos torcedores catalães pode apresentar simpatia tanto pelo clube quanto pela seleção espanhola - sobretudo por suas conquistas recentes. Salienta-se que os centros de pesquisas de Barcelona e de Madrid apresentam resultados divergentes nos estudos tratados, corroborando com as disputas políticas, socias e identitárias entre as regiões.

O futebol globalizado é outro aspecto que também manifesta relevância na construção da identidade social do FC Barcelona. De acordo com o conceito de uma relação entre o global e o local (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2004), os interesses do clube passaram a transcender a esfera local, pois este passou a se difundir mundialmente, conquistando torcedores no mundo todo, tornando-se um clube-global. Em vista disso, é possível afirmar um abrupto distanciamento do clube em relação ao catalanismo, pois hoje o FC Barcelona está mais enquadrado em uma identidade global do que regional (no sentido territorial desse conceito). Destaca-se que a gestão de Joan Laporta, um independentista ligado a política local, buscou realizar diversas ações para (re)aproximar a identidade social do clube com a identidade regional da Catalunha durante seus dois mandatos entre 2003 e 2010.

Podem ser observados também alguns distanciamentos e estes sugerem uma crise de identidade no clube, ou seja, uma ruptura entre o catalanismo e sua identidade social. No passado essa crise era mais tímida e implícita do que nos tempos atuais, com acentuação na globalização. Vale destacar que essa ruptura, presente na própria sociedade catalã, é observada, sobretudo, nas ações do clube, que priorizam as esferas econômicas e esportivas sem se envolver nas causas sociais da Catalunha como fizera no passado.

Portanto, conclui-se que o posicionamento político do clube, de modo geral, vigore ambíguo. O FC Barcelona foi presidido por dirigentes de diversas frentes políticas, algumas convergentes e outras opostas ao independentismo. Nesse sentido, alguns eram simpáticos a Franco e à unificação espanhola, outros eram favoráveis à valorização da cultura catalã por meio de maior autonomia da região, e ainda, os mais radicais, apoiadores do movimento de independência catalão. A priori, a atual direção do clube catalão não apresenta apoio ao movimento de independência da Catalunha, sobretudo por sua postura de neutralidade durante o referendo de consulta popular em 2017.

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1Optou-se por tratar, majoritariamente, as identidades no sentido social, pois este, de modo geral, contempla aspectos simbólicos e culturais de representação. “As identidades sociais são o resultado da identificação de uma pluralidade e diversidade de indivíduos com um coletivo social que os unifica através da mediação de distintos símbolos e rituais que ao serem compartilhados geram um forte sentido de pertencimento” (ARIAS, 2002: 110).

2A identidade regional apresenta três categorias: cognitiva, afetiva e instrumental. A cognitiva corresponde ao processo de conscientização das pessoas acerca da existência da região, de seus limites e de suas diferenças culturais, históricas ou econômicas em relação a outras regiões. A afetiva corresponde às necessidades emocionais das pessoas em relação à região. A instrumental refere-se à disposição de seus habitantes para se mobilizar em prol do alcance de objetivos sociais. ([xref ref-type="bibr" rid="r19"]KEATING, 1998[/xref]).

3De acordo com o [xref ref-type="bibr" rid="r18"]Institut d’Estadística de Catalunya (2018[/xref]b), a Catalunha possuía cerca de 7,5 milhões de habitantes na época.

4Na época, “Joan Gamper” teve sua filiação ao Català FC (extinto em 1920) rejeitada, pois o clube permitia apenas catalães em seu quadro social. Então, no dia seguinte, o suíço colocou um anúncio no jornal para a criação de um novo clube e junto de um grupo de ingleses e apenas dois catalães, fundou o Fútbol Club Barcelona (ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

5Por conta disso, o estádio “Les Corts” só foi reaberto no ano seguinte em uma festa realizada em 29 de junho de 1939 (BARCELONA, 2019).

6Por conta do “pito” - vaia [grifo nosso] - ao hino da marcha antes do início da partida entre FC Barcelona e o Club Esportiu Júpiter, em 1925, Primo de Rivera decidiu fechar o clube, multar os dirigentes e exilar Joan Gamper e sua familía (RIGO; TORRANO, 2013; ROSSI; MENDES JÚNIOR, 2014).

7Segundo o jornal [xref ref-type="bibr" rid="r24"]La Vanguardia (2010[/xref]), junto com outros diretores do clube, Joan Laporta (presidente na época) auxiliou a coordenação de um referendo sobre a independência em 2010, oferecendo o Camp Nou como local de votação.

8Na temporada 1951-1952 o clube conquistou todos os campeonatos que disputou - la Lliga; la Copa; la Copa Llatina; la Copa Eva Duarte e o troféu Martini Rossi - ficando conhecido como “Barça de les cinc copes” (MONTALBÁN, 2018)

9Antigo nome da atual “Copa do Rei” que homenageava o General Francisco Franco.

10Os clubes lideram o ranking de europeu de clubes, sendo os únicos campeões da UEFA Champions League - maior campeonato europeu de clubes. O CF Real Madrid possui 13 títulos e o FC Barcelona cinco ([xref ref-type="bibr" rid="r31"]UEFA, 2019[/xref]) e, também, são os maiores campeões da Liga espanhola - CF Real Madrid conquistou 33 vezes o campeonato e o FC Barcelona venceu em 26 oportunidades - (LA LIGA, 2019).

11A exemplo disso, após uma série de derrotas do CF Real Madrid, os jornais catalães estampam uma série de críticas negativas ao desempenho do clube, enquanto as mídias da capital retratam em sua capa a contratação de um novo jogador. Ver mais em: https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/imprensa-da-catalunha-estampa-crise-do-real-o-pior-madrid-do-seculo-xxi.ghtml. Acesso em: 30 abr. 2019.

12Ver mais em: http://www.catalunyalliure.cat/2015/07/majoria-absoluta-amb-77-escons-independentistes-alparlament-de-catalunya/. Acesso em: 30 abr. 2019.

13Ver mais em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/05/deportes/1515138247_032667.html. Acesso em: 14 abr. 2019.

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 03 de Maio de 2019; Aceito: 04 de Setembro de 2019

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