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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.62 Florianópolis abr./jun 2020  Epub 01-Maio-2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e67164 

Artigo Original

Educação Física e questões de gênero: motivos para a escolha de modalidades esportivas por estudantes do ensino médio de uma escola militar

Physical Education and gender issues: reasons for choosing certain sports by high school’s students in a military school

Educación Física y cuestiones de género: motivos para la elección de modalidades deportivas por estudiantes de secundaria de una escuela militar

Lara Félix Jacoby1  2 

Silvana Vilodre Goellner1 
http://orcid.org/0000-0002-1990-665X

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

2Colégio Militar de Porto Alegre, Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil


RESUMO

Resumo: O Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) permite que os/as estudantes escolham a modalidade esportiva que querem praticar na Educação Física regular. As alunas tendem a ir para um tipo de atividade enquanto os alunos tendem a ir para outro. O artigo tem por objetivo debater os motivos das escolhas de modalidades e as percepções de alunos e de alunas do segundo ano do Ensino Médio do CMPA acerca das questões de gênero emergentes nas aulas regulares de Educação Física. A metodologia foi composta pela observação participante e realização de grupos focais nas turmas de futebol de campo (27 alunos e uma aluna), atividades físicas (32 alunas e um aluno) e basquetebol (9 alunas e 10 alunos). Concluiu-se que os direcionamentos são determinados principalmente pelas diferenças entre as vivências corporais de alunos e de alunas, em que o marcador gênero tem significativa influência.

PALAVRAS-CHAVE: Estudos de gênero; Educação física escolar; Coeducação

ABSTRACT

The Military School of Porto Alegre allows students to choose the sport they would like to practice during regular Physical Education classes. Female students tend to choose one type of activity while male tend to choose other. This article aims to debate the reasons why second year of High School students’ do their choices in sports as well as their perceptions about gender issues that may emerge from the classes. The methodology was composed by observation and focus groups in the soccer (32 male and one female), the physical activities (32 female and one male) and the basketball (nine female and ten male) classes. We concluded that the students’ choices are mainly determined by the previous experiences related to physical activities and are significantly related to gender issues.

KEYWORDS: Gender studies; Physical education; School; Coeducation

RESUMEN

El Colegio Militar de Porto Alegre (CMPA) permite a los/las estudiantes elegir la modalidad deportiva que quieren practicar en la Educación Física regular. Los estudiantes tienden a ir a un tipo de actividad mientras que los estudiantes tienden a ir a otro. El artículo tiene por objeto debatir los motivos de las opciones de modalidades y las percepciones de alumnos y alumnas de segundo año de enseñanza media del CMPA sobre las cuestiones de género emergentes en las clases regulares de Educación Física. La metodología fue compuesta por la observación participante y realización de grupos focales en las clases de fútbol de campo (27 alumnos y una alumna), actividades físicas (32 estudiantes y un alumno) y baloncesto (9 alumnas y 10 alumnos). Se concluyó que las direcciones son determinadas principalmente por las diferencias entre las vivencias corporales de alumnas y alumnos donde el marcador de género tiene una influencia significativa.

PALABRAS-CLAVE: Género; Educación física; Escuela; Coeducación

INTRODUÇÃO

No âmbito escolar, a Educação Física (EFI) caracteriza-se como uma disciplina curricular, cujo acontecer coloca o corpo como objeto de estudo e de intervenção. De acordo com Silvana Goellner (2008), o corpo não é dado a priori, mas está em constante transformação. Recebe marcas culturais, sociais e étnicas, sendo perpassado por tempos e culturas, refletindo diferentes rituais e simbologias. O corpo é uma construção cultural inacabada, e as aulas de Educação Física configuram-se como espaços nos quais são produzidas e reproduzidas gestualidades, considerando a história, as influências e o contexto social de cada estudante. Nesse cenário, o artigo tem como objetivo conhecer os motivos das escolhas de modalidades esportivas pelos alunos e alunas do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA). A categoria analítica que vai pautar as discussões deste estudo é o gênero, o qual Joan Scott (1995, p. 86) afirma ser “a forma primária de dar significação às relações de poder”. Assim, partindo do entendimento de que o gênero não é inato, mas aprendido nas mais diferentes instâncias sociais, inclusive na escola, cabe destacar que a EFI se configura como um território no qual acontece essa aprendizagem na medida em que se traduz como um espaço generificado (marcado pela diferença de gênero) e generificador (produtor da diferença de gênero).

O Colégio Militar de Porto Alegre faz parte do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB), composto por um total de treze Colégios Militares (CMs), espalhados por todas as regiões do país. A origem do SCMB data do ano de 1889, quando se deu a criação do Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ), visando atender aos órfãos dos militares que estiveram na Guerra do Paraguai1. O segundo CM criado foi o de Porto Alegre, no ano de 1912. O objetivo principal dos CMs era a preparação para a carreira militar e, até o ano de 1989, as vagas eram destinadas somente para alunos do sexo masculino (CARRA, 2013).

Atualmente, os treze CMs são instituições de ensino mistas, que atendem do sexto ano do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio. Há uma reserva de vagas para filhos/as de militares, que são maioria, mas o ingresso nos CMs para o público civil também pode ocorrer, por meio de concurso.

A inserção das primeiras alunas no Sistema Colégio Militar do Brasil, no ano de 1989, promoveu mudanças nas rotinas, nos uniformes, nos procedimentos e também nas aulas propriamente ditas, como foi o caso da Educação Física. Aos alunos eram destinadas atividades físicas intensas, muitas como preparação para a carreira militar, e às alunas, as ginásticas, as danças e as atividades entendidas como condizentes com o ideal para o feminino (CARRA, 2013).

A inserção das mulheres brasileiras no campo esportivo em nosso país se deu de modo gradativo. Ao mesmo tempo em que a sociedade da época (início do século XX) ansiava por uma mulher forte para ter filhos fortes, essa força precisava ser controlada para não fugir ao que era considerado o corpo feminino ideal. Ou seja, era valorizada uma feminilidade que reconhecia como necessários atributos como a graciosidade, a delicadeza e a suavidade de gestos (GOELLNER, 2005).

Vale lembrar que, em abril de 1941, o Conselho Nacional de Desportos promulgou o Decreto-Lei no 3199, que proibia às mulheres a prática de esportes como lutas, boxe, salto com vara, salto triplo, decatlo e triatlo. Em 1965, aprovou a Deliberação no 7 que reforçou essa proibição nomeando algumas modalidades não mencionadas no Decreto-Lei, com destaque para as lutas de qualquer natureza, o futebol, o futebol de praia, o futebol de salão, o polo aquático, o halterofilismo, o rugby e o baseball. As proibições por elas vivenciadas, inclusive as oficiais, estavam assentadas em argumentos baseados na preservação do corpo feminino, visto como um bem social sobre o qual se alojava a esperança de uma prole sadia (GOELLNER, 2005).

Esse Decreto foi revogado apenas no ano de 1979. Atualmente, as mulheres podem praticar todos os esportes, ou seja, não há impedimentos legais para tal. No entanto, isso não significa dizer que o campo deixou de ser generificado. O esporte ainda é majoritariamente ligado à massiva presença de homens, sendo que, não raras vezes, às mulheres são conferidos destaques a aspectos como a beleza, a feminilidade e a erotização de seus corpos em detrimento de aspectos técnicos (ALTMANN; SOUSA, 1999; GOELLNER, 2005).

Ao analisar as questões de gênero na Educação Física escolar, Helena Altmann (2011 apud ALTMANN, 2015) fez um levantamento com estudantes dos últimos anos do Ensino Fundamental na região metropolitana de Campinas/SP sobre suas práticas esportivas fora da escola e constatou uma grande desigualdade de gênero no futebol: 85,6% dos praticantes eram meninos e 14,4% eram meninas. Essa diferença aparece também nas modalidades de dança e ginástica, só que ao contrário: 94% eram meninas e 6% eram meninos. Esses seriam, então, os mais complexos conteúdos para se trabalhar de forma coeducativa nas aulas de EFI.

Em relação às diferentes oportunidades dadas às meninas e aos meninos desde a infância, Altmann (2015) analisa as propagandas de calçados para crianças de uma marca específica e constata a absoluta falta de imagens de meninas praticando esportes. Os calçados para elas, desde o momento em que aprendem a andar, já têm salto, além de serem desconfortáveis e frágeis, atendendo principalmente a critérios estéticos. Já para os meninos, são exibidos calçados confortáveis, resistentes e apropriados ao movimento. Os calçados podem facilitar ou limitar brincadeiras ou ações, além de grande parte das modalidades esportivas dependerem da utilização de calçados apropriados, como um tênis. As distinções colocadas no processo ensino/aprendizagem para meninas e meninos, tanto na escola quanto fora dela, provocam conformações e entendimentos também diferenciados sobre o corpo e suas práticas.

Atualmente, a Educação Física no CMPA é organizada em turmas mistas em quase todos os níveis de ensino. A partir do oitavo ano do Ensino Fundamental, os/as discentes têm a liberdade para escolher a modalidade esportiva que querem praticar nas aulas regulares de EFI. As modalidades variam dentro das possibilidades de espaço e da disponibilidade de professores/as. É possível notar que, mesmo tendo liberdade para a escolha das modalidades, os alunos tendem a se direcionar para um tipo de prática e as alunas para outro. Nesse sentido, a pergunta que instiga o estudo é: Que motivações os alunos e as alunas carregam para a escolha dos esportes e das práticas corporais dentro da Educação Física regular do CMPA? Questões de gênero influenciam nessa escolha?

MATERIAIS E MÉTODOS

A busca pelos significados atribuídos por alunas e alunos do CMPA no tocante às questões de gênero direcionou o caminho metodológico, cujo principal instrumento utilizado foi a realização de grupos focais. A vantagem dos grupos focais sobre a entrevista individual é que eles permitem aos pesquisadores observar os processos de interação ocorrendo entre os participantes. Além disso, a interação entre os participantes do grupo geralmente diminui a interação entre o/a facilitador/a e os membros do grupo, podendo, assim, minimizar sua influência sobre o processo (BORGES; SANTOS, 2005).

A turma escolhida como foco do estudo estava cursando o segundo ano do Ensino Médio no ano de 2018. Considerando que todos/as têm a possibilidade de escolher a modalidade a ser praticada desde o oitavo ano do Ensino Fundamental, ao chegar ao segundo ano do Ensino Médio já possuem alguns anos de vivência nessa forma de organização e, portanto, têm mais subsídios e vivências a debater do que os mais jovens.

No ano de 2018, o Colégio Militar de Porto Alegre ofertou ao segundo ano do Ensino Médio as seguintes modalidades esportivas: handebol, futebol de campo, atividades físicas, atletismo, voleibol e basquetebol. A turma de atividades físicas foi criada em 2016 e teve por objetivo atrair as pessoas que não se identificavam com esportes coletivos e/ou competitivos. Sua inserção possibilitou explorar a cultura corporal de movimento e, ainda que tenha foco no treinamento físico em forma de circuitos e outras atividades de academia, fica a critério do/a professor/a explorar as mais diversas opções.

A definição do tema que fundamenta este artigo partiu de questionamentos como a pergunta a seguir: Por que existem modalidades quase que exclusivamente praticadas por alunos e por alunas e outras mais equânimes?

Na tentativa de entender esse processo, as turmas escolhidas para a análise foram: Atividades Físicas, que contava com a presença de 33 alunas e 1 (UM) aluno; Futebol de Campo, com 27 alunos e 1 (UMA) aluna; Basquetebol, cuja configuração era mais equilibrada, contando com 10 alunas e 9 alunos. Dentro de um universo de 81 alunos/as matriculados/as nessas turmas, 28 aceitaram participar do estudo (21 alunas e 7 alunos, com idades entre 15 e 18 anos). Os encontros dos grupos ocorreram no único horário semanal de EFI e quem participou da pesquisa teve que abrir mão da participação na aula.

Os alunos e alunas foram organizados em grupos focais, que contaram com o mínimo de duas e o máximo de cinco pessoas. A única exceção foi a aluna da turma de futebol, a qual foi entrevistada de maneira individual. A adaptação se deu porque, nas observações às aulas, era possível notar que, apesar de ser a única menina da turma, fato que pode ser considerado no mínimo desafiante, ela não parecia se colocar disponível para jogar, demonstrando medo. Entrava em campo, mas não jogava, mesmo com o incentivo verbal de seus colegas. Dessa maneira, julgou-se que a entrevista individual (semiestruturada) poderia possibilitar um espaço de maior liberdade para a aluna se expressar a respeito das suas vivências em aula.

As entrevistas foram registradas em um gravador digital seguindo a metodologia adotada pelo Projeto Garimpando Memórias2, desenvolvida junto ao Centro de Memória do Esporte (CEME) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEFID), que contempla as etapas de transcrição, conferência de fidelidade, copidesque e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos/as alunos/as maiores de idade ou pelos responsáveis, para o caso dos menores de 18 anos. Optamos por utilizar nomes fictícios para mencionar cada participante da pesquisa visando preservar suas identidades.

Além das informações coletadas nos grupos focais, utilizamos a metodologia de observação participante e o registro de situações que tivessem relação com o tema em um diário de campo. As observações também foram feitas no horário das aulas, mas não nos dias em que estavam agendados os encontros com os grupos focais. A coleta de informações se estendeu por todo ano escolar de 2018, entre os meses de fevereiro e novembro.

Os dados gerados a partir da realização dos grupos focais e das observações foram colocados em diálogo com a literatura da área para análise e discussão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Educação Física no CMPA: expressão da autonomia de escolha ou da falta de opção?

Uma vez coletados e transcritos os depoimentos dos/as discentes nos grupos focais, realizamos uma análise, visando observar os temas mencionados, em especial, aqueles relacionados às respostas que emergiram a partir de uma pergunta que consideramos central: Por que você escolheu essa modalidade esportiva para praticar nas aulas de Educação Física? A análise de todas as respostas permitiu a identificação de dois eixos temáticos, os quais denominamos de “Escolhi porque gosto do esporte/atividade” e “Escolhi porque foi a única opção possível”.

“Escolhi porque gosto!”

Neste eixo figuram as respostas de discentes que escolheram a modalidade porque gostam de praticá-la, e em suas falas não surgiram dúvidas ou inquietações quanto a isso. Essa menção figurou na narrativa da maioria dos participantes do estudo (14), sendo sete alunas e sete alunos. Entretanto, esse número corresponde a todos os alunos participantes do estudo enquanto que, no tocante às alunas, corresponde a um terço (7) do total de entrevistadas (21). Todos e todas que responderam dessa maneira demonstraram tranquilidade e segurança, seja porque gostavam da modalidade escolhida ou porque queriam experimentar e aprender.

Interessa notar que essa resposta figurou na fala de todos os alunos e também da única aluna participante da turma de futebol. Conforme verificado nas observações, essa turma se mostra bem entrosada e disposta a jogar, ou seja, demonstram estar ali pela simples apreciação pelo esporte. No entanto, apesar de escolher integrar essa turma porque gosta do futebol, as observações realizadas mostraram que a entrevistada não participa muito da aula:

Menina que está na turma parece ter medo das divididas, quase não joga. [...] só torce e não joga de fato, não se coloca no jogo, não corre. Pegou poucas bolas e foram só as que sobraram (Diário de campo, 28/03/2018, p. 04).

Meninos a incentivam e parabenizam, mas não passam muito a bola. Quando passam, ela parece ter insegurança e medo (Diário de campo, 12/04/2018, p. 04).

São muito recorrentes anotações como essas, e isso nos motivou a questionar a aluna sobre as razões pelas quais ela não participa de forma mais efetiva da aula e se ela se sente confortável em participar dela com os alunos. Eis a sua resposta:

Não muito... Porque quando eles passam a bola pra mim, é aquela coisa, eles “deixam”, eles não vão em cima. Por exemplo, se eu erro, eu tenho maior chance de errar, então isso não é surpresa pra eles, então se alguma vez eu driblo algum menino, sem querer ou proposital é aquela coisa: “Ohhh levou da Aline!”. Então tem uma diferença. (Aline, futebol, 18 anos, grifos nossos).

Sua narrativa deixa claro como se sente nas aulas. No primeiro grifo, sobre ter maior chance de errar, ela realmente acredita nisso, e esse entendimento perpassa o que faz em aula, refletindo em medo de se expor e insegurança para entrar nas bolas divididas. Dentre os 32 meninos que estão na referida turma, com diferentes habilidades - nem todos são craques no futebol - ela acredita que tem maior chance de errar apenas por ser mulher.

As autoras Aparecida Uchoga e Helena Altmann (2016) tecem considerações a esse respeito em uma pesquisa etnográfica realizada em escolas da cidade de Campinas/SP. Nas observações realizadas em turmas do terceiro ano do Ensino Fundamental, elas evidenciaram que os meninos participam significativamente mais das aulas do que as meninas. Viram em um simples jogo de queimada, por exemplo, que os meninos arremessavam em torno de cinco vezes mais do que as meninas, não porque eram melhores, mas porque as próprias meninas deixavam que eles o fizessem por acreditar que seriam melhores do que elas. Eles também acreditavam nisso e o desenrolar da situação é que os meninos dominaram a posse de bola e, por isso, tiveram a oportunidade de treinar e aprimorar seus arremessos, diferente das meninas.

A observação das autoras muito se assemelha ao que ocorre na turma de futebol analisada neste estudo, sendo agravada pelo fato de contar com apenas uma menina. O sucesso na obtenção de um ponto no jogo está mais atrelado ao gênero masculino e à crença de que eles são mais habilidosos, interferindo, de antemão, nas maneiras de participar da aula. Ou seja, as meninas esquivam-se por não se sentirem capazes, como acontece com a aluna Aline.

Já no outro grifo, ela nota a diferença no tratamento dos colegas em dois aspectos: um deles se relaciona a ser uma vergonha para eles levar um drible dela, ainda dentro do entendimento de que ela tem maior chance de errar. Ela diz estar sempre livre e quase nunca receber a bola, mas também afirma que não quer receber a bola porque tem medo de errar e porque os meninos levam muito a sério aquele jogo que, para ela, deveria ser somente “para descontrair”. O outro aspecto do tratamento diferente é sobre o cuidado deles por conta da “fragilidade” dela.

Em relação ao cuidado dos meninos com as meninas, sua fragilidade e a mudança de regras das atividades, ponderamos que, embora existam diferenças físicas, essas não podem ser naturalizadas ou pensadas unicamente sob o prisma biológico, com o grave risco das generalizações que rotulam meninos e meninas em categorias distintas e ofuscam as singularidades dos sujeitos (ALTMANN et al., 2011, p. 497).

Esse risco que a autora aponta é justamente o que acontece nas aulas de futebol: a “generalização rotuladora”. A aluna tem mais chance de errar porque é mulher e os alunos não jogam de verdade com ela porque é mulher. Reiterando que a generalização parte dos alunos, e também da aluna quando se coloca em uma posição de “torcedora” dentro de campo, conforme a fala transcrita anteriormente, em especial a parte que diz: “Quando eles passam a bola pra mim, é aquela coisa, eles ‘deixam’, eles não vão em cima” (Aline, 18 anos, futebol). A fala de um dos estudantes confirma a percepção de que eles não “jogam sério” quando estão com elas:

No basquete, quando a gente mesclava o time feminino com o time masculino não saía um treino muito sério, não saía muito... Parecia que a gente não se entregava 100% (Juliano, 16 anos, futebol).

Nesse sentido, a aula de Educação Física desenvolvida no CMPA, em que o principal conteúdo é o esporte - nessa turma, o futebol -, torna-se muito nítida essa questão já que o fenômeno esportivo foi, por muito tempo, “uma prática profundamente masculina e associada a uma ideia de herói; uma prática representada como não compatível com o conceito de mulher e feminilidade” (GOELLNER et al. 2012, s/p). Uma passagem do diário de campo ilustra o quanto é valorizada a atitude, pode-se dizer retraída, dessa estudante:

O professor, na sala de professores, se refere à menina como “muito querida”, os guris aceitam ela, teriam tendência de excluir, mas não o fazem. “Eles não reclamam de nada que ela faz e já vi reclamarem de outras” (Diário de Campo, 12/04/2018, p. 05).

Priscila Dornelles (2018) problematiza as “tramas escolares e discursivas”, nas quais as estudantes constituem-se como um grupo com maiores dificuldades de participação e aprendizagem, construindo uma ideia de feminilidade passiva e estática ou de uma “feminilidade problema”. As alunas seriam o outro, a diferença, porque é em relação à masculinidade “forte e ativa” que elas são colocadas. A autora fez entrevistas com professores/as e percebeu nas falas essa lógica de oposição entre uma masculinidade “forçuda e enérgica” e uma feminilidade “lerda e apática”. Esse é o subliminar que, nota-se, é trazido pelos/as jovens e pelos/as docentes para o cotidiano das aulas de Educação Física. Tal percepção mostrou-se similar ao que acontece no Colégio Militar de Porto Alegre, no qual a escolha livre da modalidade praticada relaciona-se não apenas com o gostar de praticar determinado esporte, mas também pela associação que lhe é conferida em relação às questões de gênero. Afinal, o esporte como qualquer outra prática social é generificada e generificadora e essas representações marcam os corpos e as subjetividades de quem o vivencia.

“Não me restou outra opção!”

Este eixo temático emerge apenas nas falas das alunas participantes do estudo e significa uma falta de opção, uma espécie de naturalização do que escolhe, como se não houvesse outro caminho senão aceitar aquilo que é apresentado. Figura também como um argumento que remete a uma conformação, sobretudo, para aqueles/as que apresentam baixa autoestima em relação a seus atributos e qualidades esportivas, expressas em narrativas como “única modalidade possível para a minha capacidade” (Joana, 15 anos, Basquete). Das alunas entrevistadas que fizeram essa opção, sete são da turma de atividades físicas e duas são do basquete.

A turma de atividades físicas surgiu no ano de 2016 como uma alternativa aos esportes tradicionais e foi bem recebida, com uma maior procura por parte das alunas. Atualmente, vem sendo ofertada do oitavo ano do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio. Nos encontros dos grupos focais, várias alunas mencionam sentirem-se agradecidas pela oferta dessa modalidade, pois até então se sentiam “perdidas” e sem lugar na EFI.

Atividades físicas foi um escape lindo pra mim porque já chegava o ano eu já tinha que ficar pensando “Meu Deus do céu, o que eu vou fazer na educação física, esse ano eu tô ferrada...”. [...] eu gosto bastante porque como eu não faço nada em casa e como eu queria fazer uma academia [...] (Juliana, 16 anos, atividades físicas).

Ao mesmo tempo em que gostam muito da prática de atividades representadas como “de academia”, algumas dizem escolher a modalidade simplesmente por não se sentirem capazes de fazer nenhum esporte com bola ou competitivo. Dessa maneira, a turma de atividades físicas compreende aquelas que “caíram” na modalidade por se sentirem incapazes de praticar esportes, mas que gostam das atividades propostas.

Surgiram entre as alunas da turma de atividades físicas relatos de insegurança e de dificuldade em escolher alguma modalidade, com a justificativa de que essa turma teria sido a “salvação” após muitos anos de tentativas frustradas em esportes institucionalizados.

Bom, eu não me dou bem com bolas e com outras coisas que eu tenha que mover muito o meu corpo como correr então eu pensei: Vou fazer uma atividade, que eu não vou me dar muito mal e que os meus amigos vão estar nela, então... atividades físicas (Andréia, 16 anos, atividades físicas).

Não me dou muito bem com bolas e com corridas [...] é o que menos encaixa num esporte de verdade e é o que eu acho mais tranquilo de fazer (Malu, 16 anos, atividades físicas).

Elas afirmam ter escolhido a turma de atividades físicas por não terem a obrigação de fazer “certo”, ou seja, se sentem livres para arriscar e também para errar, já que, por ser uma atividade individual, não haverá cobrança dos colegas. Elas também referem a “panelinha dos atletas” e a dificuldade de aprender quando se tem pessoas muito mais habilidosas na mesma turma. Além disso, demonstram a vontade de estar próximas aos amigos/as. Sendo assim, cria-se um clima leve e animado nas aulas, pois ali são reunidas pessoas que pensam e se relacionam às práticas corporais de maneira semelhante. A EFI se tornaria, então, um espaço de socialização, entendida aqui não no seu sentido restrito que implicaria a introjeção de determinados valores morais e comportamentos sem considerar que são as relações que socializam. Significa que as aulas e o que nelas acontece promovem diferentes formas de apropriação os quais, muitas vezes, independem de seus objetivos explícitos (GUEDES, 2006).

Eu faço porque... Não sei, minhas amigas fazem e não é algo difícil de fazer, tipo, esporte, você tem que ter habilidade. Eu tenho um pouco de habilidade no vôlei, mas eu vi que não ia me dar bem aí eu resolvi fazer atividades físicas pelas pessoas e por não precisar ter uma habilidade (Camila, 18 anos, atividades físicas).

Juliana Jacó (2012), em um estudo feito com docentes e discentes de escolas públicas da cidade de Campinas/SP, nota que existem diferentes formas de participar das aulas de EFI da escola e discute a importância do incentivo familiar e social para as mais diversas práticas corporais, traçando uma relação desse incentivo com a participação, ou não, nas referidas aulas. Nas informações coletadas pela autora, as caminhadas e ginásticas são mais incentivadas para as meninas, enquanto os esportes coletivos, que possibilitam contato e exposição a riscos, são mais incentivados aos meninos desde uma idade jovem. A cultura na qual os alunos e as alunas estão inseridos/as é que vai construindo os significados e as representações deles e delas sobre a EFI.

Dessa maneira, o que mais surgiu como determinante para a participação nas aulas ou nos esportes/atividades corporais neste estudo foi o apoio, incentivo e exemplo da família. Então, as experiências corporais e as características de socialização são diferentes, e isso se mostrou muito relevante na narrativa das meninas da turma de atividades físicas, até mesmo condição de participação de algumas.

Helena Altmann (2017), no Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano no Brasil, afirma que “o encontro entre praticantes e a consolidação de laços de amizades relacionados às atividades físicas ou esportivas se expressam como elementos importantes para sua prática” (p. 25). A autora também apontou que as meninas geralmente iniciam a prática do futebol majoritariamente na companhia de meninos e isso está relacionado à evidente necessidade de companhia para jogar um esporte coletivo. Porém, a necessidade de parceiros/as foi constatada não apenas em modalidades coletivas, mas também nas individuais, como a corrida, o skate e a ginástica. Sendo assim, as oportunidades de prática em diferentes faixas etárias e modalidades poderão se estender, principalmente, para as meninas.

Relacionando esses estudos com a pesquisa desenvolvida no CMPA, fica evidente a importância das redes de sociabilidade para o envolvimento com as atividades físicas e esportivas. Ainda dentro dessa perspectiva na EFI, as duas alunas que referem ter escolhido o basquete por “falta de opção” deram as seguintes justificativas:

Eu escolhi basquete pelo motivo que eu já tinha testado todos e eu era um terror em todos os outros aí eu vim pro basquete e continuei sendo um lixo, não mudou nada [RISOS] (Joana, 15 anos, basquete).

Eu escolhi basquete porque fica na sombra e porque eu vim com as minhas amigas e porque eu não odeio, tipo, eu odeio outros esportes, não é que eu ame basquete... (Linda, 17 anos, basquete, grifos nossos).

A fala da Joana deixa clara a falta de confiança em sua própria capacidade para os esportes, se intitulando um “lixo”. A Linda escolhe o basquete por ser o esporte que ela menos odeia. As duas alunas trazem à tona a questão do “pavor” aos esportes e do sentimento de inferioridade, de incapacidade de praticá-los. As diferenças de oportunidades dadas a meninas e meninos desde a infância tendem a ser a principal causa do sentimento expresso por elas.

Autores como Marlon Cruz e Fernanda Palmeira (2009) afirmam que meninos são incentivados a praticar brincadeiras mais agressivas e livres, enquanto as meninas são desencorajadas a se exporem a riscos e desafios. Esse tratamento diferenciado implica um desempenho motor e uma habilidade técnica também diferenciados. “Não só nas aulas de EFI, mas nas atividades de lazer realizadas em espaços livres, verificam-se facilmente as diferenças nas possibilidades corporais existente entre os gêneros” (p. 119).

Marie Jane Carvalho e colaboradoras (2004) fizeram um estudo para investigar as atividades praticadas por crianças de 9 a 11 anos fora da escola em uma comunidade na zona sul da cidade de Porto Alegre/RS. Tomaram como categorias de análise o gênero e a classe social, e a partir delas afirmam que a comunidade estudada possui particularidades sociais, entre elas, a baixa oferta de serviços de lazer, fazendo com que grande parte do tempo livre das crianças seja investido em assistir televisão. As meninas tendem a assistir mais às novelas e os meninos, aos filmes. Os brinquedos prediletos são o futebol e o videogame para os meninos e a boneca ou a “casinha” para as meninas. Os resultados demonstram que há uma distribuição diferente por gênero nos usos do tempo, principalmente, no que diz respeito às tarefas domésticas, com as quais as meninas são muito mais ocupadas do que os meninos e, com isso, eles têm mais tempo livre para se dedicar às atividades lúdicas. Para eles, os afazeres domésticos fazem parte de uma “ajuda” que podem ou não prestar à família e, quando o fazem, recebem a recompensa: ir brincar.

Sobre o incentivo familiar, as narrativas das alunas expressam suas dificuldades:

Eu sempre fui uma guria que jogava futebol no recreio com os guris e, muitas vezes, as coordenadoras dos outros colégios falavam: “Ah, tu não quer ir lá com as gurias? Futebol? Tu vai se machucar!”. E eu ia lá todo o recreio com os guris e a minha mãe também queria me botar no balé e eu fui pro basquete (Vanessa, 16 anos, basquete, grifos nossos).

Ela [mãe] me botou numa academia que tinha vários esportes e depois de um tempo fazendo aula de balé, eu descobri que no mesmo horário da minha aula de balé tinha uma aula de judô! E eu achava incrível! E daí eu saía no meio da aula de balé, treinava judô e quando chegava perto da hora de terminar, voltava pro balé e a minha mãe me buscava na aula de balé, como se eu tivesse feito aula de balé! Quando ela descobriu foi um problema... (Joana, 15 anos, basquete, grifo nosso).

A minha mãe vivia me dizendo que eu tinha que sair do handebol, que eu chegava em casa toda roxa, que eu parecia um macho, que eu só vinha pra me machucar e que eu devia fazer uma coisa mais leve... Só que não é assim! Esporte não é pra ser pra guria ou pra guri, é pra ser pros dois, pra todo mundo aproveitar. Até porque eu conheço gurias que têm muito mais capacidade física que meninos. E eu parei de treinar, no sétimo ano eu parei de treinar porque minha mãe disse que não era mais para eu treinar, que era coisa de guri (Lúcia, 16 anos, atividades físicas, grifos nossos).

As mães são as que mais procuram preservar o corpo das suas filhas, visando resguardar uma representação de feminilidade que foi ensinada também a elas. Essa representação é estabelecida por uma relação linear entre mulher, feminilidade e beleza, além de exaltar questões que relacionam a mulher à maternidade. São entendimentos que tendem a reforçar a privação da participação de mulheres em algumas modalidades esportivas (GOELLNER, 2005). Essa privação também acontece para os homens, produzindo uma representação de masculinidade muito pesada para os meninos, pois precisam constantemente provar que são “machos”, evitando tomar parte em atividades que não sejam “masculinizadoras” (GOELLNER, 2010).

As práticas corporais, em especial o esporte, têm um caráter generificado e generificador (GOELLNER, 2008). Isso significa que as representações e significações que circundam o universo esportivo foram construídas socialmente em torno da masculinidade, ou como um espaço de expressão dessa masculinidade, mitificando a imagem tanto de um homem quanto de uma mulher ideais (SARAIVA, 1999). Essas representações podem estar no imaginário das mães referidas nas falas, considerando que elas podem ter recebido uma educação restritiva à prática de certos esportes.

O mais importante ao se refletir sobre esse eixo temático é o que a frase “não tive escolha” significa, podendo ser entendida como uma “imposição” das circunstâncias, carregando em si uma “obrigatoriedade”. Esse foi o eixo que concentrou apenas alunas, ou seja, nenhum aluno entrevistado demonstrou “não ter escolha”.

Conforme a literatura explorada, as diferenças de oportunidades dadas desde cedo às meninas e aos meninos estão no centro da construção de uma identidade própria, que pode ser segura ou insegura no que concerne aos esportes e às práticas corporais. Tais diferenças foram consideradas inatas e decorrentes de razões biológicas, mas já se tem o entendimento, com base nas pesquisas de gênero, que elas são histórica e socialmente construídas desde a infância.

As narrativas das estudantes do CMPA evidenciam a insegurança e a dificuldade que elas tiveram e ainda têm de se entenderem capazes de praticar certos esportes, bem como de se exporem a riscos e a julgamentos. A percepção de não haver escolha por simplesmente entender-se incapaz advém dessa construção social, a qual não oferece às meninas a mesma gama de vivências motoras que aos meninos. A diferenciação tem efeitos duradouros sobre os envolvimentos com as práticas corporais e, consequentemente, com as aulas de Educação Física, o que é nítido nas falas das alunas.

Mas... por que as meninas escolhem uma atividade e os meninos outra?

Na tentativa de entender as motivações que levam os/as alunos/as do CMPA a optar por diferentes modalidades esportivas para praticarem na disciplina Educação Física, percebemos dois argumentos recorrentes para justificar as disparidades de gênero existentes entre os praticantes da turma de futebol e de atividades físicas, e do equilíbrio no basquete. Um dos argumentos se mostra atrelado às questões de cunho biológico e outro apresenta o componente cultural como mais marcante.

No futebol, tipo, geralmente é guri. Mas algumas gurias gostam de jogar, mas não vão porque, geralmente como é só guri, podem acabar se machucando porque a gente joga meio que... Dando a vida no negócio e elas acabam querendo só jogar normal, então... Acaba diferenciando assim (Guilherme, 16 anos, futebol, grifo meu).

As narrativas que levam em conta a influência cultural na EFI escolar apontam para o entendimento de que homens e mulheres são ensinados/as a praticar certas atividades desde o nascimento, assim como são afastados/as de outras.

Eu acho que é um problema social e cultural, é uma formação que as meninas têm desde pequena, que elas são ensinadas que é assim que funciona, que o futebol é pra menino e não pra menina. E também porque algumas têm... Vergonha, parece, de ficar com os guris, medo de ser julgada ou xingada, enfim... É basicamente isso (Juliano, 16 anos, futebol).

Uma das principais questões a ser discutida pode ser a razão pela qual surgiu, em muitas falas, a ideia de que os meninos levam mais “a sério” o jogo na Educação Física, enquanto para as meninas aquele é um momento de “descontração”. As diferenciações feitas entre o que se entende por “jogo de homem” e “jogo de mulher”, em geral, apresentam justificativas pautadas na biologia. Goellner (2013) questiona as recomendações e generalizações com bases biológicas, visto que “os corpos se fazem masculinos e femininos na cultura” (p. 25) e são as intersecções entre gênero, classe, etnia e outros marcadores identitários que possibilitam, ou não, o acesso a determinado elemento da cultura corporal e o desenvolvimento de habilidades.

A construção social em torno do que se entende por masculinidade cria empecilhos para que os meninos busquem práticas corporais fora do padrão. Isso se expressa nas falas das alunas quando dizem suas ideias sobre os porquês de os alunos não considerarem a turma de atividades físicas como uma possível prática. Conforme exposto na metodologia, no nível de ensino estudado - segundo ano do Ensino Médio de 2018 - foi apenas um aluno para 32 alunas nessa modalidade.

Eles têm receio de fazer esporte de bichinha, exatamente isso, não tenho nenhuma dúvida, porque as gurias não falariam: “nossa, sai porque tu não sabe rebolar no bambolê [imita voz fina]”, mas os guris ficam: “Ah meu, vai chutar aí, tu não sabe [imita voz grossa]”. Isso eu acho que é diferente de um lado pro outro, porque um não vai pro outro (Linda, 17 anos, basquete).

Eu acho que, principalmente falando com relação à ginástica [atividades físicas], isso acontece muito porque, entre os meninos, essa ideia de “esportes para meninas e para meninos” é muito mais presente. Eles têm que fazer esportes que façam jus à força deles e ginástica não entra nisso (Joana, 15 anos, basquete).

Na percepção das alunas seria muito difícil para os colegas estar em um esporte ou prática corporal considerado socialmente como de predominância das mulheres. Ao mesmo tempo, dizem que, quando ocorre de algum deles optar por tais atividades, as alunas não exercem o mesmo julgamento que eles em uma situação contrária. Isso quer dizer que eles, mesmo sendo bem recebidos pelas colegas, que supostamente não os julgam, não se permitem optar pela turma de atividades físicas, por exemplo, por medo de serem tachados de “bichinhas” - pelos amigos, pela família e pela escola.

A turma de basquete tem um número equilibrado de estudantes e, por isso, o questionamento foi no sentido de entender como eles e elas viam isso, ou seja, o fato de algumas turmas serem equilibradas e outras não. Tanto os alunos quanto as alunas concordaram quando afirmaram que o basquete, por ser mais equilibrado - masculino e feminino - nas transmissões pela televisão, acaba por atrair todos e todas para a prática, diferente do que se vê no futebol, por exemplo. Essa afirmação implica pensar que a mídia, de modo geral, também produz representações que circulam em diferentes instâncias sociais e que elas exercem influências sobre as motivações pelas quais homens e mulheres, meninos e meninas aderem a determinadas práticas corporais e esportivas. Essas representações constroem-se cotidianamente e são também produzidas “por meio de processos de aprendizagem que se fazem presentes nos discursos médicos, familiares, religiosos, pedagógicos, jurídicos e, ainda, naqueles que circulam em diferentes outros meios de comunicação” (MUHLEN; GOELLNER, 2012, p. 167).

A realização dos grupos focais com todas as turmas de Educação Física ofertadas ao segundo ano do Ensino Médio do Colégio Militar de Porto Alegre evidenciou que as motivações apresentadas por alunos e alunas à adesão a Educação Física esteve fortemente marcada por questões de cunho cultural, o que não significa afirmar a inexistência de negociações e resistências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Educação Física do CMPA é um espaço que permite aos alunos e às alunas a escolha da modalidade esportiva que preferem praticar, o que, em um primeiro momento, transmite a ideia de que todos e todas possuem autonomia e liberdade para se inserir naquilo que gostam. Entretanto, nesta pesquisa foi possível notar que isso não ocorreu com a maioria das alunas: das 21 entrevistadas, apenas sete afirmaram ter escolhido a modalidade porque gostavam/queriam, enquanto o restante fornece outras justificativas que não têm relação nenhuma com liberdade nem com a autonomia no momento em que expressam “não terem escolha”, ou não se sentirem capazes de praticar certos esportes. As respostas à pergunta central do estudo deixam transparecer uma facilidade maior no trato com o tema dos esportes entre os alunos do que entre as alunas e, consequentemente, maior facilidade também na escolha da modalidade esportiva e na sua prática.

De acordo com a literatura revisada, as experiências prévias de alunos e de alunas com os esportes ou com outras práticas corporais podem vir a limitar ou a expandir as possibilidades do ponto de vista do desenvolvimento motor, tanto para eles quanto para elas. As meninas têm menos oportunidades motoras na infância do que os meninos apenas por serem meninas (ALTMANN et al., 2011; DORNELLES, 2018; CRUZ; PALMEIRA, 2009). “Menina não pode se sujar”, “menina tem que sentar de perna fechada”, “menina não pode jogar futebol”, “menino não pode dançar”, “isso é coisa de menina”, “menina veste rosa e menino veste azul”, “menino não pode dançar”. Frases como essas são banais no cotidiano familiar e escolar, mas carregam uma força capaz de impedir mulheres e homens de perseguirem sonhos e de serem quem realmente são. A educação tem o dever de “abrir o leque” aos educandos, não fechar.

REFERÊNCIAS

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1Guerra travada entre o Paraguai e a chamada Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai, durou de 1864 a 1870.

2Projeto aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS no ano de 2007, sob o número 2007710.

AGRADECIMENTOS Não se aplica

FINANCIAMENTO Não se aplica

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Houve aprovação do comitê de ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, número de processo 2007710, 11 de dezembro de 2007

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 22 de Agosto de 2019; Aceito: 01 de Março de 2020

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