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Motrivivência

On-line version ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.63 Florianópolis  2020  Epub Sep 01, 2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e73650 

Artigo Original

A exclusão (normativa) em aulas de Educação Física: enfrentando a indisciplina por meio do modelo de ensino sport education

Exclusion (normative) in Physical Education classes: facing indiscipline through the sport education teaching model

Exclusión (normativa) en clases de Educación Física: enfrentando la indisciplina a través del modelo de enseñanza de sport education

Hadamo Fernandes de Souza1 
http://orcid.org/0000-0002-1799-561X

Jonatas Maia da Costa2 
http://orcid.org/0000-0002-5028-3630

1Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal - SEEDF, Brasília, Distrito Federal, Brasil

2Universidade de Brasília - UnB, Faculdade de Educação Física - FEF, Brasília, Brasil


RESUMO

O artigo aborda uma intervenção pedagógica com estudantes que eram punidos com a exclusão das aulas de Educação Física por apresentarem mau comportamento na escola. Procuramos experimentar o modelo Sport Education no enfrentamento à indisciplina em uma escola da rede pública. A pesquisa objetivava identificar e compreender possíveis mudanças atitudinais em estudantes tidos como indisciplinados. O estudo teve na pesquisa-ação seus princípios metodológicos e o grupo focal e questionário como instrumentos de produção de dados. O Sport Education carrega potencial de apropriação crítica da cultura corporal. O trabalho coletivo pode ser uma estratégia pedagógica alternativa na melhoria de comportamento dos estudantes caso a mediação se realize em compasso ao recrudescimento das relações afetivas entre professores e estudantes. A indisciplina permanece tema complexo e desafia os educadores. Entretanto, é fundamental superar o problema da exclusão normativa das aulas de Educação Física por ocasião da indisciplina.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física; Indisciplina; Sport education

ABSTRACT

The article addresses a pedagogical intervention with students who were punished with the exclusion of Physical Education classes for presenting bad behavior at school. We tried an experience with Sport Education model in the fight against indiscipline in a public school. The research aimed to identify and understand possible attitudinal changes in students considered undisciplined. The study had its methodological principles in action research and the focus group and questionnaire as instruments for data production. Sport Education carries the potential for critical appropriation of body culture. Collective work can be an alternative pedagogical strategy for improving student behavior if mediation takes place in step with the resurgence of affective relationships between teachers and students. Indiscipline remains a complex issue and challenges educators. However, it is essential to overcome the problem of normative exclusion from Physical Education classes due to indiscipline.

KEYWORDS: Physical education; Indiscipline; Sport education

RESUMEN

El artículo aborda una intervención pedagógica con estudiantes que fueron castigados con la exclusión de las clases de Educación Física por presentar mal comportamiento en la escuela. Intentamos probar el modelo de Educación Deportiva en la lucha contra la indisciplina en una escuela pública. La investigación tuvo como objetivo identificar y comprender posibles cambios de actitud en estudiantes considerados indisciplinados. El estudio tenía sus principios metodológicos en la investigación de acción y el grupo focal y el cuestionario como instrumentos para la producción de datos. La educación deportiva conlleva el potencial de apropiación crítica de la cultura corporal. El trabajo colectivo puede ser una estrategia pedagógica alternativa para mejorar el comportamiento de los estudiantes si la mediación se lleva a cabo al paso del resurgimiento de las relaciones afectivas entre maestros y estudiantes. La indisciplina sigue siendo un tema complejo y desafía a los educadores. Sin embargo, es esencial superar el problema de la exclusión normativa de las clases de Educación Física debido a la indisciplina.

PALABRAS-CLAVE: Educación física; Indisciplina; Sport education

INTRODUÇÃO1,2

Já à partida vale destacar que temos uma compreensão na qual a função social primordial da escola é a de propiciar aos estudantes o acesso ao saber elaborado, ou seja, o conhecimento científico, e de socializar o saber sistematizado (SAVIANI, 2003). Entretanto, o conjunto das circunstâncias históricas vividas em nosso país coloca à prova a realização imediata desta função. Em outras palavras, a perspectiva de transformação da sociedade por meio da educação escolar passa por um momento de enormes desafios.

À guisa de hipótese, entendemos que o conjunto de condicionantes socioeconômicos tem tornando ainda mais difícil esta tarefa da escola. São inúmeros obstáculos, o que demonstra o grau complexo do trabalho educativo. Nesse sentido, a indisciplina desponta com grande vigor. As causas para a perpetuação da indisciplina são fundamentadas na sociedade e na própria constituição dos sistemas de ensino (ESTRELA, 1992).

Segundo Aquino (1998, p.10), para conseguirmos conceituar a indisciplina, devemos primeiramente definir a disciplina, pois dependendo deste conceito, poderemos ter compreensões bastante distintas. Para o autor, se entendemos a disciplina como os

[... ] comportamentos regidos por um conjunto de normas, a indisciplina poderá ser traduzida de duas formas: 1) a revolta contra essas normas; 2) o desconhecimento delas. No primeiro caso, a indisciplina traduz-se por uma forma de desobediências insolente; no segundo, pelo caos dos comportamentos, pela desorganização das relações.

Nesse sentido, a indisciplina seria todo o ato que está em desacordo com as regras constituídas na sociedade, sendo importante ressaltar que, em muitos casos, o indivíduo não tem consciência de que está cometendo um ato de indisciplina, o que enfatiza a importância da escola na orientação e na discussão deste fenômeno com toda a comunidade escolar (LA TAILLE; PEDRO-SILVA; JUSTO, 2013).

Atualmente a indisciplina tem sido experimentada nos espaços escolares, sendo considerada uma fonte importante de estresse nas relações interpessoais na escola. No entanto, analisando-se minuciosamente essa situação, a indisciplina pode ser considerada uma grande oportunidade de refletirmos sobre a necessidade de avanços pedagógicos e institucionais em torno do problema (GARCIA, 1999).

De forma pontual e que demarcou nossas inquietações, vale identificar um problema recorrente na escola e que se desdobra com certa frequência na Educação Física. No caso, nos referimos a uma espécie de exclusão normativa de estudantes das aulas em face as suas más condutas no interior da escola de forma geral. Trata-se de uma ação que se pretende pedagógica, mas que nos parece uma contradição e que tem sido comum no ensino fundamental. A escola no âmbito de sua direção/coordenação pedagógica encaminha a exclusão de estudantes das aulas de Educação Física como forma de punição, haja vista perceber uma predileção de tais estudantes por este componente curricular (DE PAULA; PAIXÃO; OLIVEIRA, 2015).

É evidente que não cabe criar juízo frente a esta atitude que nos parece revelar certo desespero da parte de professores que convivem, às vezes, até com situações de violência. Anunciado anteriormente, a indisciplina é um problema complexo, com multideterminações. Entretanto, nos parece pouco crível que tal exclusão seja uma solução razoável para tal problema, sobretudo pela privação de um direito do estudante, que é de ter aulas de Educação Física.

Tendo em vista a constatação deste problema numa escola do campo em Planaltina-DF, procuramos elaborar uma proposta de ação pedagógica para o enfrentamento da indisciplina de alguns estudantes do sétimo e oitavo ano do ensino fundamental. A partir da colaboração da gestão da escola e tendo os professores como parceiros nesta diligência optamos por integrar à proposta uma ação que viria da própria Educação Física. Para tanto, procuramos desenvolver um trabalho de intervenção pedagógica que se balizasse também por meio da pesquisa. Com efeito, elegemos a pesquisa-ação como metodologia de investigação, que conforme Thiollent (1998) oportuniza a produção de dados tendo em vista o desenvolvimento de trabalho coletivo em torno do anseio de solucionar um problema em comum dos agentes envolvidos com o estudo. Sendo assim, nossa pesquisa tomou como horizonte, a partir desta intervenção pedagógica, identificar e compreender possíveis mudanças atitudinais em estudantes tidos como indisciplinados.

Do ponto de vista pedagógico, a estratégia foi a de experimentar o modelo de ensino Sport Education (SIEDENTOP, 1994), tendo como expectativa que suas características potencializadoras do trabalho coletivo discente - quando das práticas esportivas na escola - pudessem colaborar em dar outro sentido de permanência na escola aos estudantes ora assumidos como indisciplinados. Vale destacar que esta iniciativa tornou-se parte da organização dos tradicionais “Jogos Internos da Escola”.

O texto que doravante apresentamos discute os resultados desta experiência. Inicialmente, procuramos esclarecer os aspectos pedagógicos e estruturantes do modelo de ensino Sport Education. Na sequência damos destaque aos aspectos metodológicos do estudo, para enfim discutirmos com foco num duplo objetivo desta sistematização, qual seja o de relatar os pormenores pedagógicos da experiência bem como a de discutir a compreensão dos estudantes “indisciplinados”, que por meio do Sport Education, tiveram ações de protagonistas na organização e gestão dos Jogos Internos. Em adição, cabe sublinhar que a cientificidade de nosso trabalho em termos de delineamento de pesquisa não se submete aos cânones de um racionalismo tecnocrático. Fator que tem dificultado a veiculação das pesquisas educacionais em periódicos da Educação Física. Nesse sentido, vale reafirmar nosso compromisso com os problemas concretos da escola pública, mormente os da Educação Física. Portanto, o método científico deve acompanhar tal compromisso em termos de constatação da realidade tendo como horizonte uma possível transformação. Foi o que procuramos fazer neste artigo.

Considerações acerca do modelo Sport Education

Grosso modo, é possível entender por perspectiva crítica em Educação Física as elaborações teóricas e metodológicas da área no campo da educação formal que, influenciadas pelo movimento renovador, tiveram forte influência no pensamento pedagógico da Educação Física. Em síntese, sugere-se que as práticas pedagógicas afastem-se de sua centralidade em termos de aptidão física e cerradas em uma concepção biologicista de corpo a fim de enaltecer uma educação do corpo fomentada por compreensões socioculturais e pedagógicas (CAPARROZ, 1997). Discorrer sobre isso nos serve como mote para apresentar o Sport Education como modelo de ensino que no âmbito do conteúdo de esporte, em especial nas formas de organização de competição esportiva na escola, pode ser incorporada ao conjunto de metodologias pedagógicas da Educação Física brasileira como alternativa às práticas acríticas de fomento deste conteúdo.

O modelo de ensino Sport Education (SE) foi desenvolvido pelo professor norte-americano Daryl Siedentop (1994). Ele afirma que a origem do modelo de ensino Sport Education foi sua tese de doutorado, em que defendia a colocação da educação lúdica (play education) em local privilegiado nas orientações curriculares da Educação Física. O seu manual Physical Education: Introductory Analisys, publicado pela primeira vez em 1972, disseminou essa sua visão da Educação Física. Foi em 1982 que Siedentop, numa conferência proferida no âmbito do Commonwealth Games, em Brisbane, na Austrália, defendeu de forma pioneira a criação do modelo de ensino Sport Education. Tratava-se da contextualização de sua concepção de play education, através da implementação de ambientes de prática propiciadores de experiências desportivas autênticas. Sendo assim, pretendia resolver equívocos e mal entendidos na relação da escola com o esporte.

O Sport Education não objetiva somente o ensino de jogos esportivos, sua proposta curricular proporciona um plano viável e coerente para alterações na organização de jogos esportivos no interior das instituições de ensino, enfatizando seu potencial nas aprendizagens dos estudantes sobretudo no que se refere às dimensões pessoais, afetivas e sociais.

Segundo Graça e Mesquita (2007, p.410), esse modelo “aposta na democratização e humanização do Desporto, de forma a evitar os problemas associados a uma cultura desportiva enviesada, tais como o elitismo, a iniquidade e a trapaça”. Assim, no sentido de garantir a legitimidade das experiências desportivas, Siedentop (1994) integrou seis características do esporte institucionalizado no modelo de educação desportiva: a época desportiva, a filiação, a competição formal, o registo estatístico, a festividade e os eventos culminantes.

As épocas desportivas procuram maximizar o tempo de contato do estudante com o conteúdo de ensino-aprendizagem. Destaca-se que nos programas atuais existe uma preferência por currículos muito fragmentados. O Sport Education defende a necessidade de se aumentar o tempo de contato do estudante com o conteúdo, pois quanto maior a diversidade de atividades tematizadas durante as aulas, melhor informado estará o estudante e maior a possibilidade de ir ao encontro de suas preferências individuais.

A filiação procura desenvolver no estudante o sentimento de pertencimento ao grupo. Uma preocupação evidente em relação às metodologias tradicionais está na tentativa de se eliminar os fatores de exclusão, procurando-se equilibrar a participação oferecendo-se papéis realmente importantes para os menos habilidosos, favorecendo a participação efetiva e equilibrada de todos, contribuindo para elevação de autoestima e, consequentemente, para a valorização da prática desenvolvida.

A implementação de um quadro competitivo formal é desenvolvida desde o início da formação das equipes, por meio da promoção da igualdade de oportunidades para a participação. Nesse quadro competitivo o fair play3 sempre será valorizado, inclusive com pontuação diferenciada para as equipes participantes da competição formal.

Paralelamente à competição, são elaborados instrumentos de autoavaliação, importante incentivo para o trabalho da equipe. Como forma de valorizar a competição, são realizados, em relação a todas as equipes, registos de resultados, comportamentos, estatísticas, que servem para registrar a história da competição, dando ênfase a eventos culminantes, de preferência de caráter festivo.

Desta forma, este modelo merece destaque, pois apresenta um contraponto sobre a grande maioria das formas que o esporte vem sendo tematizado nas instituições educacionais. Em específico ao desenvolvimento de nosso projeto pedagógico e de intervenção com foco nas condutas de estudantes indisciplinados, as caraterísticas do Sport Education, no que diz respeito ao protagonismo dos estudantes envolvidos, seria a nossa aposta para que estes pudessem se sentir valorizados ao mesmo tempo em que assumissem uma responsabilidade que iria requerer deles uma postura diametralmente oposta àquela do descompromisso com a escola.

METODOLOGIA

O estudo pautou-se sob a inspiração da pesquisa-ação nos termos de Thiollent (1998), que é um tipo de pesquisa social, empírica e com estreita relação com uma ação ou com a resolução de um problema, em que sujeitos e pesquisadores estão envolvidos de forma participativa e cooperativa. Observa-se que no âmbito das pesquisas educacionais em Educação Física, tal metodologia tem tido aderência em torno de investigações de perspectiva crítica, conforme declara Betti (2009, p.221):

[... ] considero a pesquisa-ação a melhor alternativa para articular o projeto de Educação Física Escolar (apropriação crítica da cultura corporal de movimento) com a meta da ciência (produzir conhecimento no confronto com o mundo). A pesquisa-ação ainda apresenta a vantagem de romper com as tradicionais relações de poder pesquisador-pesquisado, minimizando o risco ‘tecnocrático’, o autoritarismo do discurso científico que se pretende superior aos outros saberes/conhecimentos. Na pesquisa-ação, o diálogo permanente com a realidade da qual se originou o projeto - a prática pedagógica e seus atores - reduz este risco de ‘abuso do saber’ por parte dos pesquisadores, em geral professores universitários dos quais se esperam ‘soluções’.

Tendo acordo com Betti (2009), somamos a isso os objetivos concretos e coletivos em torno de nossa orgânica parceria com uma escola do campo da região administrativa de Planaltina (DF). Esta apresentava problemas com a indisciplina de estudantes e de forma recorrente - a partir de um encaminhamento punitivo - excluía os estudantes tidos como indisciplinados das aulas de Educação Física.

A proposta de intervenção a partir da Educação Física por meio do modelo de ensino Sport Education e circunscrita a um conjunto de estudantes tidos como indisciplinados foi discutida amplamente com a equipe gestora da escola. Nessa ocasião, demonstramos a importância da busca por alternativas para o enfrentamento da indisciplina na escola, sempre colocando o componente de Educação Física como partícipe deste processo. A anuência e a parceria construída junto à equipe gestora tomou como critério a inclusão de cinco estudantes que apresentaram a maior quantidade de casos de indisciplina até aquela data do ano letivo vigente - o estudo ocorreu (parte empírica) no segundo semestre de 2019.

A tabela a seguir demonstra as características destes sujeitos e a natureza de suas condutas de indisciplina na escola.

Tabela 1 - Estudantes participantes e suas respectivas ocorrências indisciplinares 

Estudantes Gênero Ano Idade Tipos de ocorrências indisciplinares Responsável pelo registro da ocorrência
DVSS M 15 01. Estar fora da sala de aula. Coordenação Pedagógica
RPB M 13 01. Não fez a tarefa de casa. Professor de Arte
02. Brincadeira e não cumprimento de regras. Professor de Matemática
03. Puxou a bermuda do colega dentro da sala de aula. Professor de Ciências
04. “Colou” na prova multidisciplinar. Coordenação Pedagógica
05. Atrapalhou a prova. Professor de Ciências
06. Jogou papel. Professor de Ciências
07. Foi pego fora da sala de aula. Professor de Ciências
08. Rasgou a mochila do colega DVSS. Coordenação Pedagógica
09. Foi pego fora da sala de aula. Coordenação Pedagógica
TFSB M 13 01. Desrespeitou a professora de Geografia. Professora de Geografia
02. Foi pego fora da sala de aula. Professor de Ciências
03. Foi pego fora da sala de aula. Coordenação Pedagógica
PHAL M 13 01. Outros, não detalhado pela professora aplicadora do registro. Professora de Arte
02. Foi pego brincando em sala. Professor de Ciências
03. Não fez a tarefa de casa. Professora de Arte
PGFSD M 13 01. Não fez atividade de sala de aula. Professora de Arte
02. Não fez as tarefas de casa; desrespeitou os professores; não realiza as atividades de sala de aula; não traz o material necessário, como livros, cadernos, lápis, etc. Coordenação Pedagógica

Fonte: Elaborado pelos autores com base no Livro de Ocorrências da Escola em 2019

Selecionados, caberia a nós sensibilizá-los frente a esta participação. Algo que não foi difícil em face às possibilidades da proposta que os colocariam em destaque. A articulação com os “Jogos Internos da Escola” também foi algo importante e que ajudou neste convencimento, já que tal evento, tradicional na escola, é aguardado de forma ansiosa por todos os estudantes. Além disso, informamos que a participação no referido projeto seria voluntária, e que os estudantes que não aderissem à pesquisa-ação não seriam castigados, e também não sofreriam qualquer tipo de retaliação. Surpreendentemente, todos os estudantes sinalizaram positivamente com a proposta. Dali para frente, eles se somaram aos professores-pesquisadores na elaboração e execução do projeto interventivo na escola sob a ótica de alguns elementos abordados pelo modelo de ensino Sport Education. Todo este processo, ora de planejamento, ora de ação nas aulas de Educação Física e, posteriormente, na manutenção do diálogo entre pesquisadores e estudantes (“indisciplinados”), traduzem-se como pontos fundamentais na concretização do método.

Importante destacar que foi necessário que os estudantes acordassem - por meio de seus representantes legais (pais ou responsáveis) - assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), parte do projeto de pesquisa submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), cujo parecer foi aprovado sob o número 3.735.301/2019.

Os dados da pesquisa foram produzidos a partir de instrumentos como o questionário (GATTI, 2005) e o grupo focal (POWELL; SINGLE, 1996; GATTI, 2005). No caso, a utilização do grupo focal realizado ao final da experiência, quando objetivamos compreender a interação entre os estudantes ao serem motivados a participarem de uma forma diferenciada na organização dos “Jogos Internos da Escola”. Com essa técnica, conseguimos verificar práticas cotidianas, ações, atitudes e comportamentos relevantes para uma melhor compreensão daquilo que havíamos vivido quando da proposição pedagógica do Sport Education. O uso do questionário se deu como complemento aos grupos focais, conforme defendido por Gatti (2005). Por meio dele foi possível organizar respostas de natureza objetiva dos estudantes.

O conjunto destes dados foi analisado à luz de uma abordagem qualitativa (SEVERINO, 2007), o que nos permitiu selecionar para este produto em termos de resultados, os aspectos relacionados à apresentação de uma experiência pedagógica concreta e seus impactos no problema da indisciplina escolar. Aspectos anteriormente determinados e explicitados como objetivos de nossa investigação. É o que passamos a explorar na sequência deste artigo.

Protagonismo discente e trabalho coletivo: os “Jogos Internos da Escola” por meio do Sport Education

A experiência abordada a seguir passa em grande medida pelo contexto pedagógico que a encerrou. Seu êxito guarda relação com a implicação e as motivações dos sujeitos envolvidos neste processo. Talvez muito mais do que os constructos teórico-metodológicos que aqui já apontamos. Por acreditarmos nisso, vale chamar atenção de que embora o Sport Education surja como o principal suporte teórico-didático de nossa proposição, seu valor está subjacente ao empenho dos atores envolvidos, sejam os professores ou os estudantes selecionados no estudo, doravante chamados de Equipe Organizadora (EO). Tal apontamento sugere que o Sport Education é elemento de mediação pedagógica, ou seja, não carrega finalidade em si mesmo. O fim seria sempre a participação discente - com ênfase nos estudantes indisciplinados - e como que tal protagonismo articulado ao plano pedagógico da Educação Física na realização dos “Jogos Internos da Escola” poderia servir como desencadeador de um processo de pertencimento à escola ao mesmo tempo em que estes estudantes, em outros momentos excluídos, pudessem agora se sentir em evidência e em destaque.

De todo modo, se por um lado o fim não está na proposta, por outro, não ter apropriação total dela parece ser um equívoco, uma vez em que o ato educativo deve carregar em si uma intenção pedagógica (SAVIANI, 2003). O trabalho educativo - especificamente o que se instala na escola - se diferencia das formas espontâneas de educação (DUARTE, 1998). Portanto, isso desloca à docência um papel também dos mais relevantes e a experiência ilustrada, conforme demonstrada, aqui irá revelar esse nível de apropriação.

A materialização da proposta estava condicionada ao alinhamento do Sport Education à organização dos “Jogos Internos da Escola”. Nesse sentido, deliberadamente aquelas características principais do modelo de ensino Sport Education, quais sejam a época esportiva, a filiação, a competição formal, o registro estatístico, a festividade e o evento culminante (SIEDENTOP, 1994) se tornaram referências importantes quando das ações da EO, seja no âmbito da preparação, seja quando da realização dos Jogos Internos.

Para a época desportiva, também conhecida como a unidade didática, sistematizamos, durante o 3º bimestre de 2019 (de 29 de julho a 04 de outubro), o conteúdo de futsal, conforme previsto no planejamento de ensino da Educação Física. A opção por esse conteúdo ocorreu devido ao futsal ser o conteúdo predominante nos jogos internos, uma vez em que o evento dos Jogos já consta na proposta pedagógica da escola com ocorrência semestral. Outro fator que justificou a escolha pelo futsal foi o fato de tratar-se da modalidade esportiva preferida dos estudantes, o que fez com que pudéssemos contar com a participação efetiva de mais de 50% dos estudantes matriculados na instituição de ensino. Ao longo das aulas, ministradas pelos professores-pesquisadores, foram abordados um conjunto de conteúdos específicos atrelados ao futsal, como por exemplo: as regras básicas e possibilidades de adaptação na escola; os fundamentos técnicos e táticos; as transformações históricas e sociais do futsal; os problemas relacionados ao doping, corrupção e violência no âmbito do esporte.

Na esteira deste processo, ainda uma fase de preparação aos Jogos, surge na filiação, à possibilidade ao estudante o reconhecimento de sua importância na realização do referido projeto, logo, é na filiação que ocorre a organização das equipes. Em eventos anteriores, a organização das equipes ficava exclusivamente sob a responsabilidade do professor de Educação Física, no entanto, a partir desta intervenção, os cinco estudantes selecionados (EO), foram os responsáveis por montar as equipes com todos os estudantes da escola que tiveram interesse em participar dos “Jogos Internos da Escola”. A escolha das cores e os modelos de uniforme de cada equipe também se tornaram responsabilidade deles. A única diretriz (pedagógica) a ser seguida era de que a participação de todos fosse preservada e que a formação de equipes seria feita com o máximo de equilíbrio possível. Para tanto, os membros da EO compareceram em todas as turmas da escola anotando os nomes de todos os estudantes interessados em participar do evento. Dividiram o grupo dos meninos e das meninas, pois teríamos torneios específicos para cada gênero. Separaram os estudantes dos 6º e 7º anos, do grupo dos estudantes dos 8º e 9º anos, pois teríamos torneiros específicos para cada ciclo. Remanejaram os estudantes de maior porte físico dos 6º e 7º anos para participarem dos Jogos juntamente com os estudantes dos 8º e 9º anos. Em reunião com os professores-pesquisadores, a EO elegeu quais os estudantes seriam considerados os capitães de cada equipe. Por fim, cada capitão foi responsável por escolher um colega para sua equipe de forma alternada. Dessa forma, não tivemos nos Jogos equipes formadas exclusivamente por turmas, mas sim, equipes com estudantes de turmas diferentes e com níveis de habilidades técnicas diversas.

Na competição formal, buscamos proporcionar a prática autêntica do futsal, sem necessariamente realizar modificações ou adaptações de forma contundente nas regras. Não obstante a isto, a EO procurou enfatizar situações igualitárias de disputa, sempre proporcionando a inclusão de todos os estudantes. Por sua vez, os estudantes da EO participaram dos “Jogos Internos da Escola” em equipes distintas, o que proporcionou grande legitimidade a eles juntos aos seus pares estudantes. É comum, em eventos desta natureza, os estudantes reclamarem que a organização beneficiou uma determinada equipe, todavia, no caso desta intervenção, esses argumentos foram eliminados, pois várias equipes participantes possuíram algum membro na organização dos jogos.

Da mesma forma, no registro estatístico, os estudantes realizaram todo o levantamento de informações e divulgação. A EO convidou todos os capitães das equipes para a elaboração das tabelas de disputa. O sorteio foi realizado com a presença de todos, de forma democrática e transparente. No dia anterior ao evento, a EO compareceu em todas as salas para convidar formalmente os demais colegas da escola, e posteriormente, ficaram responsáveis por tabular e divulgar os resultados do evento nos murais e no blog da instituição de ensino.

Ilustra bem a festividade, quando observamos que os estudantes procuraram sempre buscar um ambiente de confraternização e alegria na realização de todas as etapas preparatórias e isso se manteve preservado durante a realização dos Jogos Internos. É importante relembrarmos que os estudantes participantes da EO são reincidentes em casos de indisciplina. Parte significativa de suas más condutas acontecia quando estes estavam em momentos fora de sala de aula. Entretanto, nossa proposta conduziu estes estudantes a estarem seguidas vezes fora de sala e, em nenhum momento, tais (más) condutas foram registradas. Vale reafirmar que o nível de implicação deles ao nosso propósito foi sempre bastante evidente. À guisa de hipótese, é possível refletir que quando destes momentos “fora” de sala, havia um sentido de pertencimento a um determinado projeto que os mesmos tinham muito apreço. Algo significativo e digno de nota.

A expressão do evento culminante se materializa na atividade última dos “Jogos Internos da Escola”, que ocorreram nos dias 26 e 27 de setembro de 2019. E que aconteceu na própria quadra poliesportiva da escola, momento em que os estudantes se tornaram protagonistas e compartilharam seus conhecimentos. Foi o fechamento da época esportiva, isto é, o encerramento da unidade didática. Nesta fase, os estudantes, além da participação como estudantes-atletas, organizaram a solenidade de abertura e, também, de premiação, além de desempenharem outras funções de destaque, como técnicos, capitães, divulgadores, anotadores, cronometristas, árbitros e fotógrafos.

A solenidade de abertura contou com a participação de vários integrantes da comunidade escolar (Equipe Gestora, professores, servidores, entre outros) e com apresentação artística das estudantes do 9º ano, com a execução do Hino Nacional, com uma palavra de incentivo da diretora e com o juramento por parte de uma estudante representando todos os demais colegas. Outro detalhe que mereceu destaque na solenidade de abertura foi um jogo realizado entre os professores da escola e os estudantes participantes da EO.

Os “Jogos Internos da Escola” distribuiu troféus e medalhas para equipes campeãs e vice-campeãs, além de troféus exclusivos para os artilheiros da competição. É importante ressaltar que foram realizados três torneios: masculino dos pequenos (6º e 7º anos), masculino dos grandes (8º e 9º anos) e feminino. Alguns estudantes, dos 6º e 7º anos com maior porte físico foram remanejados para participarem do evento juntamente com os estudantes dos 8º e 9º anos.

Findado os “Jogos Internos da Escola”, nossa impressão é de que os estudantes perceberam de forma evidente nossas ações. A proposta que visava colaborar numa situação específica (indisciplina) e que foge - em parte - dos escopos pedagógicos da Educação Física, acabou incorporando a ela a necessidade de repensar o formato da construção dos “Jogos Internos da Escola”. Este tradicional evento se tornou uma atividade extremamente coletiva e participativa da parte dos estudantes, que em anos anteriores, eram passivos neste processo. Nesse sentido, é óbvio que o Sport Education mereceu destaque como suporte didático. A contradição ficou em termos diferenciado os papéis dos estudantes, tendo na EO um protagonismo maior em detrimento aos demais. Seria recomendável a democratização destes papeis atribuídos e vinculados à EO a todos os estudantes. Isso é revelado quando de uma pergunta despretensiosa de um estudante que não fazia parte da EO e que deixaram os professores-pesquisadores sem resposta: “professor, como faço para fazer parte desta equipe organizadora?”.

Discutindo a experiência pedagógica com os sujeitos do processo: fruição, compromisso e consciência

Os resultados correspondentes ao propósito nuclear do estudo se deram quando da realização de um grupo focal com os sujeitos da EO. Esses estudantes selecionados em função de suas más condutas na escola lograram êxito no âmbito da Educação Física, em especial na construção e realização dos “Jogos Internos da Escola”. Até ali estávamos satisfeitos com a qualidade de uma participação das mais comprometidas. Todavia, escapava à consciência de que tais estudantes conseguiriam, nos limites de seus imaturos desenvolvimentos, perceber que suas condutas implicam em consequências socioeducativas.

A experiência com o grupo focal carrega seus desafios (GATTI, 2005). Inicialmente nossa intenção agregava, num mesmo momento de discussão, os estudantes e mais alguns integrantes da equipe gestora da escola. Isso se revelou contraproducente, uma vez em que os estudantes demonstravam-se intimidados frente a estes atores. Nesse sentido, se tornou evidente como que as relações afetivas entre educadores e educandos constituem-se como pilares fundamentais para o desenvolvimento dos discentes (RANGHETTI, 2002). Algo que se recrudesce quando tal experiência se dá no âmbito da Educação Física conforme vários estudos (RANGEL-BETTI, 1992; DARIDO, 2004, DAOLIO, 2005; CRUZ; FIAMENGHI JÚNIOR, 2010; HANAUER, 2013). A timidez e falas por demais concisas pouco ilustravam aspectos que gostaríamos de cotejar frente ao modelo de ensino Sport Education, bem como as mediações protagonistas desses estudantes eram determinantes às necessárias condutas éticas que tanto condicionam a sociabilidade. Além disso, o grupo focal nos permitiu uma abordagem pedagógica dialógica. Não se tratava exclusivamente dos dados empíricos do estudo. Tratava-se de uma intenção pedagógica problematizadora (FREIRE, 2011) da questão da indisciplina.

Portanto, restringimos o grupo focal aos estudantes. Esta estratégia se demonstrou acertada, pois os laços afetivos que se consolidaram durante a recente experiência pedagógica vivenciada contribuíram para que o debate fosse permeado de confiança, algo revelado em algumas falas. Antes, porém, vale observar que este grupo em especial era dotado de uma relação com a Educação Física anteriormente já construída. O conjunto de informações, inscritos abaixo na tabela 2, revela o nível de afeição dos estudantes para com este componente curricular.

Tabela 2 - Relacionamento com o componente curricular de Educação Física 

Estudantes Você gosta das aulas de Educação Física? Você participa das aulas de Educação Física? Qual a sua disciplina preferida na Escola?
SIM NÃO SIM NÃO Educação Física Outras disciplinas
DVSS X X X
RPB X X X
TFSB X X X
PHAL X X X
PGFSD X X X

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa (2019)

Com efeito, em grande medida o envolvimento comprometido destes estudantes com as ações do Sport Education pode ser explicado em face desta implicada relação com a Educação Física. Algo que também prova que a intenção da medida “socioeducativa” da escola no que tange à privação das aulas para estes estudantes era apenas a de retirar deles os momentos de fruição na escola. Desde nossa perspectiva, aprender e fruir, em que pese isto parecer se deslocar de forma subjetiva entre os discentes, não nos parece um binômio que se apresenta necessariamente de forma dissociada. Embora reconheçamos que, do ponto de vista de uma educação crítica, entre uma à outra, vale se for o caso, optar sempre pelo aprender. Entretanto, nos parece coerente à busca por uma mediação pedagógica que, nos limites da complexidade do ato educativo, possa fazer com que fruir e aprender andem num mesmo compasso.

Parece ser verdadeira a idiossincrasia que conduz a Educação Física a um fazer pedagógico que permite agregar, as suas práticas, sentimentos de maior liberdade aos estudantes. Do contrário não ouviríamos falas como estas:

Gosto de praticar educação física, correr, se exercitar, jogar bola e tudo mais (PGFSD).

Porque é onde eu mais me divirto com meus amigos (PHAL).

Porque é a única matéria que eu saio para fazer muitas brincadeiras legais (RPB).

Porque a gente se diverte, se alegra nas aulas, não fica muito tempo na sala (TFSB).

Os estudos conduzidos por Darido (2004, p. 68) “mostram que a Educação Física é disparadamente a disciplina preferida dos estudantes e a partir disso pode cumprir um papel importante na identificação necessária de uma escola prazerosa e atraente para os estudantes”. A escola precisa manter-se como espaço de formação humana que supõe um ambiente não opressor. Com efeito, aprender na medida em que a expressão de ludicidade se emerge como condição para este aprender, nos parece um objetivo a ser perseguido. Nesse sentido, “a disciplina de Educação Física não pode se furtar a este objetivo devendo chamar para si a tarefa de transformar a escola num lugar atraente, excitante, emocionante” (LOVISOLO, 1998, p.67). Portanto, o elemento da fruição se apresenta como um suposto às atividades a serem desempenhadas na escola. Imagina-se que um estudante envolvido emocionalmente com um projeto tende a não se desviar em atitudes que o possa afastar dela. Daí ser “eficiente” o critério da exclusão como forma de combater a indisciplina. Entretanto, estaria tal medida se desviando do ato educativo comprometido com uma formação humanista. Afinal de contas, qual ganho em termos de aprendizagem ocorre quando um estudante não participa de forma efetiva de um trabalho pedagógico?

No diálogo com os estudantes, eles foram unânimes em apontar sua satisfação pessoal em torno da experiência do Sport Education. Parece-nos que as razões pelas quais isso ocorreu se deram em função de um sentido cuja relação afetiva com o professor se articula ao contentamento e prazer na participação, senão, vejamos:

Sim, porque eu me diverti muito ajudando o professor (RPB).

Sim, porque eu me senti uma autoridade (PHAL).

Sim, a experiência foi boa! Eu gostei muito e não fiquei sem jogar no campeonato da escola (TFSB).

Sim, é bom ficar lá ajudando o professor (PGFSD).

Além do aspecto da fruição, outro elemento que demonstrou ter ampla associação a nossa experiência, tem a ver com o conjunto de práticas pedagógicas exploradas pelo Sport Education e que condicionavam ao êxito, uma necessária participação comprometida da EO com o projeto dos Jogos Internos. A integração como parte do processo de planejamento e execução das ações pedagógicas da Educação Física impõe aos estudantes o mesmo compromisso observado nas práticas docentes. Ou seja, passa-se a perceber que há uma tarefa a ser desempenhada que não permite uma atitude negligente.

O modelo de ensino Sport Education propõe um conjunto de funções e papeis que foram desempenhados de forma protagonista pelos estudantes, algo reconhecido por eles e que guarda relação com uma atitude compromissada. Nesse sentido vale recorrer à passagem a seguir e que valoriza tal sentido:

[... ] vantagem que podemos considerar sobre a utilização do modelo do Sport Education se refere ao trabalho colaborativo entre os alunos. Durante as aulas, observamos que as atividades que foram encaminhadas [... ] fizeram com que eles se envolvessem, trabalhassem juntos e, assim, cada um pôde contribuir com o que sabia fazer melhor. (VARGAS et al.,2018, p.744).

Aqui vale um destaque quanto à necessária ação coletiva que permeou nossa prática. A dinâmica colaborativa embora positiva, não está imune às contradições. Importante o registro de que houve desequalização dos níveis de participação e compromisso de cada um dos envolvidos. Participação homogênea em torno dos estudantes é uma dificuldade também apontada por Vargas et.al. (2018) quando das experiências com o Sport Education. Entretanto, entendemos como sensato compreender que as circunstâncias de vida têm relação com as causas de um eventual deslize em termos de engajamento. Isso foi alvo de debate, sobretudo, quando se apontou para um estudante “acusado” de menor empenho. Ali valeu a mediação pedagógica de observar que tal estudante viveu em meio à experiência um conflito amoroso, o que possivelmente prejudicou suas motivações. Não demorou em aquele coletivo de estudantes brincarem com a situação: “A mulher só trás desgraça para o homem...” (DVSS). Brincadeiras à parte é evidente que o contexto adolescente atravessa um desenvolvimento por demais complexo. Não evidenciar isso quando do juízo de algumas atitudes dos estudantes em termos de comportamentos seria reduzir a compreensão de suas subjetividades. Algo que merece ser considerado na escola.

Uma última análise se levanta quando o debate com os estudantes incide pontualmente sobre eventuais mudanças em torno das atitudes de indisciplina, razão pela qual os mesmos haviam sido protagonistas neste processo. Neste ponto, a unanimidade novamente compareceu. Todos acreditavam que a efetiva participação no processo do Sport Education havia colaborado para que eles tivessem melhorado seus comportamentos na escola:

Sim, porque agora eu penso quando for fazer alguma coisa errada (PHAL).

Sim, Eu vou ficar quieto (DVSS).

Sim, melhorou muito dentro da sala de aula e melhorou minha disciplina (RPB).

Sim, para melhorar as notas e os estudos (TFSB).

Defendemos a necessidade de aprofundarmos o que de fato representa tais respostas. Afinal de contas não está no simples discurso ou mesmo na quantidade de material empírico aqui registrado a condição de desvelamento da realidade. Vale apelar para a tradição do materialismo-histórico e dialético na defesa da ideia de que a aparência não revela a essência (MARX, 2008). Portanto, está também em nossas experiências como pesquisadores-professores a condição para, por hipótese, apontar possíveis conclusões.

As afirmações dos estudantes, quando cotejadas ao processo pedagógico vivido de forma compartilhada durante a Educação Física e a implementação do Sport Education, nos parecem honestas e condizem com a realidade. Entretanto, seus limites de generalização têm a ver com o contexto da prática e de seus sujeitos. Se por um lado, o discurso revela consciência, por outro, vale à guisa dos cuidados qualitativos sobre estes dados ponderar, à luz de uma perspectiva crítica, os limites desta suposta evidência. Ora, em Freire (2011) aprendemos a diferenciação e a distância que há entre a “tomada de consciência” e a “conscientização”. Nesse sentido, o evidente está na tomada de consciência dos estudantes que perceberam que por certo a escola - mesmo que seja apenas na Educação Física - é um espaço formativo no qual se espera atitudes de sociabilidade pautadas numa ética de convívio e que isto guarda relação com o propósito do aprender e de se desenvolver enquanto estudante. A conscientização por sua vez irá requerer deles níveis de compreensão, conforme explica Freire (2011), que os engaje de forma consciente na luta pela desobstrução de tudo que prejudique os processos de humanização - objetivo último da educação.

Um dos estudantes (RPB) nos confidenciou que só participou do projeto interventivo devido ao medo de ficar sem as aulas de Educação Física, o que evidencia que as marcas históricas daquele contexto não se apagam com uma atividade isolada ou mesmo focalista, por mais que esta se apresente de forma exitosa, como foi o nosso caso. Nesse sentido, o enfrentamento à indisciplina jamais pode operar com a opressão expressada pela exclusão normativa, mote que gerou nosso estudo-interventivo. Em termos de raiz do problema, a saída para a indisciplina não está na retirada dos estudantes das aulas, mas ao contrário, das aulas estão as saídas para a indisciplina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização do modelo de ensino Sport Education concretiza-se como uma possibilidade de tematização do esporte na escola, se adequando aos objetivos da Educação Física escolar com os quais compactuamos. Nele observamos potencial para proporcionar aos estudantes uma apropriação crítica da cultura corporal, em especial, em razão de seu suposto do trabalho coletivo e a necessidade de haver engajamento de todos os envolvidos - estudantes e professores. Tal característica condicionou de forma exitosa nosso propósito de enfretamento à indisciplina em torno de um grupo de estudantes.

Após a experiência pedagógica, destacamos um reconhecimento da importância individual de cada estudante no desenvolvimento das ações. Os participantes do projeto eram estudantes costumeiramente castigados com a sua exclusão de aulas de Educação Física na escola. A intervenção realizou justamente o oposto, ao invés de serem excluídos, “os indisciplinados” ocuparam papeis de destaque. Logo, antes marginalizados pela exclusão normativa - inclusive por seus colegas que os discriminavam por carregarem o rótulo do descompromisso - foram agora incentivados a participarem de um grupo, que possuía metas e objetivos bem definidos, exigindo destes participantes uma postura diferenciada.

Desta experiência emergem-se os sentidos de que a fruição, tão destacadamente incorporada às aulas de Educação Física, deve ser considerada por professores no processo de mediação pedagógica. O compromisso tão evidentemente observado no envolvimento desses estudantes, com um histórico negligente na escola, passa por esta articulação, que nos termos de uma perspectiva crítica, deve se tornar deliberada por parte dos professores. Aprender sem envolvimento afetivo parece ser uma contradição na escola. Em nosso caso, em que a aprendizagem envolvia condutas éticas e práticas de boa convivência, isso se torna ainda mais premente.

Ao mesmo tempo, certamente estará equivocada a compreensão de que nossa experiência bem sucedida revele este mesmo êxito no que diz respeito às futuras boas condutas dos estudantes. Um fenômeno complexo como é a sociabilidade humana, sobretudo entre sujeitos em desenvolvimento, não permite jamais relações de causa e efeito. A indisciplina na escola, conforme abordamos no início deste artigo, se instala como um problema com múltiplas determinações. De todo modo, vale o destaque para a tomada de consciência dos estudantes, ora desvelada em nosso estudo, mesmo com os limites aqui já discutidos.

Ao fim e ao cabo, por certo, apenas nos cabe a defesa de que na escola, as intervenções socioeducativas devem incluir os estudantes, por mais que isso seja desafiador. Por ora, estamos convencidos que o problema da indisciplina não será resolvido pela opção da exclusão normativa.

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1“O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001” e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal - FAPDF.

2Declaramos que este estudo não possui conflitos de interesses de natureza pessoal, comercial, política, acadêmica ou financeira.

3O Código de Ética Desportiva, elaborado pelo Conselho da Europa (1992), ressalta que o fair play está além de um simples comportamento: o fair play significa muito mais do que o simples respeito às regras, cobre as noções de amizade, de respeito pelo outro, e de espírito esportivo, representa um modo de pensar, e não simplesmente um comportamento. O conceito abrange a problemática da luta contra batota, a arte de usar a astúcia dentro do respeito às regras, o doping, a violência (tanto física quanto verbal), a desigualdade de oportunidades, a comercialização excessiva e a corrupção.

AGRADECIMENTOS Não se aplica

FINANCIAMENTO “O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de financiamento 001” e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal - FAPDF

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Esta pesquisa está vinculada ao Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional (ProEF), foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) em 10 de junho de 2019, sob o nº CAAE: 15374119.1.0000.0030, cujo parecer aprovado nº 3.735.301 é datado de 29 de novembro de 2019

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 07 de Maio de 2020; Aceito: 29 de Julho de 2020

hadamofernandes@yahoo.com.br

jonatascosta@unb.br

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

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CONFLITO DE INTERESSES

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