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Motrivivência

versão On-line ISSN 2175-8042

Rev. Motriviv. vol.33 no.64 Florianópolis  2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.5007/2175-8042.2021.e76949 

Porta Aberta

Dispositivos de segurança no futebol argentino e colombiano: uma revisão bibliográfica

Security devices in argentine and colombian football: a bibliographic review

Dispositivos de seguridad en el fútbol argentino y colombiano: una revisión bibliográfica

Fábio Perina Célia1 
http://orcid.org/0000-0002-3497-6891

Felipe Tavares Paes Lopes2 
http://orcid.org/0000-0002-0213-7858

1Universidade Estadual de Campinas, Área de Concentração Educação Física e Sociedade da Faculdade de Educação Física, Campinas, SP, Brasil.

2Universidade de Sorocaba, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Sorocaba, SP, Brasil.


RESUMO

Por meio de uma revisão bibliográfica, analisamos os dispositivos de segurança que vêm sendo aplicados no futebol argentino e colombiano, buscando, com isso, contribuir para o avanço do debate sobre o fenômeno da violência no futebol latino-americano Ao realizarmos tal análise, indicamos algumas diferenças e semelhanças entre esses dois contextos e mostramos como tal bibliografia pode contribuir para o desenvolvimento de uma avaliação crítica das políticas públicas voltadas ao torcedor.

PALAVRAS-CHAVE: Futebol; Dispositivos de segurança; Argentina; Colômbia; Barras bravas

ABSTRACT

Through a bibliographic review, we analysed the security devices that have been applied in Argentine and Colombian football, seeking, with this, to contribute to the advance of the debate on the phenomenon of violence in Latin American football. In conducting such an analysis, we indicated some differences and similarities between these two contexts and showed how such bibliography can contribute to the development of a critical assessment of public policies aimed at the football fan.

KEYWORDS: Football; Security devices; Argentina; Colombia; Barras bravas

RESUMEN

Por medio de una revisión bibliográfica, analizamos los dispositivos de seguridad que se han aplicado en el fútbol argentino y colombiano, buscando, con esto, contribuir al avance del debate sobre el fenómeno de la violencia en el fútbol latinoamericano. Al realizar dicho análisis, señalamos algunas diferencias y similitudes entre estos dos contextos y mostramos cómo dicha bibliografía puede contribuir al desarrollo de una avaluación crítica de las políticas públicas dirigidas a los hinchas.

PALABRAS-CLAVE: Fútbol; Dispositivos de seguridad; Argentina; Colombia; Barras bravas

INTRODUÇÃO

O presente artigo realiza uma revisão da literatura acadêmica sobre os dispositivos de segurança adotados pelas autoridades nos contextos do futebol argentino e colombiano. Com essa revisão, buscamos sintetizar e analisar as principais publicações dessa literatura e, com isso, contribuir para o avanço do debate sobre o fenômeno da violência no futebol latino-americano. Debate este que tem sido alimentado, principalmente, por estudos de natureza etnográfica, que geralmente tomam alguma torcida como estudo de caso, e por estudos em perspectiva histórica, que geralmente se debruçam sobre determinado período de tempo de um contexto específico. Mais recentemente, tal debate passou a ser alimentado, também, por estudos de natureza comparativa, que permitem vislumbrar semelhanças e diferenças entre os diversos países da América Latina.

Lopes e Cordeiro (2010), por exemplo, compararam as características e modos de operação de grupos hegemônicos de torcedores brasileiros, argentinos e europeus (torcidas organizadas, barras, hooligans e ultras). Já Segura, Murzi e Yoshida (2017) e Segura e colaboradores (2019) estudaram as políticas de segurança para os espetáculos futebolísticos na Argentina, México e Inglaterra.

Por sua vez, Perina e Lopes (2018) comparam os casos brasileiro e chileno. Ao fazerem isso, identificaram a disciplina e a vigilância como traços recorrentes das legislações de ambos os países. Legislações que estabelecem um maior rigor penal. Ou seja, de acordo com eles, a criminalização legal se articula com a estigmatização social. Essa intervenção do poder público no fenômeno da violência no futebol está, na sua perspectiva, cada vez mais presente na agenda e nos discursos políticos e na correspondente cobrança da sociedade por soluções imediatas. Os autores também sugeriram que a criação de legislações específicas para megaeventos esportivos - Copa do Mundo 2014 no Brasil e Copa América 2015 no Chile - contribuiu para adaptar o dia-a-dia do futebol dos clubes aos novos dispositivos de segurança.

Apresentados alguns exemplos (sem nenhuma pretensão de exaustividade) de análises comparativas, é importante justificar nossa opção por se debruçar sobre os contextos argentino e colombiano. Em primeiro lugar, essa opção justifica-se porque esses países adotam modelos distintos de segurança. Enquanto a Argentina, há décadas, aposta na repressão, tendo abolido a torcida visitante dos estádios; a Colômbia, desde a implementação do programa Goles en Paz, em Bogotá, tem apostado em medidas de natureza mais inclusiva, que apostam no diálogo com as barras do seu país. Em segundo lugar, porque por coincidência, Argentina e Colômbia foram as escolhidas como sedes compartilhadas da Copa América de 2021. Em terceiro lugar, porque há pouca informação disponível sobre esses países em português.

Feito esse esclarecimento, cabe, agora, apresentar a estrutura do artigo. Uma estrutura organizada em três partes. Num primeiro momento, detalhamos os procedimentos metodológicos empregados na revisão da literatura sobre os dispositivos de segurança adotados no futebol argentino e colombiano. Em seguida, debruçamo-nos sobre essa literatura, apresentando os principais resultados relativos a cada um dos dois contextos. Em seguida, propomos uma discussão a partir desses resultados.

MÉTODO E PROCEDIMENTOS

A revisão de literatura foi, primeiramente, realizada no Scielo e no Banco de Teses e Dissertações da Capes. A pesquisa no Scielo justifica-se pois ele dá acesso a uma vasta coleção de periódicos científicos da América Latina e Caribe. Já a pesquisa no Banco de Teses e Dissertações da Capes justifica-se pois dá acesso aos resumos de todas as teses e dissertações defendidas no Brasil desde 1987. Embora estivéssemos cientes de que a maior parte da produção acerca do tema havia sido produzida fora do Brasil, queríamos saber se as nossas universidades abrigaram alguma pesquisa sobre o assunto. Nesses locais de busca, utilizamos e cruzamos os seguintes descritores: “barras bravas”, “fútbol”, “dispositivos de seguridade”, “Argentina” e “Colômbia”. Especificamente no banco de teses e dissertações da Capes, cruzamos a palavra “barra-brava” também com “futebol”. É importante salientar que o uso da palavra “barra-brava” justifica-se pois elas são os principais grupos organizados nos países sul-americanos de língua espanhola e são habitualmente percebidos pela mídia, pelo Poder Público e, em certa medida, também pela academia como um dos principais atores envolvidos nas práticas violentas e vandálicas que atravessam o universo do futebol.

Feito isto, encontramos cinco produções que poderiam compor o nosso corpus de análise. Todavia, ao ler seus textos na íntegra, ficou claro que essas produções não abordavam diretamente o tema sob investigação. Diante disso, decidimos ampliar nossa busca e realizá-la também no Google Acadêmico. Não havíamos utilizado essa ferramenta de pesquisa antes pois ela apresenta dois problemas; primeiro, é incapaz de filtrar periódicos acadêmicos de pouca credibilidade. Segundo, às vezes, os textos disponíveis não estão acessíveis na íntegra. Conforme indica o quadro abaixo, encontramos 10 produções sobre o tema no Google Acadêmico. Destas, há 1 capítulo de livro, 1 trabalho de conclusão de curso e 2 duas dissertações de mestrado. O fato de não termos encontrado nenhuma tese de doutorado indica que o campo de estudos sobre políticas de segurança no futebol ainda é incipiente. Essa impressão é reforçada pelo fato de não termos encontrado nenhum artigo sobre o campo de estudos nos sítios e bases de dados supramencionados. Já o fato de todos os artigos encontrados serem em espanhol e terem sido publicados em periódicos latino-americanos ou espanhóis sugere que a discussão ainda restringe-se à esfera local.

Quadro 1 Produções selecionadas 

CONTEXTO ARGENTINO

O primeiro ponto a ser observado em relação à literatura sobre o contexto argentino é que, de modo geral, embora com frequência hajam menções à Lei 23.184 (conhecida como Ley de la Rúa), de 1985, como a primeira legislação nacional para o tema, foram os dispositivos mais recentes que tiveram destaque nessa literatura, tais como: a proibição de visitantes e o cadastramento pelo AFA-Plus (Asociación Argentina de Fútbol), nos governos Kirchner (2003 a 2015); e o programa Tribuna Segura e o projeto de emenda Régimen Penal Especial para Espectáculos Futbolísticos (conhecido como lei anti-barras bravas) à Lei 23.184 no governo Macri (2016 a 2019).

No que diz respeito a cada uma das produções encontradas, o estudo deZucal (2016) afirma que a diferença dos membros das barras para outros torcedores, policiais, dirigentes e autoridades é que somente sobre os primeiros recai o estigma da violência, embora todos validem seu sistema de valores, conhecido como aguante. Segundo o autor, esse sistema enaltece a capacidade de aguentar a dor e as adversidades, mobilizando todo um conjunto de discursos, expressões e formas de falar. Ademais, ele seria constitutivo de uma identidade prática e competitiva, que seria permanentemente colocada em xeque nos e pelos embates corporais travados entre os integrantes das barras. Estes embates são, na sua visão, uma forma privilegiada de demonstrar aguante, que também poderia ser demonstrada por meio de outras formas (menos legítimas), como a ingestão de grandes quantidades de bebidas alcoólicas e o acompanhamento do clube do coração em lugares distantes. O autor afirma ainda que o Estado é ineficaz no controle da violência no futebol, uma vez que grande parte das mortes relacionadas ao futebol foi causada pela polícia e uma vez que os dispositivos de segurança adotados, como a proibição da torcida visitante, acabaram contribuindo para o aumento dos conflitos entre torcedores de um mesmo clube.

Por sua vez, Cabrera, Zucal e Murzi (2018) afirmam que, embora sempre tenham ocorrido conflitos envolvendo torcedores de futebol, esses conflitos se intensificaram nas décadas de1980, 1990 e 2000, devido ao fortalecimento da importância da lógica do aguante para os torcedores. Todavia, segundo eles, a partir de 2010, devido principalmente à rotinização de dispositivos de segurança como a proibição da torcida visitante, a referida lógica passou por transformações, que levaram ao aumento dos conflitos dentro de um mesmo grupo. Estes passaram a ser os principais responsáveis pelos homicídios no futebol. Essa informação nos permite perguntarmos se o aguante não estaria servindo mais a uma disputa por recursos visando à manutenção de uma estrutura de poder do que a uma disputa de rivalidade fora de campo. Ou seja, na atual conjuntura do futebol argentino, as práticas dos membros das barras parecem responder mais a uma disputa por capital econômico entre membros da mesma barra (que envolve ligações com outros sujeitos, como policiais e dirigentes) do que a uma disputa por capital simbólico com membros de barras rivais - o que nos permitiria falar de uma privatização da violência no futebol, ocorrendo, cada vez mais, em um tempo e espaço aleatório ao das partidas nos estádios.

Murzi e Trejo (2018) realizaram um levantamento quantitativo para caracterizar a violência relacionada ao futebol com base em dados de 2006 a 2017 da ONG Salvemos al Fútbol. Ao realizarem esse levantamento, identificaram a existência de um vínculo causal entre o aumento da restrição à torcida visitante nesse período e o aumento de conflitos entre torcedores de um mesmo clube. Também estabeleceram uma correlação entre o aumento dessa restrição e o aumento de outras formas de violência menos visíveis, como agressões de torcedores a jogadores, dentro ou fora dos estádios, e agressões de policiais a torcedores. Para os autores, a explicação para a ineficácia das medidas de segurança pode ser explicada pelo fato de que, desde o primeiro dispositivo (a já citada Ley de la Rúa), os cenários sociais foram mudando porém as respostas técnicas e políticas sempre repetiram a mesma fórmula de estigmatização e criminalização, que legitimam e estimulam a violência policial já existente.

Rosa (2017) reforça o diagnóstico feito por Zucal (2016) e indica a ausência de um discurso midiático que compreenda a racionalidade das ações das barras. Carência que, segundo ele, leva a uma ineficiência dos dispositivos de segurança, que se restringem a medidas de estigmatização e criminalização. Essa dinâmica de isolar as consequências e negligenciar as causas é caracterizada pelo autor como ‘respostas adaptativas’ ou ‘governo através do delito’. A partir dessa caracterização, Rosa (2017) busca compreender o dispositivo de segurança da proibição de visitantes, iniciada, em 2007, na segunda divisão e, em 2013, na primeira divisão. O autor considera que os principais motivos para as constantes mudanças de dispositivos são as disputas dentro do próprio poder público (faltando coordenação e até mesmo coerência) e aausência “avaliação” de sua eficácia, feita apenas quando há pressão dos meios de comunicação. Também chama a atenção para as ambivalências do formato de torneios: o que é válido para a Liga não é para a Copa Argentina e copas continentais. Ademais, sublinha a tentativa de implementação de um cartão nacional de cadastramento de torcedores conhecido como AFA-Plus que foi abandonado, em 2012, sob alegação de que era financeiramente muito custoso.

Murzi (2020), por sua vez, mostra que, desde os anos 1980, cada presidente argentino implantou pelo menos um dispositivo de segurança. - inclusive, presidentes de mandato encurtado. De acordo com ele, o tema da violência no futebol deixou de ser problema público e ganhou o status de uma mercadoria política, pois sua dinâmica passou a ser muito mais orientada por uma regulação executiva do que por uma legislativa, permitindo um maior uso político de cargos burocráticos para darem uma resposta mais rápida às pressões midiáticas. O governo Macri (2016 a 2019), segundo ele, tentou criminalizar as barras através de usos políticos com uma retórica agressiva em cargos burocráticos, tais como: Patricia Bullrich no Ministerio de Seguridad, Guillermo Madero na Dirección Nacional de Seguridad en Espectáculos Futbolísticos (DNSEF) e Juan Manuel Lugones na ApreViDe.

Por fim, Murzi (2020) se debruçou sobre a tentativa de criminalização das barras ao longo do mandato de Macri pela emenda Régimen Penal Especial para Espectáculos Futbolísticos à Ley 23.184. Não foi aprovado diante de obstáculos legislativos e, até mesmo, constitucionais, em função de não se poder tipificar um delito com base no pertencimento a um grupo e não na ação cometida. De acordo com o autor, tal projeto de emenda buscou ampliar o controle espacial disciplinar ao aumentar as punições para agressões ocorridas em centros de treinamentos e, também, ao aumentar o controle financeiro das barras, que possuem vínculos com dirigentes e com a economia informal. O autor também observa que o programa Tribuna Segura foi o dispositivo mais visível do governo Macri para espetacularizar sua nova imagem de maior rigor penal contra a violência. Tal programa foi adotado em 2016 e almejava identificar os torcedores por meio de sua identificação na venda dos ingressos. Passou-se, então, a proibir o ingresso de torcedores por motivo de delitos esportivos de menor risco e, até mesmo, delitos extra-esportivos. Segundo o autor, esses são fatores que se somam a outros dispositivos de segurança para dar ao torcedor uma percepção de que o Estado atua de forma ostensiva, de que ele é “linha dura” no combate a qualquer delito, seja como e onde ocorrer. Evidente que o efeito colateral esperado foi de mais abusos policiais contra os torcedores em geral. Dessa forma, para o autor, há uma lacuna significativa entre a elaboração de um dispositivo em uma agencia burocrática e sua efetiva implantação pelos policiais na cena dos fatos.

CONTEXTO COLOMBIANO

O que os artigos selecionados sobre o caso colombiano possuem em comum é o fato de identificarem os principais dispositivos do marco normativo nacional, iniciado com a Lei 1270, de 2009, com a criação da Comisión Nacional para la Seguridad, Comodidad y Convivencia em el Fútbol (CNSCCF). Esse dispositivo iniciou uma coordenação preliminar pelos anos seguintes entre o poder público regional e a sociedade civil organizada. Exemplos disso foram as comissões regionais, o Estatuto del Aficionado de Fútbol e uma pesquisa de opinião nacional realizada pelo Ministerio del Interior. Logo depois a Lei 1445 criou o Plan Decenal de Seguridad, Comodidad y Convivencia en el Fútbol (2014-2024) (PDCSCCF), consolidando esse acúmulo institucional anterior. Como veremos adiante, é preciso estar atento às diferentes aplicações das legislações e dos outros dispositivos de segurança nas diferentes regiões e cidades do país, como Bogotá, Cali e Medellín.

Em relação a cada uma das produções encontradas, o estudo de Gallego (2018) indica que as principais barras colombianas foram fundadas e se organizaram no final dos anos 1990. Ademais, indica que, embora a lógica do aguante aproxime o cenário argentino do colombiano quanto ao estilo de torcer, existem diferenças fundamentais entre eles. Afinal, de acordo com o autor, as barras argentinas dispõem de mais fontes de financiamento informal e possuem vínculos mais estreitos com os dirigentes esportivos e com os políticos, devido aos serviços prestados a eles em diversas ocasiões. Além disso, na sua perspectiva, a intensa influência do narcotráfico e do terrorismo em vários escalões da sociedade colombiana na década de 1990 impediu que suas barras buscassem recursos de poder similares. O autor também sublinha o caráter pioneiro do barrismo social como iniciativa de base das próprias barras para preservar a vida de seus membros e evitar o estigma de violento de seu grupo. Estigma este imposto pelos meios de comunicação e pelo poder público.

Puentes Sánchez (2015), por sua vez, tece uma crítica contundente aos governos de Uribe (2002 a 2010) e Santos (2010 a 2018), pois, na sua visão, a militarização da segurança impediu a convivência entre os sujeitos sociais. Após essas considerações teóricas quanto ao campo de políticas públicas, o autor argumenta que, ao retirar o estigma das barras de violentas, o PDCSCCF tende a gerar efeitos positivos nas suas medidas de curto e médio prazo, contribuindo, por exemplo, para melhorar a infraestrutura dos estádios e as condições de acesso e permanência de torcedores.

Já o estudo de Barrera Mariño (2020) focaliza o contexto da capital Bogotá. Segundo ele, tal contexto chama atenção tanto por ser a cidade que reúne mais barras (7 ao total) quanto por ter sido, há quase duas décadas, o berço do barrismo social, levado a cabo por meio do internacionalmente conhecido e duradouro programa Goles en Paz (de 1999 a 2012). Ao analisar o contexto bogotano atual, Barrera Mariño enxerga como positiva a administração municipal de 2016 a 2020, que criou um programa similar ao programa Goles en Paz: o programa Más Fútbol Más Vida, que se adequa às exigências do PDCSCCF. No entanto, de acordo com o autor, tal programa possui alguns problemas, tais como: baixa participação de torcedores, insuficiência de coordenação e indefinições de responsabilidades e de orçamentos. Tanto é que, segundo ele, a análise das atas das assembleias municipais revela que os temas comodidade (32%) e convivência (4%) são menos recorrentes do que a segurança (63%). E, no que diz respeito a este último tema, revela que cerca de 60% das medidas foram de sanção e apenas 40% de prevenção.

Restrepo Caicedo (2019), por sua vez, oferece uma análise da distinta implantação do PDCSCCF e de programas de barrismo social em Cali e Medellín. Estes, segundo ele, são casos opostos. No primeiro caso, o poder público teria concentrado esforços na intensificação da vigilância e reduzido as barras a um papel figurativo. Já no segundo caso, teria ocorrido uma maior aproximação do poder público com as barras, o que teria contribuído para o estabelecimento de medidas como a retirada de fossos e alambrados do estádio, deixando a segurança a cargo dos próprios membros das barras. Além disso, fora dos estádios, o poder público teria, a partir de 2017, intensificado a implementação, em bairros populares, dos projetos de barrismo social, a fim de se adequar às exigências do PDCSCCF. Tal implantação teria tido como principal efeito visível o retorno de clássicos entre Nacional e Independiente Medellín com torcedores visitantes

O estudo de Restrepo Caicedo (2019) também identificou que os membros das barras participaram muito mais da elaboração da CNSCCF do que da sua implantação. De acordo com o autor, esse dispositivo exige dos clubes altos custos de vigilância padronizada nos estádios, o que seria um problema devido às desigualdades econômicas regionais dos clubes. Outro fenômeno de destaque é que a maior parte das barras conseguiu aumentar a sua organização interna e sua articulação política a ponto de conseguir, por exemplo, a retirada de policiais dos estádios para reduzir conflitos. Contudo, conforme observa, na visão dos membros desses agrupamentos, a desconfiança com o poder público segue grande, pois não se sentem seguros para denunciar um abuso policial, uma vez que podem ter seus endereços rastreados pelo cadastramento e sofrer represálias. Em suma, para o autor, há uma lacuna significativa no PDCSCCF quanto à atribuição de responsabilidades, pois tal plano permite que o poder municipal se concentre muito mais no aspecto da segurança do que no de convivência.

Por fim, Cifuentes Jojoa (2019) também realiza um estudo sobre Medellín. Seguindo as reflexões supramencionadas sobre políticas públicas, afirma que a interdependência dos problemas decorrentes dessas políticas exige a mesma dinâmica em suas soluções. Ademais, ao indicar como características das barras sua virilidade e territorialidade, recupera os estudos que sugerem a intensa influência das barras argentinas sobre as colombianas no final dos anos 90. Segundo ele, foi naquela virada de década que o tema da violência no futebol tornou-se um problema de política pública e que a legislação nacional e a atuação regional passaram a não mais serem vistas como suficientes para controlar essa condição, precisando de uma legislação nacional específica. O que esse estudo traz de novidade para a reflexão sobre o rol dos dispositivos de segurança já citados é que, a partir de 2003, houve várias tentativas de aprovação da Ley de Seguridad en Espectáculos Deportivos, baseada em maior rigor penal e maior vigilância. Embora essa lei não tenha entrado em vigor, essa menção é importante, pois revela que, antes da institucionalização do barrismo social com a CNSCCF, em 2009, houve significativas disputas pela inclusão de torcedores na elaboração dos dispositivos aqui destacados. Também revela que, mesmo depois do consenso provisório diante do PDCSCCF, seguiram as disputas diante de medidas populares, como a proibição de visitantes para o clássico da cidade (decretada, mas depois revogada).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da literatura levantada mostra que os dispositivos de segurança adotados na Argentina apresentam uma dinâmica similar a outras legislações, analisadas por Perina e Lopes (2018), uma vez que apostam na disciplina, vigilância e maior rigor penal. Países que possuem em comum a tendência de estigmatização e criminalização dos torcedores através de seus dispositivos. De acordo com Segura, Murzi e Yoshida (2017), um dos principais motivos dessa estigmatização e criminalização é a maior influência dos meios de comunicação na elaboração dos referidos dispositivos do que a produção acadêmica (SEGURA; MURZI; YOSHIDA, 2017).

A análise da referida literatura também indica que a ação policial, no contexto argentino, é pouco compatível com as prescrições legislativas. Afinal, os agentes de segurança as desrespeitam sistematicamente adotando a lógica do aguante, que os levam a se imporem aos torcedores pela força (que não raro resultam em homicídios). Para agravar a situação, tal literatura mostra que os meios de comunicação não apuram com rigor os fatos e que o sistema judiciário não conclui investigações ou sequer as inicia (SEGURA, MURZI; YOSHIDA, 2017). Eis um circuito de violência estrutural mais grave, porém menos espetacularizado que a violência direta, e, por consequência, tratado com pouca competência pelo poder público. A partir desse circuito, podemos compreender a afirmação de que o tema da violência no futebol virou uma mercadoria política, que envolve complexas negociações entre barras, policiais, dirigentes e autoridades.

Diante do exposto, podemos afirmar que o caráter endêmico das disputas entre torcedores do próprio clube pode ser interpretado como um traço da privatização da violência na Argentina. Privatização que se reflete tanto no âmbito dos sujeitos envolvidos nessas disputas como nos seus locais de ocorrência. Locais e sujeitos cada vez mais espalhados pelos bairros das cidades, o que tornam as referidas disputas mais imprevisíveis. Perina e Lopes (2018) argumentam que esse fenômeno evidencia uma maior preocupação, por parte de diversos agentes, com a reprodução do espetáculo econômico do que com a segurança de fato pública, capaz de reduzir conflitos. Tanto é que, segundo os autores, a outra grande preocupação do governo Macri para o futebol foi a tentativa de mercantilização dos clubes associativos em empresas.

Por outro lado, a literatura levantada indica que, na Colômbia, constituiu-se uma dinâmica diferente da estabelecida na Argentina no que se referem aos dispositivos de segurança. Afinal, notam-se que, naquele país, os apelos para a implementação de soluções imediatistas (e ineficazes) surtiram menos efeitos e que foi possível estabelecer políticas e ações a longo prazo, que envolveram a acumulação de dispositivos a partir de 2009. Entre outros dispositivos adotados, destacam-se: a) uma legislação criando uma comissão nacional e comissões regionais; b) o início de articulação de debates regionais para a estabelecer os direitos dos torcedores e c) o aproveitamento desse acúmulo de saberes para a elaboração de um plano decenal. Algo, a nosso ver, positivo pela coerência do processo e, mais ainda, pela crescente participação dos torcedores - embora, nesse cenário, ainda persistam problemas como o uso político-eleitoral de programas do barrismo social (dando apenas uma percepção de inovação na sua forma, mas pouco em seu conteúdo) e a estigmatização dos torcedores. Ademais, os conflitos com a polícia ainda são um dos principais obstáculos para a implantação efetiva dos referidos dispositivos. Em 2009, a institucionalização do barrismo social ajudou a proteger os torcedores e a evitar que se aprovassem leis que amplificavam o rigor penal - vide a proibição de visitantes pontual e temporária, distinta do caso argentino. Porém, essa é uma luta constante dos torcedores pelo seu direito de torcer nos estádios e de participar das políticas públicas, pois, mesmo ao reduzir a tendência de maior rigor penal nos dispositivos mais recentes, não se afastou por completo seus riscos em medidas específicas.

Para concluir, observamos que os estudos aqui selecionados contribuem para fazermos uma avaliação crítica das políticas públicas voltadas ao espetáculo futebolístico, indicando que os movimentos de barrismo social se articularam às lutas de setores populares para que, além de uma mera representação no poder público, também se efetivasse uma participação ativadas barras em tais políticas, de tal modo que beneficiasse a maioria de seus membros. Participação absolutamente fundamental para a democratização do espetáculo futebolístico. Afinal, caso essa participação não ocorra, dispositivos como o PDCSCCF e comissões regionais podem se apropriar do barrismo social e lhe confinarem a um papel passivo de confirmação de medidas que tenham efeitos negativos sobre os torcedores mesmo falando em nome deles. Por fim, se, em Perina e Lopes (2018), já vimos o quanto a disciplina e a vigilância auxiliam a mercantilização do futebol, neste artigo, argumentamos que esse tema gera ambivalências discretas dentro do movimento do barrismo social. Por um lado, as barras, que passaram a ser mais organizadas em sua política interna, são as que também construíram novas fontes de receitas na economia formal (tanto empregando seus membros como até abrindo empresas) e veem nisso um benefício simbólico para ajudar a reduzir sua estigmatização. Por outro lado, elas precisam se atentar não somente às suas demandas como também a quem são os sujeitos que demandam, pois a elitização dos ingressos das partidas (o que é uma forma de violência estrutural) não foi problematizada pelos dispositivos citados e, no longo prazo, pode enfraquecer a luta dos torcedores ao convertê-los em meros consumidores.

REFERÊNCIAS

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AGRADECIMENTOS Não se aplica

FINANCIAMENTO Não se aplica

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM Não se aplica

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA Não se aplica

LICENÇA DE USO Os autores cedem à Motrivivência - ISSN 2175-8042 os direitos exclusivos de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution Non-Comercial ShareAlike (CC BY-NC SA) 4.0 International. Esta licença permite que terceiros remixem, adaptem e criem a partir do trabalho publicado, desde que para fins não comerciais, atribuindo o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico desde que adotem a mesma licença, compartilhar igual. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico, desde que para fins não comerciais e compartilhar com a mesma licença

PUBLISHER Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Física. LaboMídia - Laboratório e Observatório da Mídia Esportiva. Publicado no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade

EDITORES Mauricio Roberto da Silva, Giovani De Lorenzi Pires, Rogério Santos Pereira

EDITOR DE SEÇÃO Rafael Matiuda Spinelli

REVISÃO DO MANUSCRITO E METADADOS João Caetano Prates Rocha; Keli Barreto

Recebido: 04 de Setembro de 2020; Aceito: 11 de Dezembro de 2020

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lopesftp@gmail.com

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

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CONFLITO DE INTERESSES

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