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Motrivivência

versión On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.62 Florianópolis abr./jun 2020  Epub 01-Mayo-2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e66851 

Artigo Original

As mulheres no tiro de laço: notas etnográficas sobre a participação das mulheres em uma prática dita masculina

Women in shooting: ethnographic notes on women's participation in a so-called male practice

Mujeres en el rodaje: notas etnográficas sobre la participación de las mujeres en la llamada práctica masculina

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento humano, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil


RESUMO

Neste estudo, apresento uma discussão sobre a participação de mulheres em uma prática esportiva da cultura gaúcha, dita masculina, o tiro de laço. Para obtenção dos dados dessa pesquisa realizei um estudo etnográfico, onde participei durante um período em rodeios que aconteciam no Litoral Norte do Rio Grande do Sul e também de reuniões de uma entidade tradicionalista, afim de me aproximar e acompanhar mulheres que participavam dessa prática em particular. Ao longo do trabalho de campo pude perceber que as mulheres estão cada vez mais ganhando espaço dentro dessa prática, despertando interesse de espectadores e fazendo com que a organização desses eventos passe a valorizar mais a modalidade de prendas ofertando prêmios maiores para chamar a atenção dessas competidoras.

Palavras-chave: Gênero; Tiro de laço; Mulheres; Rodeios

ABSTRACT

In this study, I present a discussion about the participation of women in a sports practice of the gaucho culture, called masculine, the lace shooting. To obtain the data from this research I conducted an ethnographic study, where I participated during a period of rodeos that took place in the North Coast of Rio Grande do Sul and also meetings of a traditionalist entity, in order to approach and accompany women who participated in this particular practice. Throughout the fieldwork I noticed that women are increasingly gaining space within this practice, arousing interest of spectators and making the organization of these events to value the mode of gifts by offering larger prizes to attract the attention of these competitors.

KEYWORDS: Gender; Loop shooting; Women; Rodeos

RESUMEN

En este estudio, presento una discusión sobre la participación de las mujeres en una práctica deportiva de la cultura gaucha, llamada masculina, el tiro al encaje. Para obtener los datos de esta investigación, realicé un estudio etnográfico, donde participé durante un período de rodeos que tuvo lugar en la costa norte de Rio Grande do Sul y también reuniones de una entidad tradicionalista, para acercarme y acompañar a las mujeres que participaron en esta práctica en particular. A lo largo del trabajo de campo, noté que las mujeres están ganando cada vez más espacio dentro de esta práctica, despertando el interés de los espectadores y haciendo que la organización de estos eventos valore el modo de obsequios al ofrecer premios más grandes para atraer la atención de estos competidores.

PALABRAS CLAVE: Género; Tiro en bucle; Mujeres; Rodeos

INTRODUÇÃO

O presente texto é um recorte feito de uma dissertação1, em que se procurou compreender como as mulheres praticantes do tiro de laço vêm se inserindo e estão engajadas no contexto da cultura gaúcha e dessa prática em particular. O tiro de laço é uma atividade que acontece nos rodeios crioulos gaúchos e se constituiu como uma prática dita masculina.

Inicialmente com o surgimento dos Centros de Tradições Gaúchas, em 1947, com a criação do primeiro CTG o 35, uma das suas finalidades era de ser uma entidade onde os homens participariam, se reunindo em galpões. Segundo Dutra (2002), a atuação feminina não havia sido idealizada quando os primeiros passos para a criação do Movimento Tradicionalista começaram a ser dados. Assim, a formação do Movimento que estava se iniciando, não contava com mulheres. As primeiras reuniões que aconteceram após as comemorações de 20 de setembro de 1947, ocorreram apenas com a presença de homens.

Segundo Cunha e Karawejczyk (2014), seria no ano de 1949, dois anos após a fundação do primeiro CTG, que começou a se pensar sobre a ausência das mulheres dentro da entidade tradicionalista. Porém, foi somente com a criação da primeira invernada de danças tradicionalistas que a mulher efetivamente passou a poder participar do CTG. Após esse o início da participação das mulheres dentro do CTGs, primeiramente realizando tarefas de acordo com o gênero feminino, elas começaram a ocupar espaços, antes destinados aos homens. Sendo um desses espaços a prática do tiro de laço.

O tiro de laço é uma prática existente dentro da cultura gaúcha, que ocorre dentro dos Rodeios Crioulos Gaúchos, que são eventos organizados pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, cuja principal finalidade é a preservação da cultura gaúcha.

No que se refere às suas regras, o tiro de laço, segundo o que consta no site do Movimento Tradicionalista Gaúcho, é uma competição no qual o laçador utiliza o cavalo para correr atrás de um boi no espaço de 100 metros e deve acertar as aspas2 do animal, caso o competidor não conseguir acertar as aspas, a laçada é considerada “branca” e o competidor é eliminado. Já o laçador que acertar todas as armadas3 será o vencedor da competição.

Com essa característica, originária das ‘lides campeiras’, o tiro de laço vem sendo praticado a algumas décadas, inicialmente em fazendas no interior das cidades, mas cada vez mais essa prática vem ganhando competidores. Em que pese o avanço dessa modalidade na cultura gaúcha, só de uns tempos para cá que as mulheres vêm nela se inserindo.

E a inserção das mulheres nessa prática é o tem central desse estudo, como já mencionado. Para realização dessa pesquisa foi utilizado a etnografia que se baseia no estudo das culturas, tendo como características importantes o olhar e escutar. A etnografia é composta por algumas técnicas, que são importantes na produção de dados, o que está amplamente relacionada ao trabalho de campo. Para Rocha e Eckert (2008), o trabalho de campo se materializa a partir de uma convivência com determinado grupo por um tempo prolongado. No caso desse estudo, ao todo foram 13 meses em que permaneci em campo para obtenção de dados.

ELA LAÇA IGUAL A UM HOMEM”: a participação das mulheres na prática do tiro de laço

No começo era só os homens que tinham fazenda ou trabalhavam no campo ou para quem tinha campo. O pessoal que ia nos rodeios já sabia laçar, aprendia pegando o gado no campo. Era só os homens mesmo, mulher não trabalhava no campo, não era coisa delas, então elas não laçavam também (Diário de campo, 19/12/2018).

Este trecho descrito acima foi extraído de uma das várias conversas que tive com José, homem de meia idade, muito conhecido nos rodeios por já ter ganho diversas competições e laçar a muito tempo, inclusive esteve presente nas primeiras edições de diversos rodeios do Litoral Norte/RS e também de fora do Estado. José viu e participou muito do início das competições do tiro de laço no Litoral Norte gaúcho, e segundo ele no início as mulheres não competiam, a participação delas levou um bom tempo a acontecer depois que os primeiros rodeios foram surgindo.

A modalidade do laço prenda4 é recente, não existem dados que apresentem quando essa prática iniciou nos rodeios. O tiro de laço inicialmente contava com poucas competidoras, muito amadoras e os prêmios ofertados eram bem baixos, mas também não se cobrava inscrição das competidoras. Atualmente essa realidade vem se modificando, em alguns rodeios chegam a participar quase cem mulheres inscritas no laço prenda. Todas pagam para poder laçar e o número de concorrentes é estabelecido de acordo com a premiação. Se for um prêmio bom, o número de mulheres disputando vai ser alto, mas se não for bom, esse número de inscritas acaba por ser reduzido.

Em determinados rodeios, quando são ofertados ‘grandes prêmios’5, como um reboque, por exemplo, e o laço prenda também acaba ganhando uma outra nomenclatura junto desses grandes prêmios. Esses rodeios acabam denominando por exemplo como a disputa das prendas de: “Soberanas do Laço”, “Rainha do Litoral”, “As Dez Mais”, entre outros, além de ofertarem às campeãs camisas com a estampa desses nomes. Essa é uma maneira de divulgar esses rodeios em outros lugares, além de chamar a atenção das competidoras, que querem ostentar o título de “Soberana do Laço”. Além dessa divulgação as mulheres que competem sempre vêm acompanhadas dos seus familiares, o que gera um número maior de participantes nos eventos. A divulgação acaba se fazendo através do uso das camisas que as campeãs recebem, essas acabam vestindo suas camisas em outros rodeios, além de divulgarem nas redes sociais, través das fotos exibidas em seus perfis.

No entanto, apesar de ocorrerem grandes mudanças em relação à participação das mulheres e existir uma modalidade específica para elas nos rodeios, o laço prenda é colocado em um horário onde não se tem muita visibilidade, o que corre na maior parte das vezes aos domingos de manhã. Como no caso de um rodeio que acompanhei, a modalidade das prendas foi a primeira disputa do domingo:

O laço prenda estava marcado para começar as 7:30 da manhã, seria a primeira disputa, cheguei lá por volta das 8H30, mas como estava chovendo muito, havia atrasado o início da competição, assim pude acompanhar quase toda a modalidade. Chovia muito, mas, mesmo assim, muitas mulheres estavam competindo e apesar de ser um horário muito cedo a arquibancada estava bem cheia (Diário de campo, 20/01/2019).

Contudo, por mais que esse evento tenha colocado a disputa da modalidade do ‘laço prenda’ para ser a primeira do dia, começando às 7h30 da manhã, muitas pessoas estavam nas arquibancadas para acompanhar essa modalidade. O interesse pelo laço prenda vem crescendo, não somente por mulheres que querem disputar, mas também por outras pessoas que estão lá apenas para acompanhar essa modalidade como espectadores. Nos rodeios que acompanhei, em algumas vezes durante a disputa das prendas, os narradores anunciavam que as prendas deveriam realizar aquela disputa durante “o horário nobre” do domingo. Para os competidores do tiro de laço, laçar no “horário nobre” significa laçar durante a tarde, momento em que tem o número maior de espectadores assistindo na arquibancada.

Um dos motivos que gera esse número grande de espectadores durante as disputas de laço prenda, mesmo que eles ocorram por muitas vezes no início da manhã, se deve, de acordo com outros competidores, ao fato de algumas competidoras estarem em um grau considerado de excelente nível. Fato este que podemos observar na fala do José:

No começo não tinha muita guria laçando, era meia dúzia, mal pegavam uma armada. Daí hoje tem umas que laçam igual os homens, competindo de igual. Daí chama a atenção, todo mundo passa a saber quem são elas. Pode ver que as boas sempre estão na final das disputas (José, diário de campo, 13/02/2019).

De acordo com a fala de José apresentado acima, as mulheres que competem no tiro de laço passaram a chamar atenção por conta da evolução da sua habilidade. No entanto, nem todas estão no mesmo nível de disputa fazendo com que constantemente só algumas se destaquem e sejam sempre essas que cheguem ao final das disputas e se tornem as campeãs.

Outro ponto relevante desse trecho é uma fala que foi muito recorrente ao longo do trabalho de campo, e acabou se tornando parte do título desse capítulo: “ela laça igual aos homens”. Muitas vezes quando eu estava sentada na arquibancada e uma dessas competidoras que se destacavam passavam laçando, era comum escutar alguém pronunciar essa frase, ou até mesmo durante conversas nos acampamentos, eram feitos comentários como: “aquela guria parece um homem laçando”. De acordo com essa, que era recorrente as mulheres que laçam e se destacam nas provas do tiro de laço, vem de encontro a muitas questões relacionadas ao gênero e a participação de homens e mulheres em práticas esportivas. Jaeger (2006) descreve que muitas dos argumentos estão associadas a questões biológicas para defender o domínio masculino nos esportes e em vários outros contextos. Ainda de acordo com a autora:

[…] a mídia tem tratado com desigualdades mulheres e homens nas suas coberturas esportivas, priorizando a presença masculina em seus programas e marginalizando mulheres. Quando se veicula reportagens sobre a prática esportiva feminina elabora as suas matérias, geralmente, comparando as performances das mulheres em relação às dos homens na mesma modalidade (JAEGER, 2006, p. 204).

A visibilidade em torno das mulheres que praticam esportes, que competem, assim como no tiro de laço é visivelmente menor do que a dos homens. Quando algumas dessas mulheres praticantes ganham algum tipo de destaque, o que acaba ocorrendo é uma comparação do desempenho de mulheres com homens.

Essas questões relacionadas ao conceito de gênero, o que diferencia as mulheres dos homens, vivem cercadas por debates e diferentes perspectivas sobre o seu entendimento. Uma dessas perspectivas relacionadas a este conceito, a pós-estruturalista, que é seguida por Meyer (2004), onde a autora destaca que as diferenças entre as mulheres e os homens estão relacionadas as construções sociais destes, durante o trabalho de campo o que foi possível ainda observar, a partir das falas das pessoas que encontrei no campo, é que as questões tidas como biológicas ainda são elementos utilizados para se estabelecer as diferenças na participação de mulheres e de homens. Goellner também se opõe que as diferenças entre mulheres e homens sejam pautadas por questões biológicas. Para a autora existem várias formas de ser mulher e de ser homem, sendo que nenhuma se relaciona com a questão biológica.

É necessário pensar, então, que os sujeitos não são apenas homens ou mulheres, mas homens e mulheres de várias etnias, classes, religiões, gerações, etc., Portanto, há diferentes mulheres e diferentes homens sendo que suas identidades se constroem ao longo da vida através de inúmeras práticas sociais (GOELLNER, 2007, p. 180).

Tanto para Meyer quanto para Goellner, as questões que diferenciam as mulheres dos homens são construídas socialmente, a partir das vivências de cada sujeito. No entanto, A questão de laçar igual a um homem, característica dada às competidoras que se destacavam no tiro de laço, se relaciona muitas vezes com a aparência física de algumas mulheres, em relação à força e também pelo fato de que apenas os homens laçavam bem. Logo quando uma mulher laça bem é porque está se igualando ou parecendo com um homem. As mulheres competidoras que muitas vezes se tornavam campeãs da modalidade de laço prenda e até de outras existentes nos rodeios, a elas eram colocados alguns atributos que naquele espaço só se pertencia aos homens: “olha o tamanho do braço dela”, “ela é graudona, tem força” (Diário de campo, 18/01/2018). Em uma entrevista feita com uma competidora, essa questão do preparo físico dos homens em relação ao das mulheres fica evidente em uma das respostas:

Amanda: São poucas mulheres que chegam nesse mesmo nível que tu chegaste no tiro de laço, comparado ao número de homens, qual o motivo tu podes apontar que leva os homens a se destacarem mais que as mulheres?

Alice: Maioria dos homens tem mais apoio, se dedicam mais, tem mais vontade, tem mais patrocínios, eles têm um corpo mais preparado, tem que treinar para tentar chegar perto do nível deles (Diário de campo, 29/01/2019).

Para Alice alguns fatores fazem com que os homens se destaquem mais nas competições do tiro de laço. Alguns estão relacionados ao patrocínio, os que possuem patrocínio acabam tendo mais tempo para se dedicar e treinar. Além da questão biológica destacada por ela, como o corpo mais preparado o que faz com que mais homens se destacassem no laço do que as mulheres. E as mulheres que ganhavam as competições de laço, não era nelas observada a sua qualidade ou até um certo ‘dom’, mas sim além de resistência, para enfrentar certas adversidades, como as do clima, se elas possuíam força para poder bolear bem uma armada, assim como os homens que biologicamente possuem mais força do que as mulheres. Contudo, quando se referia aos homens que laçavam bem e se destacavam nas competições, a força não era sinônimo de qualidade. “O cara laça bem, também é só o que faz” (Diário de campo, 20/09/2018), “Eu sou diferenciado, tenho um dom, sempre ganhei os rodeios” (Diário de campo, 16/09/2018). Aos homens a dedicação, quase que exclusiva ou até ‘ter o dom’ era o que fazia com que alguns se destacassem, diferente do que ocorria com as mulheres.

Assim sendo, esse acabou por se tornar um contexto onde as questões biológicas vêm ainda se sobrepondo a outras, para determinar as diferenças de gênero, principalmente durante a prática do tiro de laço, onde, para os próprios participantes, mulheres ‘necessitariam’ de características masculinas para se saírem bem. Assim conforme descreve Meyer, o gênero não é associado a apenas uma perspectiva, mas este conceito vem se relacionando com questões opostas a determinações biológicas, estando associado a cultura das pessoas. De acordo com a autora:

Por um lado, gênero vem sendo usado como um conceito que se opõe - ou complementa - a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a (s) cultura (s) inscreve (m) sobre corpos sexuados.

[…]. Ou seja, em algumas dessas vertentes continua-se operando com o pressuposto de que o social e a cultura agem sobre uma biologia humana universal que os antecede (MEYER, 2004, p.15).

Dessa forma as questões biológicas ainda se fazem muito presentes quando vai se pensar nas diferenças entre as mulheres e os homens. Em vista disso, em um dos primeiros excertos do diário de campo exposto aqui nesse capítulo, onde José fala que inicialmente só os homens competiam nos rodeios, pois era uma competição em que os participantes eram homens que trabalhavam no campo, na lida com o gado, podemos pontuar que essa relação inicial da não participação feminina no tiro de laço se dá pela condição de atuação das mulheres.

Podemos considerar que, por mais que alguns competidores do tiro de laço coloquem questões biológicas como essências para prática dessa atividade, a construção social dos papéis de mulheres e homens na sociedade também é vista como responsável por determinar as atividades feitas por determinado sexo. Deste modo não podemos descartar outros apontamentos, como as questões sociais e apenas colocar os fatores biológicos como única questão que diferencia a participação das mulheres em relação a dos homens no tiro de laço.

Feita essa pequena reflexão em relação às perceptivas alusivas ao gênero e a relação dessas com o campo estudado, retornamos as questões primordiais da participação das mulheres no laço.

Durante uma ida ao campo em um evento o ‘Desafio dos Muralhas do laço’, que tinha um prêmio bem alto e uma taxa de inscrição também, o que gerou uma pouca procura por competidores do tiro de laço. Um total de trinta e seis, destes apenas duas mulheres, escutei a fala de um homem, que também laça, mas não estava participando daquele desafio, que me fez pensar que o preconceito ainda era presente naquele espaço em relação as mulheres que laçam. O homem, identificado como Bruno, estava organizando uma aposta entre as pessoas que estavam na arquibancada.

Em determinado momento os laçadores que estavam ali apenas olhando começaram uma aposta, quem quisesse participar deveria jogar 50,00 em um dos laçadores que estivessem disputando o desafio das muralhas do laço, não podiam apostar no mesmo nome. Os laçadores que estavam participando deste desafio eram conhecidos por estes que estavam na arquibancada, por sempre estarem nas disputas de grandes rodeios e por muitas vezes vencerem, acabaram se tornando famosos no mundo dos rodeios e muitas vezes admirados pelo seu desempenho nas canchas.

As apostas começarem eles chegarem a quase 600,00 de apostas, vários nomes dos laçadores estavam no caderninho das apostas, menos 1 o da única mulher que ainda estava na disputa Alice.

O laçador que estava organizando as apostas Bruno, de maneira um pouco debochada disse a sua esposa:

- Te empresto 50,00 para apostar na Alice

Ela respondeu:

-Por que tu não apostaste nela?

Ele ficou calado, não a respondeu só deu uma risada.

Fagundes que estava ao meu lado, mas não participando da aposta, disse em tom alto

-A Alice laça melhor que muitos homens que estão ali competindo, de igual. Não apostaram nela pois são machistas, não querem admitir que uma mulher lace melhor que eles, tudo machista (Diário de campo, 02/09/2018).

A questão do preconceito em relação às mulheres que laçam é presente, mas de uma maneira disfarçada, outros laçadores não falam de maneira clara, assim como o Bruno que em tom de brincadeira acabou por ironizar a participação da única mulher naquela disputa. O não apostar em uma mulher, não se deu pelo fato de eles terem certeza que ela não iria vencer, pois alguns homens que estavam ali competindo, nesse desafio, não eram vistos como adversários diretos para a Alice, mas tiveram apostas feitas em seus nomes. No entanto nenhum deles iria apostar em uma mulher, pois não assumiriam que ela pudesse ser melhor que um deles.

Deste modo é possível observar que nas falas expostas no trecho do diário de campo, destacado acima, a mulher que estava participando daquele desafio, por mais que tivesse um bom desempenho em outras competições, ali era vista como não sendo uma boa aposta. Por mais que Bruno fosse o responsável por gerenciar a aposta e ironizar a participação da Alice no desafio das muralhas, nenhum dos outros presentes chegou a cogitar realizar a sua aposta no nome da dela. Nenhum acreditava que uma mulher conseguiria bater todos aqueles outros competidores. Vale ressaltar que todos que estavam ali competindo naquele desafio eram pessoas conhecidas pelos que frequentavam os rodeios, incluindo a Alice.

Por mais que Alice de fato não tenha conseguido vencer, ela chegou entre os dez últimos competidores e acabou perdendo a armada, mas ficou na frente de alguns nomes que estavam nas apostas feitas. Mesmo não vencendo Alice acabou ficando entre os dez primeiros colocados, não levou nenhuma premiação, no entanto contrariando muitas apostas ficou na frente de vários nomes que foram apostados. Talvez alguns dos que apostaram sabiam que isso poderia acontecer, pois os que estavam participando da aposta eram pessoas que laçavam, conheciam os que estavam competindo, conheciam a Alice e sabiam da sua habilidade, que fazia com que ela pudesse chegar à frente dos outros competidores. Entretanto por que seu nome não estava nas apostas?

A questão que envolve a participação das mulheres em esportes e por muitas vezes acaba por descriminá-las e em determinadas épocas chegou até serem impedidas de participarem em atividades esportivas, pode se relacionar com um raciocínio descrito por Goellner “A lógica que sustenta afirmações desse porte é aquela que vê homens e mulheres como seres diferentes e em oposição, possuidores de corpos que são igualmente diferentes e se constituem, igualmente em oposição” (Goellner, 2007, p.185). Assim o homem tende a ter um corpo mais apto para a realização de atividades esportivas, enquanto as mulheres são vistas como mais fracas, delicadas e tendem a realizar atividades mais propensas a sua forma corporal. Durante a entrevista com a competidora Alice, ela deixa claro que ainda existe certa discriminação:

Amanda: Ao longo desse tempo todo que tu laças já enfrentou alguma dificuldade ou preconceito por ser mulher e competir com uma maioria de homens?

Alice: Sim sempre tem, até as vezes os homens não querem laçar comigo por ser mulher, mesmo eu sendo do mesmo nível que eles ou até melhor, isso acontece.

Amanda: Quando alguém se nega a laçar contigo qual a tua reação?

Alice: Na verdade nunca me negaram, eu espero convite, mas tipo como falei ali em cima que tem homem que fala, mulher não laca comigo ou na minha equipe esse tipo (Alice, 29/01/2019).

No excerto do diário de campo acima é possível ver na fala da Alice que por mais que ela esteja em um alto nível de rendimento no tiro de laço, muitos homens não queriam laçar com ela. Durante a pesquisa as razões por homens se negarem a laçar com mulheres, em algumas vezes, como relatado por Alice, não foi encontrado. Não era um assunto tocado pelos competidores. No entanto, na pesquisa realizada por Damo (2007), o autor destaca que os meninos que jogavam bola na rua Leão XIII, argumentavam que as meninas: “Não sabiam jogar e por isso atrapalhavam o jogo. Os argumentos mascaram, em grande parte, o fato de que o jogo com presença de meninas tende a ser interpretado, pelos próprios meninos, como um jogo que não é jogado a valer” (p144).

Em relação as jogadoras de futsal que participaram da pesquisa da Silveira (2008), muitas daquelas eram muito habilidosas, mas diferentes de homens habilidosos no futebol, não tinham chances de prosperarem nesse esporte. Assim como as mulheres que competem no tiro de laço, onde muitas vezes não eram vistas por alguns homens como uma possível integrante de suas equipes para as competições. E como relatou Alice, que mesmo ela que tinha um bom rendimento, esperava por convites dos competidores para laçar, tinha receio em convidá-los, o que mais uma vez não se observa em relação aos homens. As oportunidades a eles nos esportes são diferentes em relação as mulheres nas práticas esportivas, começando com a sua participação que é sempre aceita e possibilitando que eles tenham maiores chances de crescerem nos esportes, sendo jogando futebol ou competindo no tiro de laço.

No entanto, como Alice destacou que está em um nível de competição igual ou até melhor do que muitos homens, sempre acaba recebendo convites para laçar com alguém do sexo oposto. Silveira (2008), ao realizar seu estudo com um time de futsal feminino, descreve que as mulheres investigadas iniciaram jogando o futebol de rua, onde se encontra exclusão de meninas quando não são consideradas boas jogadoras, também pelos meninos julgarem não ter graça jogar contra meninas. No entanto algumas das jogadoras por ela investigadas relataram que a exclusão durante essa prática na rua com meninos não ocorria “Luana, por exemplo, afirma ser a única menina que jogava na rua e apesar disso era bem-aceita pelos meninos” (p.72). A questão de ser aceita ou não, nessas práticas consideradas masculinas, se relaciona com diversos fatores, incluindo o desempenho das mulheres, como no caso de Alice que conquistou destaque no tiro de laço por ganhar diversas modalidades nos rodeios e mesmo com seu espaço conquistado ainda passava por situações um tanto discriminatórias.

Entretanto, ao conversar com outras mulheres que competem no tiro de laço a questão de preconceito, exclusão por parte de outros competidores, não é uma situação na qual elas vivenciaram.

Amanda: tu já sofreste algum preconceito por ser uma mulher que laça?

Laura: Comigo não, nunca me falaram nada, sempre foi bem tranquilo. (LAURA, 09/01/2019).

Amanda: Por ser mulher e laçar com a maioria de homens, tu já percebeste algum tipo de discriminação?

Luísa: Eu nunca escutei nada, comigo nunca aconteceu, mas tipo assim já escutei histórias de que acontecem com outras meninas. Tipo de homens que laçam falarem alguma coisa, o que uma mulher quer laçando (LUÍSA, 05/12/2018).

Porém, ao contrário do que aconteceu com uma das mulheres investigadas por Silveira (2008), que disse não ter sofrido nenhuma discriminação no tempo em que jogava com meninos, por ser uma ‘boa’ jogadora, Alice que é tida como uma das principais6 competidoras femininas do tiro de laço, no Estado do Rio Grande do Sul, e relata ter passado por situações de hostilidade. Para Laura e Luísa que se encontram em um nível abaixo7 de Alice, relatam não ter nenhum problema por ser mulher e laçar, talvez seja porque elas não fazem ‘sombra aos homens’, o que não ocorre no caso da Alice.

CONCLUSÃO

É possível observar, com os dados dessa pesquisa, que por mais que o tiro de laço seja uma prática dita masculina, que incialmente não contava com a participação das mulheres, podemos perceber que as mulheres estão começando a ter seu espaço. Estão começando a fazer ‘sombra aos homens’, disputando com eles. Portanto, por mais que as questões voltadas ao Movimento Tradicionalista tenham sido idealizadas por e para os homens as mulheres já estão presentes, atuando de diferentes formas e cada vez mais interessadas pela prática do laço.

Relatos como estes, vindo de mulheres que estão participando de uma prática que se constitui em uma cultura masculina, são importantes para observamos que as mulheres estão cada vez mais ocupando lugares diferentes, lugares que antes não eram destinados a elas.

Em relação a questões de preconceito, verifiquei, a partir da fala das competidoras, que ele existia, dependia do nível de rendimento destas. Assim, mesmo que as mulheres estejam participando do tiro de laço, elas ainda enfrentam algumas adversidades, principalmente quando elas se destacam nas competições.

REFERÊNCIAS

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1 O estudo que deu origem a este artigo submetido recebeu auxilio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2A palavra aspas é o termo utilizado para se referir ao chifre do gado.

3Armada é um termo que significa que o competidor do tiro de laço jogou o laço nas aspas do bovino.

4O laço prenda é uma das inúmeras modalidades existentes nos rodeios, sendo que essa é disputada exclusivamente por mulheres. As outras existentes (duplas, laço patrão, laço capataz), não tem restrição para homem ou mulher. No entanto algumas contam com um pré-requisito, para laçar o patrão é necessário ser patrão de uma entidade tradicionalista.

5Os grandes prêmios oferecidos nos rodeios para a modalidade de prendas geralmente são um reboque como já mencionado, moto, ou um valor alto em dinheiro.

6Alice ao longo de sua carreira dentro do tiro de laço coleciona vários títulos, e muitos prêmios, como: 3 carros, 47 motos, e o título de campeã Internacional do rodeio da Vacaria, um dos principais rodeios do Rio Grande do Sul.

7Laura e Luísa, não ganharam nenhum carro, moto e nunca participaram do rodeio Internacional da Vacaria, apenas competem nos rodeios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

AGRADECIMENTOS Agradecemos aos colegas do grupo de estudos GESEF, por toda contribuição no campo de estudo etnográfico. As trocas durante os debates de textos ao longo das reuniões tornaram-se fundamentais para construção dessa pesquisa

FINANCIAMENTO A pesquisa foi financiada através da bolsa de estudos CNPQ

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LICENÇA DE USO Os autores cedem à Motrivivência - ISSN 2175-8042 os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution Non-Comercial ShareAlike (CC BY-NC SA) 4.0 International. Esta licença permite que terceiros remixem, adaptem e criem a partir do trabalho publicado, desde que para fins não comerciais, atribuindo o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico desde que adotem a mesma licença, compartilhar igual. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico, desde que para fins não comerciais e compartilhar com a mesma licença

PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 01 de Agosto de 2019; Aceito: 09 de Novembro de 2019

amandapyress@hotmail.com

stigger.mp@gmail.con

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA Concepção do manuscrito: A.J. Pires, M. P. Stigger Coleta de dados: A. J. Pires Análise de dados: A. J. Pires Discussão dos resultados: A. J. Pires Produção do texto: A. J. Pires Revisão e aprovação: M. P. Stigger

CONFLITO DE INTERESSES

Não se aplica

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