INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da sociedade está alicerçado na estrutura educacional proporcionada pelas organizações governamentais de um determinado ambiente ou cultura. Esse aspecto torna o contexto sociocultural um elemento fundamental para a compreensão da história e das relações entre os indivíduos, reconhecendo-se que o desenvolvimento humano é determinado pela qualidade do meio em que o indivíduo está inserido (BRONFENBRENNER, 1996; 2011).
Neste âmbito, para compreender a estrutura da Educação Física (EF) escolar de Moçambique é necessário conhecer a história do país (macrossistema). Tais aspectos levam em consideração que o governo moçambicano definiu a Educação Física e o Esporte nas suas bases educacionais com o objetivo de promover a formação e o desenvolvimento integral dos seus cidadãos, visando à melhora da sua qualidade de vida, bem-estar individual, bem como a coesão social, nacional e internacional (MOÇAMBIQUE, 2004).
Moçambique, oficialmente designado República de Moçambique, com uma população de cerca de 28 861 860 habitantes, é um país localizado no sudoeste do continente africano, banhado pelo Oceano Índico na sua extensão leste e que faz fronteiras terrestres com a Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Zimbabwe, Suazilândia e África do Sul. Sua capital e maior cidade do país é Maputo, com cerca de 1 101 170 habitantes (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 2017).
Após quase 500 anos de escravidão, alcançou sua independência da ex-colônia Portugal em 1975 e decorridos menos de dois anos depois da independência, o país entrou em uma guerra civil intensa que durou 16 anos (1976-1992). Com aproximadamente 40 anos de independência, Moçambique está entre os 10 países mais pobres do mundo, sendo que mais da metade da população vive com menos de 1 dólar por dia, ou seja, com muitas privações e uma das maiores desigualdades sociais do mundo (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2015).
Embora a Constituição da República de Moçambique de 2004 no seu capítulo V, Artigo 88, consagre a educação como um direito de todos os cidadãos, assumindo o estado a promoção de condições necessárias para o exercício pleno desse direito a todos os moçambicanos (MOÇAMBIQUE, 2004), trata-se de um país em que a rede escolar e os serviços públicos básicos em geral são bastante deficientes e precários, não satisfazendo as necessidades populacionais.
É neste contexto, que pretendemos considerar os avanços e retrocessos da estrutura da Educação Física moçambicana à luz da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano proposta por Bronfenbrenner (1996), haja vista que dentro do prisma educacional a Educação Física desempenha um papel importante no desenvolvimento integral. O Modelo Bioecológico possui como base quatro domínios: Pessoa-Processo-Contexto-Tempo (PPCT), sendo que o processo proximal, caracterizado pelas interações entre a pessoa e o contexto, representa a estrutura nuclear do modelo (BRONFENBRENNER; MORRIS, 2005).
Nessa perspectiva, o desenvolvimento humano é entendido como um conjunto de funções dinâmicas e indissociáveis entre as características da pessoa e dos ambientes (microssistema, mesossistema, exossistema, macrossistema e cronossistema) nos quais a pessoa se encontra inserida no decurso do tempo (NOBRE; COUTINHO, VALENTINI, 2014). Em alusão aos ambientes, Bronfenbrenner e Morris (2005) consideram o microssistema como sendo a relação entre o indivíduo e seu meio mais imediato, sendo influenciado pela interação entre dois ou mais microssistemas de que o indivíduo participa (família, escola, igreja, esporte), denominado mesossistemas (casa-escola, casa-escola-clube esportivo).
O ambiente social do qual a pessoa não participa, mas cujas decisões nele tomadas afetam o processo de desenvolvimento do sujeito é designado exossistema (casa-local de trabalho dos pais, escola-secretaria da educação). O sistema de crenças, valores culturais, sociais e ideológicos de um país é denominado macrossistema, e pode influenciar o comportamento do sujeito em desenvolvimento (BRONFENBRENNER; MORRIS, 2005). Já o cronossistema é referente às transições entre os ambientes e eventos que ocorrem numa extensão temporal. Tal extensão é determinante para o desenvolvimento dos indivíduos, uma vez que ocorre durante toda a vida por meio de processos contínuos, considerando as características históricas e sociais das pessoas (VIEIRA et al., 2015).
Com base nessas proposições, o presente estudo buscou através da caracterização histórica do contexto sociocultural, identificar os fatos que influenciaram na estrutura da Educação Física (EF) moçambicana ao longo do tempo, partindo da lacuna de que este fenômeno e a abordagem aqui adotada são menos discutidos na literatura lusófona de maneira geral e menos ainda em Moçambique, um país onde a investigação e a disseminação da produção científica ainda se afiguram como utópicas.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
Trata-se de um estudo descritivo com cunho qualitativo, considerando que expõe eventos históricos decorridos num determinado tempo e cultura (cronossistema), com o intuito de classificá-los e interpretá-los (SILVA; FOSSÁ, 2015). A pesquisa cingiu-se na análise das inter-relações entre os cinco sistemas ambientais propostos pelo modelo teórico Bioecológico (micro, meso, exo, macro e cronossistema) (BRONFENBRENNER; MORRIS, 2005) e sua influência no desenvolvimento do microssistema EF escolar.
Para tanto, foram sujeitos sete profissionais de instituições vinculadas ao Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) de Moçambique, sendo três professores de EF e quatro dirigentes (um do MINEDH, um do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, um do Conselho Municipal e um da Direção da Educação da Cidade de Maputo). A escolha dos participantes foi aleatória mediante a indicação dos diretores e chefes dos departamentos em função dos cargos ocupados nas instituições. O projeto foi aprovado pelo Comitê Nacional de Bioética para Saúde (CNBS) de Moçambique, sob parecer Nº 19/CNBS/2016.
Foram utilizados documentos (legislação, planos de atividades, relatórios e documentos oficiais), entrevista semiestruturada, além de uma ficha com dados socioeconômicos dos participantes. As entrevistas foram realizadas pelo pesquisador, individualmente, nos locais de trabalho dos colaboradores da pesquisa em Moçambique e foram gravadas para posterior análise.
Para a transcrição das entrevistas, adotamos as normas proposta por Preti (1999). Os participantes foram codificados pelas letras “P” para os professores e “D” para os dirigentes. Após a transcrição, a entrevista foi enviada na íntegra aos professores e dirigentes para a confirmação do conteúdo, favorecendo assim a validade dos dados. Para a análise e interpretação dos dados foi utilizada a análise de conteúdo do tipo categorial, com o método de análise temática seguindo os passos de pré-análise, exploração do material e interpretação dos resultados (BARDIN, 2008). As categorias foram previamente definidas por meio da matriz de análise, baseada nos critérios de pertinência do modelo teórico de suporte desta pesquisa (Teoria Bioecológica), se caracterizando por: a) compreensão histórica; b) período colonial e pós-guerra; c) independência e d) criação das instituições de ensino e pesquisa.
COMPREENSÃO DO PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Período Colonial
O estudo identificou dois períodos distintos (com base nas entrevistas e documentos) que marcaram o percurso histórico da estruturação da EF moçambicana (Quadro 1), os quais evidenciam os progressos e retrocessos no desenvolvimento da EF e o papel das estruturas governativas nesse processo.
O quadro 1 apresenta as diferentes fases que marcaram a estruturação da EF moçambicana, desde a sua criação, na chegada da década de 1930 até a atualidade, assinalando o empenho dos governos (macrossistemas) em tornar sua prática mais importante nas escolas e comunidades (microssistemas).
Várias foram as ações do macrossistema visando o desenvolvimento da EF. No primeiro período da estruturação da EF moçambicana, que vai de 1927 a 1974 (Era Colonial), o povo moçambicano estava sob o jugo colonial português, restringido ao direito à liberdade de participação igualitária no domínio social e esportivo. Nesta época, todas as decisões políticas e educativas eram definidas em Portugal e aplicadas na então colônia (Moçambique), caracterizada por um sistema educativo com dois tipos distintos de ensino, a educação indígena (para negros) e a educação de elite para o colonizador e o assimilado (negros civilizados). Em 1927, o governo colonial reorganiza o sistema educativo e introduz pela primeira vez a EF nas escolas moçambicanas, embora nas escolas indígenas se limitasse às práticas gímnicas, pode-se considerar a EF um legado da colonização portuguesa (DOMINGOS, 2010). Essa época é descrita em alguns depoimentos:
[…] as instituições de Educação Física que existem agora em Moçambique […] existiam desde o período colonial, porque mesmo naquela altura que era colônia existia uma necessidade de a sociedade moçambicana praticar desporto, só que esse desporto não era para todos, havia uma parte de moçambicanos que não tinha direito de praticar o desporto como está acontecendo agora porque as instalações eram para brancos […]. (D3)
[...] a Educação Física existe desde a época colonial […] a única diferença que se operou aqui foi aquela de deixar de haver turmas separadas. (P3)
Conforme os depoimentos foi possível identificar que nesse período a estrutura da EF além de segregacionista também era muito frágil, o que trouxe em 1939, a Mocidade Portuguesa (MP) a Moçambique. Este órgão era responsável pela regulamentação e coordenação das práticas físicas na colônia, sendo orientado exclusivamente aos jovens oriundos da Europa e aos assimilados. Nesse segmento, cria-se em Portugal em 1940, o Instituto Nacional de Educação Física (INEF) e em 1969 inicia a formação de professores de EF em Moçambique que visava à formação de profissionais de nível médio (pré-universitário) para trabalhar como instrutores de EF (MINISTÉRIO DA JUVENTUDE E DESPORTOS, 2005). Desde a sua gênese, a EF moçambicana esteve ligada ao esporte e à educação militarista, características essas que espelham os currículos e programas atuais.
Esse aspecto fez com que este período fosse marcado por decretos e diplomas legislativos que tornavam a EF uma prática educativa nas escolas da colônia, para além de tentar retirar da EF escolar o caráter esportivo (DOMINGOS, 2010). Essas ações, embora não tenham logrado êxito pela carência de quadros na altura, demonstram o compromisso do macrossistema com o desenvolvimento e valorização da EF enquanto componente pedagógico.
A Era após a Independência de Moçambique
O segundo período (Era Pós Independência) teve início em 1975 (descrito em quatro fases) e foi marcado pelo fim da dominação colonial portuguesa e proclamação da independência nacional de Moçambique em 25 de Junho de 1975 (Figura 1). Essa transição administrativa trouxe consigo por um lado grandes desafios ao novo macrossistema que se deparou com a fuga massiva de quadros para a ex-metrópole. Por outro lado, muitos benefícios ao sistema educativo no que tange à adaptação dos currículos a realidade local e restituição dos direitos e liberdades foram fundamentais aos moçambicanos. É nessa conjuntura, que à luz da nova constituição da então República Popular de Moçambique, consagra-se o acesso e prática da EF e do esporte como um direito de todos os moçambicanos, como atestam os depoimentos:
[…] a constituição prevê a Educação Física como direito para todas crianças. (D4)
[…] esses nossos clubes o Maxaquene, o Desportivo, o Clube Ferroviário são do tempo colonial […] com a independência passaram a ser já benefício para os moçambicanos de uma maneira geral onde não se proibia que ninguém participasse de um clube desportivo […] praticasse uma modalidade desportiva que quisesse […]. (D3)
Nesse contexto, ao abrigo da lei, a EF ganhou uma visibilidade e legitimidade, sendo considerada um meio de promoção de saúde e bem-estar, bem como de educação integral no âmbito social, cultural, fisiológico e psicológico.
Com a independência nacional veio a necessidade da estruturação da educação no âmbito geral e da EF em particular, na qual ganha uma maior visibilidade com a criação da “Direção Nacional de Educação Física e Desportos”, cuja missão principal era a promoção da prática da EF e do esporte no sistema educativo. Alguns dirigentes destacaram essas mudanças em seus depoimentos:
[…] lembro-me que antes da entrada do Sistema Nacional da Educação em 76, 78 introduziu-se algumas alterações nos programas do ensino que mudavam a estrutura colonial […] o sistema colonial de uma maneira paulatina foi substituído com o que ia surgindo com a independência. (D3)
[...] Depois da independência, portanto de 1975 […] sim a Educação Física esteve integrada no Ministério da Educação, onde existia uma Direção Nacional de Educação Física e Desportos. (D4)
Essa nova estrutura da educação para área da EF e esporte gerou uma dinâmica nos programas de massificação e promoção da disciplina e da área, instituindo em 1978 os primeiros jogos esportivos escolares (Figura 2). Tais jogos foram um marco relevante para o microssistema (EF) no que diz respeito à promoção das disposições geradoras positivas nos escolares para um consequente desencadeamento de processos proximais eficientes, processos estes relacionados as interações recíprocas no contexto imediato dos estudantes para o seu próprio desenvolvimento (BRONFENBRENNER, 2011). De acordo com Bronfenbrenner e Morris (2005), as disposições geradoras têm como premissa a ativação e sustentação das interações sociais entre os indivíduos. Dessa forma, a prática do esporte possibilitada a todos os escolares por meio dos jogos teve o potencial para motivá-los à realização das atividades e melhora do condicionamento físico, persistência, determinação e cooperação entre os atletas e seus pares (FOLLE; NASCIMENTO; SOUZA, 2015). Essas evidências podem ser observadas nos depoimentos dos dirigentes:
[…] já há um movimento desportivo que levara os alunos para que de alguma maneira pudessem ter a prática de atividades desportivas [...] já se introduziu em 78 os Jogos Desportivos Escolares. (D3)
[…] há competições nas diferentes modalidades, tenho um exemplo [...] uma das melhores jogadoras de basquete nos africanos que houve aqui, ela foi nossa atleta no festival da província de Maputo […] partiu da nossa seleção. (D2)
Esses relatos são elucidativos em relação ao papel promotor de atributos pessoais positivos dos escolares em desenvolvimento, exercido pelos jogos esportivos escolares (JDE) criados em nível do macrossistema, os quais podem proporcionar altos níveis de autonomia e promover relações interpessoais, favorecendo a motivação autodeterminada dos alunos e consequente valorização da EF escolar (PIZANI et al., 2016). Para além disso, esses jogos representam para os envolvidos, uma busca por atividades mais desafiadoras fora do microssistema aula, o que acaba reestruturando positivamente o seu ambiente (COLLODEL-BENETTI et al., 2013), considerando que o jogo e a competição propiciaram experiências enriquecedoras tanto na dimensão social, quanto psicomotora no âmbito de Moçambique.
Esse paradoxo evidencia a necessidade da existência de um macrossistema que integre os microssistemas (micro, meso, exossistema), onde a criança vivencia o processo de desenvolvimento, garantindo dessa forma a sua inclusão (KREBS, 2011; NOBRE et al., 2014). Essa integração incrementa as contingências de desenvolvimento da criança, na medida em que as atividades sejam conscientes e orientadas para a tarefa (BRONFENBRENNER, 1996).
No segmento da estruturação do sistema educativo moçambicano, criou-se em 1983 o Sistema Nacional de Educação (SNE) que visava à implementação de novos programas de ensino em substituição dos programas do regime colonial. À luz da lei que cria o SNE (MOÇAMBIQUE, 1983) torna a EF obrigatória para todos os alunos do sistema a semelhanças das demais disciplinas curriculares.
Em sequência, criou-se a “Secretaria do Estado de Educação Física e Desportos” com o objetivo de conferir autonomia à área. Até 1985 a secretaria subordinava-se diretamente ao Conselho de Ministros, passando dois anos depois o seu titular a subordinar-se ao Ministério da Educação (MINISTÉRIO DA JUVENTUDE E DESPORTOS, 2005). Alguns depoimentos referenciam essas transições:
[…] com a introdução do Sistema Nacional de Educação em 1983, aparece já uma Educação Física estruturada onde é obrigatória na sala de aulas desde a 1ª classe até ao fim do ensino pré-universitário [...]. (D3)
[…] é uma disciplina curricular obrigatória para todos alunos de todo sistema, a partir de 1983 criou-se uma Secretaria do Estado de Educação Física e Desportos um órgão independente do Ministério de Educação […] este órgão ajudava mais em nível do ensino, em cada uma das direções de ensino existia lá um elemento que respondia pela Educação Física. (D4)
O envolvimento do macrossistema através da criação de departamentos que desenvolveram programas e iniciativas em nível dos microssistemas propiciou a promoção da EF nesses ambientes. Evidentemente a consistência dos programas e as interações entre os contextos, desde o mais remoto (macrossistema) até ao mais imediato (microssistema) garantiram o desenvolvimento da EF. Assim, o nível de estabilidade e predições em qualquer elemento dos sistemas, durante um tempo, forma uma ecologia do desenvolvimento (COLLODEL-BENETTI et al., 2013).
As consequências causadas pela guerra! Elas existiram?
De 1986 a 1992 houve uma estagnação no desenvolvimento do país em decorrência da guerra civil (envolvendo o governo-FRELIMO e o movimento de guerrilha-RENAMO) que se estendeu ao longo de 16 anos. Neste período, as escolas e outras infraestruturas foram destruídas, populações deslocadas, instabilidade e insegurança generalizada (Figura 3), afetando negativamente a EF, com a paralisação da realização da fase final dos JDE. Os jogos só foram retomados anos mais tarde (em 1998), após a assinatura em 1992 do “Acordo Geral de Paz” em Roma pelos beligerantes. Essa fase é ressaltada nos depoimentos de dois participantes:
[…] não havia condições para a prática regular porque é um movimento que reúne todas as províncias, numa zona na fase final […] então isso suspendeu-se durante a guerra agora reativaram os jogos escolares em 1998 até a atualidade. (D3)
[…] me lembro que a fase nacional dos Jogos Desportivos Escolares sofreu uma paralisação durante a guerra de desestabilização e só se realizava em zonas nesse período (P3)
Na perspectiva de Collodel-Benetti et al. (2013), este período foi marcado pela ocorrência de transições ecológicas não normativas em decorrência da guerra civil, onde muitos povoados foram obrigados a abandonar suas zonas de origem e o livre-trânsito pelo territorial nacional ficou ameaçado, levando o macrossistema a redefinir a questão da promoção da unidade nacional e da EF através dos JDE. Os eventos normativos ou não-normativos, segundo Krebs (1995) podem ter suas origens dentro ou fora do organismo do indivíduo. Conforme o autor, os eventos normativos são caracterizados como eventos esperados como a entrada na escola, puberdade, casamento ou aposentadoria. Já os eventos não-normativos na Abordagem Ecológica referem-se a momentos inesperados ou menos previsíveis que podem ocorrer ao longo do desenvolvimento de uma pessoa como doenças, morte, divórcios, mudanças, perda de emprego (KREBS, 1995). No caso do presente estudo, a guerra civil é identificada como um evento não-normativo, com impacto relevante sobre o desenvolvimento dos escolares, principalmente em relação às organizações das aulas de educação física e promoção dos jogos escolares.
Em busca de superação: a criação das instituições
A fase que vai de 1993 a 2013 teve como eventos relevantes para a área, a criação da primeira faculdade de EF e esportes do país na Cidade de Maputo, pelo então Instituto Superior Pedagógico (Universidade Pedagógico/UP) em 1993. A instituição foi denominada Faculdade de Ciências de Educação Física e Desportos (FCEFD). Importa referir que até então, a única instituição que formava profissionais na área de EF e esportes em todo país era o INEF, habilitando-os com o nível médio ou pré-universitário, para atuação com jovens de 17 a 19 anos (Figura 4). Desde o ano de sua criação, a FCEFD partilhou as mesmas instalações com o INEF até o ano de 2002, quando se extinguiu o INEF com o crescimento da FCEFD.
Essas duas instituições desempenharam um papel relevante na elaboração dos programas de ensino de EF, cooperando com o Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE) que é o órgão responsável pela elaboração dos currículos e programas de ensino. As transições e cooperações que caracterizaram este período foram ressaltadas em alguns depoimentos:
[…] o que aconteceu é que a partir do ano 2002, um pouco depois de ter aberto a faculdade de Educação Física, encerrou-se a formação média dos professores. Isso fez com que hoje, por exemplo, haja falta de professores formados em nível primário. (D4)
[…] o Ministério de Educação através do INDE é que faz os programas de ensino, nós trabalhamos com o conselho da Universidade Pedagógica faculdade de Educação Física concretamente […] professores do INEF e da faculdade, foi uma mais-valia no sentido de que eles deram seu contributo. (D3)
Se por um lado, a criação e crescimento da FCEFD trouxe um avanço na formação de professores para o ensino secundário, médio e superior, por outro lado, a extinção do INEF afetou negativamente a formação de professores qualificados para o ensino primário. Evidentemente, o INEF e a FCEFD desempenharam um papel relevante no desenvolvimento da EF ao colaborar com o INDE no design dos currículos de EF, indo além do seu papel de formação de professores e profissionais de EF.
Ainda nessa fase, foi criada a “Direção da Educação Física e Desporto Escolar, a Política do Setor da Educação Física e Desporto e a lei do Desporto” (MINISTÉRIO DA JUVENTUDE E DESPORTOS, 2005). A criação desses segmentos conferiu maior participação às empresas privadas, incentivando-as a se envolverem de forma mais efetiva na promoção de iniciativas no campo social, cultural e esportivo, visto que até então o macrossistema não havia legislado sobre tal matéria. Algumas dessas transições foram relatadas nos depoimentos dos dirigentes:
[…] em 1995 é quando se cria a Direção de Educação Física e Desporto Escolar, portanto ficou na responsabilidade dessa Direção tanto a Educação Física como o desporto. (D4)
[…] tem uma direção que tem a ver com a prática de atividades desportivas específicas então essa é uma direção criada por forma a poder de alguma maneira monitorar avaliar e acompanhar as atividades de Educação Física nas escolas, então essa direção se ocupa para além disso, também se ocupa com os Jogos Desportivos Escolares. (D3)
A legislação e políticas desenhadas pelo macrossistema permitiram que a EF e o esporte ganhassem mais apoio de instituições privadas no processo do seu desenvolvimento, fomentando maior envolvimento destas em ações esportivas e no apoio às iniciativas esportivas escolares, estabelecendo-se assim as interações inter-ambientais, caracterizadas pelo envolvimento de dois ou mais microssistemas na efetivação dos processos proximais (VIEIRA et al., 2015).
Na sequência, no âmbito da descentralização, em 2004 o governo central passou a tutela da educação básica aos Conselhos Municipais (CM), com o propósito de conferir mais autonomia às estruturas locais e imprimir maior dinamismo à máquina governativa. Nesse período, verifica-se a criação de laços indiretos, também consideradas ligações intermediárias, em que as novas estruturas envolvidas no desenvolvimento do microssistema não interagem face-a-face com os professores e alunos, mas exercem uma influência sobre o seu ambiente imediato. A este tipo de ligação, Bronfenbrenner (1996) chamou de rede social de segunda ordem. A identificação de tais ligações pode ser observada nos depoimentos que seguem:
[…] a nossa política atual é tentarmos descentralizar cada vez mais…o Ministério ter um papel de monitor e não de fazer as coisas política (…) com a descentralização a maior parte dos programas são feitos lá, localmente em nível do distrito. (D4)
[…] este processo de transferência vem já por aí 2004, é o nível básico que é de 1ª à 7ª classe que está na tutela do município, é a descentralização em si para que os governos locais possam ter certa autonomia no que concerne à educação básica […]. Então, paulatinamente, vamos nos inteirando, porque é um processo novo, claro ao nível dos documentos. Isto já tem longa data, mas a realidade é só agora que estamos a começar a nos inteirarmos deste processo [...] também é sabido que essa transferência ainda não é uma transferência em termos de recursos materiais, financeiros isso ainda não aconteceu. (D1).
No entanto, os depoimentos revelam que essa transição não foi efetiva na medida em que não abrangeu todos os níveis de ensino (somente o ensino básico) e nem a transferência dos recursos materiais e financeiros necessários para que o processo tivesse a dinâmica desejada, fazendo com que o setor da EF e esporte em nível do CM não sentissem autonomia para intervir ao nível das escolas, reservando-se apenas ao papel de observador.
Evidentemente, o macrossistema desenhou políticas de descentralização visando conferir maior dinâmica ao processo de desenvolvimento da educação, contudo essas políticas não foram acompanhadas de ações concretas que possibilitassem a sua execução, o que se observa especificamente no caso da área de EF que não ganhou o dinamismo esperado neste processo de descentralização. Ao analisar tal aspecto sob o olhar da Teoria Bioecológica, pode-se verificar que não houve integração de todos os microssistemas por parte do macrossistema de modo a garantir a concretização dos objetivos traçados (KREBS, 2011).
Em busca da avaliação do sistema de ensino
A última fase da estruturação da EF vai de 2014 a 2016, na qual o MEDH introduziu em 2014 o novo regulamento de avaliação do ensino (MOÇAMBIQUE, 2015), o qual trouxe maior visibilidade e valorização da EF, bem como do professor de EF ao colocar a disciplina em nível de igualdade com as demais disciplinas curriculares. Além disso, foi obrigatória a inclusão da classificação da EF no certificado de habilitações, passando assim a influenciar na aprovação do aluno no final de cada ciclo de ensino. A EF vale-se dos programas de ensino como pilares regimentares, nos quais estão definidos seus objetivos e metas, conforme aponta o “D4”:
[…] o programa de ensino tem para cada nível os seus objetivos bem definidos [...] o Ministério de Educação normalmente distribui os programas de ensino às Direções Provinciais e elas por sua vez vão fazer a sua distribuição ao nível distrital […] escola e todo professor na escola trabalha com base no programa de ensino. (D4)
Entretanto, o cumprimento dessas diretrizes depende das condições ambientais propiciadas pelo macrossistema para a implementação e sucesso das mesmas, ou seja, depende da estrutura de oportunidades e recursos existentes nos microssistemas. Em relação a isso, os informantes relataram por um lado algumas dificuldades para a aquisição de material esportivo/didático, dependendo para tal do orçamento do estado, da ajuda de parceiros de cooperação e/ou de receitas internas (arrendamento de recintos esportivos e taxas de matrículas) e, por outro lado a assimetria entre as escolas, na qual algumas não possuem nenhum recinto esportivo equipado:
[…] a compra do material desportivo provém ou do orçamento do estado ou de parceiros. […] as escolas têm alguns recintos desportivos que podem arrendar nos tempos livres, uma parte daquele valor pode servir para a compra do material desportivo […] uma parte daquele valor que eles alocam nas matrículas pode servir para compra de material. [...] bom, temos escolas com pouca infraestrutura, mas temos aquelas que também não têm infraestrutura. (D2)
[…]10% do orçamento da escola tem que funcionar para a Educação Física, mas o que acontece muitas vezes a gente fica sem receber, porque que não há nada, por exemplo, há dois anos que não se compra nada aqui […] nem dinheiro dos casamentos quando alugam para casamentos aqui não dão. (P3)
[...] não temos apoio externo, pelo menos por enquanto, já tivemos antes, mas foi momentâneo não foi de longa duração pela Right to Play no que dizia respeito ao material escolar. [...] não temos nenhuma área cimentada, não temos tabela, não temos ginásios [...] para que pudéssemos praticar um pouco de tudo que vem acordado no programa. (P2)
Claramente, as direções das escolas nem sempre canalizam o valor para a aquisição do material didático aos responsáveis da área de EF e quanto aos parceiros, sua ajuda é seleta, sendo direcionada para as escolas das zonas mais retiradas e desfavorecidas do país, em detrimento das escolas que se encontram próximas aos centros urbanos.
Além disso, o nível de assimetrias entre as escolas no que diz respeito à infraestrutura (Figura 6) e material didático, aliado ao currículo orientado para o desenvolvimento de habilidades esportivas, coloca em causa o cumprimento dos programas de ensino. A dicotomia entre a realidade dos contextos e os conteúdos programáticos foi explanada pelos informantes:
[…] é um processo que é preciso transformar as mentes das pessoas que dirigem o processo de ensino, muitas vezes nós temos que ir ao terreno e encontramos que o professor não tem material, é preciso trabalhar com os gestores das escolas para que olhem para essa disciplina […] se o professor não tiver material básico não vai poder cumprir com aquilo que são nossas exigências. (D4)
[…] essencialmente se for pegar todo o programa anual vai verificar que tem muita atividade coletiva quando comparada com a atividade individual [...], nós trabalhamos com modalidades individuais, principalmente devido à questão do espaço e do material. (P2)
[…] neste momento eu acho que a situação não é nada boa. [...] é o meio material que precisamos e não temos, estão aqui as bolas […] vou comprar duas bolas para ensinar 60 crianças? (P3)
Evidentemente, para que as diretivas traçadas se materializem, é necessário que tenhamos um macrossistema que agregue todos os microssistemas nos quais a criança vivencia o processo de desenvolvimento. Isso ocorre pelo fato de que as políticas públicas dependem dos valores derivados da cultura e das oportunidades existentes nos ambientes onde elas serão implementadas (KREBS, 2011). Contudo, nessas declarações ocorre a incongruência entre o postulado nos programas de ensino e as condições reais no terreno, revelando-se uma falta de integração por parte do macrossistema da realidade objetiva no planejamento curricular, o que dificulta a produção dos resultados desejados em nível dos microssistemas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação forneceu algumas pistas para a compreensão da evolução histórica da estrutura da Educação Física em Moçambique, evidenciando o papel do governo moçambicano como mediador para o desenvolvimento desta.
Deste modo, evidencia-se que o papel mediador e promotor exercido pelo macrossistema sobre os microssistemas, quando bem articulado, produz uma influência positiva, promovendo o seu desenvolvimento. Porém, a não agregação das diretrizes às necessidades e condições dos microssistemas pode afetar negativamente o sistema de crenças, oportunidades e valores influenciando negativamente o seu desenvolvimento.
A análise do contexto sociocultural da EF permitiu-nos inferir que durante o período colonial, a EF implementada no país, não foi capaz de contribuir para a superação da segregação racial e social, principalmente porque o ensino da EF e do esporte ocorreu para o benefício da elite colonial. Já no período pós-independência, ocorreu a euforia e esperança com a emancipação e participação inclusiva na EF e no esporte.
O governo de Moçambique desenhou políticas de massificação da área, apostando no esporte escolar. Entretanto, a desarticulação entre as diretrizes governamentais e a realidade local pareceu retardar a evolução da EF em Moçambique, revelando-se assim, que as políticas do governo não provocam efeitos imediatos e desejados.
Convém ressaltar que a iniciativa deste artigo busca apenas promover uma reflexão no âmbito de um país massacrado e sofrido, que buscou por meio da EF e esporte alavancar políticas públicas de reconstrução nacional. Recomendamos a continuidade de estudos relacionados à temática, pois as mudanças culturais e estruturais são lentas e necessitam ser investigadas na visão de alunos e de toda a comunidade escolar.