Introdução
As condições de trabalho docente têm sido objeto de muitos estudos no campo educacional e de reivindicações da categoria. A partir da expansão da escolarização básica ocorrida no Brasil após as últimas décadas do século 20 e da simultânea intensificação do trabalho docente (Oliveira, 2013), os debates em torno das condições de trabalho dos professores ganharam relevo entre profissionais e estudiosos do campo educacional como um dos fatores fundamentais para a promoção da valorização docente. A importância da temática envolve a melhoria da qualidade da educação, o cuidado para com a saúde e a satisfação profissional do professor.
Neste trabalho, apresentamos alguns resultados de uma pesquisa qualitativa desenvolvida com o intuito de conhecer a valorização docente em narrativas de professores(as) dos anos iniciais do ensino fundamental. Partindo do pressuposto de que há uma lacuna na literatura da área referente à escuta da voz dos(as) professores(as) e existe uma “[...] insatisfação com as produções no campo da educação que se caracterizaram por falar sobre a escola em vez de falar com ela e a partir dela” (Lima; Geraldi, C.; Geraldi, J., 2015, p. 18, grifo do autor), optamos por desenvolver uma investigação com base na entrevista narrativa. Esse instrumento metodológico conta com uma única questão gerativa, que tem o foco no tema da pesquisa e é formulada de modo a obter como resposta uma narrativa. Esse tipo de entrevista privilegia as histórias contadas pelos(as) entrevistados(as), adiando as intervenções do(a) pesquisador(a) para depois da “narrativa principal”, quando se inicia outra etapa, denominada de “investigações narrativas” (Flick, 2004; Teixeira; Pádua, 2006; Silva; Pádua, 2010).
Na pesquisa, foram realizadas entrevistas narrativas com cinco professoras dos anos iniciais do ensino fundamental que lecionam em distintas escolas da zona urbana do município estudado, acompanhadas de aplicação de questionário para levantamento do perfil sociocultural dessas professoras e anotações no caderno de campo para registro das impressões ao longo da investigação.
A questão gerativa das entrevistas narrativas foi elaborada com o intuito de motivar as entrevistadas a expressar suas percepções e vivências referentes à temática da investigação. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas conforme as sugestões de Hartmann (2012), que recomenda maior proximidade com a linguagem oral. A análise seguiu a perspectiva compreensivo-interpretativa (Souza, 2006) ou interpretação hermenêutica, na qual se analisam as falas, procurando apreender o seu sentido no contexto em que se situam. Dessa forma, procuramos suprir uma lacuna nos estudos do tema que favoreciam as políticas, debruçando-nos nas narrativas das professoras acerca das condições de trabalho e da sua trajetória na profissão, privilegiando o seu olhar sobre a questão da valorização docente.
A relação entre as condições de trabalho e a valorização docente
O conceito de condições de trabalho pressupõe a oferta de um conjunto de recursos que viabilizam a realização da atividade profissional, o que inclui as instalações físicas, os materiais e os equipamentos disponíveis e outros tipos de apoio, conforme a natureza do trabalho. Envolve ainda as relações referentes ao processo de trabalho e às condições de emprego, como formas de contrato, remuneração e carreira. (Oliveira; Assunção, 2010).
As condições de trabalho são contempladas no art. 206 da Constituição Federal de 1988 - CF/88 (Brasil, 1988), que determina a valorização dos profissionais do ensino por meio de implantação do plano de carreira, piso salarial e ingresso na docência via concurso de provas e títulos. Posteriormente, essa regulamentação foi alterada mediante a Emenda Constitucional nº 53/2006 - EC nº 53/06 (Brasil, 2006), que admitiu a valorização dos profissionais da educação escolar das redes públicas, assegurando planos de carreira e ingresso, exclusivamente, por meio de concurso de provas e títulos (Cirilo, 2012).
Outras políticas constitucionais também foram elaboradas para consolidar as determinações definidas pela CF/88, entre elas: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei nº 9.394/96; o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), em 1996, o qual posteriormente foi ampliado e passou a contemplar toda a educação básica, compondo, assim, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb); as Diretrizes para os Planos de Carreira e Remuneração, em 1997; o Piso Salarial Nacional (PSPN); o Plano Nacional de Educação (2001-2011); e o atual Plano Nacional de Educação (2014-2024). Esse conjunto de regulamentações compõe as chamadas políticas de valorização docente, as quais ressaltaram a importância e a indissociabilidade das dimensões da profissão: formação inicial e continuada, remuneração e condições de trabalho e carreira para a promoção da valorização docente (Cirilo, 2012).
Tais determinações foram objeto de luta e de embates políticos ao longo dos últimos anos e mobilizaram diferentes segmentos da sociedade civil (Weber, 2015). Além de se voltarem para as questões docentes, as políticas educacionais se dedicaram também a ampliar o acesso à educação básica, por meio do financiamento e das estratégias de apoio estudantil. No entanto, as condições concretas de exercício da profissão e, mais especificamente, a adequabilidade dos espaços escolares e a oferta de materiais e equipamentos necessários para a realização da atividade docente ainda permanecem um desafio em muitas escolas de educação básica no País, como mostraram as narrativas das professoras pesquisadas. São fatores específicos da realidade interna dos ambientes escolares, que podem ser conhecidos e investigados por meio da voz dos professores.
Por meio das narrativas, verificamos que, embora a oferta de uma remuneração digna seja essencial para a valorização docente, ela, por si só, não assegura a satisfação profissional como apontam as professoras pesquisadas:
Eu acho que você vê que não é tão valorizada pelo governo por [ele] não te dar suporte pra você tá trabalhando. Não adianta você ser valorizado só com essas questões de salário! Eu acho que tem que ter toda uma estrutura, né? Material didático e a estrutura física do ambiente também. (Professora Edinalva2).
Eu espero que [...] o professor seja muito mais valorizado. Financeiramente, se você olhar em Minas Gerais, o salário do professor [da nossa cidade] é um dos melhores salários de Minas Gerais. Claro que a gente necessita mais? Necessitamos sim. Temos que ser valorizados sim! Mas não só financeiramente, mas também a nossa valorização humana3. Valorizar o professor, o ser humano em si. Dar a ele condições de desenvolver um bom trabalho, né? Não só financeiramente, mas também dentro de sala de aula, recursos materiais que a gente necessita também. (Professora Raimunda).
Nas palavras da professora Raimunda, há uma relação entre as condições de trabalho e a valorização humana dos professores. Corroborando essa assertiva, Arroyo (2011, p. 64) destaca:
O grave das condições materiais e de trabalho das escolas não é apenas que é difícil ensinar sem condições, sem material e sem salários, o grave é que nessas condições nos desumanizamos todos. Não apenas torna-se difícil ensinar e aprender os conteúdos, torna-se impossível ensinar-aprender a ser gente. As condições que impedem ou permitem essas aprendizagens são materiais, mas são também de estrutura, de organização e de clima humano ou de relações sociais, humanas, culturais.
Portanto, as condições de trabalho extrapolam a questão salarial e envolvem também a oferta de estrutura física adequada, recursos materiais e equipamentos. Embora se constituam como fatores de natureza objetiva, influenciam o modo de ser e estar na docência, mostrando que aspectos externos ao indivíduo referentes às condições concretas de exercício da profissão contribuem para compor a subjetividade docente, como destacou Mancebo (2010).
Conforme determinam a Constituição Federal de 1988 e a LDB de 1996, as condições de trabalho dos professores são de responsabilidade dos estados e municípios com o apoio técnico e financeiro da União, os quais têm autonomia para organizar seus sistemas de ensino de acordo com as determinações previstas legalmente. No que diz respeito às questões docentes, cumpre ressaltar a responsabilidade de cada uma dessas instâncias (União, Distrito Federal, estados e municípios) no tocante às condições de trabalho dos professores. Exemplo disso é a implantação dos planos de carreira, previstos na Constituição Federal de 1988, na LDB de 1996, no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação e no Plano Nacional de Educação (2014-2024), os quais têm sido, progressivamente, adotados pelos estados e municípios. Ainda quanto à valorização docente e às condições de trabalho, no âmbito dos sistemas de ensino, ressalta-se a importância dos planos de carreira por pressupor a inserção na profissão via concurso público de provas e títulos, definir a remuneração com base no piso salarial profissional e estimular o crescimento profissional por meio da formação continuada e da avaliação do desempenho docente.
Os planos de carreira tendem a favorecer a atratividade da profissão ao promover a articulação entre formação inicial e continuada, remuneração, condições de trabalho (especialmente, no que se refere à remuneração e à jornada, incluindo um terço da carga de trabalho para planejamento, reuniões pedagógicas e elaboração de avaliações) e possibilidades de progressão profissional. Segundo Gatti (2012), o plano de carreira contribui para a valorização social dos professores, porque lhes confere status de categoria profissional, cuja formação, saberes e competência específica são fundamentais para o exercício da profissão e devem refletir no salário do professor; nesse sentido, constitui-se importante mecanismo para o reconhecimento social da profissão docente.
Dessa forma, o plano de carreira atua como uma ferramenta de estímulo ao trabalho docente, como mostraram Pimentel, Palazzo e Oliveira (2009), que defendem a organização pelos gestores de planos de carreira que determinem condições, critérios e incentivos que, nesse caso, os professores podem alcançar. As autoras destacam, ainda, que a remuneração adequada favorece maiores possibilidades de formação continuada, uma vez que, nesse contexto, os docentes não seriam obrigados a estender sua jornada de trabalho, comprometendo, assim, o tempo que seria dedicado à formação. Essa assertiva se confirma no relato da professora Cristina:
Depois do plano de carreira, algumas realizações pessoais ficaram mais fáceis de se ter. Por exemplo, você ter condição de comprar um livro, coisa que se você não tem um salário adequado, você vai dar prioridade pra outras coisas. A questão de você fazer curso só que são disponibilizados pelo município ou por outras instituições. É você fazer outros cursos particulares que são do seu interesse. Isso te possibilita quando se tem uma remuneração melhor, né? (Professora Cristina).
A relação entre remuneração e desempenho profissional impacta a autoestima e o valor social do professor (Pimentel; Palazzo; Oliveira, 2009). No município estudado, o plano de carreira promoveu uma elevação mais significativa da remuneração da categoria, a qual se refere ao cumprimento de 27 horas semanais para o docente com formação superior. Já o piso nacional se refere à jornada de 40 horas semanais para o professor com formação de nível médio. A análise da diferença entre o salário base municipal e o nacional, na última década, demonstra que, até o ano de 2010, o valor no município era inferior ao nacional. No ano de 2011, essa situação se inverte e, em 2012, o piso municipal volta a ser menor que o nacional. A partir de 2013, o piso no município supera o nacional. Em 2014, é elevado significativamente, mas se encontra estagnado desde 2016. A Tabela 1 apresenta a diferença entre o piso salarial municipal e o nacional.
Ano de vigência | Piso municipal | Piso nacional | Diferença entre o piso municipal e o piso nacional |
---|---|---|---|
2009 | R$ 846,55 | RS 950,00 | -10,89% |
2010 | R$ 897,34 | R$ 1.024,67 | -12,43% |
2011 | R$ 1.327,69 | R$ 1.187,14 | +11,84% |
2012 | R$ 1.407,35 | R$ 1.451,00 | -3,01% |
2013 | R$ 1.717,00 | R$ 1.467,00 | +17,04% |
2014(1) | R$ 2.750,00 | R$ 1.697,39 | +62,01% |
2015 | R$ 2.942,50 | R$ 1.917,78 | +53,43% |
2016 | R$ 3.089,62 | R$ 2.135,64 | +44,67% |
2017 | R$ 3.089,62 | R$ 2.298,80 | +34,40% |
2018 | R$ 3.089,62 | R$ 2.455,00 | +25,85% |
2019 | R$ 3.089,62 | R$ 2.557,74 | +20,82% |
Fonte: Elaboração própria.
(1)Observa-se um significativo aumento salarial ocorrido em 2014, ano de implantação do plano de carreira no município.
Ainda que as condições de trabalho envolvam um amplo leque de variáveis, a dimensão econômica é a que tem sido mais destacada pelos discursos políticos e pela mídia e está diretamente relacionada à imagem social da docência (Arroyo, 2011). Conforme citado anteriormente, o salário foi apontado pelas docentes pesquisadas como fator de satisfação profissional. No entanto, essa percepção em relação à remuneração deve ser relativizada, tendo em vista que as narrativas demonstram uma comparação com a política salarial de outros sistemas de ensino:
Com relação ao salário, agora eu acho que a gente tá sendo valorizada, sim. Pelo menos, aqui no município [...], eu vejo que sim. Porque eu conheço professoras... Na minha família mesmo, eu tenho várias professoras na família de outros municípios, eu ganho mais assim. Então, não tenho nada a reclamar, não. (Professora Edinalva).
Analisado de forma isolada, não é um salário tão elevado, conforme visto na Tabela 1, especialmente, quando se considera o fato de todas as professoras possuírem formação superior e especialização lato sensu. Mas, considerando outras realidades dos municípios da região, é um valor que ajuda a compreender a satisfação das docentes. O mesmo ocorre em relação ao piso salarial municipal quando comparado com o piso salarial dos professores da rede estadual mineira. Atualmente, o salário base dos docentes no estado está estipulado em R$ 1.982,54 acrescido de um abono de R$ 153,10 para uma jornada de 24 horas semanais. Em julho de 2018, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 49/18 que determina o pagamento do piso nacional da educação para os servidores estaduais dessa área. No entanto, diante da crise financeira que o governo mineiro atravessa, o estado ainda não cumpre tal determinação, situação que se agrava com os frequentes atrasos e parcelamentos na remuneração dos docentes.
Embora o salário seja um ponto nevrálgico nas discussões sobre valorização docente, a satisfação profissional perpassa todo um conjunto de recursos e relações de trabalho que influenciam a percepção das professoras em relação à docência.
Apesar de o plano de carreira ter o mérito de elevar a remuneração no município, as docentes argumentam que, a partir de então, intensificou-se o trabalho docente, aspecto destacado nas narrativas a seguir:
O plano de carreira pra mim não teve uma coisa muito positiva. Foi positiva porque houve a questão do salário, mas essa cobrança, nota, medir o professor por nota. Como é que você trabalha medindo o professor por nota? Você não sabe o rendimento. O que o aluno passa, então, é muito complicado. [...] Aumentou demais o trabalho do professor. Professor estressado, tem que ter papel, tem que pôr não sei o quê, portfólio, é medido o tempo todo, vivendo uma pressão. (Professora Francisca).
Eu acho assim, em questões de salário, o plano de carreira valorizou os professores porque eu não acho que a gente tá ganhando mal, não. Agora, eu vejo muita cobrança com relação a papel, sabe? A gente preenche muito papel. Não vejo necessidade de tanto registro. Eu acho que, sabe? Que a gente tem que ficar todo o tempo registrando. Registra o que você tá fazendo no momento de AC [atividade complementar]. É... muito papel, muito detalhar tudo isso, eu não vejo necessidade. (Professora Edinalva).
Financeiramente, a gente foi valorizada quando veio o plano de carreira. Mas, em cima dele, veio um monte de outras coisas que eu acho que acabou sobrecarregando a gente demais da conta... (Professora Ângela).
No entendimento de Pimentel, Palazzo e Oliveira (2009, p. 376), os planos de carreira devem contemplar as avaliações de desempenho relacionadas ao rendimento dos alunos, “visto que tanto o professor quanto a escola estão a serviço do estudante”. A temática da avaliação do trabalho docente é um assunto polêmico entre estudiosos e profissionais da área. Segundo Gatti (2013), as avaliações de desempenho dos professores são relevantes apenas se forem idealizadas para a valorização do trabalho docente e para o seu desenvolvimento profissional, devendo contemplar aspectos internos e externos da realidade escolar. Embora tenham, a princípio, o objetivo de estimular boas práticas pedagógicas, as avaliações de professores podem promover o controle do trabalho docente e contribuir para a responsabilização dos professores em relação aos resultados da escola e dos alunos. Além disso, não se pode perder de vista que as avaliações de desempenho vinculadas ao rendimento dos alunos tendem a induzir os professores a uma visão estreita da tarefa educativa. É possível que os docentes direcionem seus esforços, sobremaneira, aos conteúdos trabalhados nas avaliações e subestimem demais conhecimentos, habilidades e valores. De acordo com Sousa (2010), de modo geral, as avaliações docentes atribuem a qualidade e a produtividade do trabalho do professor às suas competências individuais, ignorando, assim, a influência das condições em que esse desempenho ocorre. Nesse sentido, as avaliações de desempenho impõem maiores exigências profissionais aos professores por conta da pressão por resultados, já que, muitas vezes, não conseguem responder aos novos imperativos da competição e do cumprimento de metas, como afirma Ball (2005). Esse autor ressalta que os impactos dos padrões de desempenho docente não se limitam à prática pedagógica em sala de aula, tendo em vista que os resultados dos alunos e da escola são utilizados para a classificação das instituições e para a produção de rankings. Ao lado dessa lógica de classificação e comparação, há um nível elevado de incerteza, insegurança, responsabilização e culpa por parte dos professores por se sentirem constantemente avaliados por diferentes formas e critérios.
De acordo com análise de Brooke (2013), é possível que a metodologia dos incentivos seja calcada em uma política de equidade, identificando as escolas que precisam de apoio e, ao mesmo tempo, promovendo uma remuneração variável alicerçada em critérios justos. Entretanto, não é essa a percepção das professoras pesquisadas acerca das avaliações de desempenho. No município estudado, essas foram adotadas em 2014, em decorrência do plano de carreira que contempla a remuneração variável. São ainda relativamente recentes e também, por isso, encontram resistências entre alguns professores:
Eu acredito que tem coisa ali no plano de carreira que é boa. Tem que ter mesmo o plano de carreira. Tem que ter! Mas eu acho que tem certas coisas ali que acabam prejudicando o professor. Igual nessa questão mesmo. Eu acredito... A gente tem que ser avaliada. Eu não tenho medo de ser avaliada. Só que tem certas, certas coisas... Igual a mesma coisa que eu falei da turma, por exemplo. A minha turma... Eu sou avaliada pela minha turma. (Professora Ângela).
Aí, você recebe o 14º4 no próximo ano se você atinge uma nota boa. Então, você corre, faz um sacrifício danado pra fazer pra também seus alunos terem uma média boa na sua turma, porque também se seus alunos, se sua turma não tem uma média boa, você também perde uma nota e você... Esse 14º a gente recebe em cima do que seus alunos estão produzindo, né? (Professora Francisca).
Alguns formatos de avaliação de desempenho ignoram outros fatores intervenientes no desempenho escolar, como o apoio familiar e o contexto social em que o aluno se insere, a estrutura física das escolas, o suporte pedagógico das instituições, entre outros, o que é corroborado na narrativa da professora Francisca:
Antes, tinha o Tempo Integral5. O Tempo Integral, às vezes, é bom pra algumas mães que trabalham e não tem mesmo com quem deixar o filho [...] Porque aí, ajudava, esses, por exemplo, que não vem com o dever... Mas o Tempo Integral não começou esse ano e parece que não vai vir. Não vai começar... Eu sei que quando eles participavam do Tempo Integral, eles tinham um acompanhamento pra fazer o dever de casa, que a gente sabe que a mãe não ia fazer, porque tem algumas mães aqui, no caso, também, que não sabem nem ler. Então, isso também ajuda. Então, sabia [que o aluno] vinha com o dever de casa pronto e tinha algumas oficinas. Oficinas de arte, artesanato, português, matemática. Servia como um reforço. (Professora Francisca).
“Embora o sucesso da educação dependa do perfil do professor [dentre outros fatores], a administração escolar não fornece os meios pedagógicos necessários à realização das tarefas, cada vez mais complexas” (Gasparini; Barreto; Assunção, 2005, p. 191). A ausência de suporte pedagógico por parte do sistema de ensino acaba sobrecarregando os docentes. A questão da escassez de recursos materiais para a atividade escolar causa frustração, como se nota nas narrativas a seguir:
Aí, o quadro é branco. Não é giz mais. Então, o pincel, tem vez que, igual, por exemplo, essa semana eu tive que pedir a carga do pincel e aí, não tinha. Aí, tive que pegar uma outra cor porque não tem mais da cor que tinha. Material que vem pra gente, pra sala de aula, lápis e borracha vem contado e aí, a gente tem que ir se desdobrando pra ele durar o tempo que você for precisando, porque vem pouco material. Cola também é pouco. Então, é bem complicado pra gente poder desenvolver essas atividades. Aí, [o material] acaba e o que acontece? Professor tira do bolso, pra poder conseguir dar uma atividade ou fazer alguma coisa que dê pra você fazer, igual, por exemplo, a gente tá trabalhando em português, os gêneros que é fábula, piada e carta. O que a gente conseguiu ali pra fazer é tudo que a gente vai imprimindo em casa, compra folha, aquele cartaz lá, por exemplo da carta, fui eu que desembolsei o dinheiro [...] e não é barato. Então, acaba que pra gente conseguir fazer um trabalho bom, a gente acaba tirando do nosso bolso. (Professora Francisca).
Com relação à estrutura fui vendo que a gente passa por questões materiais. A gente às vezes, precisa de material e não tem. É a questão de material didático, que às vezes, falta. (Professora Edinalva).
Assim, tem material, mas não muito material. Então, você trabalha com o que você tem. Agora, se você quer algo diferente, você tem que comprar. Você tem que comprar, porque você não vai achar aqui. Se você quer, por exemplo, um E.V.A. colorido, um E.V.A. é diferente, com desenhos, você não vai achar aqui na escola. Então, você tem que comprar, principalmente, na educação infantil, que você usa muitas coisas diferentes... Essas coisas você não encontra nas escolas. Então, o professor, em si, ele acaba gastando com materiais, com coisas diferentes que ele quer trabalhar com o aluno. (Professora Raimunda).
Às vezes, não tem [material] porque roubaram e você sabe como é a realidade. Algumas coisas, nós conseguimos com relação ao Xerox: a gente tem uma cota. Não é uma cota alta. Há algum tempo atrás, nem isso a gente tinha, né? Mas, por exemplo, tem dia que meu aluno chega, não tem caderno. E nessa gestão, os cadernos ficam guardados numa determinada [sala], que só a direção tem acesso. Se não tiver ninguém da direção, eu vou continuar dando aula com meu aluno escrevendo no outro caderno. Entendeu? Então, assim, tá. É uma maneira dele ter controle dos insumos da escola? Sim. Mas, tem coisa que você tem que perceber que vai dificultar o trabalho de uma outra pessoa por causa de implantação de um sistema errado. Você entendeu? Eu tenho como ter controle do material que sai do almoxarifado, sem ter que fazer isso. Não tô nem criticando [o diretor] porque eu falo pra ele mesmo: você é professor, você sabe como as coisas funcionam. Implanta um outro sistema que seja informatizado pra ir dando baixa, que você tenha acesso a isso, né? Seja recebendo e-mail diário de, dos insumos que tão saindo, porque toda empresa faz isso. Mas confiscar não dá muito certo não... (Professora Cristina).
As narrativas apontam que não é apenas a carência de materiais que causa insatisfação como também o controle ineficiente da saída desses. Outro agravante se deve aos furtos que ocorrem em algumas instituições. Nas palavras da professora Cristina: “[...] é comum você chegar e ter o seu armário arrombado e isso faz parte da minha condição de trabalho, porque ali tá tudo que eu preciso pra desenvolver as minhas atividades”.
A noção das condições de trabalho, segundo as professoras pesquisadas, envolve ainda a limpeza, estrutura e organização do espaço escolar:
Então, assim, você chegar pra trabalhar e ter um ambiente adequado, limpo, organizado, te traz um conforto. Parece que aquilo te recebe. E eu senti isso muito nítido trabalhando no município e numa escola particular. É muito claro, é real mesmo: a organização, a limpeza. Então, esse fator, eu considero que acaba até impossibilitando determinadas coisas, em alguns momentos. (Professora Cristina).
Tem atividades que você programa... Às vezes, o espaço aqui, são muitas turmas, então você não tem um espaço adequado, ou então, que nem agora, na época da quadrilha, várias turmas querendo ensaiar, ao mesmo tempo, aí, sabe. Você faz uma apresentação com os alunos, não tem espaço pra eles apresentarem adequadamente, né? Um palco. E a estrutura, você pode ver a escada. Tá com grades enferrujadas, faltando piso, então, é muita coisa! (Professora Edinalva).
Todos esses aspectos das condições de trabalho docente interferem no modo como se vivencia a profissão, inclusive, podendo trazer consequências para a saúde do professor e também para o seu prazer de ensinar. Embora os estudos sobre mal-estar docente e adoecimento tenham se intensificado nos últimos anos, é necessário ouvir o que os professores relatam sobre esses aspectos e, assim, compreender como o adoecimento tem se relacionado, cada vez mais, às condições de trabalho.
O adoecimento docente
Diante de condições de trabalho, às vezes, tão adversas, o adoecimento docente tem sido cada vez mais recorrente. Nessa perspectiva, para Gasparini, Barreto e Assunção (2005, p. 192), “[...] as circunstâncias nas quais os professores mobilizam as suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas para atingir os objetivos da produção escolar geram sobreesforço [sic] ou hipersolicitação de suas funções psicofisiológicas”. Durante o processo de realização das entrevistas, o adoecimento docente foi citado, reiteradamente, pela professora Cristina, que apresenta um olhar mais crítico para a questão da saúde do professor:
E as condições de trabalho quando elas são salubres, porque infelizmente, infelizmente, é muito comum no setor público, nós termos péssimas condições de trabalho, né? De ambiente mesmo, de risco pra aluno, de risco pra gente, né? E isso, eu cito pra você um exemplo de todos os dias. Todos os dias, quando eu chego, esse ano e os anos anteriores também, nós limpamos as carteiras antes de iniciarmos, porque como eu leciono próximo à rua, a poeira ali é uma coisa louca, além do ruído, né? Em função dos veículos. Se você não limpar a carteira quando você chega, porque à noite... De manhã, elas limpam, elas passam a vassoura, mas não dá tempo, porque tem aula à noite. Então, nós chegamos e, realmente, o ambiente tá assim, em condição péssima. Às vezes, o próprio banheiro... (Professora Cristina).
O ruído e a poeira contribuem para o desenvolvimento dos problemas relacionados à voz, um dos principais instrumentos de trabalho dos professores. Além desses, há ainda os problemas osteomusculares e os transtornos mentais (Araújo; Carvalho, 2009), os quais suscitam a influência das condições de trabalho vivenciadas pelos docentes. De acordo com Assunção (2010):
A exposição às condições de trabalho desfavoráveis está associada ao adoecimento dos docentes. Fatores ambientais e fatores organizacionais são considerados riscos à saúde. No primeiro grupo, figuram as condições do espaço físico, as condições de iluminação, as condições sonoras e climáticas, e a segurança geral do ambiente. No segundo grupo, estão incluídos os seguintes fatores: (1) volume de trabalho [,] que pode explicar modos operatórios ou escolhas visando a regular número de tarefas e tempo necessário para realizá-las; (2) pressão temporal [,] que pode explicar aceleração do sujeito, a fim de cumprir as metas nos tempos estabelecidos com repercussões sobre o seu funcionamento nas esferas físicas e mentais; (3) exposição às situações conflituosas, agudas, por vezes perigosas e, frequentemente, convocando intervenções de proteção social que ultrapassariam intervenções individualizadas para convocar ações a longo prazo. A doença pode ser vista como a resposta, provisória ou não, do organismo à pressão do ambiente. Habitualmente, os indivíduos não se submetem a essas pressões de maneira passiva.
São muitos e variados os fatores que podem contribuir para o adoecimento dos professores, entre eles, desenvolvimento de tarefas repetitivas, insatisfação profissional, conflitos com os alunos, ambiente conturbado, pouca autonomia, ritmo acelerado de trabalho, insuficiência de recursos materiais, equipamentos e espaços adequados, além de elevadas exigências psicossociais a que os docentes estão expostos. (Araújo; Carvalho, 2009).
Essas exigências são ainda mais significativas em contextos de alta vulnerabilidade social, como as situações de violência urbana e desigualdade social vivenciadas pelas docentes e que interferem no cotidiano das escolas. É o que ressalta a narrativa a seguir:
Há pouco tempo agora, a polícia teve aqui dentro da escola, armada. [abaixa o tom de voz]. Eu tava dentro de sala. Minha porta tava aberta, eu achei que era o Proerd6. Quando eu vi o policial armado, eu fechei minha porta. Nisso, quando eu fechei minha porta, eu acho que ele pensou que tinha pessoal da comunidade aqui dentro da minha sala. Aí, ele abriu a porta assim, armado. Os meninos assustaram. Eles jogaram spray de pimenta dentro do banheiro. Imagina! Crianças. Spray de pimenta? Eles pegaram dois dentro da [quadra]. Eles tão presos até hoje. Não são alunos da escola, não. Porque eles ficam aqui na porta. Ficam porque não tem quadra [no bairro] pra eles. Aí, vão tudo pra quadra [da escola]. O único lugar que eles têm pra esporte é aqui a quadra da escola. Aí, eles entram por trás. Só que a polícia tava chegando. Não sei se estavam armados ou o que é. Sei que eles correram. E pra onde que eles correm? Pra escola. Aí, correram e esconderam aí. Tava cheio de polícia e foi aquela confusão. Só que a gente já tem uma estrutura, porque sempre foi passado pra gente que quando acontecer alguma coisa na comunidade, fecha a sala sua, fica dentro de sala, acalma os meninos, finge que nada tá acontecendo. [barulho de caminhão na rua] Então, a gente já é preparada [pra] isso. A gente sempre conversou sobre isso. Então, nós ficamos dentro de sala de aula. Tranquilo. Só que na hora que a gente abriu... Na hora que eu abri a minha sala, eu assustei porque... A minha sala é aqui em cima [aponta a sala]. E [o policial] jogou o spray de pimenta lá, mas o vento trouxe o cheiro. O cheiro veio até a mim. Eu não parava de tossir. Eu não parava. Imagina as crianças que estavam aqui... (Professora Raimunda).
Embora a professora argumente que a equipe tenha sido orientada sobre como reagir nessas situações, é inegável que a vivência do medo, da insegurança e da ansiedade no exercício da docência compromete o vínculo com a instituição e até mesmo com a própria profissão:
Pr’ocê ter uma ideia, neste ano, acho que todos.... ou se não foi todos, quase todos, pediram transferência. Cê vê a dificuldade que está sendo, entendeu? [...] Como que você vai debater com um jovem que cá fora ele... [gesticula uma arma de fogo], né? Como que cê vai debater com um jovem que ele não tá nem aí? Se amanhã, ele te matar, pronto, né? Então, tem esses problemas muito graves aqui na escola, né? Na comunidade em si, não na escola. E os professores ficam frustrados, porque vai dar uma aula, não consegue dar uma aula, né? (Professora Cristina).
Como se percebe, o contexto social e os problemas que afetam a vida dos alunos e de suas famílias adentram a sala de aula e interferem nas interações e nos aprendizados vivenciados no espaço escolar. Segundo Teixeira (2007, p. 437):
Há que considerar, ainda, tendo em vista sua relevância, o fato de que a sala de aula e a aula trazem à cena, assim como toda a escola, o que está do lado de fora; o que, mesmo não lhe pertencendo, irá construí-la. Estando no mundo, de que são parte, ambas, escola e aula, dele recebem o que nele se passa: do mais saudável ao menos desejável. A questão social nelas está colocada e recolocada a cada dia, direta e indiretamente, nas histórias individuais e coletivas de docentes e discentes. Neste particular, destacam-se os problemas oriundos das desigualdades sociais que se refletem nas desigualdades escolares e no desempenho escolar das crianças, adolescentes, jovens e adultos.
Portanto, o cotidiano escolar sofre as influências do entorno e expõe as condições de vida a que alunos e professores estão submetidos, interferindo diretamente na condição docente e no envolvimento dos professores com a profissão. Além das exigências psicossociais impostas pela realidade externa das escolas, algumas questões referentes à organização do sistema de ensino também constrangem os docentes, como as cobranças referentes ao cumprimento de prazos, as quais também contribuem para o adoecimento:
Tem profissional que fica extremamente estressado com a cobrança de datas, com medo de não dar conta, né? Eu vou abrir só um parêntese para citar uma situação: de manhã, somos três 5ºs [3 turmas de 5º ano]. No início, a cobrança era tanta, tanta, tanta de uma [professora] contratada que ela teve uma crise de ansiedade. E eu atribuo essa crise de ansiedade às cobranças. Uma crise de ansiedade! Ela teve que ser hospitalizada e tá fazendo um acompanhamento. Por quê? Na segunda, você tem isso pra entregar, e na terça, na quarta, na quinta, na sexta. Se você não conseguir canalizar que vai ser um dia de cada vez, você pira mesmo, desculpe o termo. (Professora Cristina).
Além das cobranças dessa natureza, a professora destaca, em outro momento da entrevista, as pressões por resultados nas avaliações sistêmicas. Segundo ela, apesar disso, não se percebe um investimento na melhoria da infraestrutura e do espaço escolar:
Eu comentei com você, por exemplo, a questão do ruído. Essas salas, a ventilação é péssima. Além da ventilação, a gente tem a questão do ruído e da poeira. Então, automaticamente, eu vou fechar as janelas. Eu vou ficar numa sala com 25 alunos, sem ventilação. Automaticamente, isso vai me trazendo consequências, porque a tendência é de vírus, né? Aí, tem o ventilador, mas o ventilador não funciona. [...] O município tem um setor de obras que tem equipes de elétrica. Mas por que não disponibiliza então, um número X pra passar de determinado tempo e ir fazendo vistoria, fazendo manutenção? Essas questões que na área industrial é nítido, porque se trabalha pra preservar a saúde do trabalhador, embora nós saibamos que é pra ele produzir. Mas o município também tá pensando assim. Só que o município tem pensado assim quando cobra metas da gente. Ele pensa em cobrar, em querer que você atinja aquela meta, que o Ideb seja elevado, que ele seja o melhor. Mas ele não te oferece as condições mínimas de trabalho, quer seja de material, quer seja de equipamento, quer seja de limpeza e organização e isso é um fator que me incomoda. (Professora Cristina).
Não se pode perder de vista que o adoecimento relacionado ao trabalho é mais evidente entre as professoras, as quais, de modo geral, exercem maiores atribuições domésticas. “[...] As professoras têm suas jornadas de trabalho ampliadas, configurando-se a dupla carga de trabalho das mulheres - no lar e fora do lar, podendo levá-las à exaustão, ao adoecimento, entre outros prejuízos e comprometimentos a sua qualidade de vida” (Teixeira, 2010), fato que se confirma na asserção da professora Francisca:
O professor tá num estresse danado... Como é que ele consegue? É só papel, papel, papel. Imagina eu então que estou nos dois horários? Eu não tenho vida depois do trabalho! Trabalho de manhã, trabalho à tarde, chego à noite, tenho coisa de escola pra fazer, porque professor é assim. Trabalha como se fosse três horários. Não trabalho só aqui na escola, levo um monte de coisa de escola pra casa pra fazer. Tem que pesquisar, tem que fazer um monte de coisa, tem filho, tem marido, tem coisas da casa pra fazer. Então, eu praticamente, final de semana, eu tô fazendo planejamento, pesquisando coisas pros alunos... (Professora Francisca).
De acordo com Teixeira (2010), a utilização da internet pode reduzir os períodos de trabalho; por outro lado, pode ampliar e intensificar seus ritmos, caracterizando-se, assim, uma dilatação da carga horária dos docentes na atualidade. Segundo a autora, é importante considerar que o período de trabalho dos professores compreende as atividades exercidas fora do espaço da sala de aula e da escola, como o planejamento e as avaliações. Ainda de acordo com Teixeira (2010), somam-se a esses aspectos os períodos destinados às reuniões com os pais e a equipe pedagógica, realizadas individual ou coletivamente, e o período dedicado à formação continuada em horários extraescolares, como finais de semana, recessos e férias, na modalidade presencial ou a distância.
Diante de sua intensa jornada de trabalho, a professora Francisca, embora seja a mais jovem e recente na carreira entre as participantes, questiona-se sobre o seu futuro na profissão:
Olha, em relação ao futuro eu fico preocupada, porque eu não sei se eu vou dar conta, porque assim tô recente na carreira e com essas mudanças agora da aposentadoria, dessas coisas que eles tão querendo mudar... Eu falo assim: Ai, meu Deus, será que eu consigo chegar até lá? Acho que eu vou ficar bem velhinha quase que arrastando pra eu ir pra escola e eu vou trabalhar, ainda mais com dois horários... (Professora Francisca).
Esse questionamento já se encontra resolvido pela professora Cristina, que, diante das condições de trabalho que ela considera insalubres e, ao mesmo tempo, da inexistência de uma política de cuidado da saúde docente, pretende deixar as salas de aula do ensino fundamental:
Em função das condições que eu percebo que você tem como professor do ensino fundamental, eu não desejo isso pra minha vida! Eu não desejo isso pra grande parte das pessoas que eu tenho contato, porque é muito triste você perceber que um profissional chega aos vinte e três anos de magistério e ele não consegue lecionar mais, porque ele, ao longo dos anos, não teve uma atenção com relação a cuidado com a voz. O município não ofereceu, por exemplo, condições tão básicas de pensar um pouco na questão da acústica do ambiente, né? De se ter um curso. Olha pra você ver: você sentar com um grupo de professores em uma AC (atividade complementar) durante duas horas e oferecer pra ele pontos ou situações que ele pode tá fazendo no dia a dia dele pra melhorar as condições de trabalho, quer seja de postura [...] Depois, você pode observar ali, é muito grande também casos de professor que precisa, às vezes, fazer cirurgia de varizes. Por quê? Porque ele fica muito tempo em pé, na mesma postura, porque muitas das vezes, ele não tem possibilidade de se sentar, por alguns minutos, de fazer essa mudança de postura, ora sentado, ora em pé. Então, como eu gosto muito de mim, eu não quero passar os meus dias tendo que pontuar pra gestão escolar que há salas no prédio que poderiam ser ocupadas pelos alunos do 5º, que é uma faixa etária que fala muito, é uma faixa etária que vai exigir do professor ter que falar mais alto. Então, ele se esforça muito mais... (Professora Cristina).
A precariedade das condições de trabalho pode promover, gradativamente, um processo de ruptura com a docência tanto em decorrência do adoecimento quanto do desencanto pela profissão. Nessa direção, é fundamental a adoção de políticas de cuidado para com a saúde do professor, as quais também podem ser compreendidas como uma das estratégias de valorização docente.
Entretanto, a saúde docente ainda permanece à margem do cenário educacional, tanto nas políticas educacionais quanto nas reivindicações dos professores. Segundo Araújo e Carvalho (2009), os professores estão de tal modo imbricados no cuidado do outro que subestimam os cuidados para com a própria saúde e o bem-estar. Apenas recorrem à ajuda médica quando o adoecimento já não pode mais ser minimizado ou ignorado e, assim, tendem a vivenciar a doença como uma questão individual. De acordo com os autores, torna-se necessário construir um olhar coletivo sobre o adoecimento em decorrência da atividade docente, tendo em vista que a manutenção de contextos prejudiciais à saúde favorece o aumento do adoecimento e o abandono da docência. “Cabe aos trabalhadores docentes pensar medidas articuladas que propiciem uma organização do trabalho que seja compatível com a promoção da saúde”. (Duarte et al., 2012, p. 180-181). Nesse sentido, torna-se necessária uma reflexão coletiva entre professores, sindicatos, representantes do movimento docente e pesquisadores, com o intuito de agregar esforços em direção a políticas mais sólidas de cuidado da saúde do professor.
Considerações finais
As narrativas das docentes entrevistadas na pesquisa mostraram que as condições de trabalho interferem nas relações de ensino e aprendizagem e influenciam a valorização profissional. No contexto em questão, foi destacada a precariedade dessas condições em muitas escolas públicas do município, evidenciada pela estrutura inadequada e má conservação dos prédios, falta de material didático-pedagógico e ausência de apoio pedagógico ou má gestão escolar. Tais questões revelam que o desempenho do trabalho docente ultrapassa a qualidade da formação do professor, na medida em que as condições de trabalho incidem, diretamente, sobre o exercício da profissão e sobre os próprios professores.
No município estudado, embora contando com uma situação diferenciada em alguns aspectos, como o salarial, as reformas e os programas educacionais ainda não têm contemplado as questões referentes ao espaço escolar e aos materiais didático-pedagógicos. A despeito do insuficiente suporte pedagógico por parte das instituições de ensino em contextos sociais populares, impõem-se variadas e complexas exigências sobre o trabalho docente, o que repercute na responsabilização dos(as) professores(as) no que se refere aos resultados da escola e dos alunos em avaliações de desempenho.
Segundo as professoras entrevistadas, as cobranças por resultados e prazos associadas à precariedade das condições de trabalho impõem um sobre-esforço aos docentes, que, com o passar do tempo, pode incidir sobre a sua saúde física e psíquica, comprometendo o vínculo com a profissão. Tais questões levam a concluir que, embora a elaboração das políticas voltadas aos professores no País possa ser considerada uma conquista importante da categoria, ainda é preciso avançar muito na garantia de condições adequadas de trabalho destinadas à valorização docente, as quais devem contemplar políticas ou programas de cuidado da saúde do professor.
Esse tema da influência dos contextos profissionais e sociais no adoecimento docente é complexo e demanda um debate coletivo envolvendo pesquisadores, sindicatos, sistemas de ensino e professores para a construção de estratégias de promoção da saúde e do bem-estar docentes. No município estudado, essa questão já foi contemplada como meta do Plano Municipal de Educação, porém, ainda são necessários programas municipais voltados para esse fim, como sugeriram as narrativas das professoras entrevistadas.