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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.33 no.64 Florianópolis  2021  Epub 20-Nov-2021

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2021.e80367 

Artigo Original

A etiqueta da violência: mestre, irmãos de treino e família na equipe de MMA

The violence etiquette: master, training brothers and family in the MMA team

La etiqueta de la violencia: maestro, hermanos de treno y familia en el equipo de MMA

Flávio Py Mariante Neto1 
http://orcid.org/0000-0002-3240-9914

Daniel Giordani Vasques2 
http://orcid.org/0000-0001-8955-9676

Maitê Venuto de Freitas3 
http://orcid.org/0000-0001-5757-5081

Marco Paulo Stigger4 
http://orcid.org/0000-0001-9014-6668

1Universidade Luterana do Brasil, Departamento de Educação Física, Canoas, RS, Brasil

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Expressão e Movimento, Porto Alegre, RS, Brasil

3Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa Lobos, Porto Alegre, RS, Brasil

4Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

O MMA, artes marciais mistas, é um esporte relativamente pouco estudado na Educação Física brasileira. Portanto, esse estudo pretende compreender de que formas as relações entre os atores de uma academia de MMA são construídas e como essas mesmas relações constroem etiquetas para lutar. A partir de uma incursão etnográfica foi possível identificar a existência de relações de interdependência entre os sujeitos da equipe: o “mestre” e os “irmãos de treino”. Essas relações foram sustentadas por laços afetivos e um conjunto de etiquetas que permitiram que a equipe se identificasse como uma “família”. Dentre as etiquetas que constituíram a “família”, destacam-se os diferentes usos e sentidos atribuídos à violência.

PALAVRAS-CHAVE: Artes marciais mistas; Etiqueta, Interdependência; Violência

ABSTRACT

MMA, mixed martial arts, is a sport relatively understudied in Brazilian Physical Education. Therefore, this study aims to understand in which ways the relationships between the actors of a mixed martial arts (MMA) gym were built and how these relationships build etiquettes to train. From an ethnographic incursion it was possible to identify the existence of interdependent relationships between the subjects of the team: the “master” and the “training brothers”. These relationships were supported by affective ties and a set of etiquettes that allowed the team to identify itself as a "family". Among the labels that constituted the “family”, we highlight the different uses and meanings attributed to violence.

KEYWORDS: Mixed Martial Arts; Etiquette, Interdependence; Violence

RESUMEN

El MMA, artes marciales mixtas, es un deporte relativamente poco estudiado en la Educación Física brasileña. Por tanto, este estudio tiene como objetivo comprender de qué manera se construyen las relaciones entre los actores de una academia de artes marciales mixtas (MMA) y como esas relaciones construyen etiquetas para entrenar. A partir de una incursión etnográfica fue posible identificar la existencia de relaciones de interdependencia entre los sujetos del equipo: el “maestro” y los “hermanos formadores”. Estas relaciones se sustentaron en lazos afectivos y un conjunto de etiquetas que permitieron al equipo identificarse como una "familia". Entre las etiquetas que constituían la “familia” destacan los diferentes usos y significados atribuidos a la violencia.

PALABRAS-CLAVE: Artes marciales mixtas; Etiqueta; Interdependencia; Violencia

INTRODUÇÃO

Na Educação Física das últimas décadas, muitos trabalhos têm se pautado pela análise das relações sociais do esporte e do lazer (STIGGER, 2002; MYSKIW; MARIANTE NETO; STIGGER, 2015; FREITAS, 2019). Com esse objetivo, os autores “saíram a campo 1” para compreender lacunas no universo das práticas corporais, tanto no que diz respeito às inquietações que surgem no dia a dia dos professores de Educação Física em seus diferentes espaços de atuação, quanto nos debates acadêmicos. Na esteira dessa “tradição acadêmica”, o presente estudo tem como intuito analisar as lutas, mais especificamente o MMA, a partir de uma incursão em uma academia. Porém, antes de apresentar os pressupostos metodológicos desse estudo, é importante refletir sobre as lutas na Educação Física e a construção do problema de pesquisa. Recorremos, assim, a três trabalhos.

O primeiro deles é o estudo de Gastaldo (1995). Nesta pesquisa, o autor realiza uma imersão etnográfica em uma academia de full contact (arte marcial que também é chamada de kickboxing). O objetivo do estudo foi entender como se dá a “forja”, ou seja, como os lutadores se constroem dentro da academia a partir das dinâmicas propostas no treino. Como resultado, o estudo mostra que os atletas desenvolvem características muito específicas do universo das lutas, como a resistência à dor e o que se entende por “masculinidade” hegemônica2. Essas idiossincrasias “forjam” o lutador até que ele consiga chegar ao nível mais alto na hierarquia das lutas, a faixa preta.

Sobre a construção do lutador, cabe citar um trabalho clássico das análises socioantropológicas do esporte: o estudo de Wacquant (2002). Nesse texto, a partir de uma etnografia em um gym3 na cidade de Chicago, nos Estados Unidos, o autor apresenta o contexto e as práticas imbricadas na construção do sujeito que luta. A partir de uma análise densa, incorporando a prática do boxe ao seu cotidiano, ele nos mostra as relações simbólicas que sustentam os lutadores naquele lugar. As questões ligadas à violência são centrais na pesquisa. Um exemplo é o trabalho de sparring4; se, em um primeiro olhar, este exercício pode parecer uma violência sem sentido, ao analisarmos com mais profundidade, percebe-se uma lógica compartilhada e acordos tácitos entre os praticantes que orientam as dinâmicas.

Os dois trabalhos apresentados foram realizados em ambientes de modalidades mais tradicionais nas lutas, o boxe e o full contact. O MMA, artes marciais mistas5, ainda é um esporte relativamente pouco estudado na Educação Física brasileira. Dos trabalhos existentes, pode-se citar o de Nunes (2004), no qual o autor mostra como se desenvolvem as relações simbólicas em duas equipes de MMA. O trabalho, de cunho etnográfico, sinaliza para um tema interessante para a compreensão desse esporte: o espetáculo teatralizado. Apesar das possíveis críticas em relação à expressão “teatralidade” na relação com o esporte, o que Nunes suscita é que há um esporte “novo” no mundo das lutas e que precisa de novas reflexões.

No nosso entendimento, o que esses trabalhos mostram é uma maneira de se comportar em ambientes de luta. Do ponto de vista teórico, as análises se apoiaram nos estudos do sociólogo Norbert Elias, principalmente na obra “A sociedade da corte” (ELIAS, 2001). Neste texto, o autor faz uma descrição dos rituais envolvidos na dinâmica social da corte do rei Luís XIV da França. A partir do comportamento da configuração da corte, são demonstrados os processos de relação de poder e interesses envolvidos nesses rituais.

Para esse trabalho, interessa-nos o conceito de “etiqueta”, cunhado pelo autor na obra supracitada. Para Elias (2001), cerimoniais e etiquetas tinham funções simbólicas bastante importantes na sociedade de corte francesa. As atitudes e a meticulosa organização simbolizavam certas hierarquias e relações de poder. Dessa forma, os comportamentos sociais eram realizados como forma de ascensão ou manutenção na hierarquia social. Nesse sentido, a rejeição ou infração às normas de etiqueta redundava em ataques à honra e à condição do sujeito de participar daquele círculo social.

A partir dessa construção teórica, baseada em alguns trabalhos sobre lutas e da ligação sociológica com o conceito de etiqueta proposto por Norbert Elias, surge a problematização desse estudo. Além disso, há a necessidade de um aprofundamento maior referente ao MMA. Por isso, o problema que pretendemos refletir com essa pesquisa é: De que formas as relações entre os atores de uma academia de MMA são construídas e como essas mesmas relações constroem etiquetas para lutar?

MATERIAL E MÉTODOS

Para o desenvolvimento deste estudo foi utilizado o método etnográfico de pesquisa, o qual se atenta para os símbolos e os significados que constituem as culturas. Sendo assim, a etnografia se caracteriza como um esforço de compreensão e interpretação dos elementos simbólicos - sejam eles ações, gestos ou falas - que permitem que os indivíduos se organizem e se identifiquem como membros de uma determinada sociedade ou grupo (GEERTZ, 2008).

A pesquisa de campo desenvolvida neste estudo foi realizada por um dos pesquisadores, o qual tem “familiaridade” com o universo das lutas. Portanto, para a realização da pesquisa etnográfica foi escolhida uma academia de MMA frequentada por atletas que haviam tido contato com o pesquisador antes do desenvolvimento do estudo. Desse modo, foi possível o acesso sistemático aos treinos, condição fundamental para que as questões da pesquisa fossem compreendidas (WINKIN, 1998).

Entre setembro de 2014 e outubro de 2015 o pesquisador acompanhou treinos, almoços com a equipe e eventos em que alguns atletas participaram. Os treinos apresentavam uma quantidade grande de lutadores, entre oito e doze participantes. Os atletas na sua maioria eram profissionais com mais de cinco anos de treinamento no MMA ou em modalidades de artes marciais como o boxe, o jiu-jitsu ou o muay thai. Frequentemente a rotina dos treinos se dividia em: treino de chão (jiu-jitsu), treino de quedas e treinos de “trocação” (movimentos de boxe e muay thai). Muitas vezes, também, foram desenvolvidos treinamentos em conjunto, misturando essas modalidades e caracterizando o treino de artes marciais mistas.

A pesquisa de campo foi realizada através da “observação participante”, a qual só foi possível mediante a aceitação da presença do pesquisador nos treinos e da atribuição de funções do mesmo na rotina dos atletas (OLIVEIRA, 1996, p.24). O pesquisador em muitos momentos auxiliou na preparação para as lutas como um “parceiro de treino” através de “trocação” com lutadores, especificamente na parte de boxe, já que essa é a experiência maior do pesquisador no universo das lutas. Em outros momentos o pesquisador também “puxou manopla” para os atletas ou foi “sparring” deles.

As impressões e reflexões que emergiram da experiência etnográfica foram registradas e elaboradas no processo de escrita dos diários de campo, outra importante ferramenta que compõe a etnografia (WINKIN, 1998). A partir das observações e da construção dos diários, também foram selecionados oito indivíduos que pudessem contribuir com informações relevantes sobre o campo, através de entrevistas semiestruturadas. Esses informantes tinham, pelo menos, cinco lutas de MMA, entre combates amadores e profissionais. Dois deles, além de lutarem profissionalmente, eram “donos de equipe”, ou seja, treinavam na academia onde a etnografia foi desenvolvida e, paralelamente, eram treinadores de MMA.

Este estudo respeitou os procedimentos éticos relacionados à clareza e ao entendimento dos objetivos de pesquisa propostos por Fonseca (2006) e pelo Guia para Integridade em Pesquisa Científica da UFRGS (2020). A relação entre pesquisador e interlocutores na produção dos dados empíricos se deu a partir de esclarecimentos, resolução de dúvidas e cuidados éticos. O pesquisador convidou os interlocutores (dono da academia e praticantes de MMA) a participarem da pesquisa, momento no qual os participantes foram informados da possibilidade de manterem o anonimato. Sobre este aspecto, Fonseca (2008) afirma que a imersão na cultura de um grupo e a busca pela compreensão das relações entre os sujeitos implica no detalhamento das suas ações e na aproximação significativa com os mesmos. Essas características do estudo etnográfico levaram o pesquisador a assumir o compromisso de preservar a privacidade dos colaboradores usando nomes fictícios.

De acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, os riscos são inevitáveis em estudos que envolvem seres humanos. No caso desta pesquisa, estes riscos estão relacionados aos possíveis constrangimentos em entrevistas e observações participantes. Para minimizar estes aspectos, durante todo o processo de realização desta pesquisa, o pesquisador se colocou à disposição para o esclarecimento de dúvidas que pudessem surgir sobre o objetivo e o processo metodológico do estudo. Os interlocutores também foram informados que poderiam desistir de participar da pesquisa a qualquer momento. Além disso, o pesquisador informou sobre os benefícios indiretos que a pesquisa proporcionaria aos participantes na medida em que contribuiria para a compreensão dos elementos simbólicos que constituem e dão sentidos às Artes Marciais Mistas. Após estes acordos éticos, todos os interlocutores aceitaram participar e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

“UM MESTRE É MUITO MAIS DO QUE UM PROFESSOR”

Nesse momento, a intenção é apresentar alguns elementos simbólicos que amparam as relações na academia de MMA. À primeira vista, pode-se pensar que os treinos, as técnicas e as dinâmicas nesse universo são incorporadas pelos lutadores a partir das tradições que as sustentam. Porém, uma percepção durante a pesquisa e a participação etnográfica no universo das artes marciais é de que os atletas não “respeitam” qualquer professor. A incursão mostrou registros e vivências de algumas situações em que, tendo outro técnico para dar aula, os atletas se retiraram do treino.

Desse modo, o técnico é uma peça chave de sustentação dessa configuração. Há, por parte dos atletas, uma relação de confiança quase inabalável em relação ao professor. Importante ressaltar que, até aqui, foram utilizadas expressões como “treinador”, “professor” e “técnico” para descrever esse personagem. Porém, essas expressões foram utilizadas em razão de serem mais conhecidas. Não há, porém, nenhum registro durante a pesquisa da utilização dessas expressões pelos lutadores. Em todos os momentos, o treinador da equipe era chamado de “mestre”. Esse é um termo que ajuda a compreender o que significa essa pessoa nesse universo, aqui retratada como um personagem empírico (ELIAS, 1997). Segundo um dos interlocutores, “mestre é mais do que professor”.

Em relação ao mestre e professor. Isso é uma coisa que eu penso bastante: pra mim um mestre é muito mais do que um professor. O mestre não te ensina só a arte marcial, a técnica, ele te ensina como viver. Tu acabas tendo um vínculo com teu mestre muito maior do que só a arte marcial. Então, eu considero isso muito importante. Inclusive eu tive essa minha última luta que eu fiz em Santa Catarina e eu tive que vencer duas lutas: uma foi dentro do octógono, e a outra luta foi eu estar sozinho. Sem estar no meu corner o meu mestre Santiago, que me dá muita confiança, eu posso confiar nele tranquilamente, eu sei que o que ele disser pra mim é de coração, não vai ser falso, vai ser sempre verdadeiro. Então, isso pra mim conta muito. (Entrevista com Carlos, 07/11/2015)

No vestiário da academia, ouço uma conversa entre dois atletas, em que o assunto era quem [...] o acompanharia em uma luta em São Paulo. O primeiro lutador reclama que não conseguiu mais que uma passagem para o evento, e que ficaria inseguro em razão de ser a primeira vez que iria viajar para outro Estado. O segundo lutador, mais experiente, relata [...]: ‘Sabendo que o mestre está do lado de fora [do octógono] eu sempre fiquei mais seguro. Porque tem aquela confiança de que se acontecer alguma coisa contigo, alguma situação ruim, o mestre vai saber mudar a estratégia de luta, sempre vai te passar a confiança que tu precisas, antes e durante a luta.’ (Diário de campo 20/11/2014)

Então, mais do que um professor, um técnico ou um treinador, que ensina as técnicas e estratégias necessárias para as lutas, esse indivíduo tem uma relação de confiança com os atletas, pois estes possuem laços afetivos que os unem. Esse vínculo também funciona como um apoio emocional para o lutador, tornando-se tão importante quanto as orientações técnicas e táticas. É esse indivíduo que comanda os treinos. O que se pode perceber nos dois excertos é que há uma nítida relação de interdependência (ELIAS, 2005) entre os atletas e o mestre.

Não é por acaso que Wacquant (2002) intitula um dos capítulos da sua etnografia no boxe de “O chefe da orquestra” (p.125). Nesse tópico, o autor analisa como se dava a prática pedagógica de Deedee, o treinador do gym. A relação com os lutadores é de respeito e de confiança. Seus comandos são simples e sólidos ao mesmo tempo. Os atletas aceitam a “direção” orientada por seu comandante; a “orquestra” ou o gym funciona a partir de seus comandos. É nele que os boxeadores se espelham, agem e aprendem. O técnico é o porta-voz da luta, alguém que, por sua grande experiência no universo do boxe, tem condições de ensiná-lo. Um título tácito, sem diplomas nem papéis. Apenas confiança e respeito.

Nessa pesquisa, o mestre possui uma história semelhante ao do treinador do gym. Foi boxeador profissional, é faixa preta de jiu-jitsu e possui várias lutas de muay thai. Sua experiência rende muitos elogios dos atletas, que se referem à sua capacidade de transmissão das técnicas, mas, além disso, também dizem respeito à confiança e ao “apoio psicológico” antes, durante e depois das lutas. Sua maior qualidade é a segurança que pode transmitir. Os lutadores ouvem-no. Suas orientações são levadas a sério e seus argumentos são aceitos sem muito questionamento. Segundo os atletas, o mestre é um indivíduo “com moral”. Sendo assim, mais importante que ter conhecimento para “ensinar” aos atletas, deve-se ser reconhecido por isso. As duras horas fazendo manopla, trabalhando “chão” e fazendo quedas, práticas rotineiras nos treinos, devem ser precedidas pela confiança e pelo respeito por aquele que conduz. Essa condução não é simples, passa por anos de trabalho duro e dedicação, reflete a “honra” do lutador. Deve ser um espelho para o atleta.

O MMA, por sua vez, é um esporte individual. Assim, mesmo que haja diversos atletas treinando conjuntamente na academia, a luta no octógono ocorre no formato um contra um. A partir dessa ambiguidade, questionou-se: Como são construídas as relações sociais entre os atletas? Que laços os unem? Desse modo, o trabalho etnográfico direcionou o olhar para as relações sociais entre os atletas da academia.

IRMÃOS DE TREINO

Em continuidade à descrição de elementos que compõem o aparato simbólico de construção das artes marciais mistas, outro personagem empírico passa a ser analisado: o “irmão de treino”. As lutas têm uma característica que as diferencia de outros esportes: são práticas individuais e coletivas, concomitantemente. A sua individualidade se dá pela forma de disputa. É “um contra um”, um embate direto entre dois indivíduos que se preparam em busca de um nocaute ou de uma finalização.

Porém, essa preparação é coletiva. Wacquant (2002, p.120), no tópico “Uma prática implícita e coletiva”, desenvolve a ideia de que há um elemento coletivo na aprendizagem da luta; seja por observações de atletas mais experientes ou pela reprodução de movimentos que são comuns aos praticantes.

Não apenas o mestre é responsável pela preparação do lutador, mas os atletas que participam do treinamento têm uma importância tão grande que são chamados de “irmãos de treino”. Esse sentimento de irmandade foi invocado em muitos momentos durante a pesquisa. Os atletas necessitam de um apoio. Um atleta destacou em relação aos colegas de treino que “um sem o outro, não existe.” Nessa afirmação, está contida uma ideia de interdependência funcional (ELIAS, 2005), emocional e técnica, na medida em que não há só um foco no treino. Na preparação para as lutas, por exemplo, o “irmão de treino” tem um papel importante.

Um bom parceiro de treino é alguém que te ajuda no teu jogo assim, que ele vai jogar mais firme, ele não vai te dar algum conforto, ele não vai te deixar ali na tua zona de conforto, ele vai te tirar daquela zona de conforto, mas vai te auxiliando no que tu precisas melhorar assim: olha, eu vi isso de errado, quem sabe tu fazes assim? É uma pessoa que está ali te incentivando também. Isso é muito, muito, muito importante, tipo tu tens que ter um respeito, tu não podes desrespeitar o teu colega de treino. Só acontece o treino porque tu tens o teu colega de treino. Quer dizer que se tu machucares o teu colega, se tu fores muito agressivo ou se tu desrespeitares, no fim aquela pessoa não vai querer treinar mais contigo. E aí tu vais treinar com o outro, vais fazer a mesma coisa, o outro também não vai querer treinar mais contigo, daqui a pouco tu não tem parceria para treinar. Tu vais treinar com o saco de pancada, sendo que isso não vai te desenvolver muita coisa. (Entrevista com Rosane, 06/07/2015)

Entre os atributos dessa relação fraternal, ressalta uma ética entre os lutadores. Se Elias (2001) afirma que “ética” e “etiqueta” têm a mesma raiz etimológica, isso pode ser relacionado com as interações entre os parceiros de treino. Causar danos ao colega de treino parece ser uma questão delicada nesse universo, inclusive porque os machucados causados nos treinos impossibilitam a continuidade das sessões. Isso não seria prejudicial apenas para o atleta machucado, mas para toda a equipe, pois acarretaria a diminuição das possibilidades de melhoria do jogo do atleta. Sem um parceiro de treino, não há treino. Por mais que se utilizem sacos de pancadas, manoplas e outros implementos, sem outro atleta para realizar a prática, o desenvolvimento é comprometido.

Em razão disso, há diversos cuidados para que não haja muitos machucados nos treinamentos, como o uso de luvas maiores para sparring, a diminuição da força do contato na trocação e a escolha de parceiros com nível técnico semelhante. Todas essas medidas não excluem as possibilidades de traumas mais sérios e contusões; contudo, diminuem os riscos. Os atletas, principalmente os mais experientes, têm consciência da importância desses cuidados. Treinar com uma intensidade mais baixa, “na manha”, é uma prática muitas vezes apregoada pelos lutadores.

Mufasa chama Rogério para fazer um round de sparring. Rogério está com uma luva pequena, de MMA, e Mufasa diz: ‘Vamos ‘na manha’, tu estás de luva pequena.’ Mufasa usa uma luva de boxe, grande, de 16 onças. Rogério diz: ‘Tranquilo, só pra movimentar.’ Os dois começam em um ritmo contido, apenas encostando no corpo ou no rosto do adversário. Rogério dispara alguns golpes mais contundentes no corpo de Mufasa, que reage e atinge Rogério com alguns chutes na altura das pernas. O ritmo aumenta e os dois começam a ‘se pegar’. Rogério vai para cima de Mufasa com socos no rosto e no corpo. Este reage, dá alguns jabs no rosto de Rogério e dispara um chute potente na perna do adversário. Rogério cai. Santiago diz: ‘Tá bom assim.’ Os dois se cumprimentam e Mufasa comenta: ‘Ele apertou, eu apertei.’ Rogério não diz nada, mas concorda com a cabeça. Mufasa diz: ‘Bota a luva maior para a próxima, essa é muito pequena.’ Rogério obedece. O segundo round entre os dois começa, mas, para minha surpresa, os dois se controlam mais do que no primeiro round e a dinâmica com baixa intensidade vai até o final. Os dois se cumprimentam e tiram as luvas. Mufasa conversa com Rogério sobre a intensidade dos sparrings no treino. Ele diz: ‘Se tu fores pra cima de todo mundo, não vai ter parceiro de treino. Tu vais machucar todo mundo. Na hora da luta, tu arrancas a cabeça do teu adversário, aqui treina mais a técnica.’ Rogério concorda. (Diário de campo 07/07/2015).

As relações entre os parceiros de treino são estabelecidas de acordo com uma negociação que, muitas vezes, é realizada durante a prática. O caso descrito mostra um dos processos que Rogério, atleta novo na equipe e ex-boxeador, teve que passar para se adequar às dinâmicas da equipe. Ele entrou na academia, segundo relatou, com “sangue nos olhos”, pois, como é oriundo de outra cidade, tinha receio de os atletas antipatizarem com ele e tentarem, também segundo suas palavras, “fazer a mala”7 em cima dele. Já na primeira aula de Rogério, quando participou de um sparring de boxe, pôde-se perceber que ele se sentia um pouco acuado (talvez por ser de outra academia), pois sua potência de golpes passava a impressão de uma agressividade excessiva e fora do contexto adequado; o que foi confirmado após alguns treinamentos.

Entretanto, Rogério foi incorporando outro modo de se comportar. Nessa passagem do diário, há um diálogo importante entre ele e Mufasa. Este, como um atleta experiente dentro da equipe, desempenhou o papel de “mentor” daquele. As suas palavras são conscientes de que certas regras não devem ser subvertidas. Nessa situação, caso o atleta “pegue pesado” com seu parceiro de treino, não vai ter com quem treinar depois. Atletas realmente recusam-se, por vezes, a treinar com lutadores “sangue no olho”. Geralmente, se o lutador tem capacidade técnica ou peso muito maior do que seu oponente, ele deve “pegar mais leve” no sparring. Caso isso não ocorra, há a possibilidade de que os atletas, ou mesmo o mestre, suspendam a atividade entre os dois. Outro elemento importante neste controle da violência é o uso de luvas de tamanho maior do que o utilizado em combate. Treinos de sparring são realizados, normalmente, com luvas de 16 onças, mesmo no sparring de MMA - esporte em que se utilizam luvas de quatro onças. Isso faz com que o contato seja amortecido e que uma força menor seja aplicada no corpo do oponente.

Esses mecanismos de controle, característicos do processo civilizador descrito na esportivização dos jogos e passatempos (ELIAS; DUNNING, 1992), estão com frequência presentes nas artes marciais. São cuidados que possibilitam que as práticas causem menos danos aos atletas. Não que não haja momentos em que “o bixo pegue”, ou seja, em que o contato é maior e que aparecem marcas, como hematomas nos olhos ou no corpo. Isso acontece com frequência. Porém, há uma lógica por trás desses acontecimentos. Usualmente, os treinos ficam mais fortes quando há lutas marcadas. A contundência no sparring também se estabelece quando os atletas têm paridade técnica e de força.

Pode-se perceber que as relações fraternais eram parte fundamental das interações entre os atletas. No entanto, para eles a ideia de “colega” era superada pela noção de pertencimento e de “família”.

“A NOSSA RELAÇÃO É DE FAMÍLIA”

Os conceitos de mestre e de parceiro de treino evocam uma construção importante nos esportes: a “família”. Muitas foram as vezes que esse termo foi empregado nos diários. Família é uma expressão que denota laços de confiança dentro da equipe que, se quebrados, podem causar rompimentos nas relações. Assim, quando os interlocutores afirmam que a equipe é uma família, referem-se ao aspecto emocional de ligação entre seus atores. Essas, sim, são relações que sustentam a configuração.

A noção de pertencimento é importante na análise social do esporte, como mostram Elias e Dunning (1992) ao analisar as torcidas e o hooliganismo. Os pertencimentos das “torcidas” no MMA ocorrem de modo distinto aos esportes tradicionais, como o futebol, por exemplo, nos quais os pertencimentos clubísticos e nacionais ocupam lugar privilegiado nas narrativas e na construção de identidades, já que, como mostram Mariante Neto, Vasques e Stigger (2021), nessa modalidade as torcidas se dão para o “espetáculo”, por vezes, mesmo acima da vitória de algum lutador específico. Por outro lado, os dados aqui apresentados mostram que o pertencimento àquela equipe formada na academia era muito importante para aqueles sujeitos e constituía os modos de agir.

A família é frequentemente evocada no universo esportivo para retratar um tipo de pertencimento e de relação social, com normas, regras e valores, entre os membros de um mesmo grupo. Na tese intitulada “Família joga bola”, Spaggiari (2015) descreve como os atletas de futebol se constituem a partir de relações familiares. Essas relações não são consanguíneas, mas sim construídas através das interações com outros elementos envolvidos na configuração do futebol. Atletas, treinadores e dirigentes formam o espectro que constrói o sujeito que joga. Por essas razões, o conceito de família se estende, se dinamiza e abarca outros atores diferentes dos que normalmente são considerados na constituição familiar.

A noção de família desenvolvida pelo grupo pode ser mais bem vista a partir de um exemplo de tensão na configuração: a rivalidade entre equipes. Segundo atletas, as equipes “se odeiam”. Elas criam marcas nas roupas, luvas e adesivos de carros que “dizem” de que equipe os atletas são oriundos. Esses símbolos diferenciam e intensificam os pertencimentos.

O pertencimento é latente, pois a relação de família ultrapassa os treinamentos. Muitos excertos poderiam ser expostos para materializar essas afirmações; dois são apresentados.

Sobre a relação com a equipe. A nossa relação é, acredito que como toda equipe, é uma relação de família. Porque a gente treina dia-a-dia. Praticamente duas ou três horas por dia, então todo mundo tem os mesmos anseios e as mesmas dificuldades, então a gente acaba se tornando uma família, um ajudando o outro sempre. (Entrevista com Iago, 15/12/2015).

Quanto à relação que eu tenho com meus treinadores e meus parceiros de treino, é uma relação de família, assim, de confiança. Tu saber que tu estás fazendo aquilo ali, que vai surtir efeito na hora que tu precisares, que tu estás sendo bem treinado, uma confiança, tu confias plenamente na hora da desidratação8, tu sabes que tu podes confiar que aquela pessoa está ali, que se der alguma coisa de errado aquela pessoa vai te amparar, vai estar ali contigo, se correr contigo pra algum hospital, tu vais ter esse amparo. Eu sempre tive uma relação bem boa com meus treinadores todos. Sempre isso, a relação é de confiança, é como se fosse uma pessoa da tua família. Tu tens respeito, sabe que aquela pessoa te acrescentou bastante. Termina tu te tornando uma pessoa melhor. [...] aprendo muito com eles e é uma relação de confiança, de agradecimento, de confiança, de carinho, de respeito. (Entrevista com Carla, 25/09/2015).

Foram destacadas duas passagens, mas em todas as entrevistas o termo família foi evocado quando se indagou sobre a relação com a equipe. Parece um consenso entre atletas, treinadores e demais envolvidos que esse parentesco simbólico seja um fator determinante no andamento da equipe. Sentir-se inserido em uma família denota respeito pelos pares, apoio e “pegar firme” nos treinos quando necessário. “Um cuida do outro” é também uma expressão corrente na fala dos lutadores e que significa uma ligação afetiva (ELIAS, 2005) importante.

Os dados são condizentes com essa perspectiva. Os atletas têm entre si uma conduta que reforça esse conceito. Em conjunto com a família, os irmãos de treino e o mestre - que muitas vezes faz um papel de pai, elogiando e criticando seus atletas e que, acima de tudo, tem uma relação de confiança com estes - compõem o rol de interações formativas. A equipe é uma grande família e, como tal, tem suas tensões, dissidências e desentendimentos. Tensões que são inerentes às configurações e que a transformam cotidianamente.

No entanto, como a família se mantém estável? Quais são as estratégias empregadas dentro da academia para manter a família? Ademais, tendo em vista a violência que caracteriza os combates, como os atletas lidam com ela dentro da família? Para responder a essas perguntas, são apresentadas cinco cenas empíricas de dentro do octógono, que é quando, normalmente, os desequilíbrios - que ajudam o pesquisador a visualizar - podem aparecer.

PEDAGOGIA E ETIQUETA DA VIOLÊNCIA

Cena 1: A falta de combatividade como uma “vergonha para a família”

Em 2015, houve um evento importante de MMA em outro Estado no qual o pesquisador fez observação. Mufasa, um dos atletas da equipe, lutou. O resultado foi desfavorável para o atleta, que lutou três rounds e foi derrotado por pontos. Ao voltar para a sua cidade, na segunda-feira, o pesquisador participou de um treinamento com os atletas. Ao final, um dos lutadores e o pesquisador conversaram sobre a luta. O lutador mostrava uma aversão com a derrota do companheiro. Essa indignação, segundo ele, não era em razão da derrota, mas referente à maneira como ela havia ocorrido.

Terminamos o treino e fomos para o vestiário. Carlos fala sobre a luta de Mufasa, atleta da equipe, [...] que eu fui assistir. Carlos diz: ‘Foi uma vergonha para a equipe. O problema não foi ele ter perdido a luta, o problema foi que ele não fez nada do que o mestre falou pra ele. Lutou com a guarda baixa, não foi agressivo, não lutou nada.’ Eu concordo e Carlos continua: ‘Ele tem que aprender que a equipe é uma família, tem que representar. Perder não tem problema, o problema é passar vergonha, não agredir, virar saco de pancadas.’ Eu concordo, um silêncio se instala no vestiário.” (Diário de campo 30/09/2015).

Talvez não seja possível transmitir no texto o grau de indignação contido na fala do atleta. A repulsa pela maneira como o lutador se desenvolveu na luta refletia-se em palavras duras, quase tristes. Um representante da família não poderia lutar daquele jeito; era uma afronta aos ensinamentos cansativamente trabalhados na academia. O pesquisador concordou com o atleta, realmente considerou uma vergonha, pois acompanhou de perto uma preparação que parecia ter sido esquecida.

Ao “vestir a camisa” da equipe, espera-se responsabilidade e honra. A academia de MMA, assim como o gym de Wacquant (2002), é uma escola da moralidade, pois os capitais dos lutadores são a técnica, mas também a humildade. A pedagogia, assim, é uma pedagogia da humildade e da honra, que tem por finalidade incutir em cada um dos membros o sentido dos limites (sentido de grupo e de seu lugar no grupo).

Após esse episódio, a relação de Mufasa com a equipe ficou estremecida. A falta de combatividade e a vergonha que seus colegas de treino sentiram fizeram com que o atleta, ao perceber o que estava ocorrendo, começasse a faltar a alguns treinos e, um tempo depois, parasse de treinar.

Essa cena mostra o uso da exclusão como uma estratégia para manter os valores da família que, no caso, se referiam à honra de lutar de modo adequado, pois no evento ele representava a família. O grupo, em acordo com o mestre, determinou que aquele modo de agir não era apropriado e acabou por excluir Mufasa, o que manteve a estabilidade da família.

Cena 2: Os limites da etiqueta no sparing

O intenso contato envolvido nas lutas é uma questão sempre presente nas artes marciais mistas. Como relatado anteriormente, há momentos de muita agressividade, em que os lutadores “se pegam” com o intuito de “afiar suas armas”. São momentos tensos, em que a agressividade parece dar o tom. Mas essa tonalidade tem suas nuances, seus meandros e seus transbordamentos. O exercício de sparring é o momento em que a agressividade fica mais latente. Por mais acostumado que se esteja com os trabalhos duros da academia, o sparring causa tensão. Lutadores não gostam de apanhar. A biografia de Mike Tyson (SLOMAN, 2014), campeão mundial peso pesado nos anos 1990, confirma essa tensão ao mostrar que o lutador “ficava nervoso” antes dos dias de sparring, quando sabia que seus oponentes eram muito qualificados e poderiam machucá-lo.

Por sua complexidade e risco, as equipes de MMA não fazem sparrings todos os dias. Há dias predeterminados para que os lutadores façam suas práticas mais próximas do real. Geralmente, esses dias precedem momentos de descanso. Nas sextas-feiras, por exemplo. Isso é devido às exigências técnica e emocional relacionadas à atividade. A seguir, o relato de um desses dias é apresentado. Em um treino, um dos pesquisadores foi convidado para ser sparring de Gigante, um atleta que tinha uma luta marcada na Rússia.

O relógio já marca 11h. Após quase uma hora de treino e algumas séries na corda de esquiva e no saco de pancadas, começo a pensar que Gigante não virá ao treino. ‘[...] ele veio de outra cidade só para treinar.’ Espero mais um pouco e o atleta chega. Felipe “Gigante” faz jus ao seu apelido. É um atleta muito forte, com aproximadamente 1,90m. Ao olhá-lo e sabendo de seu histórico, confesso que senti certo arrependimento em ter aceitado ser sparring. Mas já estou ali e penso que tenho que me defender da melhor maneira, e aquilo será um aprendizado que irá melhorar o meu boxe. O atleta se mostra uma pessoa muito simpática e educada. [...]

Pesquisador: Prazer, cara. O Santiago me disse que tu vais lutar na Rússia, vim aqui pra te ajudar.

Gigante: Cara, muito prazer. Que bom que tu aceitaste, é difícil achar peso pesado para fazer sparring.

Pesquisador: Tranquilo. Vamos trabalhar.

Gigante: Obrigado mesmo. Vamos treinar.

O diálogo e a cordialidade do lutador ‘quebram’ certo clima tenso que se criou tanto por eu não o conhecer quanto por sua demora para chegar no treino.

Santiago pergunta para Mufasa se ele quer fazer sparring também. O atleta aceita a intimação. [...] Mufasa coloca luvas maiores [16 onças] do que ele estava usando [12 onças] para treinar. Gigante começa a se aquecer na frente do espelho e visivelmente ele tem uma boa habilidade com o boxe. Seus movimentos são rápidos e muito técnicos. Após uns cinco minutos de aquecimento, Santiago diz para Gigante fazer um round com Mufasa. Os dois vestem luvas, capacete e protetores bucais, indispensáveis no trabalho de sparring. Mufasa parece mais na defensiva, pois Gigante é bem mais pesado que ele, e qualquer investida errada pode ser um momento para contra-ataque. Ele se movimenta mais do que ataca, mas Gigante começa a ‘buscar a luta’, batendo alguns jabs seguidos de cruzados ou diretos na cabeça de Mufasa. Este acaba contra-atacando de maneira mais contundente, dando socos na altura do abdômen de Gigante. O round segue assim até o fim: os dois atletas imprimindo um ritmo forte, mas em equilíbrio. Santiago pede para Mufasa fazer mais um round com Gigante. Essa vez parece que o ritmo será mais forte. Os dois lutadores começam a bater com mais força. Gigante leva vantagem em razão de sua maior força e envergadura. Seus golpes retos (jabs e diretos) deixam Mufasa longe, sem possibilidade de ataque. Mufasa tenta movimentar mais a cabeça para entrar no raio de ação do oponente, sem sucesso. O domínio de Gigante segue assim até o fim do round. Faltando 40 segundos, acerta uma sequência de jab-direto-jab que quase derruba Mufasa. Este fica tonto visivelmente, Gigante tem a possibilidade de nocautear seu oponente, que está sem ação, mas recua e olha para Santiago. Santiago diz: ‘Tá bom. Descansa Mufasa. Tá bom por hoje.’

É a minha vez de ‘fazer luva’ com Gigante. Pela amostra que tive vendo a sua luta contra Mufasa, fico um pouco receoso de atacar e abrir a guarda para os ataques do atleta. Começamos nos estudando, não ataco nem ele me ataca. Após quase um minuto começamos algumas sequências de golpes no corpo e no rosto. Tenho menos envergadura do que meu oponente, ele usa isso, como havia feito no sparring anterior. A luta segue essa dinâmica e Gigante me dá uma sequência violenta de jab, direto no rosto e, quando levanto minha guarda para proteger meu rosto, ele joga um direto potente na boca do meu estômago. Sinto o golpe e tenho a sensação que vou vomitar. Fico sem defesa e meu protetor cai da minha boca. Gigante, como aconteceu com Mufasa, tem a possibilidade de me nocautear, mas recua. Santiago diz: ‘Bota o protetor e continua’. Recupero-me e continuamos nos 30 segundos que faltam. Não tenho mais força, o golpe que levei na boca do estômago realmente incomoda muito. Gigante visivelmente diminui a intensidade para que o round prossiga até o fim. O cronômetro dá o sinal e nos cumprimentamos.

Agradeço a Gigante pela oportunidade e brinco com o soco no estômago: ‘Podia ter me matado’. Meu adversário ri e me diz: ‘Estamos aqui para nos ajudar e não pra nocautear ninguém. Somos da mesma família.’ Ele me agradece pelo treino e diz para Santiago que precisa ir embora, pois vai fazer sua preparação física. Gigante também agradece a Mufasa que lhe responde: ‘Oss. Obrigado, irmão.’ Nos despedimos e Gigante pede para tirar uma foto para o face[book]. Abraçamo-nos e fizemos um sinal de positivo para a foto. Todos com semblante de satisfeitos e felizes. Lutador tem que saber esconder os sentimentos. (Diário de campo 06/11/2014)

Essa passagem denota a cordialidade e a etiqueta (no sentido de ELIAS, 2001) que acometem, na maioria das vezes, os trabalhos de sparring dentro da academia. Nesse caso, o pesquisador não conhecia Gigante, o atleta era de outra cidade. Claro que, por ser um trabalho mais intenso, há um “clima tenso” antes da prática, especialmente se os atletas não se conhecem. Porém, a maneira como o atleta se portou, a etiqueta de comportamento, que sugere experiência no mundo das lutas, fez com que a atividade fosse realizada com mais tranquilidade. Tal experiência pode ser relacionada com aquilo que Myskiw, Mariante Neto e Stigger (2015) trataram a partir da discussão sobre a violência adequada ou inadequada nas formas de jogar do “guri” e do “nego veio” da várzea. Ou seja, a compreensão das nuances do jogo (ritmo, possibilidade, dor...) são aprendizados importantes para o equilíbrio de tensões.

Não houve “sangue no olho” por parte de nenhum dos lutadores. Gigante era um atleta com maior capacidade técnica do que o pesquisador e do que Mufasa, porém, ele agiu de acordo com as regras sociais durante o sparring. Ele teria nocauteado o pesquisador com aquele soco no estômago, caso continuasse batendo. Não o fez, e por isso deixou a “porta aberta” na equipe, bem como parceiros de treino dispostos a lhe ajudar. Esse exercício serve como uma preparação para a luta. Não é o momento de nocautear. Isso não precisa ser dito. É um acordo tácito, no sentido do que Elias (1997) denomina como habitus, ou seja, aquele comportamento aprendido e incorporado a partir de elementos configuracionais, uma “segunda natureza”.

Cena 3: Um sparring “de leve” e a análise da luta

Outro registro importante que mostra os sentidos que a violência tem naquele lugar foi em um treinamento em que o atleta Rogério convida o pesquisador a fazer sparring “de leve”. Já conhecendo Rogério, não havia como levar a sério a expressão “de leve”, pois todos sabiam que o atleta era muito agressivo nos trabalhos de sparring, e o termo não caberia no seu vocabulário de lutador. Rogério pede para Lucas, outro aluno de boxe, filmar a atividade.

Coloco o protetor bucal, tocamos as luvas e começamos a atividade. Rogério vem para cima de mim com diretos na cabeça, saio para trás e começo a trabalhar meus uppers para afastá-lo. Ele sente e volta com alguns cruzados que eu sinto quando atingem a altura da minha costela. Rogério é bem mais rápido que eu. Por isso me afasto e entro com uppers fortes para ele não se aproximar. Jogo dois uppers no rosto, ele sente e se afasta. Penso que esse é o caminho para deter suas investidas e começo a usar a estratégia de afastá-lo com uppers. Continuando o trabalho, vejo que suas entradas são com cruzados e diretos depois de esquivas rápidas para a direita, e disparo golpes retos para afastá-lo. Ele já não entra com a mesma intensidade e penso ter achado o caminho. Mais dois uppers atingem o rosto do meu oponente na altura do nariz, que começa a sangrar. Achei o caminho para interromper a intensidade do atleta. Seguimos assim até o final, o cronômetro dispara, nos cumprimentamos e agradecemos um ao outro pelo treino.

Ao final, sentamos em um saco de pancadas para ver a filmagem do sparring. Conversamos longamente sobre as técnicas empregadas. [...]

Pesquisador: Consegui parar um pouco tuas avançadas com os uppers.

Rogério: É isso que tu tens que trabalhar: esses uppers na entrada.

Pesquisador: Pois é, tu és bem mais rápido que eu, mas eu consigo impedir que tu entre batendo assim [mostro a imagem gravada no celular de Rogério].

Rogério: Isso aí. Muito bom.

Pesquisador: É bom filmar, dá pra ver os erros.

Rogério: É, assim a gente progride mais rápido.

Continuamos olhando a filmagem até o fim e conversando sobre os erros e acertos. (Diário de campo 18/11/2014)

A conversa após o treino busca compreender como aqueles socos conseguem melhorar a técnica dos dois atletas. A precisão dos golpes, a movimentação de pernas e o momento de aplicação dos socos são analisados calmamente após a sessão. Um trabalho minucioso que requer concentração e controle das emoções. Os atletas não se perderam nos “instintos” de agressividade por levar socos na cabeça e no corpo. Não deixaram que o sentimento negativo de “apanhar” ultrapassasse a linha tênue entre luta e briga9. Usaram as técnicas. Previram os acertos. Refletiram sobre os erros.

Não é apenas nos treinos de trocação que há modos adequados de agir. Nos treinos “de chão”, apesar de não suscitarem golpes traumáticos (socos e chutes), há o perigo de lesões graves, como rompimentos de tendões e ligamentos, e fratura de ossos. Se, em um primeiro olhar, as lutas de grappling10 são menos perigosas do que o boxe e o muay thai, ao adentrar no MMA percebe-se que o controle e as maneiras de fazer devem ser calculados.

Essa cena evoca as noções de família e de irmãos de treino descritas anteriormente ao mesmo tempo que mostra que os dois lutadores sabem as etiquetas necessárias para manter o nível de tensão-excitação ótimo. Ademais, mostra uma intenção pedagógica de progredir as técnicas de luta a partir da filmagem realizada.

Cena 4: A etiqueta de lutar e a preocupação com se machucar

A passagem seguinte apresenta um lutador bem mais pesado do que seu oponente em um trabalho de jiu-jitsu sem quimono. A disparidade técnica também fez com que o atleta tomasse algumas precauções diante da situação.

Santiago orienta que Paulo e Gustavo se revezem em uma atividade de ‘chão’ com Carlos e dá a ordem: ‘Começa em pé, leva para o chão e finaliza.’ A primeira vez é de Gustavo, que não consegue levar Carlos para o chão nos primeiros momentos; após algumas insistências, Carlos é derrubado e os dois começam a rolar [...]. Nenhum dos dois consegue finalizar a luta e o tempo acaba. A vez agora é de Paulo. Por ser mais forte, mais pesado e mais graduado do que Carlos, ele consegue com facilidade derrubar seu oponente e obtém vantagem no trabalho de chão. A desigualdade técnica e de força é visível e Paulo aplica um arm-lock em Carlos. Este tenta se desvencilhar do golpe de várias maneiras, mas acaba tendo que ‘bater’. Como o golpe foi mantido por bastante tempo, a preocupação de todos é que Carlos tenha se machucado. Paulo diz: ‘Segurei como deu, não ia soltar, mas também não ia quebrar teu braço.’ Carlos faz um sinal afirmativo com a cabeça e responde: ‘Foi limpo. Tá tranquilo, eu deveria ter batido antes.’ Santiago pergunta para Carlos se ele está bem e o lutador responde que sim. (Diário de campo 04/05/2015).

A chave de braço (arm-lock) é um golpe muito utilizado nas lutas agarradas, como o jiu-jitsu e o judô. Nesse registro, o atleta segurou a posição para que seu oponente tivesse a oportunidade de “bater” e abandonar a luta. Muitas vezes, acontece de o atleta não desistir na expectativa de conseguir sair da posição e se desvencilhar. Porém, essa é uma atitude arriscada. A possibilidade de lesão aumenta na medida em que o atleta passa mais tempo com a “posição encaixada” e não “bate”. No final do “rola”, o atleta que atacou diz: “Não ia soltar, mas também não ia quebrar teu braço”. O oponente responde: “Sim, eu devia ter batido”. Isso demonstra que não há a intenção de fraturar o osso do adversário, porém é deste a responsabilidade de desistir da luta. Todos sabem disso. Ou, pelo menos, estão aprendendo as etiquetas da luta.

Cena 5: A pedagogia da violência

Até aqui, foram apresentados episódios em que os atletas se comportaram dentro da lógica (à exceção da cena 1, na qual Mustafa foi excluído por não ter lutado conforme os valores da família). A configuração parece estabilizada. Porém, o que ocorre quando um atleta “sai da linha”11 e não respeita essa “pedagogia da tradição”? Como se dá o caminho de incorporação enquanto ainda não está apreendido? O episódio a seguir elucida essas questões.

Como já foi descrito, a intensidade do treino aumenta nesses momentos e alguns cuidados são tomados pelo treinador para que não haja muito desequilíbrio de força ou técnica. Os pares de sparring são escolhidos de acordo com certos parâmetros, como o peso, o equilíbrio técnico ou o tempo de prática. Além disso, o treinador procura controlar o aumento de contato em vários momentos durante a atividade, utilizando frases como “mais devagar”, “mais na técnica do que na força”, “é teu parceiro de treino, se ele se machucar, tu não vais ter com quem treinar”. Um episódio observado exemplifica a compreensão desses controles.

Durante um treino de sparring, havia dois atletas com pesos bem diferentes: Um deles, Demétrio, pesava aproximadamente 85kg, enquanto o outro, Rodrigo, 120kg. Antes de começar o treino, Demétrio pede para Rodrigo colocar luvas de 20 onças ‘para ninguém se machucar’. Rodrigo se mostra contrariado e faz algumas provocações para o colega de treino, dizendo: ‘Tá com medo? Não se garante?’ Demétrio, atleta experiente, apenas responde: ‘Tudo bem. Usa essa mesmo.’ A partir dessa resposta, um clima de tensão se instaura na academia e todos param para olhar a atividade, já sabendo que algo iria acontecer. Ao começar o sparring, Demétrio desfere alguns golpes na cintura de Rodrigo com força e este se encolhe, olhando um pouco assustado para o adversário. Demétrio, visivelmente irritado, continua atacando e acerta a cabeça de Rodrigo algumas vezes com sequências de jab e cruzados. Após alguns desses socos, Rodrigo reclama e diz que ‘Tá bom, já deu.’ O atleta continua batendo e Rodrigo cai no chão. A partir disso, Demétrio tenta acertar Rodrigo caído, mas alguns atletas e o treinador intercedem, dizendo: ‘Deu, ele já aprendeu.’ Demétrio xinga Rodrigo mais algumas vezes, dizendo: ‘Vê se aprende a se comportar.’ Rodrigo vai embora do treino; e nunca mais o vi na academia. (Diário de campo 15/08/2015)

Alguns elementos que compõem a etiqueta da luta foram apresentados por Demétrio a Rodrigo - ou seja, os cerimoniais tácitos que forjam o lutador. Ao pedir que Rodrigo usasse luvas maiores, a intenção do atleta era de que o exercício se desenvolvesse com menos intensidade, e também porque o peso do soco de Rodrigo seria bem mais intenso do que o do atleta mais experiente, fazendo com que a atividade ficasse desequilibrada. Ao analisar o processo de constituição do esporte, Elias afirma que “a esportivização [...] possui um impulso civilizador comparável à ‘curialização’ dos guerreiros, onde as minuciosas regras de etiqueta representam um papel significativo” (ELIAS; DUNNING, 1992, p.224).

O controle da violência - explicitado tanto por parte dos irmãos de treino quanto no episódio descrito acima - representa uma dessas regras de etiqueta. No MMA, os lutadores apresentam o que Elias e Dunning (1992) denominam de “descontrole controlado das emoções”. Deste modo, apesar do treino ter uma proximidade com a “luta real”, os atletas não podem ultrapassar determinados limites. Machucar um irmão de treino não é bem visto nesse meio. Tampouco, subjugar um companheiro que tem menos força ou condições técnicas. Estes elementos fazem parte da etiqueta da luta.

Por essas ideias, ao se negar a colocar outra luva e fazer provocações, Rodrigo rompeu um acordo não-dito, importante no universo do MMA e das lutas em geral: o controle da violência e o respeito por aqueles que têm mais experiência. Demétrio tinha autonomia para ensinar a Rodrigo como proceder durante o sparring, tanto que não houve intervenção do treinador ou de colegas durante o fato. Apenas quando Rodrigo caiu no chão em razão dos socos houve manifestação, com gritos como “ele já aprendeu”. Esses aprendizados fazem parte do cotidiano dos lutadores durante os treinamentos. No caso de Rodrigo, os mecanismos de incorporação foram explicitados naquele momento. Esse controle vai ao encontro do que Wacquant chamou de “violência controlada”:

Assim como não é qualquer um que faz sparring, também não se faz sparring de qualquer modo. A violência das trocas entre as cordas depende, de um lado da relação de forças entre os parceiros (e ele é tão mais limitada quanto mais desigual for) e, de outro, dos objetivos perseguidos durante a sessão de sparring. [...] O nível de violência flutua de maneira cíclica, entre limites variáveis balizados pelo sentido da equidade de que funda o acordo original entre os dois boxeadores, que não é uma norma nem um contrato. (WACQUANT, 2002, p.102-103).

Por essa descrição, há um limite tênue entre a violência e o trabalho técnico que vai sendo regulado pelos próprios lutadores durante os treinos e que direciona o andamento do sparring. O que parece, em um primeiro olhar, uma troca de socos e chutes, quando analisado com uma lente mais ajustada tem significados que fazem sentido dentro dos processos simbólicos e pedagógicos da luta. É importante destacar que o que Wacquant chama de “acordo entre boxeadores” também pode ser percebido no MMA. Esse acordo não é dito nem faz parte das conversas cotidianas na academia. Ele é parte de um processo de aprendizagem. Com o tempo de prática, através de mecanismos de incorporação de comportamentos, o atleta aprende a atuar. O papel do técnico é moldar, através de orientações muito sucintas, o seu andamento e ajudar a constituí-lo como lutador.

Sob a ótica eliasiana, pode-se dizer que não há configuração sem tensões. O episódio acima corrobora com essa afirmação. O lutador inexperiente, inculcado por sua vontade de “ir para cima”, não controla suas emoções e dispara palavras que provocam o seu adversário - lutador mais experiente e ciente dessas regras. Elas não podem ser descumpridas. Foram. Perdeu-se a estabilidade. Desafiou-se a tradição. Pagou o preço. Sumiu da academia. Nunca mais foi visto. Aprendeu a etiqueta? Não há como saber. A configuração se restabelece, apesar do desequilíbrio das tensões.

Quais os sentidos da violência dentro da família e como sua utilização contribuiu para a manutenção da tradição? Ser violento no treino significava não ter os devidos cuidados para manter a integridade física do irmão de treino, ou ainda, lutar para machucar um integrante da equipe que desrespeitou as etiquetas da família - neste último caso, a violência ganhava contornos pedagógicos e era, portanto, aceita. Em outros momentos, por exemplo, quando os lutadores precisavam "afiar suas garras", era permitido o uso de maior agressividade nos treinos, pois o objetivo era melhorar a técnica. Nesse último caso, a luta era considerada agressiva, mas não violenta.

Na mesma direção, Myskiw, Mariante Neto e Stigger (2015) buscaram compreender as dinâmicas de constituição das noções de violência a partir de uma pesquisa etnográfica em um circuito de ‘futebol varzeano’. Ao observar 216 partidas de futebol, os autores constataram que, dependendo da configuração do jogo, os jogadores necessitavam utilizar certo tipo de etiqueta. Em certos jogos, os sujeitos deveriam utilizar sobretudo suas habilidades técnicas, em outros, a força física através de entradas corporais mais fortes. Uma entrada forte em um jogo amistoso, em que a etiqueta era “tirar o pé”, era considerada uma ação violenta. No entanto, utilizar o mesmo lance em um jogo “pegado” fazia parte da etiqueta, pois era exigido dos jogadores para que a partida mantivesse uma tensão ideal. Nesses casos, a entrada forte também era pedagógica, uma vez que evidenciava os limites de aceitação dos jogadores em relação às agressões físicas dos adversários.

Assim como nas reflexões dos autores destacados acima, nesta pesquisa ficou evidente que a noção de violência foi construída a partir de elementos simbólicos compartilhados dentro da equipe. Além disso, percebeu-se que a compreensão desse conceito pelos lutadores era fundamental para manter o equilíbrio de tensões e a estabilidade da família.

CONCLUSÕES

Esse artigo teve como foco entender como são construídas as relações entre os atores de uma academia de MMA e de que forma essas relações constroem etiquetas para lutar. “Mestre”, “irmãos de treino” e “família” são termos utilizados pelos atores que permitem compreender os significados atribuídos à “família”.

Na academia os lutadores usam de etiquetas para lutar, sobretudo em situações em que a intensidade dos golpes aumenta - na preparação para uma luta ou em dois lutadores com pesos e níveis técnicos muito parecidos. A quebra desse acordo resulta em desequilíbrios, como apresentado anteriormente quando um atleta, em tom “provocativo”, questionou a capacidade técnica e a “coragem” do seu parceiro de treino.

Por isso, há sentidos na violência dentro da academia. Ela é permitida em situações em que os lutadores e o mestre enxergam significado e conferem legitimidade para que aconteça - como, por exemplo, para ensinar a etiqueta e o respeito à hierarquia através de golpes mais duros que podem machucar. O trabalho empírico mostra que a violência sem controle não coaduna com aquele ambiente.

A exclusão e a violência foram empregadas pelo grupo como estratégias para manter a estrutura social da família, suas relações, normas e valores. A família agiu para excluir quem não se adequa aos valores, caso de Mufasa; e agiu de forma violenta para ensinar a etiqueta a Rodrigo. A exclusão e a violência eram, assim, recursos que sustentavam a família. As cenas apresentadas mostram os valores importantes para a família (coragem, honra, humildade, agressividade, controle das emoções), sendo que os desequilíbrios de tensão acabam por reforçar o sentimento de pertencimento à família.

Os discursos sobre violência são parte da construção do MMA e, nessa pesquisa, é visível o seu emprego através da família. Os lutadores aprendem, nesse processo pedagógico, a reconhecer as nuances e a agir dentro dos limites do uso da violência. Identificam e empregam a “violência” em um sentido pedagógico para a incorporação de etiquetas, bem como usam de estratégias que, ao fim, sustentam a família. A análise permite observar que a configuração é construída pelas tensões. Produz-se, desfaz-se e se refaz.

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

EDITORA DE SEÇÃO Bianca Poffo

REVISÃO DO MANUSCRITO E METADADOS João Caetano Prates Rocha; Keli Barreto Santos, Juliana Rosário

1Expressão utilizada em trabalhos de cunho etnográficos, como é o caso dos estudos citados.

2O autor relativiza e analisa esse conceito. Gênero também é uma das categorias desenvolvidas no texto

3Termo utilizado para designar o espaço de treinamento dos lutadores.

4Sparring é a prática de luta no ringue ou octógono realizada na academia

5Mixed Martial Arts, em inglês.

6A manopla é o aparador para o soco. “Puxar manopla” é segurar os aparadores para os atletas baterem. Essa tarefa exige bom nível técnico, pois, se mal seguradas, as manoplas podem causar dor e lesões nos punhos.

7Significa “surrar”, bater ou tentar espancá-lo em razão de ser um “estranho” na academia.

8Estratégia utilizada para perda de peso antes das lutas.

9Há uma diferenciação nativa por parte dos lutadores, em que diferenciam “luta” de “briga”. Lutar estaria relacionado às atividades dentro da academia ou ringue. Estariam incluídas as regras e as técnicas. A “briga” se refere ao confronto desregrado, que ocorre em razão de desentendimentos ou discussões. Esta deve ser evitada. Por isso, a expressão: “quem luta não briga.”

10 Luta ou treino do tipo “agarrado”

11Expressão nativa que significa que alguém não seguiu os preceitos da luta.

Recebido: 30 de Março de 2021; Aceito: 15 de Novembro de 2021

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CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Não se aplica

CONFLITO DE INTERESSES

Não se aplica

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