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Motrivivência

On-line version ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.32 no.63 Florianópolis  2020  Epub Sep 01, 2020

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2020.e73972 

Porta Aberta

O corpo-em-fluxo na escalada em ambiente natural: possibilidades de emancipação

The body-in-flow in climbing in a natural environment: possibilities for emancipation

El cuerpo en flujo en la escalada en un entorno natural: posibilidades de emancipación

Cláudia Regina Garcia Millás1 
http://orcid.org/0000-0002-5970-3195

1Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Departamento de Arte Corporal, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil


RESUMO

Busca-se neste ensaio refletir sobre a escalada em ambiente natural enquanto uma prática emancipatória, como forma do praticante sair de uma dada condição e se libertar de normas pré-estabelecidas, podendo se transformar ao longo do trajeto, sentindo-se integrado ao meio, potente corporalmente e com os sentidos aguçados. Para tanto, faz-se análise da teoria de fluxo apresentada por Mihaly Csikszentmihalyi, relacionando os elementos de desfrute elencados pelo autor como presentes na experiência ótima, com as potencialidades do corpo em movimento na escalada percebidas e analisadas por Michel Serres. A partir dessa relação, propõe-se o termo corpo-em-fluxo como uma qualidade corporal específica em que o praticante ultrapassa a si mesmo, em processo de diferenciação e integração, desprendendo-se de pré-concepções para poder ver a si e ao mundo sob outra perspectiva. São investigados os treinamentos necessários para a prática, os riscos envolvidos na ação e a qualidade da experiência empreendida.

PALAVRAS-CHAVE: Escalada; Risco; Treinamento; Corpo humano

ABSTRACT

This essay seeks to reflect on climbing in a natural environment as an emancipatory practice, as a way for the practitioner to leave a given condition and free from pre-established norms, being able to transform himself along the way, feeling integrated to the environment, powerfully bodily and with sharp senses. For this, an analysis of the flow theory presented by Mihaly Csikszentmihalyi is made, relating the elements of enjoyment listed by the author as present in the optimal experience, with the potentialities of the body in movement in the climbing perceived and analyzed by Michel Serres. From this relationship, the term body-in-flow is proposed as a specific body quality in which the practitioner surpasses himself, in a process of differentiation and integration, detaching himself from preconceptions in order to see himself and the world from another perspective. The necessary training for the practice, the risks involved in the action and the quality of the experience undertaken are investigated.

KEYWORDS: Climbing; Risk; Training; Human body

RESUMEN

Este ensayo pretende reflexionar sobre la escalada en un entorno natural como una práctica emancipadora, como una forma de que el practicante salga de una condición dada y seja liberado de normas preestablecidas, pudiendo transformarse en el camino, sintiéndose integrado en el entorno, con fuerza corporal y con sentidos agudos. Para ello, se hace un análisis de la teoría del flujo presentada por Mihaly Csikszentmihalyi, relacionando los elementos de disfrute que el autor enumera como presentes en la experiencia óptima, con las potencialidades del cuerpo en movimiento en la escalada percibidas y analizadas por Michel Serres. A partir de esta relación, el término cuerpo en flujo se propone como una cualidad corporal específica en la que el practicante se supera a sí mismo, en un proceso de diferenciación e integración, desprendiéndose de los preconceptos para verse a sí mismo y al mundo desde otra perspectiva. Se investiga la formación necesaria para la práctica, los riesgos que conlleva la acción y la calidad de la experiencia emprendida.

PALABRAS-CLAVE: Escalada; Riesgo; Entrenamiento; Cuerpo humano

INTRODUÇÃO

Apresentam-se neste ensaio reflexões sobre a prática da escalada em ambiente natural como uma atividade que pode propiciar a emancipação do praticante, quando este se recria ao longo da ação, em um processo de diferenciação e integração. Para tanto, analisa-se o conceito de fluxo abordado pelo psicólogo e pesquisador Mihaly Csikszentmihalyi (2002), a partir de sua obra intitulada Fluir1, e o entendimento ampliado das potencialidades do corpo desenvolvido pelo montanhista e filósofo Michel Serres (2004) em seu texto Variações Sobre o Corpo.

A justificativa para escolha destas obras especificamente é por considerarem a prática da escalada como parte do foco de investigação e argumentação, disponibilizando relatos de praticantes e o estudo de situações concretas referentes a este universo.

Não será objeto deste trabalho um exame da obra de Mihaly Csikszentmihalyi a partir de preceitos da neurociência, por exemplo, buscando a veracidade dos fatos apresentados enquanto provas científicas. Por sua vez, relacionam-se algumas questões levantadas pelo autor sobre a experiência de fluxo que auxiliam pensar possibilidades de transformação do praticante na escalada em ambiente natural.

Quanto à análise da obra de Michel Serres (2004), utilizar-se-á de quatro termos-chave: corpo em movimento; lucidez; pele extensível; e a característica de produzir encantamento, os quais serão relacionados com os elementos de desfrute percebidos Mihaly Csikszentmihalyi (2002) na experiência de fluxo. Expende-se ainda sobre a necessidade de treinamento, dedicação e prática para que a experiência ocorra e para que a atividade da escalada não só se torne segura, quanto possível.

Sabendo da diversidade de modalidades que a escalada abarca, sendo uma atividade plural composta por práticas heterogêneas, cada qual com suas regras, participantes, espaços de atuação e modos de operação (FLORES, 1978), tratar-se-á neste ensaio da escalada em ambiente natural. Serão referidas especificamente as escaladas de parede contínua, como as tradicionais brasileiras, de aventura, alta montanha, Big Wall e alpinas, conforme explicita Cíntia e Flávio Daflon (2016). Será utilizado também como exemplo de casos extremos a modalidade de escalada denominada Free Solo 2, tendo o escalador estadunidense Alex Honnold como caso principal.

No contexto do presente estudo, a escalada não é vista como um esporte, enquanto atividade competitiva, institucionalizada e regulamentada, mas como uma atividade corporal de imersão na natureza. Nesta situação, o companheiro da prática não é visto como concorrente ou adversário, mas como um parceiro. Ambos os participantes se tornam codependentes, num agenciamento por mutualismo.

Enfatiza-se a relação direta com o espaço enquanto ponto de apoio e não como campo de batalha, tendo a montanha como lugar de atuação. Imerso neste ambiente, o praticante pode experimentar o tempo com outra duração, ver a si e ao mundo de outras formas e se integrar ao meio. Destaca-se o potencial das montanhas, que permitem aos homens restaurarem seu fascínio pela natureza, conferindo-lhes poder tanto em encantar quanto em serem encantados. Percebe-se que neste movimento, os montanhistas são tomados por algo, uma emoção de alegria os invade. No contato com as montanhas, acompanhando suas transformações e percebendo sua dimensão, ficam perplexos com as sutilezas e os fenômenos naturais mais simples, como se voltassem a perceber o mundo em que vivem e retomassem o sentimento de pertença a ele.

Neste sentido, concebe-se a escalada em ambiente natural como uma prática que pode propiciar a emancipação do praticante, quando este se percebe de outra forma e se recria no instante, saindo de uma dada condição e se libertando das normas biopsicossocioculturais impostas. Poder-se-ia caracterizar a escalada como uma experiência que tem compromisso com a transformação e não com a reificação das normalidades estabelecidas, trazendo uma nova forma de estar no mundo e que convida à criação de outras maneiras de satisfação.

Propõe-se o termo corpo-em-fluxo como uma interação entre a experiência ótima proposta por Mihaly Csikszentmihalyi (2002) e o entendimento de corpo em movimento apresentado por Michel Serres (2004), possibilitando pensar em qualidades corporais específicas que permitem ao praticante transformar-se ao longo da ação: ver a si e ao mundo sob outra perspectiva, alterando uma imagem pré-definida de si mesmo, saindo de concepções fixas e ideias paralisantes, para poder redimensionar problemas.

Em consonância com as percepções de Mihaly Csikszentmihalyi (2002) em relação às potencialidades do corpo para melhorar a qualidade da experiência, elenca-se a escalada em ambiente natural como uma atividade que proporciona oportunidade de desfrute, sendo potencialmente promissora para a conquista de emancipação.

Compreende-se que o ensaio levanta discussões ainda pouco difundidas em língua portuguesa, revelando potencialidades da atividade de escalada em ambiente natural, que podem motivar a sua prática de forma consciente, ampliando seu campo de atuação e repercussão, além de suscitar outras pesquisas e o desenvolvimento de estudos na área.

DESENVOLVIMENTO TEÓRICO

Experiências de fluxo

Mihaly Csikszentmihalyi (2002), interessado em saber quando o ser humano sente-se mais feliz, percebendo que os homens buscam a felicidade acima de tudo, realizou por mais de duas décadas uma série de experimentos que pudessem auxiliá-lo a compreender como se sentiam as pessoas quando mais desfrutavam de si mesmas e por quê. A partir do testemunho de centenas de entrevistados, pessoas que se dedicavam às suas atividades preferidas, sobre como se sentiam em seus fazeres, desenvolveu a teoria da experiência ótima baseada no conceito de fluxo: estado em que o praticante se encontra completamente compenetrado e absorto no que se está fazendo, sem outro objetivo, quando nada mais importa, desejando assim permanecer.

A princípio, seu método consistia em entrevistas e questionários e, posteriormente, criou uma forma que o permitia medir a qualidade da experiência subjetiva, denominado Método de Amostragem da Experiência (MAE). Esta técnica baseava-se em uma agenda eletrônica ativada por um transmissor de rádio, que o participante da pesquisa deveria usar ao longo de uma semana para anotar como se sentia e no que estava pensando, toda vez que ela disparava um sinal sonoro, feito cerca de oito vezes por dia em intervalos aleatórios.

Por meio deste método, foram coletadas mais de cem mil amostras por diversas regiões do globo em diferentes condições de vida. No início, o autor e sua equipe só entrevistavam pessoas que despendiam muito tempo e esforço em determinada atividade que não era compensadora monetariamente, como escaladores, artistas e atletas amadores. Mais tarde, incluíram pessoas comuns, com diferentes ocupações, faixa etária, cultura e nível social. Constatou-se que:

A experiência de fluxo não era apanágio de elites ricas e industrializadas. Na sua essência, era relatada nos mesmos termos por mulheres idosas da Coréia, por adultos da Tailândia e da Índia, por adolescentes de Tóquio, por pastores Navajo, por agricultores dos Alpes Italianos e por trabalhadores de uma linha de montagem de Chicago (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 21).

Csikszentmihalyi (2002) parte do preceito de que para alcançar a felicidade, deve-se ter o controle da consciência, da vida interior. Esclarece, assim, que o estado ótimo da experiência é aquele em que há ordem na consciência, o que acontece quando a energia psíquica (atenção) se concentra em objetivos específicos reais e as aptidões combinam com as oportunidades de ação.

Ao se perguntar por que razão os seres humanos continuam tão indefesos e não conseguem controlar suas próprias vidas, visto que há milhares de anos, diferentes culturas desenvolveram refinadas técnicas para controlar a consciência (liberar a vida interior do caos e do condicionamento rígido das necessidades biológicas adquirindo independência dos controles sociais), encontra duas razões. A primeira diz respeito à dedicação, treino e prática necessários, uma vez que: “não basta saber como fazer; é preciso fazê-lo consistentemente, da mesma forma como os atletas e os músicos têm de praticar em permanência os seus conhecimentos teóricos” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 43). A segunda razão consiste no fato de que, como o controle da consciência não pode ser algo institucionalizado, necessita-se de adaptação conforme contexto histórico-social. Por isso, reafirma que sua obra não é para ser seguida como receita, mas ponto de partida para que outras reflexões sejam feitas e possibilidades experimentadas, conforme a realidade de cada leitor.

Dedicação, treinamento e prática

Percebe-se que as atividades de montanha oportunizam ao praticante vivenciar experiências que estão além da expressão. Existe uma beleza inexplicável: os cumes deixam os montanhistas imóveis, aprimorando sua noção de ser e colocando a vida em cada passo, cada gesto, que deve ser preciso e justo, no instante do aqui e agora. Neste sentido, como descrito e analisado por autores de diferentes áreas, considera-se que por ser um lugar de difícil acesso para os homens, a ascensão à montanha poderia conduzir ao conhecimento de si ou ao contato com forças superiores, além de atrair a atenção de cientistas, aventureiros e viajantes (BRITO, 2008; FARIA, 2017).

Na escalada em ambiente natural, depois de se caminhar por trilha em relevo já inclinado e sinuoso, mas ainda na condição bípede, até chegar à rocha, a primeira sensação que se pode ter é a de pausa. Trata-se de uma pausa de contemplação, como uma parada que antecede a prática em si, se pensar no movimento de subida vertical. A rocha surge majestosa. Como o início de um respiro, lento e profundo, percebe-se que algo se transforma. Poder-se-ia dizer que é o início do estado de fluxo que se instaura.

Neste sentido, ao discorrer sobre a caminhada na montanha, Michel Serres (2004) lembra que, na rocha, não se pode mentir ou hesitar. É necessário ter precisão do movimento para chegar ao ponto certo. Muitas vezes não se tem uma segunda chance. Desta forma, o corpo todo deve estar engajado, vivo e atuante, segundo uma série de treinamentos. Diferentemente do avião - em que o passageiro está passivo, sentado em uma cadeira, sendo conduzido por uma máquina, apenas com a visão ativa a testemunhar paisagens incríveis do alto - na escalada, todo o corpo olha, se engaja e se interessa pela ação que realiza. O escalador está ativo, com o corpo vivo, ao sabor do vento, do sol, das tempestades, da rocha e suas variações, no convívio com outros animais, sendo parte daquela visão e conquistando-a a duras penas.

Nestas condições, Michel Serres (2004) refere-se ao termo corpo em movimento como um estado em que o escalador se encontra com os sentidos unificados, amplamente concentrado na atividade que realiza, sentindo-se íntegro. Não se trata do corpo somente como parte orgânica, percebendo o movimento enquanto deslocamento do corpo no espaço. Mas antes, de uma postura em que o escalador se coloca para enfrentar as situações da montanha e com ela se integrar, contemplando aspectos subjetivos e multidimensionais do ser.

Diz-se que, nesse momento, o corpo está lúcido. O que antes era distante e não o dizia respeito, agora faz parte do praticante, é ele também. Seu corpo se integra à paisagem na medida em que se move e, nesse movimento de suor e resistência, torna-se um pouco mais rocha, árvore e vento, aumentando de tamanho, ficando na proporção do mundo. Torna-se extensão do mundo. O escalador pode sentir que toca uma parte da paisagem que está em outro extremo, porque também é ela, porque a ela pertence. Acaricia todo o universo com suas mãos.

Sua pele se torna extensível, consegue ver pelos dedos, pelas mãos, dissolvendo o olhar e apaziguando o ânimo. A partir desta relação da pele com o mundo, o escalador metamorfosea-se em rocha, ao tocá-la com as mãos sente-se a ela conectado, mas, também, em sua frequência e vibração, como ela. Esse é o poder de se transformar, de estar um pouco mais receptivo, nesta atividade que necessita de passividade para ser ativo, abrir espaço para poder deixar algo acontecer, pausar para movimentar.

Ainda para este autor, quando se está nesse estado do corpo em movimento, ativo e lúcido, tem-se os sentidos unificados e, assim, a partir do poder do toque, acredita que seria possível produzir encantamento: tornar a rocha dura e áspera em algo doce e suave. Nesse estado conquistado, poder-se-ia fazer poesia com o próprio movimento, gerando variações do corpo no espaço - como se fossem possibilidades de desdobrar certo tema, parodiando as variações na música - com as quais se conseguiria produzir formas de criação e interação:

(...) em contrapartida, quando as mãos se agarram à rocha até sangrarem, quando o peito, o ventre, as pernas e o sexo ficam paralelos à parede, quando em conjunto as costas, os músculos, o sistema nervoso, digestivo e simpático participam sem reservas da abordagem física do relevo, em uma relação de luta aparente e de sedução real, do mesmo modo a pedra ao ser tocada perde sua dureza e, amada, ganha uma surpreendente doçura (SERRES, 2004, p. 14).

Michel Serres (2004) afirma que sem treinamento adequado, o que denomina de “regras quase monásticas de emprego do tempo”, além de observação rigorosa do sono e alimentação sadia, a prática não acontece e, consequentemente, a possibilidade de se ver lúcido, sentindo-se vivamente acordado e parte do todo, produzindo encantamento, também não. Aprende-se na ação a partir do corpo e com ele, em movimento, em vida, e não sentado em frente a uma mesa ou televisão. A atividade intelectual nasce desse lugar do movimento. O autor agradece, assim, aos seus treinadores, professores de ginástica e guias de montanha, por lhe ensinaram, a partir do poder do corpo, a pensar.

No entanto, adverte que a prática pode ser excelente se aperfeiçoa a pessoa, mas atroz se estiver em detrimento do “supertreinamento” que exige vitória a qualquer custo, provocando humilhação e sacrifícios do homem para engrandecer uma nação: “à nobre atividade desportista dos guias, que desenvolvem os corpos e ensinam as virtudes físicas e morais, opõe-se a atividade competitiva e ignóbil do dinheiro, que cultiva vícios nocivos e espalha o fascismo” (SERRES, 2004, p. 37).

O que faz perceber é que não se trata somente de boa vontade para praticar a escalada. Existe uma série de conhecimentos envolvidos e de treinamentos específicos que não apenas tornam a prática segura, como também possível, pois, sem isso, o praticante não poderia nem sequer experienciá-la.

Todos sabem sobre os perigos da montanha e os riscos que correm os escaladores, mesmo os mais prudentes e habilidosos. Percebe-se que, no início, se lida com a angústia, em seguida o medo, mas ao longo do percurso, os escaladores sentem-se protegidos. Essa sensação faz com que avancem sem se deterem a uma parte ou sentirem-se paralisados pelo pânico. Algo os faz seguir e os move pelo paredão ao qual vão se integrando gradualmente. Como ressalta Mihaly quanto ao risco envolvido neste tipo de prática:

O importante aqui é compreender que as atividades que produzem experiências de fluxo, mesmo as aparentemente mais arriscadas, são elaboradas de tal forma que permitem ao praticante desenvolver capacidades suficientes para reduzir a margem de erro ao mínimo. Os alpinistas, por exemplo, reconhecem duas espécies de perigos: ‘objetivos’ e ‘subjetivos’. (...) O objetivo do alpinismo consiste em evitar, na medida do possível, os perigos objetivos e em eliminar totalmente os perigos subjetivos através de uma disciplina rigorosa e de uma preparação sólida (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 93).

Esta questão da “disciplina rigorosa” e da “preparação sólida” que os escaladores devem ter para poderem se arriscar sem necessariamente correr perigo, conforme explicita o autor supracitado, fica mais nítida no caso da modalidade Free Solo, em que o praticante se encontra no limite do risco. Nesta prática, qualquer eventualidade pode ser fatal. O risco está realmente intrínseco à atividade. A atenção e a concentração devem ser máximas. Além disso, deve-se saber exatamente o que fazer, não há margem para erro. Para discutir mais a fundo, traz-se o exemplo do escalador estadunidense Alex Honnold, conhecido por suas façanhas nesta modalidade de escalada, quando as realiza em diferentes partes do mundo de forma rápida e técnica. Vale ressaltar que outros escaladores o antecederam, como Dan Osman, Dean Potter, John Bachar e Leonel Terray, e inclusive mulheres, como a francesa Catherine Destivelle, que se destacou na década de 80 por “solar”3 grandes paredes, sendo a primeira mulher a fazê-lo. No entanto, apesar de seus feitos, estes escaladores não tiveram a mesma fama e oportunidade de Honnold.

Honnold é um dos mais famosos escaladores desta modalidade no mundo. Atualmente, foi inclusive protagonista do documentário americano lançado em 2018, “Free Solo”, dirigido por Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin, vencedor do Oscar de melhor documentário de longa-metragem em 2019. Começou a escalar aos dez anos de idade em um ginásio de escalada em sua cidade natal em Sacramento, Califórnia, nos Estados Unidos. Como era muito tímido e não conseguia interagir com outros escaladores para poder formar parceria para ir à rocha, escalava sozinho, realizando vias no início de III grau e, mais tarde, chegando a realizar façanhas inigualáveis em tempo e dificuldade, como Moonlight no Parque Nacional de Zion, em Utah, em 2008, uma via com 365m (1.200 pés) considerada como um IXa brasileiro (HONNOLD, 2016).

Frente ao risco extremo, o que Alex Honnold (2016) faz, segundo seus relatos, é o que descreve Csikszentmihalyi (2002): tentar tornar a prática o mais segura possível, eliminando tanto os perigos objetivos, como pedras soltas ao longo de uma via e realizando estudo prévio das condições climáticas para a época que pretende realizar a ação; quanto os perigos subjetivos, com uma série de treinos e práticas diárias que o permitem manter-se concentrado e seguro ao longo de todo o percurso, pois já conhece os movimentos necessários, ou seja, já decorou aquela “coreografia”, colocou-se à prova anteriormente e manteve-se apto fisicamente para o que a via exigia.

Para Honnold (2016), existe uma diferença elementar entre risco e consequência, que ele aborda quando é questionado sobre sua prática. Insiste que não gosta de risco, de se aventurar com a morte, e entende que, na modalidade que pratica, as consequências são fatais, levam sim à morte, mas isso não quer dizer que os riscos que corre também o sejam: “Eu sempre chamo de risco a probabilidade de realmente cair. As consequências são o que vai acontecer se você fizer isso. Então eu tento manter minha [escalada] solo de baixo risco - como não é provável que eu caia, mesmo que houvesse consequências realmente altas se eu o fizesse” (HONNOLD, 2016, p. 13-14. Tradução nossa).

A este respeito, Alex Honnold (A QUESTION, 2014) explica que só o escalador sabe o quão difícil é a via e o quão bom ele é, ou seja, só o próprio escalador pode definir para si, a partir de uma autopercepção e escuta, o que o desafia e o que ele domina, como será visto no primeiro elemento do desfrute em relação à perícia, elencado por Mihaly Csikszentmihalyi (2002). Não se pode determinar o risco que outra pessoa vai correr sem conhecê-la ou somente vendo o lugar por meio de uma imagem. De fora da situação não é possível ter dimensão de todos os aspectos envolvidos. Desta forma, não se tem como julgar o risco envolvido na ação empreendida por outra pessoa.

Para Alex Honnold (2016), a escalada solo seria basicamente preparação, em que se investe em treinamento e prática, com dedicação e afinco, para que se possa transformar uma situação de perigo em algo seguro, fazendo com que o escalador progrida na parede, sentindo-se protegido.

Desta forma, acredita-se que nas práticas de escalada estudadas seja o próprio risco que motive os escaladores e que os exija estarem altamente concentrados, fazendo com que encarem a atividade com mais seriedade, dedicando-se da mesma forma aos treinamentos. Assim, possibilita-se que adentrem na experiência de fluxo proposta por Csikszentmihalyi (2002), e vivenciem o corpo em movimento, lúcido, com a pele extensível, sentindo e sendo parte do mundo, integrando-se ao meio, de forma que consigam produzir encantamento, como descreve Serres (2004).

Não seria a escalada a única atividade que gozaria da possibilidade de gerar condições para que o praticante adentre numa experiência de fluxo. Csikszentmihalyi (2002) aborda diversas outras atividades como a dança, os desportos, a música e o xadrez, para exemplificar suas constatações. No entanto, para este estudo em especial, elege-se a escalada em ambiente natural por ser uma prática experienciada pelo autor e seu objeto de pesquisa, em que claramente podem ser observados os elementos de desfrute, que serão tratados a seguir.

Desfrute - qualidade da experiência

Ao dissertar sobre a importância do corpo humano, Csikszentmihalyi (2002) afirma que seu valor não estaria nos percentuais de composição química e orgânica, das estruturas da pele, músculos, ossos ou cabelo, nem no sistema nervoso que permite o processamento de informações, mas no fato de que é a partir do próprio corpo que se dão as experiências e que sem estas não haveria a vida.

Para este autor a experiência subjetiva de cada pessoa não se trata somente de uma dimensão da vida, mas antes, da própria vida. Por meio das experiências é que os seres se efetuariam. Portanto, a qualidade de vida estaria diretamente relacionada com a qualidade das experiências vividas, pois: “só o controle direto da experiência, a faculdade de desfrutar em cada momento de tudo o que fazemos, pode derrubar os obstáculos à realização” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 26).

Sendo assim, para melhorar a vida, dever-se-ia investir na qualidade das experiências, em consonância com o que Larrosa (2016) largamente incita sobre o ato de experienciar o percurso. Não se trataria do que fazer, mas de como fazer.

Neste sentido, Mihaly Csikszentmihalyi (2002) aponta uma distinção clara entre o desfrute e o prazer, apresentando a perspectiva de que: “As experiências que dão prazer também podem proporcionar desfrute, mas são duas sensações muito diferentes. Por exemplo, toda gente tem prazer em comer. Desfrutar da comida, contudo, é algo mais difícil” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 75). Caracteriza o desfrute como um movimento para frente, quando se ultrapassa o esperado e tem-se alguma surpresa com o que se vivencia, exigindo atenção ao momento e concentração na atividade.

Conclui que o prazer, apesar de ser uma experiência positiva, por ser efêmero e não exigir energia psíquica para acontecer, não faz o “Eu” crescer. Sendo assim, percebe que para se ter controle da qualidade da experiência, precisa-se desfrutar do momento.

Destaca oito elementos principais do desfrute, que não necessariamente ocorrem nesta ordem e nem sempre são todos necessários para que a experiência ocorra:

  1. Perícia;

  2. Objetivos claros;

  3. Resposta imediata;

  4. Sensação de controle da situação;

  5. Capacidade de se concentrar;

  6. Alteração da sensação do tempo;

  7. Esquecimento da vida cotidiana;

  8. Desaparecimento do Eu.

O primeiro elemento, da perícia, é a possibilidade que se tem de completar a tarefa. O autor explica que, para que se possa estar completamente envolvido na ação, concentrado e com foco, precisa-se ter um equilíbrio entre a dificuldade, algo que desafia, e a capacidade que se tem de realizar a atividade. Conforme deslinda, se tiver muito desafio e pouco domínio para superá-lo, entra-se em estado de ansiedade. Na escalada, este elemento é bastante claro, pois por se tratar de uma atividade que envolve risco, caso o escalador não esteja suficientemente apto a realizar a via que deseja, poderá ficar em pânico, imobilizado na parede sem poder sair do lugar. Todavia, se estiver com muito domínio e pouco desafio, ficará entediado e assim poderá se distrair com outras coisas que não a atividade. Então, o desafio está ligado à necessidade de concentração, e o domínio, à capacidade de seguir, de se envolver por inteiro para realizar a ação, mantendo-se em fluxo, e, assim, podendo mudar ou progredir nos objetivos. Ou seja: “O desfrute surge no limite entre o tédio e a ansiedade, quando os desafios se encontram em perfeito equilíbrio com a capacidade de agir” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 83).

No entanto, a medida entre desafio e controle é algo dinâmico, não são dados pré-estabelecidos e imutáveis, pois variam não só de uma pessoa para outra, mas também para um mesmo praticante, conforme se percebe a cada momento, pois uma mesma atividade em um dia pode ter para ele a medida certa desta constante de perícia e em outro dia se tornar impossível de ser realizada. Sendo assim, as práticas, de maneira geral, devem ser pensadas de modo singular. Autoconhecimento, escuta e percepção de si mesmo tornam-se elementos fundamentais para que se possa avaliar quais as condições que cada um pode lidar em cada momento, sem extrapolar.

O segundo elemento, objetivos claros, é fundamental em qualquer jogo, seja nas brincadeiras das crianças ou nos desportos, pois torna possível o envolvimento dos participantes. O conhecimento que se tem das regras do jogo, quando claras e bem estabelecidas, faz com que o praticante consiga se situar e se envolver a ponto de criar relação com os outros e com o espaço. Pode-se utilizar como metáfora a imagem de um rio, que tem margens para que a água possa correr, pois se não houvesse limite que contivesse a água, ela vazaria, seria um grande pântano. Os limites, como objetivos e regras claras, ao contrário de aprisionar, libertam, possibilitam a ação.

O terceiro elemento, de resposta imediata, está ligado ao anterior, pois se os objetivos são claros, sabe-se se está próximo ou distante do que se propôs a fazer. Isto quer dizer que a resposta seria “conferir” de certo modo o que se faz, como se verificasse os dados. Na escalada, pode-se pensar numa determinada parte da via, denominada de lance, que demanda trabalho corporal específico, e que o escalador sabe o que é preciso fazer e o que pode acontecer caso não consiga. Então, quando passa o lance, tem uma resposta imediata à sua ação.

Assim, pode-se dizer que se os objetivos da atividade são claros, tendo resposta imediata à ação, com equilíbrio entre a dificuldade, algo que desafia, e a capacidade que se tem de fazer, como visto no primeiro elemento, o escalador consegue manter-se ativo na prática sem desperdiçar energia de atenção com outra coisa, como o medo que paralisa, por estar difícil demais, ou a distração, por estar demasiadamente fácil. Nesse equilíbrio, o praticante pode se sentir seguro e deixar-se fluir livremente, com envolvimento e engajado corporalmente, entendendo aqui corpo e mente como uma coisa só. Conforme o quarto elemento destacado pelo autor, percebe-se que a situação está sob controle e de alguma forma sente-se confiante para progredir, sem desperdiçar tempo e energia pensando se deveria ou não estar ali. Ao longo da trajetória, conforme descreve Serres (2004), o escalador sente-se protegido e pode desfrutar do momento, ascendendo rumo ao cume.

Subsequente a todos os elementos anteriores, o quinto, referente a concentração, é a capacidade do praticante estar absorto na ação, que o envolve de tal maneira que somente a ela pode responder. No caso da escalada, acredita-se que o risco seja um dos elementos fundamentais para que se tenha tal concentração. Como se sabe, esta prática é considerada de risco, mesmo sendo usados equipamentos de segurança, pois envolve uma ação de ascensão, uso do espaço vertical, que traz consigo, potencialmente, uma possibilidade de queda (MILLAS, 2014). Outros incidentes ainda podem acontecer, decorrentes de imprevistos na rocha ou mesmo de ações naturais, como um ataque de abelhas, uma descarga elétrica ou deslizamento de parte da rocha ou outras superfícies. No entanto, é justamente esse lugar de imprevisibilidade que instiga boa parte dos escaladores, conforme mencionado anteriormente.

Com esta concentração profunda, perde-se a noção do tempo, como se vê no sexto elemento presente no desfrute. Não se trabalha mais com a cronologia do dia a dia, com a duração objetiva, mas com a duração subjetiva da experiência em que se está envolvido, sem se dar conta de quanto tempo passou ou quanto ainda se tem. E assim como se perde a noção do tempo, também não se tem condição de pensar nos problemas diários. Como aponta o autor: “uma das características da experiência de fluxo mencionadas mais frequentemente é que, enquanto dura, conseguimos esquecer todos os aspectos negativos da vida” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 89). Neste sétimo elemento, vê-se que a concentração profunda e a capacidade de se envolver por completo na ação são tão grandes, que não se tem tempo nem energia suficientes para pensar em outra coisa que não esteja diretamente relacionada com a prática.

Ao longo da atividade, além de se esquecer dos problemas diários, praticamente se esquece de si mesmo, a sensação de si se desfaz. O oitavo elemento, portanto, é a possibilidade do praticante se desfazer de alguma forma de si mesmo, das suas definições que o enrijecem e paralisam, para que possa experienciar o fluxo e se transformar ao longo do percurso, passível de ser outro:

(...) quando uma atividade é completamente absorvente, não resta atenção suficiente para uma pessoa refletir sobre o passado ou o futuro, ou outros estímulos temporariamente irrelevantes. Há um item que desaparece da consciência, e que merece especial atenção, visto que passamos muito tempo na vida cotidiana a pensar nele: o nosso próprio eu. (...) a perda de sentido de um eu separado do mundo que o rodeia é, por vezes, acompanhada de uma sensação de comunhão com o ambiente, quer seja uma montanha (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 95-96).

Corrobora neste sentido um dos depoimentos coletados por Mihaly e sua equipe, em que se revela uma experiência tão intensa que a pessoa sentia quase como se ela própria não existisse, pois neste tipo de situação, quando se está engajado completamente, não há sobra de atenção suficiente para a pessoa monitorar nem mesmo como se sente. Não consegue saber se está com fome ou cansada. Seu corpo desaparece, sua identidade desaparece de sua consciência. Então, a existência é temporariamente suspensa. No entanto, o autor explica que:

A perda da autoconsciência não implica a perda do eu, nem certamente a perda da consciência, mas apenas a perda da consciência do eu. O que resvala sobre o umbral da consciência é o conceito do eu, a informação que utilizamos para representarmos o que somos. E sermos capazes de esquecermos momentaneamente quem somos, parece ser muito agradável. Quando não estamos preocupados conosco, tempos a oportunidade de expandir o conceito de quem somos. A perda da autoconsciência pode levar a autotranscendência, ao sentimento de que as fronteiras de nosso ser foram alargadas (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 98).

Portanto, em contraposição com a sensação de desaparecimento, quando o próprio praticante esquece de si mesmo, ao final da atividade pode transcender, como mencionado por Csikszentmihalyi (2002), sentindo-se pleno, feliz e em conexão consigo, com o outro e com o meio, sendo parte do todo. A esta tríplice conexão, associa-se a ideia dos três registros ecológicos mencionados por Guattari (2012), da subjetividade humana, das relações sociais e do meio ambiente, necessários para se criar uma ecosofia, que consistiria em: “desenvolver práticas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho, etc.” (GUATTARI, 2012, p. 15-16). Assim, criar-se-ia com a experiência de fluxo, uma postura ecológica em relação ao mundo, necessária para que o ser humano se aproxime da natureza e se sinta por ela responsável.

Esta sensação de conexão e potência corporal está presente no relato de diversos escaladores, como também se pode observar na passagem de Serres (2004) ao descrever uma emoção que o invadiu, após ter escalado algumas montanhas na França, como os Alpes ou ainda o Mont Blanc, e chegado aos seus cumes:

(...) fui subitamente inundado, transbordado, coberto, saciado, sobejado, possuído por uma soberana alegria, contínua e tão imensa que pensei que meu peito iria explodir, que todo meu corpo levitava, presente por todo o espaço do mundo que estava todo presente em mim. O que eu vivenciara então era uma espécie de pleroma, uma plenitude de júbilo. Nada de artificial existia nessa experiência, pois ela aconteceu em momentos em que eu me alimentava pouco, bebia apenas água e toda minha atenção nervosa e muscular era continuamente requisitada para impedir que eu escorregasse: esse êxtase acontecia durante períodos ativos em que a dura realidade mobilizava todo meu corpo (SERRES, 2004, p. 20-21).

Para Serres (2004) a imensa alegria que teria sentido, como “uma espécie de pleroma, uma plenitude de júbilo”, advinha de uma experiência em que o corpo estava engajado na ação, em concentração plena, com os sentidos unificados. Seria fruto de um período em que se encontrava ativo, pois a realidade dura da montanha mobilizava todo seu corpo. Não somente seus músculos eram acionados, mas todo seu sistema nervoso, respiratório, digestório, circulatório e esquelético.

A partir de um “esforço consentido”, num processo de ultrapassar a si mesmo para sobreviver aos desafios impostos pelo espaço, por meio de treinamento rigoroso e preparação árdua, o autor acredita que o escalador pode vivenciar o êxtase, ou a Ascensão, conforme explicita em seu preceito: “pratiquem o exercício do corpo como preparação para a subida aos céus. É preciso ter coxas firmes para escalar o paredão e experimentar a festa mística da Ascensão” (SERRES, 2004, p. 22).

Portanto, ao tratar do estado do corpo em movimento, o autor não se refere ao aspecto formal de deslocamento do corpo, mas antes a uma postura ativa em relação à vida. Seria uma atitude que o praticante se colocaria para desfrutar da situação que se encontra, podendo experienciar o fluxo.

Possibilidade de emancipação - processos de diferenciação e integração

Como destaca Csikszentmihaly (2002), o importante no desfrute é a atenção que seleciona as informações relevantes: “a característica de uma pessoa que controla a consciência é a faculdade de concentrar a atenção como quer, ignora distrações, concentra-se durante o tempo que for necessário para atingir um objetivo. É aquela que consegue geralmente desfrutar do curso normal da sua vida cotidiana” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 56). A atenção é percebida enquanto energia psíquica, sem a qual não se poderia realizar nenhuma tarefa, mas que, logo depois de finalizada, dissipa-se.

A desordem na consciência, a qual o autor denomina de entropia psíquica, acontece quando a informação perturba a consciência, ameaçando seus objetivos, ou seja, entra em conflito com as intenções existentes. Já a ordem na consciência, conhecida então como experiência ótima ou experiência de fluxo, é quando a informação está congruente com os objetivos e o fluxo da energia psíquica libera-se, fazendo com que o praticante cresça. Segundo Csikszentmihaly (2002), nessas condições, quando a pessoa consegue organizar a sua consciência de forma a experimentar o fluxo, a sua organização fica mais complexa, resultado do movimento de diferenciação - em direção à singularidade - e integração, para além de si, em união com os outros. Isto acontece porque:

(...) nesse estado de concentração profunda, a consciência está invulgarmente bem ordenada. Pensamentos, intenções, sentimentos e todos os sentidos estão concentrados no mesmo objetivo. A experiência está em harmonia. E quando terminamos o episódio de fluxo, sentimo-nos mais ‘unidos’ do que antes, não só interiormente, mas também no que respeita aos outros e ao mundo em geral (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 69).

A possibilidade de o praticante sentir-se parte do meio ou de possuir as “dimensões gigantes do mundo” (SERRES, 2004, p. 14), explica-se para Csikszentmihalyi, pois o fluxo ajuda a integrar a pessoa por se tratar de uma experiência em harmonia, quando está tudo voltado para o mesmo objetivo.

Sendo assim, atividades como a escalada em ambiente natural, que proporcionam desfrute do momento, a partir dos elementos levantados, podem se tornar possibilidades de emancipação por permitirem ao praticante adentrar numa experiência de fluxo, enquanto via de transformação, quando se desprende de uma concepção de si para se tornar mais íntegro e conectado com o meio, sentindo-se potente e feliz.

Apesar de historicamente o conceito de emancipação estar relacionado com movimentos sociais, envolvendo o coletivo que luta contra injustiças e formas de opressão, utiliza-se neste ensaio a emancipação em seu sentido lato de libertação, na relação do ser consigo e com o outro, quando consegue ver a si e ao mundo de outra forma, ampliando a concepção que tem de si mesmo para poder transformar a sua realidade a partir de uma experiência processual.

Neste sentido, seria a emancipação da norma imposta, em consonância com Boaventura de Sousa Santos (2010). Poder-se-ia caracterizar a escalada como uma experiência que tem compromisso com a transformação e não com a reificação das normalidades estabelecidas, trazendo uma nova forma de estar no mundo e que convida à criação de outras maneiras de satisfação.

Mihaly Csikszentmihalyi refere-se à experiência de fluxo enquanto uma possibilidade de libertação pessoal na busca por uma “emancipação da consciência” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 43). Este autor inicia sua obra, apresentando aos leitores vias de libertação da influência de forças exteriores, quer seja de natureza biológica, quer seja social. Entende que a experiência de fluxo, considerada como experiência ótima, por ter a consciência vulgarmente ordenada, em que o ser desfruta de cada momento, pode proporcionar a sua emancipação em relação às forças exteriores que trariam uma espécie de caos, ameaçando a ordem da consciência.

Mihaly afirma que “após uma experiência de fluxo, a organização do eu fica mais complexa do que antes e é tornando-se gradualmente mais complexo que o eu cresce” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 68). Como dito, este autor entende que a complexidade é resultante de dois processos distintos, aparentemente antagônicos, mas complementares: diferenciação e integração.

Estaria assim o processo de diferenciação rumo à singularidade, enquanto afirmação da diversidade de formas de existência, e a integração, rumo à sensação de pertencimento e comunhão em que se sente fazer parte do mundo que vive, sendo dele responsável. Ao mesmo tempo em que o ser se diferencia, transformando-se ao longo da ação e emancipando-se de normas e limites pré-estabelecidos, para poder se efetivar, ele se integra ao meio que vive, ampliando a sua consciência.

Csikszentmihalyi incita que em uma atividade que requer concentração profunda, exigindo que o praticante esteja completamente absorto e engajado na ação, tendo objetivos claros, regras fixas e desafios equilibrados com as capacidades, o praticante não se sente ameaçado e por isso não precisa se preocupar consigo mesmo, colocando-se em questão. Mesmo nas atividades mais arriscadas, como a escalada Free Solo mencionada anteriormente, o escalador consegue experienciar o fluxo, pois está treinado o suficiente para encarar os desafios propostos e não se preocupar consigo ou se sentir ameaçado. Ao contrário, sente-se de certo modo seguro e pode progredir na parede em direção ao seu objetivo.

Assim, segundo Csikszentmihalyi, quando não é necessário se preocupar consigo mesmo, defendendo-se de possíveis ameaças externas, tem-se a oportunidade de expandir o conceito de quem se é, fazendo com que a perda momentânea da consciência leve a uma “auto-transcendência”. E, a partir da interação com o Outro, quer seja um objeto, uma pessoa ou o espaço, como a montanha no caso da escalada, produz-se uma sensação de unidade com o meio. O escalador, na interação com a rocha e suas variações, sente-se a ela conectado, como se dela fizesse parte. Neste sentido, como sugere Serres (2004), a pele se torna extensível. Ao tocar a rocha com a ponta dos dedos, o escalador pode sentir o outro extremo da montanha. Integra-se gradualmente à paisagem que habita. Sente-se fazer parte daquele espaço em comunhão: “o alpinista, concentrando toda a sua atenção nas pequenas irregularidades da parede rochosa que terá de suportar seu peso, fala da sensação de afinidade que se desenvolve entre os dedos e a rocha, entre o corpo frágil e a textura da pedra, o céu e o vento” (CSIKSZENTMIHALYI, 2002, p. 98).

Neste movimento do praticante ir para além de si mesmo, em relação com o outro, Mihaly Csikszentmihalyi entende que existe um fortalecimento do ser, que se vê diferente depois da ação. O esquecimento de si ao longo da atividade, decorrente da concentração plena, em que o praticante está ativo, com seu corpo em movimento, conforme deslinda Serres (2004), é posteriormente somado a uma sensação de expansão e potência. Sente-se mais conectado na tríplice vertente apresentada (consigo, com o outro e com o meio).

Desta forma, A escalada em ambiente natural, por ser uma atividade que potencialmente pode proporcionar a experiência de fluxo ao seu praticante, torna-se uma via de emancipação na medida em que oferece condições para que este se diferencie, em transformação ao longo do trajeto, e se integre ao meio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: o corpo-em-fluxo na escalada

Viver a escalada com sua prática vertiginosa e de encantamento, arriscada e não habitual, em que o praticante se envolve por inteiro, sem medir esforços, numa concentração plena que une corpo e mente no momento presente, sentindo-se mais desperto e com os sentidos aguçados, permitiu pensar a atividade como uma possibilidade de emancipação, enquanto potência de transformação, e a construção de uma postura ecológica por meio da sensação de conexão numa tríplice vertente: consigo, com o outro e com o mundo.

Constatou-se que a escalada em meio natural, enquanto uma atividade corporal de integração com a natureza, pode propiciar ao praticante adentrar na experiência de fluxo concebida por Mihaly Csikszentmihalyi (2002), em que o praticante se encontra completamente absorto no que está fazendo, querendo assim permanecer. Neste estado, considerou-se possível vivenciar as potencialidades do corpo em movimento, conforme descrito por Serres (2004), tendo os sentidos unificados, o corpo todo ativo e engajado na ação, de forma que se torna lúcido, com a pele extensível - apto a se integrar ao meio - e com a capacidade de produzir encantamento.

A partir do entendimento das potencialidades do corpo em movimento e da experiência de fluxo, propõe-se o termo corpo-em-fluxo como uma qualidade corporal específica em que o praticante ultrapassa a si mesmo, em processo de diferenciação e integração, como um estado de transformação, necessário para a emancipação, quando o ser se desprende de concepções pré-estabelecidas e de normas impostas, para poder ver a si e ao mundo sob outra perspectiva.

Para tanto, percebe-se a necessidade de treinamento específico, em que o praticante se dedique e se envolva por inteiro, para que seja possível adentrar na experiência proposta, tornando a atividade de risco segura.

Além disso, por entender que a busca pela emancipação não pode ser institucionalizada e reproduzida mecanicamente, incentiva-se a construção de práticas singulares que levem em consideração as diferenças de cada praticante, assim como o trabalho de forma consciente, com escuta e cuidado, para que cada um possa se perceber ao longo do trajeto e criar suas próprias condições de atuação.

Incentiva-se a prática da escalada de forma crítica e reflexiva, permitindo que se abra um campo de discussão para que temas relativos às mais diversas áreas, como a saúde, a filosofia, as artes corporais e a ecologia, dialoguem e façam emergir diferentes perspectivas. Assim, este ensaio busca contribuir para a discussão acerca da escalada em ambiente natural e incentivar a realização de outras investigações, ampliando referencial teórico que se encontra escasso em língua portuguesa.

REFERÊNCIAS

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SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. [ Links ]

1A título de ciência e contextualização, esta obra foi publicada originalmente em 1990 com o título: “Flow - The Psychology of Optimal Experience”. A versão utilizada, de 2002, é uma tradução para a língua portuguesa feita por Marta Amado, com edição da Relógio D´Água de Lisboa - Portugal.

2Escalada considerada radical e de exposição extrema, pois o praticante sobe sozinho na parede, sem utilizar equipamentos de segurança que o amparariam em uma possível queda.

3O termo “solar” quer dizer escalar em Free Solo.

AGRADECIMENTOS À Maria Alice Amorim Garcia pela leitura e revisão do texto

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

Recebido: 30 de Maio de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2020

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