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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.33 no.64 Florianópolis  2021  Epub 05-Abr-2021

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2021.e78188 

Porta Aberta

Educação Física em tempos de COVID-19: uma análise a partir das dualidades

Physical Education in times of COVID-19: an analysis based on dualities

Educación Física en tiempos del COVID-19: un análisis basado en las dualidades

Denis Fernando Barcellos Angelo1 
http://orcid.org/0000-0002-3758-2118

Denise Grosso da Fonseca1 
http://orcid.org/0000-0001-6206-4729

Tanise Baptista de Medeiros2 
http://orcid.org/0000-0002-0857-467X

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo problematizar as concepções dualistas que perpassam a área da Educação Física, como a dualidade entre corpo e mente, buscando situá-las no contexto de divisão do trabalho na sociedade capitalista onde percebe-se que essas dualidades são reforçadas a nível da cotidianidade em tempos de pandemia do COVID-19. Realiza-se um debate de cunho filosófico e epistemológico no que diz respeito às concepções dualistas e monistas de mundo, evidenciando que um momento de crise pode ser propício para o exercício filosófico. Além disso, apresenta algumas especificidades da etapa do Ensino Médio, também marcada por uma educação dual, apontando como horizonte a perspectiva de uma educação integrada e politécnica, que tenha como objetivo uma formação humana omnilateral.

PALAVRAS-CHAVE: Educação física; Covid-19; Dualidades; Educação integrada

ABSTRACT

This work aims to problematize the dualist conceptions that permeate the area of Physical Education, such as the duality between body and mind, seeking to situate them in the context of division of labor in capitalist society where it is perceived that these dualities are reinforced at the level of everyday life in times of the COVID-19 pandemic. There is a philosophical and epistemological debate regarding dualist and monist conceptions of the world, showing that a moment of crisis can be conducive to philosophical exercise. In addition, it presents some specificities of the Secondary Education stage, also marked by a dual education, pointing to the horizon the perspective of an integrated and polytechnic education, which has as an objective an omnilateral human formation.

KEYWORDS: Physical education; Covid-19; Dualities; Integrated education

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo problematizar las concepciones dualistas que permean el área de la Educación Física, como la dualidad entre cuerpo y mente, buscando ubicarlas en el contexto de división del trabajo en la sociedad capitalista donde se percibe que estas dualidades se refuerzan a nivel de la vida cotidiana en tiempos de la pandemia de COVID-19. Realiza un debate filosófico y epistemológico sobre las concepciones dualistas y monistas del mundo, que muestra que un momento de crisis puede ser propicio para el ejercicio filosófico. Además, presenta algunas especificidades de la etapa de la Escuela Secundaria, también marcada por una educación dual, apuntando al horizonte la perspectiva de una educación integrada y politécnica, que tiene como objetivo una formación humana omnilateral.

PALABRAS-CLAVE: Educación física; Covid-19; Dualidades; Educación integrada

INTRODUÇÃO

Diante da complexidade da realidade em que ocorre a pandemia da COVID-19, uma postagem nas redes sociais chamou a atenção em especial: “Não é curioso que três das disciplinas curriculares menos valorizadas e com menos horas letivas - a Arte, a Música e a Educação Física - sejam agora a melhor forma de manter um certo equilíbrio e melhor saúde física e mental nesses dias tão difíceis de quarentena?” Como tema das questões que emergem da pesquisa “Educação Física no Ensino Médio: propostas curriculares, prática pedagógica e avaliação” que tem sido objeto de nossos estudos e investigações, o questionamento que se coloca para debate instiga a analisar algumas concepções que atravessam a Educação Física escolar e a organização curricular do Ensino Médio. Nessa perspectiva, elege-se aqui para reflexão a concepção dualista que se manifesta na divisão entre corpo e mente, entre fazer e pensar, entre consciência e matéria, sujeito e objeto, trabalho manual e trabalho intelectual. Percepção essa que perpassa a área da Educação Física, tanto no Ensino Médio enquanto etapa da Educação Básica escolar, como no espaço não escolar na prática de exercícios físicos. Assim, parte-se neste texto, de uma contextualização do atual cenário que emoldura as questões trazidas para o debate e realiza-se uma crítica às concepções dualistas de mundo, debruçando-se, posteriormente, sobre a dualidade educacional presente na organização do Ensino Médio, trazendo apontamentos para uma educação integrada e para uma concepção de mundo não-dualista.

A COVID-19 tem representado uma das maiores crises sanitárias registradas na história do capitalismo global. Sabemos que uma crise como a vivida no momento de pandemia repercute em problemas econômicos, sociais, políticos e culturais, porém tal crise se manifesta de diferentes formas nas diferentes partes do globo, sendo necessário, portanto, compreender o atual estágio em que o capitalismo se encontra e a divisão internacional do trabalho, que divide o mundo entre países de capitalismo central e periferias dependentes1. A epidemia chega num momento de profundo agravo da crise do capital, de retomada de um avanço ainda maior do capital sobre o trabalho, de um cenário geopolítico de disputas acirradas, principalmente entre China e Estados Unidos, e da crescente força política da extrema-direita em alguns países, como no próprio Estados Unidos e no Brasil. No caso específico do Brasil temos um Estado empenhado na retirada dos direitos dos trabalhadores, a exemplo das últimas medidas aprovadas como a Reforma Trabalhista (Lei 13.467), a Lei das Terceirizações (Lei 13.429), a Reforma da Previdência (EC 103), além da aprovação da Emenda Constitucional 95 que congela o teto dos investimentos em áreas como educação e saúde por 20 anos.

Nesse contexto, a atual configuração do mundo do trabalho na periferia do sistema, é extremamente precarizada, com uma massa de indivíduos desempregados ou na informalidade2, sem direitos trabalhistas garantidos, com o chamado processo de uberização, onde empresas de aplicativos como uber e ifood somam a maior parte dos empregadores hoje no Brasil3, já apresentando também neste ano demissões em massa de seus funcionários4 e tendo ocorrido uma greve dos entregadores em 01 de julho5. Acompanhado disso, há uma crença no fim do trabalho vivo, material e na chamada sociedade da informação ou do conhecimento. Segundo Antunes (2018) há uma aparente desmaterialização do trabalho, vinculado às tecnologias da informação e da comunicação, porém as chamadas atividades virtuais

[...] são dependentes e tem conexões fortes com o mundo da materialidade. Elas não poderiam existir sem a existência de infindáveis mercadorias produzidas em áreas e espaços com menor visibilidade, como nas minas da África ou da América Latina, nas sweatsshops6 da China ou em outros países localizados no Sul do mundo. [...] Sem a produção de energia, de cabos, de computadores, de celulares e de uma infinidade de produtos materiais, sem o fornecimento de matérias-primas para a produção das mercadorias, sem o lançamento de satélites ao espaço para carregar seus sinais, sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer ser conectada (ANTUNES, 2008, p.50-51).

Na relação entre trabalho e capital, o trabalho, portanto, pode prescindir do capital, mas o capital não pode prescindir do trabalho, pois é este que gera o motivo de ser do capitalismo: o lucro. Segundo Rummert, Algebaile e Ventura (2013) há um mito de que é a gestão intelectual que constrói o lucro, do qual deriva, por exemplo, o fetiche da chamada sociedade do conhecimento e, em decorrência disso outro mito propaga a tese de que o trabalho vivo não assume mais nenhuma função relevante na vida social. Por outro lado, é certo que a esfera do capital financeiro, daqueles que vivem de lucros e rendas, inaugurou uma nova fase do sistema capitalista, sobrepondo-se ao capital industrial, mas também sem dele prescindir. Essa fase produz consequências também na produção de ideias, que contribuem para a reprodução sociometabólica do capital, surgindo uma mudança de paradigmas que revigora concepções idealistas, que causam um certo imobilismo e descrença na possibilidade de mudanças estruturais, abrindo mão de categorias como classe social, universalidade e realidade.

Na esfera educacional, muitos movimentos impactam e ameaçam direitos e conquistas democráticas, configurando, como sugere Molina Neto et al (2017) um “pacote de maldades”:

Um elemento central para a compreensão das proposições desse “pacote de maldades” está centrado na ruptura política recente na governabilidade do país alterada pelo conjunto de forças do parlamento. Há uma metamorfose nas relações de poder na condução do Estado brasileiro e a assunção desse conjunto de forças políticas redefine a hegemonia dos poderes da república e o protagonismo da cena política nacional. Com isso, no campo da Educação, o histórico dualismo ou darwinismo social no Ensino Médio retoma seu curso histórico sob a batuta das políticas públicas neoliberais orientadas ao mercado, havendo um recalque das políticas sociais em desenvolvimento por mais de uma década (MOLINA NETO et al, 2017, p.89).

Dentre as muitas medidas enunciadas nesse projeto, há um flagrante fortalecimento da educação à distância, a exemplo do acréscimo no percentual de horas nesta modalidade nos cursos de graduação presenciais7, situação fortalecida durante a pandemia, quando a modalidade de educação a distância, mesmo que de diferentes formatos, é colocada como única saída tanto para a Educação Básica como para o Ensino Superior. Além disso, a Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415) apresenta mudanças legislativas que ameaçam princípios fundamentais desta etapa da educação básica, impactando a formação do jovem brasileiro, sobremaneira aqueles que frequentam a escola pública, refletindo na organização curricular em relação à carga horária e à organização pedagógica das disciplinas, especialmente a Educação Física, reforçando a dualidade, processo historicamente perpetuado como mais um elemento que aprofunda as desigualdades sociais.

A pandemia tem colocado questionamentos que apontam para o esgotamento do atual modo de produzir e reproduzir a vida, visto que, segundo a professora Virgínia Fontes:

A própria expansão do capital em sua desordenada e devastadora relação com a natureza vem agudizando permanentemente a possibilidade de pandemias, e já há uma enorme quantidade de estudos a esse respeito - confinamento de animais, tratados com doses massivas de medicamentos; alteração do uso do solo e do ambiente por monoculturas gigantescas, massivamente impregnadas de agrotóxicos etc. Todos os dias as mídias proprietárias relembram das últimas grandes epidemias - Ebola, SARS, MERS, H1N1 etc, mas ‘esquecem’ de dizer que foram gestadas pelo próprio capitalismo (ANDES, 2020, p.1).

Esse cenário coloca em evidência diversas contradições como o crescente negacionismo da ciência, o debate acerca de quem produz e quem lucra com a produção, o descarte do corpo improdutivo dos idosos e o corpo em isolamento que precisa ser exercitado. Este último elemento aponta também para uma concepção que traz conceitos restritos de saúde em que basta fazer atividade física, exercícios físicos para manter-se saudável, esquecendo-se que a saúde possui diferentes determinantes, como condições plenas de trabalho, moradia, educação e lazer. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como

[…] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades. Direito social, inerente à condição de cidadania, que deve ser assegurado sem distinção de raça, de religião, ideologia política ou condição socioeconômica, a saúde é assim apresentada como um valor coletivo, um bem de todos.8

Feita esta introdução e contextualização, a seguir será encaminhado um debate de cunho filosófico e epistemológico com foco nas dualidades que perpassam as áreas referidas e sustentam o atual estágio societal, entendendo, como afirma Saviani (2012) que: “as situações de crise são épocas propícias para a filosofia, já que nos obrigam a compreender as raízes da crise e pensar alternativas à sua superação” (p. 15). Posteriormente, passará a ser feita a análise das propostas educacionais para o Ensino Médio em seu reforço à dualidade educacional apontando para a superação dessa dicotomia, a partir de uma educação integrada, omnilateral e politécnica.

A DUALIDADE ENTRE CORPO E MENTE E A DIVISÃO DO TRABALHO

A postagem que circulou nas redes sociais e que motivou o debate proposto neste texto, trata da importância da Arte, da Música e da Educação Física para o equilíbrio entre corpo e mente em tempos de distanciamento social na crise da COVID 19. Trazer à tona esse tema se justifica por justamente compreender-se que esta divisão entre corpo e mente perpassa toda a organização da sociedade e ganha bastante evidência na área da Educação Física. Além disso, a Educação Física escolar tem sido alvo de discussão acerca da sua importância no currículo escolar, chegando ao ponto de sua supressão como componente no Ensino Médio através da Medida Provisória 746/2016 e posterior reinclusão a partir da Lei 13.415/2017, com evidente fragilização pedagógica. Destaca-se o fato de que especialmente as disciplinas de Artes e Educação Física, colocadas à margem na Reforma do Ensino Médio, desconsideradas e quase excluídas do currículo, neste momento em que a humanidade enfrenta uma de suas maiores crises sanitárias e sociais, são demandadas como importantes alternativas para o chamado equilíbrio entre corpo e mente.

Recorre-se à História para lembrar que Artes, Música, Ginástica desde a antiguidade eram consideradas elementos de uma vida dos privilegiados, daqueles que poderiam se dedicar ao ócio, elevar seu nível cultural, sendo isso apenas possível porque havia homens escravizados e não-livres que garantiam a produção das necessidades humanas. Já no século XIV com a emergência de uma burguesia mercantil, as chamadas artes liberais, livrescas, reservada às elites, são combatidas pelo ideário da mercancia que precisava transformar os homens em bons comerciantes. Manacorda (1989, p.188) afirma que “a polêmica não é somente contra as letras e as artes liberais, mas também contra as disciplinas teóricas que se ocupam apenas com o conhecimento do espírito e da mente”, consideradas inúteis pelos homens de negócio. Certamente esta oposição, tão reiterada por teóricos como Mandeville e Locke, constitui a base das ideias a serem cimentadas no emergente capitalismo, em que seria necessário cada vez mais uma grande massa da população na pobreza e na ignorância para constituírem-se em operários que desempenhariam o “papel sujo” (trabalho com o corpo), indigno daqueles que sempre se dedicaram às artes e às letras (trabalho intelectual). Como reitera Losurdo (2019, p.318) “essas mãos laboriosas e sem cultura são o pressuposto tácito da cultura superior sem qualquer preocupação profissional”, visto que para manter uma elite usufruindo de todo tipo de privilégios, são necessários corpos despendendo força humana de trabalho. Percebe-se, portanto, que desde a antiguidade há uma dualidade entre corpo e mente, posteriormente aprofundada no capitalismo para sustentar a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual.

No que diz respeito ao corpo como elemento central da Educação Física, Santin (1993) afirma que:

É interessante observar que a definição de corpo, quando se trata de corpo humano, acrescenta de maneira explícita sua distinção com o espírito ou com a alma. A corporeidade, dentro dessa ótica, é entendida como o oposto da espiritualidade. A corporeidade passa a ser um conceito que diz respeito a algo material (SANTIN, 1993, p.52).

Esta definição de que trata Santin (1993) diz respeito a uma perspectiva dualista de mundo, em que matéria e espírito, corpo e mente são compreendidas de forma dicotômica, como oriundas de substâncias distintas. Diferente disso a perspectiva filosófica monista concebe esses dois elementos como oriundos da mesma substância, diferenciando-se entre monismo idealista, em que tudo deriva da consciência, da ideia, do espírito; e o monismo materialista, em que tudo deriva da matéria, da substância material, e que, portanto, as partes (ideia, espírito) são constitutivas da matéria (MESZÁROS, 2016, POLITZER, 1986). Duas tradições centrais buscaram romper com a perspectiva dualista, Hegel através de um monismo idealista e Marx, através de um monismo materialista. Detendo-se aqui neste último, o materialismo dialético tem importante contribuição na ruptura com a dicotomia entre corpo e mente, matéria e espírito, história da natureza e história humana, concebendo uma relação dialética entre tais categorias, buscando, portanto, superar a concepção mecanicista do materialismo. Na Introdução à Contribuição à crítica da economia política de Marx, Florestan Fernandes (2008) afirma, acerca do materialismo histórico dialético que:

Dessa forma, o que havia de essencial e de fecundo no ‘método naturalista’, que permite apanhar o que é geral nas coisas; e o que havia de essencial no ‘método histórico’, que permite captar as coisas em sua singularidade - deram origem a um novo método de trabalho científico, conhecido posteriormente sob o nome de ‘materialismo histórico’. Esses resultados a que Karl Marx chegou marcaram uma nova etapa na história das investigações científicas, pois desdobraram diante das ‘ciências históricas’ - ou ciências sociais como dizemos atualmente - novas possibilidades de desenvolvimento científico (FERNANDES, 2008, p.12).

Portanto, o problema central não é mais o homem em seu aspecto naturalizante, mas os homens reais, atuantes no movimento histórico, dotados de consciência e matéria, avesso e direito de um mesmo pano. (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2011) O campo teórico-metodológico do materialismo histórico e dialético, método que Marx utiliza para a análise da sociedade burguesa, compreende que a realidade concreta (mundo da produção) forma, conforma, condiciona, o mundo das ideias (mundo da reprodução), num processo dialético em que o real cria a consciência e a consciência cria o real. Ressalta-se que Marx não concebe a consciência, as ideias, a teoria, o pensamento, a linguagem como estrutura divisível à realidade material, mas sim como parte constitutiva da mesma, como unidade do diverso, como um nível mais elevado, mais complexo da matéria. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels (2009) afirmam que

A produção das ideias e representações, da consciência, está em princípio diretamente entrelaçada a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. [...] Os homens são os produtores de suas representações, ideias, etc., mas os homens reais, os homens que realizam, tal como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas [...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, com base no seu processo real de vida, apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida (MARX; ENGELS, p.31).

No capitalismo, mesmo havendo uma heterogeneidade de concepções filosóficas, para conformação de seu ideário, a classe dominante utiliza-se da concepção dualista, não apenas para afirmar que há duas substâncias, mas para colocar uma substância em submissão a outra, portanto, o corpo submisso à mente, o trabalho ao capital, a estética à razão. Nesse sentido, há o reforço no ideário da dicotomia entre linguagem e realidade, entre teoria e prática, entre pensar e fazer, e é assim que os homens se movem no mundo das aparências fenomênicas, quando condiciona-se a realidade ao mundo das ideias (primado da consciência). Segundo Politzer (1986), as concepções de mundo idealistas, arraigadas em cada um, influenciadas pelas bases teóricas da educação e da cultura, enraizados desde a infância, constituem-se em obra da burguesia que não gosta que se dê importância à realidade, precisando, pois, serem revistas.

O materialismo histórico-dialético, compreende a realidade como uma totalidade, como um todo estruturado, coeso. Bottomore (2013) assim caracteriza o materialismo e ainda o materialismo histórico:

Em seu sentido mais amplo, o materialismo afirma que tudo o que existe é apenas matéria ou, pelo menos, depende da matéria. [...] O materialismo histórico afirma o primado causal do modo de produção dos homens (e das mulheres) e de reprodução de seu ser natural (físico), ou, de um modo mais geral, do processo de trabalho no desenvolvimento da história humana (BOTTOMORE, 2013, p.404).

O autor afirma ainda que um dos significados filosóficos do materialismo histórico em Marx é “a negação da autonomia, e portanto do primado das ideias na vida social” (BOTTOMORE, 2013, p.404).

O dualismo entre corpo e mente, no capitalismo, é sustentado pela divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre elaboração e execução do trabalho, entre aqueles que fazem e aqueles que pensam. Dito isso, percebe-se claramente que essa contradição perpassa o campo da educação e da Educação Física, visto que esta última encontra sua fundação enquanto disciplina nessa tradição cartesiana em que é necessário um corpo são para obter uma mente sã (NOSAKI, 2004). Por um lado, no campo da Educação Física escolar, tem-se a supervalorização do intelecto, do desenvolvimento intelectual no interior da escola e à Educação Física é relegado o papel de tempo livre e desregrado, podendo, portanto, ser prescindível no currículo. Por outro lado, seu papel pode estar relacionado ao desenvolvimento da aptidão física, numa perspectiva funcionalista uma vez que, na sociedade capitalista, o corpo é valorizado como mercadoria, como valor de troca, na venda da força humana que trabalha ou através do esporte, da mídia, da imagem, de um padrão de corpo e de beleza a ser consumido.

No atual fenômeno de pandemia tem-se um apelo ao corpo em distanciamento social, para que este seja cultivado, exercitado, com uma série de recursos virtuais sendo utilizados para seu bom funcionamento fisiológico: aulas onlines de yoga, aplicativos de ginástica, vídeos motivacionais, etc, e, por outro lado, por parte daqueles que sustentam um discurso negacionista e segregador, tem-se o apelo para que os corpos continuem sendo produtivos. O contexto da COVID-19, portanto, que se manifesta como fenômeno natural, biológico, não pode ser compreendido apenas por essa dimensão funcionalista e descontextualizada, visto que convoca a repensar o estágio societal estabelecido. Cabe retomar a questão: Quais indivíduos podem realizar o distanciamento social, restrito ao seu espaço doméstico e, junto a isso, usufruir das Artes, da Música, da Ginástica, de todo o aparato da Educação Física para cultivar os seus corpos? E quais indivíduos precisam continuar trabalhando, produzindo, e, portanto, não podendo realizar o distanciamento social e nem usufruir desses elementos? Vê-se que, ainda que nos dias atuais ocorra um processo de maior acesso por parte da classe trabalhadora a produtos culturais antes restrito às elites, a divisão do trabalho continua evidenciando a dualidade entre aqueles que precisam realizar o trabalho manual, utilizando a força mecânica de seus corpos, e aqueles que não precisam utilizar o corpo para essa função, podendo exercitá-lo de forma livre e desinteressada, usufruindo das chamadas artes livrescas. Trabalhos essenciais à sociedade continuam sendo realizados em meio à pandemia, colocando em risco a vida de trabalhadores da limpeza urbana, do saneamento básico, do transporte público, dos supermercados, dos aplicativos de entregas, etc, que em suma, são os trabalhadores oriundos das grandes periferias urbanas, precarizados, e sem condições de usufruir de seu tempo livre e do cultivo de seus corpos.

A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A DUALIDADE NA EDUCAÇÃO

A concepção dualista se apresenta na educação brasileira desde o período colonial, seguindo pelo império e demais momentos da história educacional do país, se manifestando inicialmente, através de uma educação propedêutica que preparava a elite intelectual, os filhos dos colonizadores, para o prosseguimento dos estudos na Europa, restando aos demais trabalhadores, escravos ou não, atividades braçais ligadas aos ensinamentos de ofícios e tarefas agrícolas, considerando as características de uma sociedade essencialmente agrária. Esse processo se reproduz com diferentes matizes até os dias de hoje, reforçando a assimetria entre as classes sociais, com aprofundamento na educação secundária, a qual, segundo Kuenzer (1997), tem se constituído como o nível de escolaridade de mais complexo enfrentamento, considerando sua dupla função de preparar para o prosseguimento dos estudos ou para o mundo do trabalho. Nessa perspectiva, segundo a autora, tal dualidade não diz respeito apenas à sua dimensão pedagógica, mas política, “determinada pelas mudanças nas bases materiais de produção, a partir do que se define a cada época, uma relação peculiar entre trabalho e educação” (KUENZER, 1997, p.10).

No que diz respeito especificamente ao Ensino Médio, o que já vinha se apresentando na estrutura educacional, era uma concepção dualista, com uma educação pragmática, profissionalizante, sem tempo para o cultivo do corpo e das artes para boa parte da classe trabalhadora; e uma educação científica, intelectual para as elites e formação das classes dirigentes. As mudanças que se encontram no bojo da contrarreforma do Ensino Médio9, na perspectiva das dualidades educacionais, coloca para a discussão, como já tratamos em outras oportunidades, as relações entre formação geral e formação para o mundo do trabalho, questões que passaram a ser fundamentais a partir da LDB 9.394/1996, ao estabelecer o Ensino Médio como etapa final da Educação Básica com o propósito de superar o velho dualismo de uma educação para a elite com vistas à continuidade dos estudos na universidade e uma educação profissionalizante para os filhos dos trabalhadores das classes populares. As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, Resolução nº2 de 2012, enfatizam as finalidades desta etapa, propostas na referida LDB, das quais se destacam:

I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posterior;

III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (BRASIL, 2012, p.1).

Tais finalidades apontam para a possibilidade de construção de uma educação integral, levando em conta as dimensões do trabalho, da ciência, da cultura e da tecnologia. Porém, o que ocorre é o aprofundamento cada vez mais acentuado da dualidade estrutural da educação, visto que a atual contrarreforma propõe uma “flexibilização” curricular ao fazer com que o aluno opte por cursar uma área de conhecimento ou uma formação técnica e profissional. O Movimento em Defesa do Ensino Médio10 afirma que essa proposta fragmenta e desconstitui a educação básica e, dentre as principais críticas apresentadas por Kuenzer (2017), ressalta-se a forma autoritária que orientou o processo de elaboração da reforma, a fragmentação que passa a substituir a proposta de integralidade presente nas diretrizes anteriores e a extensão da carga horária que inviabiliza o acesso ao Ensino Médio aos jovens que trabalham. Além disso, tal proposta, segundo a autora, “resolve” dois grandes problemas do ensino: a falta de professores e a precariedade das condições materiais das escolas, visto que, sendo a oferta de todos os itinerários não obrigatória em uma mesma escola, a tendência será a redução da oferta.

A ideia de flexibilização, no entanto, não diz respeito apenas a uma organização curricular flexível, mas a uma formação flexível, acompanhando uma nova lógica do regime de acumulação de capital que se instaura a partir de um reordenamento no mundo do trabalho. Segundo Kuenzer (2017):

A aprendizagem flexível surge como uma das expressões do projeto pedagógico da acumulação flexível, cuja lógica continua sendo a distribuição desigual do conhecimento, porém com uma forma diferenciada. Assim, o discurso da acumulação flexível sobre a educação aponta para a necessidade da formação de profissionais flexíveis, que acompanhem as mudanças tecnológicas decorrentes da dinamicidade da produção científico-tecnológica contemporânea, em vez de profissionais rígidos, que repetem procedimentos memorizados ou recriados por meio da experiência. Para que essa formação flexível seja possível, propõe-se a substituição da formação especializada, adquirida em cursos de educação profissional e tecnológica, por uma formação mais geral (KUENZER, 2017, p. 338-339).

O que se reitera aqui é a base material informando a base imaterial da sociedade, ou seja, a exigência colocada à escolarização é a formação de sujeitos adaptados às novas condições mercadológicas: uma mão de obra não mais especializada, mas generalista, flexível e competente a fim de garantir a sua própria empregabilidade, visto que os postos de trabalho já não são garantidos a todos. Portanto, a atual Reforma do Ensino Médio aumenta as desigualdades educacionais assentadas em uma base estrutural dualista, reproduzindo a lógica da divisão social do trabalho e da desvalorização daqueles que realizam os trabalhos mais precarizados na sociedade. Assim, dois pontos agravantes da Reforma do Ensino Médio são aqui evidenciados: a) a contenção do avanço do desenvolvimento de trabalhadores mais intelectualizados e especializados, visto que nos últimos anos no Brasil houve um aumento da inserção dos trabalhadores no ensino superior. Portanto, a Reforma precisa garantir uma desqualificação na educação básica pública que impossibilite os filhos da classe trabalhadora de acessarem o Ensino Superior e, além disso, b) o processo acentuado de mercantilização da educação, que hoje se manifesta através da consolidação da modalidade de Educação à Distância. Sobre este último ponto, cabe lembrar que a própria Reforma do Ensino Médio, já previa a possibilidade de cerca de 30% da carga horária do EM ser realizada na modalidade à distância, o que demonstra aqui o interesse em parte do empresariado brasileiro (atuante na elaboração da Reforma) em vender seus produtos (materiais didáticos, plataformas educacionais digitais, tutoria, etc,) através da Educação à Distância, o que já vinha ocorrendo no Ensino Superior, onde, segundo o INEP, em 2017 o número de matrículas nesta modalidade atingiu uma taxa de 21,2% do total das matrículas de graduação11, e com o contexto da pandemia, isso poderá se fortalecer na Educação Básica como um todo. Ressalta-se aqui que o debate não pode permanecer em torno da qualidade e validade ou não da modalidade EAD, mas sim, sobre o que está sendo evidenciado, ou seja, uma aceleração no processo de mercantilização e empresariamento da Educação Básica.12

Neste contexto, a Educação Física no interior da escola aparece como disciplina prática, associada ao corpo e ao movimento do corpo, muitas vezes distanciada da teoria. Na escola pública, onde o papel é a formação basicamente da classe trabalhadora, a Educação Física tem ocorrido como prática esportiva com predominância das modalidades coletivas como futebol e voleibol, restringindo o acesso a uma gama maior de manifestações da cultura corporal. Por outro lado, na escola privada, em grande parte destinada à formação das elites e das classes dirigentes, oferece-se uma variedade de práticas corporais, através de uma gama de esportes, como rugby, basquetebol, handebol, além de judô, karatê, balé, ginástica rítmica, ginástica olímpica, etc., possibilitando aos alunos a vivência de diversas modalidades da cultura corporal, enriquecendo esse repertório. No caso da Reforma do Ensino Médio, o tratamento dado à Educação Física, de acordo com a concepção de Molina Neto et al (2017)

[…] reduz as oportunidades de acesso do estudante aos conteúdos da cultura corporal do movimento. Conspira contra a desejada autonomia dos estudantes para eleger, organizar e programar suas experiências corporais para além da vida escolar, sua educação para a saúde na vida adulta com qualidade e para o exercício do lazer consciente das condições e da conjuntura social, política, econômica e cultural que envolve o tempo livre e sua ocupação. Temos aí um extraordinário ataque à formação integral do cidadão com efeitos desmedidos nos valores éticos, estéticos e morais da juventude brasileira (MOLINA NETO et al, 2017, p.99).

APONTAMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO INTEGRADA

Contrapondo-se a uma perspectiva dualista de educação, fundada na divisão entre classes sociais, e na divisão do trabalho entre trabalho manual e intelectual, aponta-se aqui para a necessidade de uma educação integrada, que rompa com os limites da lógica fragmentada, construindo, como afirma Rummert (2011), uma formação agregadora dos princípios de formação generalista e integral. Compreende-se por educação generalista e integral aquela que tem como objetivo uma formação humana plena, em contraposição à formação unilateral destinada a um único fim de formar uns para serem dirigidos e realizarem o trabalho material, mais precarizado e desvalorizado na sociedade (trabalho manual, técnico) e outros para dirigirem e realizarem o trabalho intelectual (científico, tecnológico). Tal formação deverá ter como objetivo a socialização plena dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, em seu processo de objetivação e apropriação, ou seja, em seu modo de produzir e reproduzir a vida. Segundo Duarte (2015):

[...] o trabalho educativo alcança sua finalidade quando cada indivíduo se apropria dos elementos culturais necessários à sua formação como ser humano, necessária à sua humanização. Portanto, a referência fundamental é justamente o quanto o gênero humano conseguiu se desenvolver ao longo do processo histórico de sua objetivação. Está implícita a essa definição a dialética entre objetivação e apropriação, que constitui o núcleo fundamental da concepção de Marx no processo histórico de humanização (DUARTE, 2015, p.50).

Uma formação integrada, portanto, pressupõe o fim da divisão do trabalho, rompendo, assim, com a distribuição desigual das riquezas e dos saberes. Embora essa ruptura não possa ser realizada plenamente em um modo de produção capitalista, a proposta de uma educação integrada pode contribuir na disputa tática para um outro modelo de educação e de sociedade. Para Rummert (2011) um currículo para uma educação integrada deve romper com a formação cindida entre trabalho manual e intelectual, visto que, os conhecimentos produzidos pela sociedade capitalista são transformados em mercadoria e distribuídos de forma desigual. O currículo deve ser, portanto, construído pelos trabalhadores, de modo que a ciência, os conhecimentos sejam colocados a serviço da formação humana e não da formação unilateral, para a lógica do capital.

Uma educação integrada, na perspectiva aqui assumida, tem como princípios articuladores a politecnia, ou seja, a unidade entre uma educação técnica, científica e corporal, e a omnilateralidade.13 Segundo Souza Júnior (2009), entre a politecnia e a formação omnilateral

[…] há complexas mediações colocadas pelo cotidiano da vida social alienada e estranhada. É nesse cotidiano que atua a formação politécnica, potencialmente capaz de elevar as classes trabalhadoras a um patamar superior de compreensão de sua própria condição social e histórica. Aí atua a práxis revolucionária, principal ação político-pedagógica da formação do proletariado como sujeito social transformador. Nesse processo são gestados elementos que deverão ser consolidados - e que só podem ser consolidados com a superação da alienação e do estranhamento - no interior das novas relações não-estranhadas. Somente a partir dessas relações é possível a formação omnilateral (SOUZA JÚNIOR, 2009, p.6).

No que diz respeito à Educação Física, percebe-se que esta área do conhecimento encontra-se extremamente marcada pela divisão entre corpo e mente, entre teoria e prática, visto que no interior do currículo escolar encontra-se recorrentemente ameaçada, sendo prescindível quando não lhe cabe mais o papel de formar um corpo forte, saudável e produtivo, como quando esta área é transformada em disciplina ainda no século XIX com o período de consolidação do capitalismo.

Quando se compreende que o objeto da Educação Física é a cultura corporal, produzida e sistematizada a partir das relações humanas de produção e reprodução da vida, há um distanciamento das noções de aptidão física, tão presentes na área até a década de 1980. Esta última concepção trata do conceito de saúde em sua dimensão estrita, de responsabilidade dos indivíduos e reforça a ideia da Educação Física em sua constituição, como remédio para os corpos contra a letargia e a doença. Ao analisar-se as demandas que se apresentam hoje à Educação Física, como a mensagem colocada no início deste texto, percebe-se que está se tratando justamente dessa concepção estrita de saúde, que entende a Educação Física como movimentar o corpo para torná-lo saudável. Mais uma vez, neste período de crise, que rompe com a normalidade cotidiana, ao invés de apontar-se para um novo horizonte e conceber o ser humano na sua integralidade, reforçam-se as concepções dualistas que fortalecem os alicerces desse sistema. Assim, a Educação Física e as Artes em geral, precisam não apenas estar a serviço do cultivo dos corpos para a fruição e a estética, mas também pensando um indivíduo integral, que precisa garantir suas necessidades mais elementares. Ou seja, é preciso pensar no ser na sua unidade entre corpo e mente não apenas para o mundo das liberdades, mas também no mundo das necessidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ressalta-se aqui que o atual cenário de pandemia da COVID-19 não se refere apenas a um fenômeno biológico, mas sim econômico, social, político e que remete a uma crise sanitária que se aprofunda no atual contexto do capitalismo em que as crises são fruto da própria organização do capital, sendo formas deste de garantir sua perpetuação. Percebe-se que as problemáticas aqui apresentadas no âmbito da educação e da Educação Física são reforçadas pelas concepções dualistas, fruto de uma base social divida em classes sociais antagônicas, em que as dualidades se acentuam, e de uma perspectiva filosófica e ideopolítica de mundo idealista, que impede de compreender as bases da realidade concreta objetiva das problemáticas e enfrentá-las.

Trata-se, portanto, da imediaticidade do projeto burguês que mantém os indivíduos na superfície dos fenômenos, que os limita a compreender que o mundo sensível, imediato, não é uma coisa dada, mas sim um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações. Duas contribuições teóricas, na perspectiva do materialismo histórico dialético, permitem analisar a realidade fugindo das concepções dualista e idealista. Lukács (2015) aponta que há uma relação dialética entre o instante e o processo, onde o instante, enquanto situação temporal, tem caráter presente e prático; e o processo consiste em uma longa série de instantes que podem provocar mudanças de rumo, e enquanto processo histórico depende do fator subjetivo para repercutir na sua orientação.

Kosik (2002) acrescenta a esta relação a dialética entre cotidianidade e história, considerando a vida cotidiana como a vida individual dos homens, as ações fixadas no dia a dia, com sua própria experiência e sabedoria. Porém, opor cotidiano e história é resultado de uma certa mistificação. No cotidiano, a atividade humana se transforma em um inconsciente e irrefletido mecanismo, e as coisas, os homens, os movimentos, os objetos não são detidamente analisados, simplesmente são o que são. O autor afirma que é preciso compreender que a cotidianidade é produto histórico e da história não pode se separar, portanto, o método do materialismo histórico dialético, enquanto concepção monista de mundo, contribui para superar a dualidade entre cotidiano e história, entre instante e processo, e ainda acrescenta-se aqui, entre corpo e mente, entre trabalho intelectual e trabalho manual, no processo de análise da realidade. Assim, as contribuições desses autores e do materialismo histórico dialético, possibilitam uma análise coesa da realidade, buscando fugir às concepções dualistas e idealistas, incrustada na cultura, na educação, na forma de conhecer a própria realidade, permitindo pensar dialeticamente, por contradição e não por oposição.

Romper com a dualidade entre instante e processo, entre cotidiano e história, permite compreender que o cotidiano vivido, o instante, o imediato, possuem múltiplos fatores que o constituíram, e que a ação do ser enquanto indivíduo é condicionada ao processo, à história, porém, também determinante no curso do mesmo. É nessa relação dialética, e, portanto, não dualista, que se pode compreender para além da superfície do fenômeno que está sendo vivido, estabelecendo-se relações históricas com o presente, intervindo enquanto sujeitos ativos na cotidianidade para apontar um horizonte distinto do atual projeto do capital. É na esfera da educação e da Educação Física que viemos nos detendo a analisar as contradições que emergem da estrutura da sociedade capitalista, apontando possibilidades de superação, dentro e fora dos limites do trabalho pedagógico.

A frase postada nas redes sociais, apresentada no início deste texto, se encontra no plano das manifestações cotidianas e possibilitou a nós, pesquisadores, apontar seus limites, analisar e discernir acerca dessa problemática tão presente na Educação Física: a divisão entre corpo e mente. Cabe a nós questionar: o que é corpo? O que é mente? Esperamos a partir destas indagações motivar outros professores e pesquisadores a buscar, partindo das manifestações imediatas, análises mais profundas e não fragmentadas. A proposta de uma educação integrada diz respeito a uma concepção de mundo, de ser humano, de sociedade, que compreende o ser em sua totalidade, não fragmentado, e a realidade em seus múltiplos fatores históricos. Apontamos que o materialismo histórico dialético pode ser referência para uma formação de professores que busque romper com as dicotomias e dualidades, compreendendo que a perspectiva idealista de mundo contribui para a permanência de grande parte de nossas problemáticas, visto que nos imobilizam na superfície da realidade.

Reformulando a frase inicial: a Educação Física, a Música, as Artes em geral, deveriam contribuir neste período de pandemia para a integralidade do ser humano, para uma saúde e uma educação integral. A integralidade deve ser possibilidade de desenvolvimento de todos os seres humanos, em seu processo de humanização. Reforçamos ainda que este tempo tem também contribuído para compreendermos que as riquezas materiais necessárias à humanidade são produzidas pelos corpos, enquanto força humana que trabalha, e que a estes são relegados uma educação precária, um sistema de saúde precário, condições de moradia precárias. Portanto, em uma sociedade dividida em classes sociais, a Educação Física, a Música, as Artes devem contribuir para a emancipação da classe trabalhadora.

A COVID-19 revela que não há nenhum limite ético no capitalismo, que seu projeto descarta o ser humano em detrimento do lucro e que, portanto, essa realidade precisa ser revolucionada, compreendendo, como afirma Sanchez Vasquez (2011) que revolucionar trata-se de derrubar o que existe, transformar a realidade. Assim, a educação e a Educação Física devem contribuir para captar as contradições da realidade concreta, avançando em direção a um projeto histórico em que a centralidade seja o desenvolvimento do gênero humano em sua totalidade.

REFERÊNCIAS

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1A teoria da dependência, a partir da perspectiva de Vânia Bambirra, trata de compreender o capitalismo na América Latina a partir de suas bases materiais em um contexto de expansão do capitalismo mundial, assumindo, assim, tipos específicos nos países periféricos. O conceito de dependência, utilizado como “categoria analítico-explicativa” situa-se como um condicionante que determina limites e possibilidades de ação. Através desta conceitualização que podemos compreender as relações de dependência entre centro hegemônico e países periféricos, e as configurações de tipos específicos de estruturas que vão sendo construídas na América Latina. (BAMBIRRA, 1978)

2Segundo dados do IBGE o Brasil inicia 2020 com 11,9 milhões de desempregados e 38,3 milhões de trabalhadores em ocupações informais. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/taxa-de-desemprego-fica-em-112-em-janeiro-diz-ibge.shtml.

3Maiores informações disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/proletariado-digital-apps-promovem-trabalhos-precarios-a-brasileiros/.

4Maiores informações disponível em: https://tecnoblog.net/320935/rappi-demite-funcionarios-brasil-america-latina-concorrencia-ifood/.

5Maiores informações disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/entregadores-de-apps-fazem-greve-nacional-nesta-quarta-feira.

6Sweatshop ou “fábrica de suor”, é um termo pejorativo para um local de trabalho que tem condições muito precárias e socialmente inaceitáveis.

7A portaria 2.117/2019, do Ministério da Educação, autoriza as Instituições de Ensino Superior a ampliar para 40% a carga horária de Educação à Distância (EAD), em cursos presenciais de graduação, pertencentes ao Sistema Federal de Ensino. http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.117-de-6-de-dezembro-de-2019-232670913. Consulta em 31/03/2020.

8Disponível em: https://www.almg.gov.br/export/sites/default/acompanhe/eventos/hotsites/2016/encontro_internacional_saude/documentos/textos_referencia/00_palavra_dos_organizadores.pdf.

9Utilizamos aqui o termo contrarreforma por entender que, “[...] a palavra reforma tende a induzir ao/a leitor(a) a sensação de que se trata de algo positivo, que vem para melhorar o aspecto a que se refere; por exemplo, a expressão Reforma do Estado pode dar a impressão de algo que está sendo feito para torná-lo mais condizente com os direitos/anseios do conjunto da sociedade” (MINTO, 2018, p.22).

10O Movimento em Defesa do Ensino Médio é uma reunião de entidades educacionais que se manifestam contrárias ao processo de Reforma. Maiores informações disponível em: http://www.observatoriodoensinomedio.ufpr.br/movimento-nacional-em-defesa-do-ensino-medio-2/.

11Informações disponível em: http://portal.inep.gov.br/censo-da-educacao-superior.

12Exemplificamos esse processo de mercantilização através do que ocorre na Rede Estadual de Educação Básica do Estado do Rio Grande do Sul, denunciado pelo sindicato da categoria, onde o governador do Estado chamou para o diálogo sobre a realidade educacional, Luciano Hulck, um dos investidores em startups educacionais. Veja em: https://cpers.com.br/a-rede-estadual-nao-precisa-de-caridade-precisa-de-investimentos-publicos-e-valorizacao/.

13Omnilateral ou onilateral: Trata-se de um termo que tem origem nos estudos marxistas, se opondo a uma formação humana unilateral, apontando para a ruptura do ser humano limitado na sociedade capitalista. (SOUZA JÚNIOR, 2009)

AGRADECIMENTOS Ao Grupo de Estudos em Docência e Avaliação em Educação Física (ESEFID UFRGS)

FINANCIAMENTO Bolsa CAPES de Mestrado e Doutorado

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA A pesquisa “Educação Física no Ensino Médio: propostas curriculares, prática pedagógica e avaliação” está associada a um projeto maior “A Educação Física no Ensino no Médio: estudos de casos na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul” o qual tem aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do rio Grande do Sul, sob o número: 1.025.915 de 02/04/2015

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PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

EDITOR DE SEÇÃO Rogério Santos Pereira

REVISÃO DO MANUSCRITO E METADADOS João Caetano Prates Rocha; Keli Barreto

Recebido: 10 de Novembro de 2020; Aceito: 30 de Março de 2021

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