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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.61 Florianópolis  2020  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e65391 

Artigo Original

O papel do professor de Educação Física na atuação com pessoas com transtorno do espectro autista em um programa de esporte e lazer de Florianópolis (SC)

The role of the Physical Education professional in acting with people with autistic spectrum disorder at a sports and leisure program in Florianópolis (SC)

El papel del profesional de Educación Física en la actuación con personas con trastorno del espectro autista en un programa de deporte y ocio de Florianópolis (SC)

Wihanna Cardozo de Castro Franzoni1 
http://orcid.org/0000-0002-5845-3059

Alcyane Marinho1 
http://orcid.org/0000-0002-2313-4031

1Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Centro de Ciências da Saúde e do Esporte, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil


RESUMO

Esta pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de natureza qualitativa, investigou o papel do professor de Educação física na atuação com pessoas com TEA em um programa de esporte e lazer de Florianópolis (SC). Os participantes do estudo foram os professores da área de Educação Física, atuantes no programa investigado, além dos familiares dos alunos participantes. Foram utilizados dois roteiros de entrevistas semiestruturadas e uma matriz de observação sistemática. Foi realizada análise de conteúdo, tendo auxílio do software N-vivo - 10.0 para organização dos dados. Constatou-se que o professor de Educação Física é essencial no trabalho com pessoas com TEA, pois sua qualificação possibilita maior socialização, por meio de atividades baseadas em estratégias da área.

PALAVRAS-CHAVE: Transtorno do espectro autista; Socialização; Educação física e treinamento; Recreação

ABSTRACT

This field research, descriptive and exploratory, of a qualitative nature, investigated the role of the Physical Education professional in the work with people with ASD in a sports and leisure program in Florianópolis (SC). The participants of the study were Physical Education professionals, active in the investigated program, besides the relatives of the participating students. Two semi-structured interview scripts and a systematic observation matrix were used. Content analysis was performed, using N-vivo software - 10.0 to organize the data. It was found that the Physical Education professional is essential in working with people with ASD, since their qualification allows greater socialization, through activities based on area strategies.

KEYWORDS: Autism spectrum disorder; Socialization; Physical education and training; Recreation

RESUMEN

Esta investigación de campo, descriptiva y exploratoria, de naturaleza cualitativa, investigó el papel del profesional de Educación Física en la actuación con personas con TEA en un programa de deporte y ocio de Florianópolis (SC). Los participantes del estudio fueron los profesionales del área de Educación Física, actuantes en el programa investigado, además de los familiares de los alumnos participantes. Se utilizaron dos guiones de entrevistas semiestructuradas y una matriz de observación sistemática. Se realizó análisis de contenido, para la organización de los datos. Se constató que el profesional de Educación Física es esencial en el trabajo con personas con TEA, pues su calificación posibilita mayor socialización, a través de actividades basadas en estrategias del área.

PALABRAS-CLAVE: Trastorno del espectro autista; Socialización; Educación y entrenamiento físico; Recreación

INTRODUÇÃO

O papel do professor de Educação Física, no que se refere ao trabalho com pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), tem sido evidenciado a partir de diferentes formas de ensino, que, por sua vez, tem como intuito a promoção da socialização, por meio de atividades que valorizem as características individuais e a participação do aluno (BEZERRA, 2010). Do mesmo modo, segundo o autor, uma educação válida para alunos com diferentes níveis de diagnóstico demanda diferentes abordagens de ensino, tornando possível atender às especificidades de cada aluno.

Desta forma, é possível considerar as atividades recreativas como importante estratégia utilizada na prática de Educação Física para pessoas com TEA. Gomes (2004) explica que a atividade recreativa surgiu como uma opção relacionada à ideia funcional de ocupação do tempo ou recuperação/desgaste de energias acumuladas das crianças. De acordo com Kuhlmann (2000), a recreação pode ser considerada uma forma de ensino essencial para que haja o contato com o ambiente, com as pessoas e com os objetos/materiais. Assim acredita-se que a recreação pode possibilitar a socialização em diferentes contextos (MARQUEZE; RAVAZZI, 2011).

Outro elemento utilizado no trabalho com pessoas com TEA é a brincadeira, a qual apresenta diversas concepções (GOMES, 2004; KUHLMANN, 2000). Neste estudo, defende-se o termo como um fenômeno cultural construído no contexto social em que está inserido. Desta forma, entende-se que a recreação e a brincadeira estão interligadas, porém, a atividade recreativa pode ser percebida por meio de planejamentos e metodologias propostas, diferente da brincadeira caracterizada por sua maior espontaneidade (GOMES, 2004).

Considerando as estratégias utilizadas no trabalho com pessoas com TEA, enfatiza-se a necessidade de saber as possíveis causas e as características do TEA, o qual se trata de uma alteração no desenvolvimento, resultando em dificuldades atreladas às habilidades de interação social, à comunicação e aos comportamentos repetitivos e restritivos, interferindo no engajamento social (APA, 2014). O TEA, normalmente, manifesta-se antes dos três anos de idade, permanecendo durante toda a vida e não apresenta, até o momento, nenhuma causa comprovada cientificamente.

O TEA ainda é permeado por controvérsias, em especial, no que se refere à etiologia do transtorno (RIOS et al., 2015). De acordo com os autores, um número crescente de pesquisas em neurodesenvolvimento e genética vêm sendo desenvolvidas, buscando um marcador biológico que contribua para a detecção precoce e para o tratamento do TEA. Todavia, há uma evidente complexidade e uma heterogeneidade nas manifestações do transtorno, além de debates e incertezas quanto a sua etiologia e seu tratamento, o que dificulta a generalização das características de uma pessoa com TEA para a outra.

Embora uma causa específica ainda não tenha sido identificada, estudos sugerem a presença de alguns fatores genéticos e neurobiológicos que podem estar associados ao TEA, a saber: anomalia anatômica ou fisiológica do sistema nervoso central; problemas constitucionais inatos, predeterminados biologicamente e; fatores de risco psicossociais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014). Segundo Mello (2007), a incidência do TEA ocorre independentemente da raça e da classe social, podendo ser visualizado quatro vezes mais em crianças do sexo masculino.

De acordo com os estudos de Frances (2017), apesar de haver a necessidade de se estabelecer o diagnóstico, a inflação dos mesmos deve ser controlada, visto que seus excessos têm incluído pessoas com desenvolvimento normal no contexto da anormalidade. Deste modo, conforme o autor, aqueles que realmente precisam do tratamento não o têm, devido ao número elevado de pessoas diagnosticadas equivocadamente. Contestações como esta enfatizam a importância de realizar estudos teóricos e práticos que promovam a socialização de crianças e adultos que apresentam o diagnóstico de TEA. Assim, torna-se possível entender as possibilidades e dificuldades dessas pessoas, independentemente do seu diagnóstico, além de desencadear melhor qualidade de vida e minimizar o preconceito sobre o transtorno.

A partir desses pressupostos, surgem algumas indagações: quais atividades recreativas têm sido propostas pelo professor de Educação Física para pessoas com TEA? Quais as estratégias adotadas por estes professores para estimular a participação destas pessoas nas atividades? Quais as dificuldades e as facilidades enfrentadas por estes professores? Quais as percepções das famílias sobre o professor de Educação Física e as atividades que o mesmo propõe e desenvolve? Assim sendo, este estudo teve como objetivo investigar o papel do professor de Educação Física na atuação com pessoas com TEA em um programa de esporte e lazer de Florianópolis (SC).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este estudo é caracterizado como uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, de natureza qualitativa (GIL, 2008), a qual foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina, sob o parecer de número 1.814.571, em 2016.

O estudo ocorreu no contexto de uma instituição pública de Florianópolis (SC), em que é desenvolvido um programa de esporte e lazer voltado às pessoas que apresentam algum transtorno, como o TEA, ou deficiência intelectual, como a Síndrome de Down. A instituição em questão, cujo nome não será identificado por motivos éticos da pesquisa, tem como missão realizar ações em prol das pessoas com deficiência e de suas famílias, bem como trabalhar na defesa dos seus direitos, contribuindo para sua socialização e melhoria de sua qualidade de vida. O programa, que está em funcionamento desde 2012, ocorre semanalmente e conta com a participação de quinze alunos, sendo que oito destes possuem diagnóstico de TEA. A faixa etária é variada, pois não há idade mínima ou máxima para se inscrever.

A equipe atuante no programa é composta por um técnico de esporte e lazer (nomenclatura utilizada pelo próprio programa), formado em Educação Física; quatro auxiliares, acadêmicos de Educação Física, que são remunerados de acordo com os dias trabalhados; e três estagiários não-remunerados, realizando estágio obrigatório de cursos de formação em Educação Física. As atividades recreativas ocorrem uma vez por semana, sendo desenvolvidas no solo, no período de, aproximadamente, uma hora e na piscina, por mais uma hora.

Os participantes deste estudo foram os professores de Educação Física (n=5) (Tabela 1) e os familiares (n=8) dos alunos com TEA, participantes do programa (Tabela 2). Todos os investigados aceitaram participar voluntariamente da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para preservar a identidade dos participantes seus nomes foram substituídos por nomes fictícios.

Tabela 1 Dados dos professores de Educação Física participantes do estudo 

NOMES FICTÍCIOS DADOS PESSOAIS
Sexo Idade (anos) Formação Outras ocupações
JOÃO - TÉCNICO DE ESPORTE E LAZER Masculino 37 Pós-graduação completa Professor Educação Física em duas escolas
ALICE - ESTAGIÁRIA DE EDUCAÇÃO FÍSICA Feminino 22 Ensino superior incompleto Não possui outras ocupações
CAUÃ - ESTAGIÁRIO DE EDUCAÇÃO FÍSICA Masculino 22 Ensino superior incompleto Possui bolsa de iniciação à docência
DANIEL - ESTAGIÁRIO DE EDUCAÇÃO FÍSICA Masculino 20 Ensino superior incompleto Não possui outras ocupações
PEDRO - ESTAGIÁRIO DE EDUCAÇÃO FÍSICA Masculino 21 Ensino superior incompleto Possui bolsa de iniciação à docência

Fonte: autoria própria (2019)

Tabela 2 Dados dos familiares participantes do estudo 

NOMES FICTÍCIOS DADOS PESSOAIS
Sexo Idade (anos) Formação Tempo de participação
ANDRÉ, PAI DA BIANCA Masculino 43 Ensino superior completo 6 anos
ANTÔNIO, PAI DO AUGUSTO Masculino 45 Ensino superior completo 3 anos
CARLA, MÃE DO BRUNO Feminino 44 2 meses
JOSÉ, PAI DO LUCAS Masculino 48 Ensino superior completo 6 anos
MARIA, MÃE DO EDUARDO Feminino 38 1 mês e meio
ODETE, MÃE DO PAULO Feminino 61 Ensino médio completo 1 ano
ROBERTO, PAI DO JUNIOR Masculino 36 Ensino médio completo 1 mês
SILVANA, MÃE DO RENATO Feminino 43 2 anos

Fonte: autoria própria (2019)

Para a coleta de dados foi utilizada uma matriz de observação sistemática, por meio da qual foram identificadas as atividades propostas pelos professores de Educação Física, bem como suas características (duração, recursos) e as estratégias utilizadas para promover o engajamento das pessoas com TEA nas atividades. Assim, foi realizada a técnica de observação sistemática durante cinco encontros (com o total de 12 horas e 30 minutos), considerados suficientes para levantamento dos dados para o estudo. Um diário de campo foi utilizado como recurso para o registro das informações durante as observações sistemáticas.

Além disso, foram utilizados dois roteiros de entrevista semiestruturada, sendo um para os professores e o outro para os familiares, seguindo as orientações de Severino (1992). O roteiro destinado aos professores foi composto por 18 perguntas, as quais, além dos dados de identificação, contemplaram as seguintes dimensões: atuação profissional; atividades desenvolvidas; e estratégias dos professores. Como indicadores, foram selecionados, respectivamente: planejamento, experiência profissional; esportes, brincadeiras; metodologia. Por sua vez, o roteiro de entrevista para os familiares, composto por 16 perguntas, incluiu a percepção da família como dimensão e as mudanças pessoais e/ou sociais das pessoas com TEA como indicador.

As entrevistas com os professores de Educação Física foram realizadas após as aulas, e as entrevistas com os familiares foram realizadas antes, durante ou após as aulas, de acordo com a disponibilidade de cada participante. Todas as entrevistas foram registradas por meio de um gravador de áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra (BARDIN, 2009). As entrevistas foram realizadas individualmente e o tempo total de transcrição foi de aproximadamente 32 horas.

A organização dos dados foi realizada com o auxílio do software N-vivo versão 10.0. A análise de dados, por sua vez, foi desenvolvida a partir de elementos da técnica de análise de conteúdo, dividida em três fases: pré-análise do material; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação (BARDIN, 2009).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados encontrados e sua discussão foram organizados de acordo com as respostas dos treze participantes investigados, sendo oito familiares e cinco professores de Educação Física. As respostas foram incluídas nas categorias de análises, que, por sua vez, foram intituladas: “O professor de Educação Física”; “A atividade recreativa”; e “Interação social, comunicação e comportamento”.

O professor de Educação Física

De acordo com Oliveira e Victor (2018), para que seja possível auxiliar na formação de professores, é importante que se realizem estudos sobre as diferentes formas de interação das pessoas com TEA em ambientes coletivos. No que se refere especificamente à Educação Física, Bezerra (2010) indica que seu papel é evidenciado no desenvolvimento das potencialidades referentes ao movimento corporal dos alunos que apresentam um transtorno ou uma deficiência. A percepção de José, pai do Lucas (20 anos), sobre esse professor é interessante:

É um profissional de segurança. Ou seja, está ali para dar um suporte de segurança para os pais, que vai tirar o aluno do ambiente de sala de aula, acompanhá-lo e dar um suporte de atividade física para ele. É o profissional que vai atender os gostos do aluno e saber trabalhar as necessidades dele, e em que momento ele pode, ou não, frequentar qualquer tipo de atividade (José, pai do Lucas - 20 anos).

José destacou a importância do professor de Educação Física como responsável pela segurança dos alunos durante a prática de atividade física. Esse apontamento é pertinente para entender a confiança que os familiares depositam nesses professores e a responsabilidade que deve estar intrínseca no trabalho dos professores do programa em questão.

Também foi destacada a evolução da Educação Física no que se refere ao trabalho com pessoas com TEA. Odete, mãe do Paulo (25 anos) esclarece:

Eu acho que evoluiu muito o profissionalismo com o TEA. Há 20 anos, no caso do meu filho, não tinha ninguém, ninguém sabia trabalhar com TEA e hoje não, a gente vê que eles estão buscando conhecimento e estão “correndo atrás” para poder trabalhar (Odete, mãe do Paulo - 25 anos).

Esse depoimento é fundamental para o entendimento de que, apesar de recente atuação com esta população, o professor de Educação Física tem se mostrado essencial no trabalho com pessoas com TEA. José ressaltou, ainda, características trabalhadas, especificamente, na Educação Física:

É um profissional de característica importante, tendo em vista que busca um aprimoramento físico [...]. O profissional de Educação Física tem que ser interativo em todos os sentidos, tanto da parte da psicologia, que ele tem que saber a hora que a pessoa está cansada, está estressada, como ele também tem que fazer parte da utilidade didática, fazendo com que o aluno pegue o material, aplique o material na atividade sugerida (José, pai do Lucas - 20 anos).

Desta forma, as competências adquiridas no decorrer do trabalho do professor de Educação Física com as pessoas com TEA são essenciais, pois é a partir destas que se torna possível propor atividades e estratégias de engajamento adequadas, cooperando, assim, para o desenvolvimento da profissão. As estratégias adotadas pelos professores são semelhantes, conforme elucidado em suas falas “O que eu tento sempre fazer é ficar buscando muito porque eles se dispersam muito fácil, tem que chamar, convidar ou até mesmo falar: vem cá, faz comigo, eu faço contigo, imita a professora” (Alice - 22 anos). Como também:

Nossa função enquanto educador é de ser um eterno convocador. A gente não pode desistir nunca, tem que estar sempre convocando. Mesmo que em um dia faça 20 vezes esse movimento de convocação e mesmo assim o aluno não foi. Na semana seguinte terão que ser feitas 30 convocações, porque 20 só não foi suficiente (João - 37 anos).

Os depoimentos supracitados mostram que existe unanimidade no trabalho realizado no programa. Esse fato sugere que as estratégias utilizadas têm obtido sucesso no que se refere ao incentivo à participação dos alunos, por parte dos professores. Do mesmo modo, as observações possibilitaram a visualização do uso dos estímulos como estratégia fundamental para engajamento do aluno nas atividades propostas (Quadro 1).

Quadro 1 Estratégias utilizadas pelo professor de Educação Física 

Comportamento apresentado pelo aluno Estratégia utilizada pelo professor
Recusa para participar da atividade Propor que o aluno imite o professor
Isolamento da aula Acompanhar o aluno individualmente (seguir a preferência do aluno)
Dificuldade para aceitar a mudança de atividade Explicar individualmente as diferenças entre as atividades (verbalmente ou visualmente)
Dificuldade para interagir com outros alunos Propor atividades em grupo (duplas, trios ou mais)
Recusa para realizar a atividade com o professor Solicitar outro professor (que o aluno tenha afinidade) para estimular a participação
Dificuldade com o uso do material Mostrar que o professor e os outros alunos também usam o material. Caso haja resistência, trocar o material e introduzir novos materiais gradualmente
Recusa para entrar na piscina Reorganizar a equipe de professores para acompanhar o aluno que ficará no solo

Fonte: autoria própria (2019)

Os estímulos também devem ter como base as individualidades dos alunos. Nesse sentido, Srinivasan, Pescatello e Bhat (2014) destacam, em seu estudo, a importância de adaptar as atividades de acordo com a necessidade de cada um, mantendo assim, o seu interesse. Portanto, para que haja êxito na estratégia utilizada, é importante que se façam abordagens de formas diferenciadas, considerando suas características. João, técnico de Esporte e Lazer, condutor da equipe, destaca a sua recomendação geral:

Eu indico: não faça nada na força porque isso vai fazer com que o aluno se afaste mais. Tem que saber o momento de conduzir ele, conversando e inserindo na atividade. Se mesmo assim houver resistência, deixa ele caminhar um pouco mais, depois tenta de novo (João - 37 anos).

Além das estratégias adotadas, no decorrer das entrevistas, questionou-se aos professores sobre a utilização de métodos direcionados às pessoas com TEA. É interessante apontar que os métodos mais evidenciados na literatura acerca do TEA são: Tratamento e educação para crianças com TEA e com distúrbios correlatos da comunicação (TEACCH); Análise aplicada do comportamento (ABA); e Sistema de comunicação através da troca de figuras (PECS) (MELLO, 2007).

Os professores investigados neste estudo indicaram não seguir um método em específico, como pode ser notado em exemplos como “Eu particularmente não utilizo e até desconheço no momento” (Pedro - 21 anos); “Nós não utilizamos figuras aqui, mas todas as atividades que fazemos são muito visuais. Como falamos por exemplo: pessoal agora vai ser um pega-pega dessa forma, e mostramos como será” (João - 37 anos).

A partir desses relatos, percebe-se que não há obrigatoriedade quanto à utilização dos métodos supracitados, principalmente porque estes não são destinados diretamente ao campo de Educação Física. Assim, é possível notar que, apesar de Mello (2007) sugerir que estas intervenções sejam indispensáveis para que ocorram melhorias no desenvolvimento dessas pessoas, existem outras formas de desenvolver um trabalho competente com pessoas com TEA, por meio de metodologias que utilizem estratégias particulares, como no programa em questão.

Contudo, como em todas as profissões, também são encontradas dificuldades e facilidades na atuação prática dos professores de Educação Física. Lima et al. (2017) indicam que este profissional pode conhecer e se apropriar de estratégias, como supracitado, que auxiliem no seu trabalho, promovendo a motivação e desenvolvendo a comunicação dos alunos. João aponta uma das facilidades encontradas “O bom é que a equipe já tem conhecimento. Todo mundo trabalha da mesma forma, o que acaba tornando mais fácil” (João - 37 anos).

Em relação às dificuldades, as observações realizadas possibilitaram a visualização de algumas complicações na atuação desses professores, como, por exemplo, alunos que demonstram um apego maior por um professor e têm dificuldade para aceitar outro professor, ou quando os alunos se recusam a entrar na piscina, necessitando, assim, de uma reorganização da equipe profissional. Mas, principalmente, em situações incomuns em que algum membro da equipe precisa se ausentar, pois a equipe depende de um grande número de pessoas para atender aqueles que necessitam de atenção individual, bem como para o auxílio em imprevistos como o exemplo anterior.

Entende-se que as dificuldades e as facilidades apontadas são comuns e mutáveis, de acordo com o tempo de prática e a experiência em ações relacionadas ao trabalho com pessoas com TEA. Acredita-se que a escolha de atividades é parte fundamental desse processo e deve ser trabalhada a partir de diferentes estratégias.

A Atividade Recreativa

Marqueze e Ravazzi (2011) avaliam o papel do professor de Educação Física como uma pessoa capacitada para estimular as potencialidades e as possibilidades de socialização do aluno com TEA, por meio de atividades adaptadas, introduzidas ludicamente. Sendo assim, buscou-se investigar quais são as atividades propostas pelos professores para obter esse resultado.

Conforme as informações obtidas por meio das observações, as atividades são realizadas no solo e na piscina. No solo, as atividades são planejadas de forma que cada professor seja responsável por uma, cujo conteúdo visa o exercício da memória e/ou da lateralidade, bem como da coordenação motora. Na piscina, as atividades podem ser específicas da natação ou podem ser atividades recreativas. O Quadro 2 ilustra exemplos destas atividades.

Quadro 2 Atividades propostas 

Solo Piscina
Pega-pega (tradicional, pega-congela, pega-corrente) Nado “de frente”
Escravos de jó Nado costas
Espelho Imitar um animal (canguru, macaco, golfinho)
Circuito para coordenação motora e equilíbrio (degrau, cone, arco, corda, cama elástica) Passar por dentro dos arcos
Queimada Brincadeira em equipe (fazer o gol na equipe adversária)
Brincadeira com partes do corpo (cabeça, ombro, joelho e pé) Atravessar a piscina mergulhando

Fonte: autoria própria (2020)

Como sugerido por Marqueze e Ravazzi (2011), são realizadas atividades adaptadas. Além disso, tanto os professores quanto os familiares apontaram o valor das brincadeiras para o desenvolvimento desses alunos, como pode ser notado em falas como “A gente trabalha a partir da brincadeira, a gente tem os nossos objetivos. Para alcança-los usamos dessas atividades” (Pedro - 21 anos). Ou ainda como a seguir:

A recreação é um momento em que não há impedimentos. Claro, a gente lida muito com limites, com respeito, enfim, mas eles não têm limites no sentido de “a recreação é para ele”, se ele quiser pular, ele vai pular, se ele quiser deitar, ele vai deitar, é um momento que é para ele (João - 37 anos).

O "x" da questão não é fazer atividade física, todo mundo tem que fazer atividade física, mas a diferença para ele é a maneira que se trabalha o programa aqui. O profissional de Educação Física faz um trabalho voltado para eles. As brincadeiras simples que eles fazem, mas que vão queimar caloria, que vão gastar energia, de uma maneira que eles vejam que é uma brincadeira, não um exercício (Antônio, pai do Augusto - 11 anos).

Estes depoimentos destacam a brincadeira como um momento sem impedimentos, no qual a pessoa pode escolher do quê e como brincar. Nesse sentido, Santin (2003) defende que o brincar não pode ser ensinado. Cada um brinca da sua forma, pois é uma maneira de ser. O estudo de Bataglion e Marinho (2019) discute que a brincadeira não é percebida pela criança como obrigatória, mas, sim, como momento de envolvimento e de entusiasmo, mesmo que sua finalidade seja o tratamento.

As observações possibilitaram, ainda, a percepção sobre a importância das atividades recreativas no trabalho com pessoas com TEA. Essa constatação foi determinada a partir das visualizações das respostas (expressões corporais ou verbais) dos alunos quanto às atividades propostas. Isto é, identificou-se a brincadeira como atrativa e efetiva no que refere ao engajamento dos alunos.

Bataglion e Marinho (2017) ressaltam que, dependendo do ambiente e das pessoas envolvidas na atividade, pessoas com TEA podem participar e se envolver na brincadeira tanto quanto qualquer pessoa, considerando esse momento como forma de libertação. Assim, percebe-se a responsabilidade do programa, bem como dos professores envolvidos, em promover essas atividades recreativas no trabalho desse contexto.

De acordo com Brock (2011), parte dos profissionais que trabalham com a educação, principalmente na fase inicial da infância, concorda que brincar é importante para o desenvolvimento, a aprendizagem e o bem-estar. Deste modo, é fundamental entender que a brincadeira é tão importante para o adulto quanto para a criança, pois seus resultados positivos podem ter repercussão por toda a vida.

No que se refere à recreação, é importante ressaltar que este estudo a compreende como um componente do lazer, isto é, podendo ocorrer, sob forma de atividades sistematizadas, em momentos de lazer (MARCELLINO, 2007). Portanto, optou-se pelo uso do termo recreação nesta investigação devido às particularidades do contexto de pesquisa, no qual podem ser identificadas atividades recreativas no interior do programa da instituição investigada. Da mesma forma, é relevante esclarecer que a instituição, locus desta pesquisa, possui em sua nomenclatura os termos esporte e lazer e, portanto, ao se referir especificamente a ela, neste texto, as expressões foram assim mantidas.

Deste modo, questionou-se os professores sobre suas percepções acerca da recreação na vida de pessoas com TEA. Entre as respostas, destacam-se:

Fica bem limitado para a própria pessoa. Tem alunos que o pai leva para correr, para assistir filme, e ele gosta, ele tem uma interação melhor com isso. Tem uns que não saem. Dá para ver quando a gente está na rua com esses alunos, a diferença que é com um que está acostumado e um que não é, um se assusta, o outro não, gosta (Cauã - 22 anos).

É de extrema importância, porque, muitas vezes, eles vivem cercados de privações, por exemplo: não pode levar em "tal" lugar porque eles não têm uma conduta social que é aceitável pela sociedade, entre outras coisas. Esse momento de recreação voltado especialmente para eles, é bom porque é quando eles têm a parte de extravasar, eles vão participar da forma que eles querem (João - 37 anos).

Marqueze e Ravazzi (2011) destacam, ainda, a relação fundamental que está inserida entre a prática pedagógica de Educação Física e as atividades recreativas, como possibilidade de desenvolvimento e integração de diferentes grupos, além de poder contribuir com a superação de dificuldades e preconceitos impostos à criança com TEA. Entre os depoimentos, ressalta-se a percepção dos familiares em relação ao papel do professor e do programa na socialização desses alunos, como por exemplo:

Não dá para cobrar de todas a mesma coisa. Acho que o profissional hoje em dia está muito ciente disso. Ainda mais na questão do TEA, da individualidade, cada um é de um jeito, uns são mais comprometidos, outros podem se doar mais, tanto na parte física como na parte também cognitiva (Silvana, mãe do Renato - 15 anos).

Ele tem esse contato com outras pessoas que também tenham complicações, que tenham deficiências, que são como ele. O programa ajuda a conviver com essas pessoas, porque no dia a dia ele não tem essa convivência (Carla, mãe do Bruno - 10 anos).

Conforme observado nos relatos supracitados, os familiares indicam haver uma consciência entre os professores sobre as limitações de cada aluno. Nessa perspectiva, Tomé (2007) defende que é reponsabilidade do educador que lida com pessoas com TEA adotar uma postura profissional, respeitando as diferenças, as limitações e as capacidades individuais. Contudo, é importante salientar que o objetivo do programa investigado está diretamente ligado à promoção da socialização, por isso a participação dos alunos nas atividades não está condicionada ao grau do seu transtorno.

Assim, são pertinentes as críticas acerca do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais da Academia Americana de Psiquiatria (DSM-V), utilizado como importante instrumento de diagnóstico do transtorno, a partir de avaliações sobre interação social, linguagem e comportamentos. Tais críticas podem ser observadas nos estudos de Frances (2017), psiquiatra norte-americano que foi presidente do Comitê do DSM-IV, emérito do departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA). O autor acredita que os diagnósticos em excesso tendem a transformar comportamentos e emoções em patologias. Portanto, esses exageros têm rotulado as pessoas equivocadamente, classificando-as em categorias enraizadas e padronizando suas características individuais (FRANCES, 2017).

Sugere-se que não exista uma atividade específica para pessoas com TEA, principalmente, para cada grau de diagnóstico. As necessidades e as potencialidades individuais devem ser consideradas como possíveis balizadores na escolha das estratégias e metodologias para o trabalho com esta população, conforme constatado no programa ora investigado.

Interação Social, Comunicação e Comportamento

Segundo Ferreira (2008), atualmente, para definir o TEA utiliza-se o conceito normatizado, em 2007, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), assim especificado: Transtorno Global do Desenvolvimento, visualizado a partir do funcionamento anormal da comunicação, da interação social e do comportamento, sendo este restritivo e repetitivo. Neste estudo, esses conceitos foram fundamentais para entender as percepções dos familiares e dos professores de Educação Física sobre o auxílio do programa no trabalho com pessoas com TEA.

No que se refere à interação social, pode-se perceber que os depoimentos de alguns familiares são semelhantes, pois ressaltam a importância deste componente na socialização dos alunos com pessoas/colegas com outras deficiências. Os registros de alguns familiares são ilustrativos, dentre os quais “Eu vejo que aqui no programa ele interage com todo mundo e isso também tem refletido um pouco fora daqui” (Maria, mãe do Eduardo - 7 anos); “É um programa em que ele acaba se relacionando com outras crianças que têm dificuldade semelhante e outras dificuldades também, mas ele consegue interagir bem com isso” (Antônio, pai do Augusto - 11 anos).

Para além do programa, destaca-se, a partir das entrevistas realizadas, o auxílio do programa na socialização em momentos externos, identificando-o como possível transformador da realidade cotidiana de pessoas com TEA. A interação social pôde ser percebida, ainda, por meio das observações, nas quais foram destacados momentos de socialização, como contato visual e/ou verbal entre os alunos participantes do programa.

Quanto aos professores de Educação Física, pode-se verificar nos seus relatos que a interação social é o componente que permite uma maior aproximação entre professores e alunos, que, por consequência, fortalece a relação de confiança entre eles: “Além deles estarem interagindo com outros alunos, interagem com a gente, com outros pais, com as outras famílias que convivem aqui com a gente” (Alice - 22 anos); “Eu acho que esses programas são bons para interação social, vínculo, até mesmo para a própria pessoa saber que ela pode contar com outras pessoas” (Cauã - 22 anos).

Assim como representam os depoimentos supracitados, destaca-se que a ideia de que a criança com TEA não demonstra afeto e é inquestionavelmente distante e não-comunicativa não tem sido consolidada em pesquisas atuais, uma vez que há evidências de que as pessoas com TEA podem desenvolver habilidades sociais e estabelecer relações interpessoais com seus familiares, bem como com outras pessoas de seu meio social (BAGAROLO; RIBEIRO; PANHOCA, 2013; SANINI; SIFUENTES; BOSA, 2013; SÁ; SIQUARA; CHICON, 2015; BATAGLION; MARINHO, 2016). Estes autores também destacam a possibilidade de participação em brincadeiras, embora isto seja identificado de formas peculiares no brincar das pessoas com TEA.

Para Camargo e Bosa (2009), a competência social das pessoas com TEA atua como um construto psicológico que manifesta inúmeras formas do funcionamento cognitivo, emocional e comportamental, tratando-se, portanto, não de um traço global da personalidade, mas um conjunto de comportamentos aprendidos durante as interações sociais, especialmente, na interação com pares. As autoras destacam que, enquanto elas interagem com seus pares, procuram atribuir sentido ao mundo em que vivem. Isto é fundamental para a pessoa com TEA, pois lhe permite apropriar-se, reinventar e reproduzir o mundo que a rodeia, no entanto, corre-se o risco de que esse processo seja desfavorecido pelas oportunidades reduzidas de interação com parceiros, embora essas pessoas apresentem possibilidades de estabelecê-las, quando oferecidos contextos propiciadores (CAMARGO; BOSA, 2009).

Adams (2013) e Ferreira (2008) destacam que as sensibilidades sensoriais são características comumente percebidas em pessoas com TEA. No entanto, foi possível notar, por intermédio das entrevistas realizadas, que essas características podem ser amenizadas por meio da interação social, que, por sua vez, possibilitou uma melhoria na aceitação do contato com o outro e, inclusive, reduziu a aversão ao som, modificando, de certa forma, os comportamentos desses alunos:

Antes, nós tínhamos alunos que não eram permissivos ao toque, que hoje são, entendem que os colegas estão brincando e que vão tocar nele e ele não vê mais isso como empecilho. Ele faz identificação visual, olha, vê o colega, mas não tem mais aquela reação adversa que tinha no início (João - 37 anos).

A gente tinha um aluno que vinha com fone de ouvido porque ele não gostava de ouvir nenhum barulho. Hoje com o passar do tempo, ele se acostumou com o ambiente, já se acostumou com o grupo e com as atividades. Hoje ele vem sem o fone de ouvido, não reclama do barulho de som e não pede para abaixar (Cauã - 22 anos).

A partir dos relatos dos familiares, o esporte pode ser entendido como um mecanismo que qualifica a interação social entre os alunos envolvidos no programa, como pode ser visto no depoimento de Roberto “A gente colocou ele no programa com o objetivo de socializar melhor, aprender um esporte, fazer uma coisa diferente do que ele está acostumado a fazer” (Roberto, pai do Junior - 11 anos). E de José:

Eu acho que um dos motivos para manter uma pessoa com TEA nesse programa é incentivar através do esporte a interação social. Eu acho isso muito importante. Ele gosta muito de vir aqui para o programa. Todos os sábados de manhã ele acorda e sabe que é sábado e se arruma para vir para o programa (José, pai do Lucas - 20 anos).

Assim como nas entrevistas supracitadas, as observações possibilitaram a visualização do esporte como instrumento de promoção da socialização, indicado pelos familiares como um dos motivos para manter o aluno no programa. O esporte pôde ser identificado durante as atividades por meio da utilização dos seus fundamentos, como por exemplo: uma brincadeira que tem como objetivo acertar a bola no alvo, fazendo analogia à cesta no basquetebol; ou uma brincadeira na piscina que tem o intuito de lançar a bola com uma mão só no gol da equipe adversária, caracterizada pela semelhança com o polo aquático, e, por sua vez, estimulando o diálogo entre os grupos.

No que diz respeito ao desenvolvimento da comunicação, Bosa (2002) destaca que as crianças com TEA são diagnosticadas principalmente em decorrência da sua inadaptação para estabelecer relações típicas com o outro. Esse componente é percebido em características como, por exemplo, o atraso no desenvolvimento da linguagem, resultando em problemas para que se possa estabelecer uma comunicação. No decorrer das entrevistas, foi indicada uma significativa evolução nos participantes do programa:

Quando eles gostam de alguma coisa, demonstram no corpo, fazem aquilo com mais leveza, não é preciso ficar chamando o tempo todo. Se eles não gostam, não querem fazer, e não fazem de jeito nenhum, se pegar na mão eles tiram, é porque eles não querem fazer mesmo (Alice - 22 anos).

Eles são muito agitados e a maioria se mantêm a base de remédio. Fazendo uma atividade física você vai fazer ele gastar energia e até a irritação dele vai diminuir, porque ele fica irritado com muitas coisas, ele não consegue se comunicar. Aqui ele está liberando (Antônio, pai do Augusto - 11 anos).

Os relatos enfatizam que a comunicação não se estabelece exclusivamente na forma verbal, mas também por meio de expressões corporais. Inclusive, verifica-se que o programa tem sido essencial na diminuição do uso de medicamentos para controle do comportamento, fator destacado por Frances (2017) como prejudicial à saúde de pessoas que apresentam transtornos.

Outro aspecto relevante para que a comunicação se estabeleça é a compreensão da linguagem utilizada pelos interlocutores, cuja melhoria foi destacada por um dos familiares no seguinte depoimento: “Agora ela está em um nível de compreensão bem elevado, graças aos trabalhos realizados aqui” (André, pai da Bianca - 14 anos).

Houve, portanto, um avanço significativo na comunicação entre os participantes do programa, possibilitando maior interação social. Contudo, é importante valorizar os diversos contextos envolvidos nos avanços do tratamento, como as relações familiares, a escola e os demais profissionais atuantes em espaços externos ao programa (psicólogo, fisioterapeuta, fonoaudiólogo). Deste modo, o trabalho conjunto dessas áreas, pode ser fator determinante para o progresso do tratamento.

Ainda sobre os componentes frequentemente observados em pessoas com TEA, destacam-se os comportamentos restritivos e repetitivos visualizados em seu cotidiano. Segundo Tomé (2007), deve-se considerar que a base do comportamento das crianças com TEA é encontrada nos exemplos que elas visualizam e convivem diariamente. Um dos familiares relata em seu depoimento como o programa tem atuado com eficácia na redução dos comportamentos repetitivos:

Pessoas com TEA são repetitivas. Claro, que eu não vou dizer que acabou, não acabou, nem vai acabar, porque a gente sabe que não acaba. Mas melhora 60%, talvez com uma continuidade, talvez desde pequeno, não como o meu que já entrou adulto. Mas desde pequeno sendo trabalhado, com certeza ele iria se tornar um adulto muito melhor (Odete, mãe do Paulo - 25 anos).

Destaca-se a importância da participação assídua e contínua do aluno nas atividades, para que possíveis mudanças de comportamento possam vir a ocorrer. Percebe-se, assim, a relevância da atividade física nesse processo, como assinalado por André “Diminui um pouco o estresse deles. Eles precisam de atividade física para extravasar. Isso diminui a estereotipia e diminui alguns comportamentos repetitivos” (André, pai da Bianca - 14 anos).

Em termos dos comportamentos restritivos e repetitivos, identificou-se em um estudo recente realizado em contexto de reabilitação, a participação efetiva de uma criança com TEA nas atividades relacionadas à contação de histórias apresentando interesse e/ou preferência pela realização frequente destas (BATAGLION, 2015). Contudo, os resultados da investigação apontaram que a criança se mostrou disposta, também, a desenvolver outras atividades propostas no contexto, como os jogos de tabuleiro, de memória e de montagens sobre situações do dia a dia da vida social, assim como a brincar com bolhas de sabão, alterando a rota do desejo restritivo pelas atividades que envolvem histórias e indicando a capacidade das pessoas com TEA desenvolverem habilidades para se envolver em distintas atividades.

Assim, as atividades propostas em contextos da Educação Física, entrelaçadas aos estímulos às relações interpessoais, parecem incentivar a comunicação, as habilidades sociais, bem como a diminuição dos comportamentos estereotipados das pessoas com TEA. Deste modo, atrelada a outros fatores (relações familiares, escola e demais profissionais envolvidos no tratamento) a Educação Física se apresenta como um componente fértil para o desenvolvimento das capacidades das pessoas com TEA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerar que a Educação Física pode possibilitar o desenvolvimento de habilidades e a melhoria da qualidade de vida, torna-se possível a socialização de pessoas com TEA a partir da reestruturação das práticas, por meio de atividades que trabalhem a autonomia e promovam o brincar ao aluno, respeitando suas possibilidades (TOMÉ, 2007). Assim, cabe ao professor de Educação Física, preferencialmente, em diálogo com outras áreas de conhecimento, estimular as possibilidades de socialização do aluno com TEA, por meio de atividades adaptadas às suas individualidades (MARQUEZE; RAVAZZI, 2011).

Nesta pesquisa, verificou-se que o programa investigado, ao utilizar a interação como balizadora das atividades práticas, oportunizou momentos de socialização entre as pessoas com TEA. Além disso, ao respeitar as individualidades e as potencialidades dos alunos, desenvolveu capacidades individuais que fortaleceram a unidade do grupo, melhorando as relações interpessoais.

Por sua vez, a recreação constitui-se, no contexto investigado, em um aspecto fundamental, pois é, por meio de atividades recreativas e espontâneas, que a criança também pode estabelecer contato com o ambiente, consigo mesma e com os outros, tornando-se observadora. Nestas situações, a criança também pode aprender a manipular objetos, desenvolver o equilíbrio e as habilidades neuromusculares (permitindo que o movimento seja sincronizado, com força, direção, amplitude, intensidade e velocidade adequados) (KUHLMANN, 2000). No programa pesquisado, constatou-se que os professores utilizam as atividades recreativas como instrumento determinante nas ações desenvolvidas semanalmente, ou seja, por meio do componente lúdico, a brincadeira torna-se elemento fundamental no auxílio ao tratamento dos participantes.

Entende-se que essa pesquisa não esgota todos os aspectos relevantes sobre as estratégias adotadas pela Educação Física no trabalho com pessoas com TEA. Não é possível estabelecer uma única atividade, estratégia ou metodologia que atenda a todas as especificidades das pessoas com TEA, tendo em vista que o aluno é um ser ímpar. Portanto, mesmo em atividades em grupo, é necessário observar suas capacidades e particularidades, para que a ação educativa seja significativa.

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AGRADECIMENTOS Não se aplica

FINANCIAMENTO Não se aplica

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina sob o parecer de número 1.814.571

LICENÇA DE USO Os autores cedem à Motrivivência - ISSN 2175-8042 os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution Non-Comercial ShareAlike (CC BY-NC SA) 4.0 International. Esta licença permite que terceiros remixem, adaptem e criem a partir do trabalho publicado, desde que para fins não comerciais, atribuindo o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico desde que adotem a mesma licença, compartilhar igual. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico, desde que para fins não comerciais e compartilhar com a mesma licença

PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 27 de Maio de 2019; Aceito: 25 de Outubro de 2019

hanna.franzoni@gmail.com

alcyane.marinho@hotmail.com

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA Concepção do manuscrito: W. C. C. Franzoni, A. Marinho Coleta de dados: W. C. C. Franzoni Análise de dados: W. C. C. Franzoni, A. Marinho Discussão dos resultados: W. C. C. Franzoni, A. Marinho Produção do texto: W. C. C. Franzoni, A. Marinho Revisão e aprovação: W. C. C. Franzoni, A. Marinho

CONFLITO DE INTERESSES

Não se aplica

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