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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.100 no.255 Brasília maio/ago 2019

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.100i255.3807 

ESTUDOS

A generificação da intersetorialidade no Programa Saúde na Escola*

Gendering intersectoriality in Brazil’s Health in School Program

La generificación de la intersectorialidad en el Programa Salud en la Escuela

Catharina da Cunha SilveiraI  II 
http://orcid.org/0000-0002-7105-567X

Dagmar Elisabeth Estermann MeyerIII  IV 
http://orcid.org/0000-0003-4182-3938

Jeane FélixV  VI 
http://orcid.org/0000-0003-4754-0074

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: <catharinasilveira@gmail.com>.

II Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: <dagmaremeyer@gmail.com>.

IV Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

V Universidade Federal da Paraíba (UFPB). João Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail: <jeanefelix@gmail.com>;

VI Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo:

Este texto, inserido nos estudos de gênero e nos estudos culturais que dialogam com a teorização foucaultiana, utiliza pesquisa documental e análise cultural para escrutinar os modos pelos quais o trabalho intersetorial é definido, descrito e regulado em documentos normativos e materiais didáticos do Programa Saúde na Escola (PSE), a fim de discutir como o gênero atravessa e dimensiona um de seus princípios organizadores - a intersetorialidade. Destaca o que é dito, o que é silenciado, o como se diz e em quais circunstâncias e relações de poder-saber determinadas coisas podem ser enunciadas. Argumenta que, no PSE, noções como “somar esforços”, “unir-se” e “articular-se” são mobilizadas para propor modos de fazer educação e(m) saúde que demandam adaptabilidade, multifuncionalidade, flexibilidade e disposição para assumir trabalho a mais, sem remuneração adicional. Discute que esse processo, nomeado “generificação da intersetorialidade”, é descolado de corpos biológicos sexuados, mas segue (re)constituindo, reiterando e legitimando exercícios profissionais que naturalizam ações, lugares e arranjos institucionais que tomam atributos femininos como recurso funcional às necessidades da intersetorialidade proposta na política estudada.

Palavras-chave: gênero; intersetorialidade; políticas públicas; Programa Saúde na Escola

Abstract:

Grounded on gender studies and on the cultural studies related to the Foucauldian theorization, this paper uses documental research and cultural analysis to scrutinize how intersectorial work is defined, described and regulated in regulatory documents and didactic materials of the Health in School Program (Programa Saúde na Escola - PSE), in order to discuss how gender crosses and configures one of its organizing principles - the intersectoriality. The analysis highlights what is said and what is silenced, as well as how and in which circumstances and power-knowledge relations certain things may be enunciated. It argues that, within PSE, notions like “to sum up efforts”, “to unite” and “to articulate” are used to propose ways of doing education and/in health. Such ways demand adaptability, multi-functionality, flexibility, and disposition to take on extra work, with no additional pay. It highlights that this process of ‘gendering intersectoriality’ is detached from sexed-biological bodies, but remains (re)building, reiterating, and legitimizing professional practices that naturalize actions, places and institutional arrangements that dispose of feminine attributes as functional resources to serve the needs of the intersectorial policy proposal herein.

Keywords: gender; Health in School Program; intersectorality; public policies

Resumen:

Este texto, insertado en los estudios de género y en los estudios culturales que dialogan con la teorización foucaultiana, utiliza investigación documental y análisis cultural para escudriñar los modos por los cuales el trabajo intersectorial es definido, descrito y regulado en documentos normativos y materiales didácticos del Programa Salud en (PSE), a fin de discutir cómo el género atravesa y dimensiona uno de sus principios organizadores -la intersectorialidad. Destaca lo que se dice, lo que es silenciado, el cómo se dice y en qué circunstancias y relaciones de poder-saber determinadas cosas pueden ser enunciadas. Argumenta que, en el PSE, las nociones como "sumar esfuerzos", "unirse" y "articularse" son movilizadas para proponer modos de hacer educación y salud que demandan adaptabilidad, multifuncionalidad, flexibilidad y disposición para asumir trabajo a más, sin remuneración adicional. Discute que ese proceso nombrado "generificación de la intersectorialidad" es descolado de cuerpos biológicos sexuados, pero sigue (re)constituyendo, reiterando y legitimando ejercicios profesionales que naturalizan acciones, lugares y arreglos institucionales que toman atributos femeninos como recurso funcional a las necesidades de la intersectorialidad propuesta en la política estudiada.

Palabras clave: género; interseccionalidad; políticas públicas; Programa de Salud en la Escuela

Uma política, um problema, uma abordagem: introdução

Neste artigo, revisitamos materiais empíricos e resultados de duas pesquisas2, inscritas nos campos dos estudos de gênero e dos estudos culturais que dialogam com a teorização foucaultiana, nas quais examinamos, com distintos interesses, o Programa Saúde na Escola (PSE). Trata-se de uma política pública contemporânea, instituída em 2007 e direcionada a escolares brasileiros(as), que objetiva promover saúde, prevenir doenças e recuperar agravos a partir do (e no) espaço da escola (Brasil, 2007).3 O PSE anuncia-se oficialmente como uma política intersetorial, o que significa que a responsabilidade por sua execução deve ser compartilhada entre os setores da educação e saúde, especialmente entre profissionais atuantes nas escolas e nas unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF). Segundo suas diretrizes, a potência da intersetorialidade reside na possibilidade de interação entre os equipamentos públicos da saúde e da educação.

O material empírico foi acessado de forma on-line, nas páginas do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, entre novembro e dezembro de 2013, e inclui três documentos que descrevem a intersetorialidade proposta pelo PSE: o material Agenda Educação e Saúde (Brasil. MEC, 2010), que coloca as metas do PSE na “ordem do dia” dos(as) profissionais que nele se envolvem; o fôlder Passo a passo PSE: tecendo caminhos para a intersetorialidade (Brasil. MS; MEC, 2011), que sistematiza e apresenta as diretrizes do programa - ambos direcionados aos(às) profissionais; e a revista Saúde na Escola (Brasil. MS; MEC, 2012), que apresenta os objetivos da política, de forma ilustrada, destinada a escolares.

Há quatro pressupostos teórico-metodológicos que delimitam o exercício analítico aqui realizado: o primeiro afirma a centralidade da linguagem (em sentido amplo) para a significação do mundo e a produção das relações que a cultura estabelece entre sujeito, conhecimento e poder; o segundo assume as “políticas como linguagem, como artefato cultural e como tecnologia de poder, por entender que elas têm se tornado um instrumento central de organização das sociedades contemporâneas” (Meyer, 2014, p. 52); o terceiro define a cultura como “o conjunto dos processos com e por meio dos quais se produz um certo consenso acerca do mundo em que se vive”; e o quarto considera o gênero como organizador do social e da cultura (Meyer, 2014, p. 54). Assumindo, então, que políticas públicas podem ser tomadas como artefatos culturais implicados em complexos processos de gestão da vida articulados e atravessados pelo gênero,4 utilizamos a análise cultural para escrutinar os modos pelos quais o trabalho intersetorial é definido, descrito e regulado nesses materiais e problematizamos como o gênero atravessa e dimensiona a intersetorialidade neles proposta.

A análise cultural é um procedimento de análise linguística, no qual a relação íntrinseca entre cultura, linguagem e poder está em foco, entendendo-se que a linguagem, lato sensu, é um campo produtivo e conflituoso em que se dá a luta pela significação e que “[...] a cultura sempre tem uma dupla função: ela é, ao mesmo tempo, o objeto de estudo e o local da ação e da crítica política” (Costa; Silveira; Sommer, 2003, p. 43). A análise cultural é, então, um procedimento político e conjuntural que permite, segundo Moraes (2016) e Wortman (2007), analisar textos e documentos de diversos tipos como artefatos culturais para descrever e discutir as condições de possibilidade que permitem que determinadas “coisas” sejam enunciadas e entrem no domínio da significação.

Assim, o exercício que fizemos foi o de descrever e problematizar a linguagem por meio da qual se pretende conformar o que, nesses documentos, se define como intersetorialidade quando se sugerem as formas para sua operacionalização, as instituições sociais envolvidas, os(as) profissionais responsáveis e as funções que necessitam cumprir. Evidenciamos, dessa maneira, a configuração de modos de fazer educação e(m) saúde que demandam adaptabilidade, multifuncionalidade, flexibilidade e disposição para assumir trabalho a mais (sem remuneração adicional), dentre outros atributos, em um processo que se descola de corpos biológicos sexuados, mas segue (re)constituindo e legitimando o que Morini (2010, p. 254) chama de “[...] lógica adaptativa/sacrificial/oblativa que é resultado cultural da experiência histórica feminina [...]” e “[...] que se torna absolutamente funcional às necessidades [...]” (Morini, 2010, p. 254) da intersetorialidade proposta no PSE. Argumentamos, então, que a intersetorialidade assim concebida pode estar operando como um processo que reforça, constitui e legitima uma determinada generificação da política pública, bem como de instituições e sujeitos a ela vinculados.

Neste texto, tomamos gênero como uma construção social e linguística que engloba os processos pelos quais a cultura produz e distingue corpos, nomeando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (Scott, 1995; Nicholson, 2000; Butler, 2013). Nessa perspectiva, para além de circunscrever papéis e funções de homens e mulheres, o gênero funciona como um organizador do social e da cultura que, no domínio das políticas públicas

atravessa e constitui formas de conhecimento, distribuição de recursos, processos de organização do trabalho e a estrutura de instituições e serviços [...], articulando-se com determinados posicionamentos de profissionais de diversos níveis e tipos (Meyer; Klein, 2013, p. 2-3).

Esse entendimento demanda escapar de análises que, ao descreverem formas de funcionamento do gênero, acabam por reforçar naturalizações vigentes ou resumem “o olhar de gênero à constatação de dinâmicas sociais postas” que reificam, inclusive nas nossas pesquisas, papéis e funções de homens e mulheres, necessariamente masculinos ou femininas [ou coladas a corpos assim definidos], de acordo com a heteronorma vigente (Vasconcelos; Seffner, 2015). Por isso, ao discutir como o gênero organiza a constituição da intersetorialidade no PSE e, ao fazê-lo, produz um processo de generificação que resulta em feminização dos arranjos institucionais e dos processos de trabalho demandados pela intersetorialidade, o termo feminização não é utilizado como sinônimo de feminilização (Yanoullas, 2011). Mesmo considerando que, numericamente, mulheres sejam maioria nesses contextos profissionais e que, historicamente, ações educativas e de cuidado tenham sido definidas como trabalho delas, trata-se, aqui, de examinar uma lógica de gestão que caracterizaremos, na análise a seguir, como feminização.

A intersetorialidade no/do Programa Saúde na Escola

A intersetorialidade vem sendo anunciada, há alguns anos, como uma estratégia para otimizar recursos de diversas ordens no âmbito de planejamento, implementação e monitoramento de políticas públicas (Cunill-Grau, 2014). Possibilita abordar e solucionar problemas multicausais, exatamente porque se vincula com modos de planejar, implementar e monitorar políticas públicas que definem soluções conjuntas e articuladas para problemas que atingem dois ou mais setores (Cunill-Grau, 2014). No PSE, entretanto, ela é apresentada como novidade em termos de gestão. E, de fato, com o formato ali proposto para a atuação intersetorial, os Ministérios da Educação e da Saúde elaboram e executam, pela primeira vez no Brasil, um programa que agrega ações e projetos de saúde na escola em uma mesma política, acompanhado de diretrizes para atuação em parceria. Isso se destaca no exame dos materiais, quando se aloca na composição intersetorial a expectativa de sucesso do PSE. Os documentos examinados sinalizam essa proposição:

Articular as ações do Sistema Único de Saúde (SUS) às ações das redes de educação pública de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas ações relativas aos educandos e suas famílias, otimizando a utilização dos espaços, equipamentos e recursos disponíveis. (Brasil. MS; MEC, 2011, p. 7).

Intersetorialidade, no PSE, inclui a gestão de ações, planejadas no âmbito de grupos de trabalho intersetoriais (GTI), e sua implementação por equipes escolares e de saúde da família de um mesmo território5. A ESF deve-se ocupar de ações em uma ou mais escolas de seu território de cobertura e essa atuação deve estar acordada e planejada com essas equipes escolares. No documento intitulado Agenda Educação e Saúde, elaborado de forma ilustrada e em formato de passo a passo, sugere-se, por exemplo, a circulação conjunta de profissionais das instituições de ensino e das ESF nas redondezas das escolas para observação e aproximação com o contexto local; para isso, os(as) profissionais devem sair munidos(as) de materiais como câmeras fotográficas, blocos de anotações e mapas e fazer o registro dos problemas identificados nas ruas (como lixões a céu aberto, falta de asfaltamento e saneamento básico etc.), a fim de que estes sejam tratados conjuntamente pelas equipes dos dois setores. A Agenda também sugere que, com esses registros, os(as) profissionais produzam relatórios sobre a situação das localidades visitadas e, então, discutam entre si e com a comunidade escolar estratégias de enfrentamento dos problemas elencados. Dessa discussão, resultaria o projeto que embasaria a atuação conjunta das equipes, de forma a conectar e relacionar as diferentes ações do PSE com “a realidade” para, então, modificá-la, promovendo a saúde de estudantes das escolas públicas (Brasil. MEC, 2010).

Os documentos examinados indicam que as ações do PSE estão organizadas em três componentes: 1) avaliação das condições de saúde de crianças, adolescentes e jovens que estão na escola pública; 2) promoção da saúde e de atividades de prevenção; 3) educação permanente e capacitação de profissionais da educação e da saúde e de jovens (Brasil. MS; MEC, 2011).6 O componente 3 não prevê deliberações desses(as) profissionais, uma vez que o PSE os posiciona como sujeitos-alvo dessas formações, definidas como capacitação para o desenvolvimento das atividades propostas nos componentes 1 e 2.

Os documentos sugerem que a maior parte das atividades propostas no projeto conjunto, a ser elaborado com base no mapeamento do contexto local, integre as ações educativas desenvolvidas pelas(os) professoras(es). Objetiva-se, assim, compartilhar informações e orientar os(as) estudantes a prevenirem-se de doenças e agravos à saúde. Aos(às) profissionais de saúde cabem atividades de assistência e educativas próprias de sua área de atuação, por exemplo: aplicação de flúor e orientações sobre as formas corretas de escovação, orientações nutricionais e de acuidade visual, conforme se sugere nos materiais analisados. No entanto, não há indicação sobre quem ou como se encaminharia a resolução de problemas mais amplos e complexos, como falta de calçamentos e de saneamento básico, sugerindo-se que cada grupo intersetorial de trabalho e a comunidade escolar devam encontrar saídas resolutivas.

A articulação da equipe escolar com a ESF é considerada uma estratégia fundamental para envolver a comunidade local e promover, entre estudantes e supostamente entre os(as) que com eles(as) convivem, competências individuais (e familiares) para cuidar da própria saúde, dentro do escopo do que se nomeia, no PSE, de qualidade de vida. Assim, propõe-se que a escola tenha gerência e coparticipação na promoção da saúde de seus(suas) estudantes, entendendo-se que ela não é local de assistência tal qual a unidade básica de saúde (UBS). Na perspectiva do PSE, as duas áreas envolvidas necessitam comprometer-se com uma determinada abordagem da promoção da saúde da comunidade escolar. Vejamos como isso é evidenciado nos documentos:

Nas escolas, o trabalho de promoção da saúde com os educandos, e também com professores e funcionários, precisa ter como ponto de partida “o que eles sabem” e “o que eles podem fazer”. É preciso desenvolver em cada um a capacidade de interpretar o cotidiano e atuar de modo a incorporar atitudes e/ou comportamentos adequados para a melhoria da qualidade de vida. Desse modo, profissionais de saúde e de educação devem assumir uma atitude permanente de empoderamento dos princípios básicos de promoção da saúde por parte dos educandos, professores e funcionários das escolas. (Brasil. MS; MEC, 2011, p. 6-7).

Nessa abordagem, o enunciado “ter como ponto de partida o que sabem” e “o que eles podem fazer” articula-se a um outro que informa que “é preciso partir da realidade do aluno para construir aprendizagens significativas”. “É preciso partir da realidade” é um enunciado que vem conformando diferentes discursos educacionais, apoiados nas vertentes crítico-emancipatórias. Acredita-se que, com o ato de educar a partir de “sua” realidade, o(a) estudante seja capturado(a) para ver sentido no que lhe é ensinado e que, ao interessar-se, aprenda, nesse caso, a cuidar-se. Importa destacar, aqui, que o enunciado “partir da realidade do aluno”, no âmbito do PSE, ganha espaço e posiciona profissionais da educação e da saúde como sujeitos que precisam se articular para fazer uma leitura da realidade do território onde se encontram UBS e escola.

Desse modo, esses(as) profissionais são convocados(as) a assumir uma atitude permanente de empoderamento dos princípios básicos de promoção da saúde em relação à comunidade escolar. Interessa pensar que o empoderamento, muitas vezes pautado no âmbito de grupos sociais minoritários, associa-se agora ao conhecimento biomédico, e não mais “ao que eles(as) sabem”. Espera-se que, com esta leitura, seja construído um projeto de educação e saúde específico7 para estudantes (e suas famílias) que frequentam/pertencem a esses espaços. Esse projeto deve direcionar a seleção, o planejamento e a realização das ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças e agravos em determinada escola (ou território). Tais ações, para além daquelas inerentes a cargos/funções específicos, somam-se então ao fazer desses(as) profissionais da saúde e da educação, já que passam a conformar o que estão nomeando como trabalho intersetorial.

Tendo situado a intersetorialidade do/no PSE, passamos a discutir, com mais detalhes, alguns aspectos que conformam a generificação da intersetorialidade nesse contexto.

Intersetorialidade: compartilhamento e/ou acréscimo de trabalho e de responsabilidades?

O termo intersetorialidade pode assumir diferentes sentidos práticos e políticos. No PSE, como já referimos, ele designa uma determinada articulação entre as áreas de saúde e educação ante o planejamento, a gestão e a implementação de ações que são objetivadas por essa política. Nessa direção, a intersetorialidade “cria melhores soluções (se comparada à setorialidade) porque permite compartilhar recursos (saberes, experiências, meios de influência, recursos financeiros, etc.) que são próprios de cada setor [...]” (Cunill-Grau, 2014, p. 16, tradução nossa).

Atravessado pelo discurso pedagógico que aponta a não efetividade de ações de promoção de saúde, de prevenção de doenças e de recuperação de agravos não relacionadas às vivências da população à qual se destinam, o PSE interpela os(as) profissionais para adequar suas ações à realidade dos(as) estudantes, que são os indivíduos a que elas se dirigem. Com essa interpelação, a política convoca os sujeitos que trabalham nas escolas e nas ESF para a realização de práticas profissionais articuladas, enfatizando que podem e devem fazer diferença nos territórios onde se encontram UBS e escola e que tais instituições devem ser parceiras8 entre si.

Nos materiais analisados, palavras e expressões como “atuar conjuntamente”, “integração e articulação permanente”, “união” e “soma de esforços” são utilizadas para descrever e definir a intersetorialidade. Embora possamos significá-las como indicativas da partilha de responsabilidades entre educação e saúde, parece-nos que os sentidos dessas expressões, no texto, também sugerem certo voluntarismo das pessoas envolvidas, como se profissionais de diferentes setores, que possuem horizontes comuns de ação, necessariamente, soubessem e/ou tivessem condições de atuar de forma intersetorial, uma vez que não se evidenciam, nos documentos analisados, propostas institucionais para colocar a intersetorialidade em funcionamento. Considerando que a intersetorialidade não é uma estratégia de gestão que se efetiva apenas pela junção de profissionais de setores diferentes atuando em uma mesma ação programática e que ela demanda uma reorganização no interior de cada setor em função de sua articulação a outros setores, torna-se necessário prever e prover recursos de várias ordens, estabelecer prioridades de gestão, elaborar planejamentos de curto, médio e longo prazo, redimensionar processos de trabalho, além de reconhecer limites e possibilidades da atuação compartilhada. E isso é silenciado nos documentos examinados.

Concordamos que, do ponto de vista da gestão, a atuação conjunta entre dois ou mais setores é potente porque pode contribuir para a redução da fragmentação do trabalho, além da duplicação de recursos e ações que caracteriza muitas políticas. Também acreditamos na importância da articulação institucional como estratégia para ampliar o alcance das políticas e otimizar serviços - princípio crucial em um país com tantas desigualdades sociais como o nosso. Entretanto, não se pode perder de vista que desenvolver ações articuladas não apenas divide, mas também soma atividades e responsabilidades e, assim, pode sobrecarregar ainda mais os(as) profissionais. Sobretudo porque se espera que eles(as) deem conta das atividades compartilhadas sem deixar de atender plenamente demandas cotidianas e específicas do trabalho inerente às suas funções.

Assim, a definição de intersetorialidade como ação partilhada entre trabalhadoras(es) de setores distintos pode não ser suficiente para colocar em movimento a otimização que o conceito propõe. De fato, responsabilizar os(as) trabalhadores(as) por sua efetivação pode traduzir-se como chamamento para assumir responsabilidades que até então não lhes cabiam e que não condizem com as condições de trabalho vigentes, não incidem sobre remuneração e reordenamento de funções e de jornadas de trabalho, dentre outras coisas. A intersetorialidade demanda envolvimento da gestão e reconfiguração de estruturas e processos de trabalho em serviços que, usualmente, já estão sobrecarregados, funcionam de forma precária, de modos muito distintos e sem canais de comunicação eficientes e legitimados. E, nessa direção, pode estar contribuindo para o que Antonio Nóvoa (2006) descreve como acúmulo “de missões e de conteúdos” da escola [e dos serviços de saúde] contemporânea que, numa espécie de constante “transbordamento”, a levou a assumir [assim como aos(às) seus(suas) profissionais] uma infinidade de tarefas e funções que obliteram sua especificidade.

Otimizar recursos - que envolvem pessoas, racionalização de funções, estruturas institucionais e orçamentos - é objetivo que fundamenta o modo de fazer do Estado no qual vivemos. Foucault (2008) argumenta que o Estado que conhecemos hoje se apoia em uma racionalidade política9 baseada em um modo de fazer, de ver as coisas, que pode ser traduzido como atingir com maior êxito e menor esforço (e investimento) possível os sujeitos e as instituições. O PSE desdobra-se dessa razão de Estado e, assim fundamentado, aposta em uma articulação de profissionais da saúde e da educação nomeada como intersetorialidade para que, com a soma de esforços desses(as) profissionais e não necessariamente com o aperfeiçoamento da estrutura institucional e de seus processos, dê conta de fazer menos, para governar mais (Foucault, 2008). Dar a ver as formas que a intersetorialidade assume no âmbito do PSE - considerando algumas demandas e condições institucionais prescritas para a atuação conjunta das equipes escolares e da ESF - envolve o movimento que fazemos para visibilizar um processo de generificação que implica desafios e limites acoplados a esse modo de fazer política.

Nesse sentido, as diretrizes do PSE indicam, por exemplo, que a escola deveria convocar e fomentar a integração e o diálogo do grupo de trabalho do programa.

Nosso primeiro passo na trilha é a organização dos coletivos que assumirão a tarefa de criar e gerenciar o planejamento local das ações do PSE. A escola, como um dos “marcos de referência” do PSE, é responsável pela convocação e integração do grupo “educação e saúde”, promovendo espaços para os diálogos. (Brasil. MEC, 2010, p. 19, grifo do autor).

Aqueles(as) que conhecem e trabalham em escolas públicas, sobretudo nas periferias urbanas, sabem que, no contexto de demandas cada vez mais expressivas nesses cenários, fazer funcionar um grupo de trabalho para enfrentar questões que relacionam educação e(m) saúde demanda esforços, horários e trabalho a mais, particularmente porque vivemos em uma cultura de otimização do tempo, racionalização de tarefas e multiplicação de recursos insuficientes. A instituição escolar tem sido chamada a assumir mais trabalho e responsabilidades sociais, e agregar ainda mais “acréscimos”, nas condições vigentes, é quase inviável. São cada vez mais raros os tempos e espaços destinados ao exercício de construção coletiva e democrática dos próprios projetos político-pedagógicos (PPPs). Assim, se as escolas não conseguem garantir meios para elaborar, revisitar e implementar seus PPPs, que disponibilidade terão seus(suas) profissionais para engajar-se na construção de projetos intersetoriais, como propõe a Agenda (Brasil. MEC, 2010), que, segundo o PSE, deveriam orientar todas as suas atividades? Essa demanda do programa corre o risco de “inchar” ainda mais o rol dessas urgências cotidianas que naturalizam e invisibilizam o sobretrabalho, na medida em que a política faz a indicação de responsável(eis), como observamos a seguir no material Agenda, mas não aponta formas de reordenar e gerir o trabalho para incorporação de atividades intersetoriais previstas no PSE e, no caso de somar hora ou carga de trabalho, não prevê remuneração adicional proporcional para essa demanda.

Fonte: Brasil. MEC (2010, p. 9)

Figura 1 Imagem da agenda educação e saúde - documento público 

Ao mesmo tempo, é necessário admitir a potencialidade da inserção das temáticas do PSE nos componentes curriculares e conteúdos com os quais a escola já trabalha. Isso, porém, demandaria planejamentos conjuntos e possibilidades de promover práticas de ensino que coloquem em diálogo áreas de conhecimento no interior da escola e com a comunidade escolar, o que, como estamos querendo chamar atenção, exigiria outra organização do tempo de trabalho dos docentes em um contexto em que muitas redes de ensino sequer promovem reuniões periódicas de professoras(es).

Assim, não se trata de negar a importância de atividades a serem realizadas nas escolas por profissionais de saúde e de educação de maneira partilhada. Trata-se de chamar atenção para um possível processo de naturalização em curso nessa articulação, qual seja o da incorporação voluntária de um trabalho a mais a ser realizado por esses(as) profissionais na escola. Trabalho a mais que não comporta sugestões como a identificação e o enfrentamento de problemas estruturais e sociais mais amplos e complexos, por exemplo, falta de acesso a moradias salubres e a saneamento básico, existência de lixões a céu aberto, falta de segurança pública, que também deveriam ser incorporados ao escopo das atribuições definidas no PSE. Para que ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças façam sentido, tais problemas, cujo enfrentamento é crucial em contextos de vulnerabilidade social e sanitária, demandam ações integradas nas três esferas da gestão pública e extrapolam tanto os setores da educação e da saúde quanto a competência individual de seus profissionais. Indagamos então: se problemas mais amplos como esses não podem ser encaminhados e não são resolvidos pelas instâncias responsáveis, o que se pode fazer com os levantamentos de contexto sugeridos como base para ações “significativas” de educação e de saúde?

A intersetorialidade não é uma solução mágico-romântica que se efetiva com a mobilização voluntarista e individualizada de profissionais que integram equipes de saúde e educação nas configurações existentes. Ela é uma ferramenta complexa de gerenciamento e operacionalização de políticas públicas (Cunill-Grau, 2014) que demanda o envolvimento efetivo de diversos setores, nas três esferas de gestão; é, também, uma estratégia política coletiva para lidar com problemas sociais concretos e complexos que requerem, como já dissemos, planejamento, atenção e gestão integrada que extrapolam tanto as áreas de saúde e educação quanto, sobretudo, a autonomia de profissionais e serviços. Certamente, a intersetorialidade não se operacionaliza com a ação de peças/setores encaixados segundo a lógica da justaposição harmoniosa (simplista e utilitária) de equipes e indivíduos que atuam “nos serviços da ponta”, como sugere a imagem do quebra-cabeça que envolve as duas áreas (Figura 2).

Fonte: Brasil (2011)

Figura 2 Imagem em fôlder passo a passo - documento público 

O quebra-cabeça é um jogo que supõe o encaixe perfeito de suas peças: o que constitui uma delas é o que falta na outra, numa conexão em que não sobram brechas nem espaços vazios. Ele força nosso pensamento a investir em movimentos de tentativa e erro, até encontrar a “peça perfeita”, o único encaixe possível. Não há como produzir hibridismos e intersecções entre as peças. Nessa lógica, saúde é saúde, educação é educação; encaixam-se e depois se desencaixam, mantendo intactas suas identidades. Imagens são constitutivas da linguagem e, como linguagem, produzem efeitos e não são neutras. Por isso, e independentemente da intencionalidade que presidiu (ou não) sua escolha, a imagem (Figura 2) passa a compor a linguagem do PSE e, na cadeia de significação colocada em movimento, os sentidos que ela evoca talvez sejam inadequados para representar processos e estratégias intersetoriais. Primeiro, porque intersetorialidade sugere intersecção e não justaposição ou adição de setores; e, segundo, porque a intersecção não supõe um único encaixe possível e não opera com peças perfeitas, que preenchem espaços sem deixar brechas e sem provocar fissuras, misturas, disputas e tensões.

No PSE, temos que levar em conta que as instituições e os setores que o compõem comportam saberes e fazeres diversificados, profissionais com formações distintas e responsabilidades diferenciadas, inseridos(as) em serviços públicos regidos por legislações diferentes, com dotações orçamentárias distintas. Ainda que fossem campos similares, os cotidianos das práticas desenvolvidas em cada serviço não se dão da mesma forma, uma vez que cada um deles possui modos próprios de funcionamento e organização, inclusive se compararmos serviços de saúde e escolas integrantes de um mesmo território. Assim, como decorrência e diferentemente do que acontece no jogo de quebra-cabeça, no qual se “adicionam invariâncias” (Nicholson, 2000) que se encaixam e desencaixam mantendo a forma original inalterada, a intersetorialidade de setores e/ou serviços - e, portanto, sua intersecção - deveria provocar fissuras e tensões que colocam sob rasura as formas de funcionar e as identidades profissionais “originais” de cada área.

Em outros termos, o encaixe de peças perfeitas e únicas do quebra-cabeça não representa o que se deseja nem o que tem sido possível fazer no interior de serviços de saúde e de escolas; representa menos ainda a produção de respostas singulares para os problemas vivenciados em tais instituições e a invenção de práticas que a intersecção entre saúde e educação evoca e demanda. Assim, a imagem do quebra-cabeça pode estar funcionando, no PSE, como estratégia que tanto posiciona os sujeitos envolvidos, convocando-os a corresponsabilizarem-se com o Estado e a fazerem mais com menos, além de reforçar a essencialização de certos espaços, saberes e identidades, quanto idealiza o trabalho compartilhado e voluntário, ao mesmo tempo que esvazia e despotencializa o que se define como trabalho intersetorial. A intersetorialidade poderia ser mais bem representada por um jogo “[...] cuja imagem não é estática [e no qual] as peças não são simétricas nem seu encaixe definido aprioristicamente” (Vasconcelos; Morchel, 2009, p. 733).

Em muitas passagens da Agenda, a articulação que se desenha, para aqueles(as) que trabalham nas escolas e nas ESF, depende de adesão e esforços individuais, uma vez que as condições concretas para o trabalho articulado são abordadas de forma genérica ou sequer são descritas. Por exemplo, o documento não menciona recursos financeiros para aquisição de materiais demandados nem sugere possibilidades de acesso a eles. Em uma das ilustrações, dois profissionais são representados como se estivessem partindo para a ação de reconhecimento de território e no diálogo (apresentado em forma de quadrinhos) um diz à outra: “vou pegar a minha máquina” (grifo nosso). Trata-se, no diálogo, de câmera da escola ou da UBS, para evitar o uso de bens pessoais dos(as) profissionais? O uso do pronome possessivo “minha”, no diálogo, sugere que estes(as) estão usando seus próprios recursos e equipamentos, o que tem se tornado cada vez mais recorrente, considerando toda a ordem de precariedade vivenciada nos equipamentos sociais. O PSE também indica o uso da internet para acessar informações sobre o território, naturalizando a disponibilidade de acesso a computadores e redes em UBS e escolas públicas, o que não corresponde ao que temos vivenciado nos serviços em que trabalhamos e/ou nos quais pesquisamos10.

O acesso a bancos de dados com informações atualizadas e a disponibilidade de documentos públicos que subsidiariam reuniões com a comunidade, para a elaboração do projeto de educação e saúde, também costumam ser difíceis e sua impressão, em papel, quase sempre é feita em casa, com os próprios equipamentos e insumos. Para além disso, e para seguirmos com o exemplo da expedição de reconhecimento do território, não se faz menção, nos documentos, aos problemas de segurança pública que envolvem muitos dos territórios em que UBS e escolas públicas estão localizadas. Basta ler ou assistir a noticiários para saber que essa dimensão se torna, a cada dia, mais necessária. A nosso ver, e como política pública situada, o PSE deveria explicitar e prover condições para a execução das ações que prescreve e indica.

Ao invés disso, o PSE posiciona os(as) profissionais, e não as instituições e serviços que esses(as) integram, como parceiros do Estado, os quais deveriam ser capazes de enfrentar e solucionar problemas sociais a partir de suas articulações individuais. Várias pistas sinalizam para a noção de que a execução do programa depende da adesão dos(as) profissionais que compõem as equipes das escolas e UBS. E, para além de recorrerem ao saber/fazer específico de sua formação e função - inerente à intersecção demandada -, precisam agregar recursos próprios, assumir trabalho a mais, não necessariamente remunerado, dentre outras coisas, e, no limite, a execução do trabalho dependerá da vontade e disposição de cada um(a). Ao enfatizar isso,

[...] não estamos argumentando que a responsabilidade individual não seja necessária e desejável e que não haja necessidade de criar/inventar soluções específicas para determinadas situações, mas que exatamente por isso, é necessário distinguir responsabilidade com o trabalho desse processo [difuso e alargado] de responsabilização. (Meyer et al., 2014a, p. 1017).

A feminização da intersetorialidade no PSE: para finalizar

Retomando o argumento sobre a feminização da intersetorialidade no PSE, entendemos que tanto a precarização das condições de trabalho quanto a responsabilização de profissionais podem ser relacionadas com as transformações contemporâneas dos processos de trabalho, calcadas em uma racionalidade neoliberal, discutida por Morini (2010). A autora argumenta que vivemos um tempo em que as relações de trabalho demandam, cada vez mais, fluidez, flexibilidade, adaptabilidade e aglutinação de funções e invadem todas as dimensões da vida do sujeito trabalhador. Isso exige dele não apenas ampliação de competências (que, nessa perspectiva, nunca são suficientes) e aumento da jornada de trabalho, mas rasura fortemente as fronteiras entre este e a vida particular.

Nessa direção, em sua configuração atual, o capitalismo estaria ressignificando o trabalho, tal como o conhecemos, justamente porque ele invade e coloniza todas as esferas da vida, convocando cada um(a) e todos(as) a uma postura produtiva, flexível e disponível, independentemente de jornadas de trabalho e remuneração. Segundo Morini (2010), esse processo tem exigido e valorizado competências e disposições - tanto de homens quanto de mulheres - que eram historicamente associadas a estas e essencializadas como atributos femininos, em função de sua experiência com duplas (ou triplas) jornadas de trabalho como mães, cuidadoras, donas de casa e trabalhadoras. Trabalhos e experiências “que se torna[m] absolutamente funciona[is] às necessidades das corporações contemporâneas” (Morini, 2010, p. 254), as quais requerem “uma lógica adaptativa/sacrificial/oblativa que é resultado cultural da experiência histórica feminina” (Morini, 2010, p. 254). Nesse cenário, acentua-se, segundo a autora, a responsabilização individual de cada sujeito pela gerência de seu tempo produtivo, processo gestado naquilo que ela denomina de “espectro do precário social”.

Os argumentos da autora convergem com o que Meyer et al. (2014b) nomeiam, em seus estudos, como feminização da inclusão social. Ao analisarem a implementação de políticas e ações programáticas que visam à inclusão social, articulando áreas como educação, saúde e desenvolvimento social, os autores descrevem processos de organização institucional e de trabalho e formas de precarização e de vulnerabilização que envolvem as populações assistidas e os(as) profissionais que operacionalizam tais políticas e ações no cotidiano dos serviços situados “na ponta”. Argumentam que são apresentados(as) e interpelados(as) como profissionais com múltiplas funções e capacidades, que devem resistir, perseverar, improvisar, fazer muito com pouco, atuar concomitantemente em várias frentes, levar trabalho para casa, investir seus próprios recursos sempre que necessário e, sobretudo, doar-se em contextos institucionais tão instáveis e precários quanto os das populações que assistem (Meyer et al., 2014b). Nesse processo, e tomando o gênero como um organizador do social e da cultura, aquelas características e capacidades inscritas como essências em corpos designados como femininos, que, por isso, ocupariam majoritariamente profissões de educação e de cuidado, descolam-se desses corpos e são ressignificadas, apropriadas e incorporadas como competências necessárias ao trabalho lato sensu, a ser executado por mulheres e homens, nas sociedades capitalistas e neoliberais contemporâneas. É a isso que nomeamos de feminização.

Desde a análise que fizemos da intersetorialidade no PSE, parece-nos possível reconhecer ali elementos importantes dessa feminização. Características como disposição para assumir sobretrabalho (mesmo que isso não implique remuneração) e fazer uso de recursos próprios, capacidade de partilha e diálogo, organização, habilidade e mobilidade para realizar, ao mesmo tempo, mais de uma tarefa, usualmente coladas a corpos de mulheres11, são aqui realocadas e acionadas como elementos estruturantes do trabalho intersetorial. Em outros termos, a feminização da intersetorialidade no PSE funciona como estratégia que permite governar mais com menos, na medida em que sua premissa parece ser a de que os(as) profissionais, “naturalmente” e individualmente, dariam conta de articular, ao trabalho que já fazem, as ações conjuntas e constitutivas da política.

A ilustração de capa da revista Saúde na Escola demonstra como o PSE investe nos(as) profissionais da educação e da saúde como parceiros(as) do Estado, com base em uma linguagem na qual eles(as) são tomados(as) como sujeitos em potencial para o enfrentamento das diferentes vulnerabilidades encontradas nas localidades envolvidas, constituindo e reforçando o que aqui estamos descrevendo como feminização. Na revista, profissionais das duas áreas são representados como anjos (Figura 3).

Fonte: Brasil. MS; MEC (2012)

Figura 3 Capa da revista Saúde na Escola - documento público 

Silveira (2014) argumenta que os anjos, nas culturas judaico-cristãs, são significados como seres divinos, encarnados em corpos assexuados, destinados ao cuidado e à proteção das pessoas e que a palavra anjo, usada em sentido figurado, refere-se não só a um corpo assexuado (ou cuja designação de gênero não importa), mas a um ser inocente, bom, solidário, caridoso e socialmente comprometido.12 Cabe ressaltar que, no caso da imagem em foco, no entanto, os anjos são generificados e esse processo de generificação sugerido pela ilustração pode fazer reverberar sentidos conflitantes e acabar por reiterar lugares para mulheres e homens como profissionais. De todo modo, é possível pensar, considerando a ilustração veiculada pela política, que

[...] os [(as)] profissionais da educação e saúde estão posicionados como se pairassem acima e estivessem fora do território e da população que, ao mesmo tempo, deveriam conhecer por dentro, para dar conta do projeto educativo previsto. [...] a representação de profissionais da educação e da saúde como anjos reaviva e retoma o enunciado de missão/vocação historicamente associado a essas atividades profissionais [...] frequentemente explicado/justificado pelo predomínio de mulheres nesse contexto - e, de forma mais ampla ainda, pelo caráter feminino dessas profissões. (Silveira, 2014, p. 72, grifo do autor).

Como vimos argumentando, a atuação intersetorial demanda mais do que o desenvolvimento de ações integradas entre profissionais de diferentes setores; ela envolve, sim, um conjunto de atribuições que devem caracterizar formas de atuação compartilhada no planejamento, na implementação e no monitoramento de atividades que interseccionam atenção, gestão, formação, temáticas, setores. Para isso, é necessário que profissionais de educação e de saúde estejam qualificados(as) para atuar conjuntamente, que essa atuação seja reconhecida e validada como trabalho e que se apropriem de conhecimentos sobre o setor parceiro e suas especificidades, sem que sejam, nesse processo, posicionados como único e definitivo recurso para a intersetorialidade. Cada setor (e cada profissional) continua(m) tendo formação, funções e experiências específicas. As instituições governamentais não se equiparam ao “céu” (seja lá o que se entenda por isso) e na educação e na saúde não lidamos com anjos e, sim, com instituições e profissionais.

Nossa aposta foi a de explorar a potência analítica do conceito de gênero, na perspectiva aqui assumida, para produzir outras reflexões no âmbito do PSE e das demais políticas de inclusão social que reverberem, sobretudo, na formulação de diretrizes que problematizem a incorporação naturalizada de atributos femininos e masculinos aos exercícios profissionais e às práticas institucionais. Na direção dessa reflexão, buscamos mostrar como, no âmbito da política estudada, gênero atravessa e dimensiona um de seus princípios organizadores - a intersetorialidade -, produzindo e legitimando, tanto em sua formulação quanto na implementação de suas ações, lugares, profissionais e arranjos institucionais feminizados. No bojo de um processo mais amplo, qual seja, o da feminização da intersetorialidade, tais processos de generificação, postos em curso pelo PSE, acabam por ressignificar processos de trabalho e subjetivar profissionais, homens e mulheres, que neles se envolvem.

Referências

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*A autoria do artigo está explicitada em ordem alfabética com o objetivo de indicar que as três autoras trabalharam em mesmo grau de colaboração e autoria.

1Tais pesquisas estão vinculadas a um projeto maior, intitulado Políticas públicas de inclusão social e transversalidade de gênero: ênfases, tensões e desafios atuais (Meyer, 2014), financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2O PSE segue em vigência conforme Portaria nº 2.706, publicada no Diário Oficial da União em 18 de outubro 2017.

3Para aprofundar essa abordagem das políticas públicas, ver Shore e Wright (1997).

4Um território para o SUS é a área de abrangência que compete a determinados serviços de saúde.

5Alguns documentos do PSE referem sua organização em cinco componentes e outros em três. Optamos pela apresentação em três componentes, que foi mencionada na maioria dos materiais analisados por nós.

6Essa especificidade já pode ser problematizada com a distribuição das matrículas de estudantes na rede pública de ensino que não coincide com a espacialidade dos territórios da saúde e, portanto, não garante que alunos(as) morem perto da escola que frequentam, desmanchando, assim, o entendimento do PSE de que a UBS mais próxima da escola é a de referência do(a) estudante.

7A parceria regula e orienta as condutas de sujeitos individuais e coletivos de maneira que elas correspondam ao que políticas públicas e programas sociais deles esperam (Dal’Igna, 2011).

8 Foucault (2008) considera que a racionalidade política diz respeito a relações complexas e circulares que se fazem no imbricamento entre processos econômicos e sociais com uma forma política de poder que (re)conhecemos como Estado. Importa pensar, neste texto, que a racionalidade política (neo)liberal faz funcionar uma economia na qual se busca governar mais com menos.

9Conforme, por exemplo, Meyer et al. (2014b).

10Daniele Kergoat (1989), ao discutir a divisão sexual do trabalho em outra perspectiva teórica, refere-se a “competências tácitas” para designar estes componentes implícitos e não organizados da qualificação, adquiridos pela socialização lato sensu, e que incluem habilidades, atitudes, comportamentos e valores, além de conhecimentos e técnicas, que se tornam indispensáveis ao tipo de trabalho realizado, mas não são valorizados como qualificação stricto sensu.

11Destacamos que, na imagem analisada, os supostos “anjos” (assim como as crianças) são representados por pessoas brancas e reconhecemos que esse aspecto carece de análises específicas, às quais, pelas limitações de tamanho deste artigo, não faremos neste momento.

Recebido: 12 de Março de 2018; Aceito: 29 de Janeiro de 2019

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